À deriva, na cidade murmurante

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: Contemporary Art, Arte Contemporanea, José Rufino
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À deriva, na cidade murmurante
Erly Vieira Jr
À beira da BR-262, sob o som onipresente do tráfego pesado de carros e caminhões que percorre, dia e noite, a rodovia, situa-se Viana. Em meio a tantos ruídos, a cidade instala-se e oferece-nos seu cotidiano quase silencioso, como se fosse uma pausa, um mergulho em outro tempo e espaço que por vezes fazem-nos esquecer que estamos na região metropolitana da Grande Vitória.
Logo na entrada da cidade, uma placa no cruzamento da linha férrea convida: "Pare. Olhe. Escute". Afinal, são cento e cinquenta anos de construção murmurante de uma identidade cultural bastante própria, de uma forma de se relacionar com o mundo a partir de poucas palavras, que faz com que cada som mereça ser escutado e degustado em toda sua extensão.
Este foi um dos pontos cardeais imaginários que usamos para nortear a realização do documentário Silentio, que, em seus doze minutos de duração, buscou dialogar tanto com a exposição homônima realizada em 2010 por José Rufino, quanto com as atividades da ação educativa, acompanhando uma oficina, voltadas para crianças, em que se propunha investigar vestígios afetivos, sensoriais e fragmentos de memória pelas paisagens percorridas por Rufino ao coletar o material com o qual construiu a obra apresentada na Galeria Casarão.
Aqui, a paisagem é uma categoria fundamental: ao se configurar como uma construção subjetiva que fazemos dos lugares em que habitamos/percorremos e deixamos rastros (como já dizia Anne Cauquelin), é nela que depositamos uma série de afetos, que estruturam um forte vínculo de pertencimento com tais lugares. Ao percorrer os espaços e investi-los de afeto, o artista constrói suas próprias paisagens afetivas, que irão dialogar com as dos moradores que há vários anos estão naquela região. E ao propor a um grupo de crianças que também façam esse percurso, Rufino propõe uma nova interação entre paisagens imaginadas: as dele, as dos moradores e as dessas crianças, que as registram prontamente em seus cadernos de desenhos e câmeras de vídeo.
Ao realizarmos o vídeo, que se propunha a ser mais que um registro desse evento, buscamos também construir nossas próprias paisagens, como uma espécie de prólogo, de modo a lançar o espectador no tempo-espaço em que a exposição Silentio se nutriu para ser elaborada. O aviso na placa da linha férrea nos conduz a uma experiência sensorial, tentando apreender os murmúrios que brotavam do espaço quase silencioso de um conjunto habitacional, recém-devastado pelas inundações que afligiram o município em novembro de 2009. As casas vazias, sem vidros nas janelas, as marcas do avanço silencioso das águas nas paredes, a nuvem de poeira seca que se levanta lenta e amplamente, quando uma escavadeira cruza a deserta estrada de chão que circunda a região.
Em seguida, a marca da nossa presença: os passos que produzem estalos, ao pisarmos os cacos de paredes, restos de mobília e azulejos espalhados pelo chão, o som áspero do atrito entre nossos calçados e os pequenos montinhos de terra seca que se acumulam pelos cantos dos cômodos. Uma poeira que tanto é resíduo da tragédia quanto do esquecimento que se abate por várias daquelas residências, abandonadas logo que as águas chegaram e não mais retomadas quando de sua partida.
Em seguida, temos a presença, no vídeo, de Rufino conduzindo o grupo de crianças, que esboçam um olhar a princípio tímido, mas bastante curioso acerca dos vestígios que encontram no local. Impossível não conter o espanto quando percebem que o nível das águas, registrado na parede externa de uma das casas com uma seta desenhada junto à data em que ele foi atingido, ultrapassa em muito a altura de cada um desses meninos e meninas.
E, seguida, temos a linha do trem, e sua estabilidade férrea a contrastar com a dimensão do efêmero que percebemos na cena anterior. Nos varais, à beira de um regato, roupas tremulam ao vento, apontando a presença de uma comunidade vivendo em barracos de tábuas, porém dotados de grande afeto – exatamente o local bucólico, precário, em que Rufino encontrou boa parte dos vestígios trazidos pelo que chama de uma "democracia trágica" praticada pelas águas, ao fazerem se misturar fragmentos de objetos que outrora pertenceram a pessoas mais ou menos abastadas, numa espécie de "limpeza dolorida".
Exatamente por isso ele afirma que foi essencial manter contato com essas pessoas, antes de se apropriar de qualquer um daqueles restos de madeira: raízes, pedaços de móveis e outros artefatos que viriam a compor a sua instalação no Casarão. Criar um vínculo afetivo, que inclusive se mantém quando retornamos ao lugar para a realização da oficina: Rufino faz questão de devolver-lhes as imagens que capta em sua câmera, mostrando-lhes e propondo uma leitura do espaço que habitam e percorrem todos os dias. E assim, busca também sensibilizar os meninos a reverem tais paisagens, através dos desenhos vídeos e fotos que produzem nessa empreitada.
O mesmo processo se desdobra em outros aspectos de Viana: tanto no incansável trabalho dos tratores e escavadeiras, em constantes obras de construção civil que ocorrem quase sem parar nas cercanias daquela pequena comunidade, quanto numa visita ao silêncio de Araçatiba, que parece erguer-se nessa comunicação sem palavras, apontando para uma curiosa relação de esquecimento do passado (vide as portas fechadas de sua igreja histórica), que pede urgentemente para ser reconfigurada a partir de um diálogo entre as diversas tradições (europeias, africanas e indígenas) e as irrupções de pós-modernidade que brotam pelos cantos da cidade, ora no ruído das máquinas, ora no silêncio dos semblantes, ora nos fragmentos silenciosos que a água da enchente nos trouxe, e que murmuram o tempo todo sua história, seus afetos, suas memórias, como uma concha que levamos ao ouvido para melhor escutar o que ela tem a nos dizer.


Erly Vieira Jr é escritor, cineasta e professor do Departamento de Comunicação Social da Ufes. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, participou da ação educativa da exposição Silentio, de José Rufino (2010), na qual realizou o documentário homônimo, disponível no site: https://vimeo.com/9813598

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