A dialética entre preguiça e trabalho na criação poética de Mário Quintana

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ESSE TRABALH0 SE PROPOE a uma breve reflexão sobre a provocação poética de Mário Quintana, ao afirmar que seu "método de trabalho" consistia na "preguiça". Meu objetivo é demonstrar, por meio dessaafirmação, como o processo de criação poética pode ser compreendido como não atrelado à necessidadede produção que norteia a maior parte dos demais tipos de trabalho, mas a uma outra necessidade relacionada a uma dimensão mais profunda do espaço e do tempo ou da sensibilidade: a dimensão da imaginação - que por sua vez exige uma especial disposição de espírito, descrita por meio desta irônica expressãoquintaniana da "preguiça". Sem a pretensão de esgotar todos os aspectosfilosófrcos da obra de um dos mais originais poetas brasileiros, este é tão-somente um (entre outros) ensaio, inspirado na arte filosófica do nosso saudoso Gerd Bornheim. Gerd, que como ninguém nos conduzia generosamente pelos caminhos inusitados de seus pensamentos, ilustrando-o sempre que podia com imagens captadas do vasto terreno da história da arte, que tão bem conhecia, dedicou-se nos últimos anos de sua vida à reflexão estética,lapidando cadavez mais a sua escrita filosófica paÍa a forma do ensaio, presente em uma significativa tradição filosófica e adotada por pensadores como Goethe, que, transitando entre as atividades da filosofia, da ciência danatareza, da poesia e do teatro, dispunha exemplarmente da multiplicidade de sentidos do termo alemão"VersLtch",que significa, tal como o nosso "ensaio" em português, tentativa, esforço, teste, prova, experimento.

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Meu ensaio não consistirá na tentativa de interpretar a poesia de Mário Quintana. Pois, segundo o próprio poeta, além de urna tarefa desnecessária,interpretar um poema é algo próximo do impossível. O motivo desta inutilidade e impossibilidade estaria, para Quintana' no fato de que a poesia é ela mesma uma interpretação do mundo. Tampouco me empenharei aqui por analisar filosoficamente os ditos "quintanários" de Quintana, pois, como alguns de nós sabemos,ele também não era muito chegado à filosofia. Em um aforismo intitulado "Epígrafe para uma histó' ria da f.Iosofia", ele afrrma que "o exercício da filosofia nunca solucionou coisa nenhuma'1 "é como jogar xadrez consigo mesmo - sentenciao poeta -'Fica-se eternamente empatado'i' Declarou ainda em outro poema que, ao contrário de ler filosofia, preferia fazer o que chamava de "filosofanças". Meu experimento consistirá então em compreender o conteúdo disso que é uma mistura quase alquímica entre poesia e filosofia. A palavra filosofança lembra em rima e ritmo algo burlesco, cômico, irônico, tal como a "lambança" que uma criança faz ao devorar um doce proibido. E ela rima também com a própria criança, cujo espírito parece imperar na poesia de Mário Quintana, não apenaspor ser esta um de seusmais adequados leitores, mas porque dela o poeta retira a profundidade de um certo olhar já propriamente experienciado. Filosofança rima ainda com esperança,um sentimento freqüentemente cantado pelo poeta, tal como um estado de espírito que traduz, de forma sintética, o ser voltado para o futuro - aquele mesmo ser que também habita a criança. E por último, a filosofança de Quintana rima com lembrança - uma memória especialmente sensitiva, guardada no interior do velho poeta. Lembrança principalmente dos tempos da infância: da velha casa cheia de cômodos, Qtl€ o assustavamais que o vasto mundo, lembranças das brincadeiras de roda, do girar da ciranda, do soar dos grilos, do coaxar monótono dos sapos,o qual cruelmente comparava ao choro insistente das próprias crianças... Lembranças dos tempos de escola, da separaçãoentre gurias e guris na sala de aula, das leituras da infância e dos amigos sobreviventes de sua geração. Lembranças também dos amores - que o poeta de i{legrete era econômico em revelar seus romances, mas deixava vez ou out'ra entreverse uma moça aqui, outra ali... Lembranças muitas vezesdos mortos: meninas, avós, pássaros,coisas.A morte se encontra na poesia de Quintana não de forma triste e incontestável, nem como a explícita libertação do mundo, mas como experiência da superação do tempo, como o verdadeiro despertar para um outro e mais misterioso mundo. Quintana é o poeta dos enigmas, mas não um enigma que há de ser decifrado. Quintana é o

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poeta do mistério pousado nas pequenas coisas, simples cousas, como gostavade pronunciar em português arcaico,cousascomo sapatos,guimbas de cigarros, instrumentos musicais, relógios, telhados...Quintana é o poeta das coisasanimadas em seu silêncio e imobilidade profundos. Ele é também o poeta dos bichos humanizados, sem que essaprojeção lhes reduza ao vazio da futilidade humana. A alma que Quintana empresta aos bichos - em geral bichos alados, como passarinhos,pintinhos, libélulas e besouros verdes- é aprópria alma do poeta antes ou depois do poema. A alma quieta e incomunicáryel,taI como um instrumento musical adormecido. As coisasdormem e os bichos morrem na poesia de Mário Quintana. E os anjos - essesseres que passam com freqüência pelos versos do poeta de Alegrete -, esses,por vezes,choram, ou se encharcam sob uma chuva fina e fria. Sua mensagem não é explícita, pois eles não vêm para salvar ou consolar ninguém. Agem assim como os fantasmas:passamsem palavras, só como imagens. Imagens que de novo não precisam ser interpretadas, pois são, elas mesmas, apr6púa interpretação do mundo pelo poeta triste. A tristeza de Quintana não é só triste, ela é bela e também engraçada. Não é escura e amarga, mas doce e iluminada. A tristeza da poesia de Quintana é melancolia romântica que surge daquelaslembranças que vem da consciência da morte ou da infinita finitude do mundo. Tudo é contradição na poesia de Mário Quintana. Tudo é dialética. Não uma dialética fundada na sofística que até hoje impera no mundo, mas a dialética pré-socrática, a dialética de Heráclito, ao qual chegao poeta gaúcho a dedicar uns versos, para tranqüilizar o mestre quanto à continuidade da mudança. Eis aqui mais um substantivo que rima com filosofança! Creio que a principal característica do pensamento poético de Mário Quintana, desta filosofança que sintetiza a dialética heraclítica fundada na consciênciada mudança com o espírito poético e livre da criança, pode ser apreendida não pelo conteúdo mesmo de sua obra poética - que se expressapor si mesma e não carecede nenhuma interpretação - mas pela forma, ou pelo método de sua criação poética, que ele mesmo qualifica como "método de trabalho". Este "método" explicitamente denominado de preguiça. Lembremo-nos que a preguiça era considerada no passado como um dos pecados capitais, mais tarde substituída pela melancolia. Chego finalmente agora à consideração sobre a descrição implícita e explícita do poeta desseseu método de trabalho. Quintana define o seu trabalho como um processo extremamente lento, não pelo excessode revisões lingüísticas ou por ter um metodo que exigissemuita reflexão, mas por ter um método que se estendepela incapa-

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cidade de adequar a própria criação poética ao espírito de uma sociedade industrial centrada no parâmetro da produtividade. Por isso, afirma o poeta nos primeiros versos de seu livro intitulado A preguiça como método de trqbalho: Não sei.pensara máquina, isto é, faço o meu trabalho criativo primeiramente a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda,repasso tudo a máquina com um dedo só. - Mas isso não custa muito? - Custar, custa,mas dura mais....r Essa vagarosidade da criação do poeta, que muito provavelmente não se encerra na escrita do lápis, visa tão somente prolongar o gozo da própria criação. Essedigitar, letra por letra, tecla por tecla, em uma postura preguiçosa, quase sonolenta, uma postura mais típica de quem lê do que de quem escreve,visa também aproximar o leitor do poeta. Pois o ato da leitura é também descrito por Quintana como este preguiçoso e sonolento ato. Diz eleno segundo poemeto do liwo: "Não despertemos o leitor. Os leitores são,por nat:uÍeza,dorminhocos. Gostam de ler dormindo."2 Esseleitor ideal - o leidor, como gostava de chamar - tem portanto a mesma natluïeza do poeta. Nesse seu ler-dormindo, ele provavelmente sonha,um sonho-meio-acordado.É que a poesialhe despertao ato da imaginação, e a imaginação é uma espécie de sonho, ou uma criação de imagens que exige uma certa imobilidade, ou uma certa suspensãodas atividades cotidianas. Em outras palavras, exige o tempo arrastado do ócio. O mesmo ócio que o velho filósofo grego Aristóteles reivindicava como a conditio sine qua non para o filosofar, o ócio que o próprio Quintana também atribuiu como causada democraciagrega. Esseócio liberta não só do ritmo desenfreado da produção prosaica, como da opressãode uma realidade sem imagem; uma realidade mecânica fundada só em números; uma realidade constituída por uma sociedade, cuja base o poeta denomina de "lugar-comum"; uma sociedade que se asseguÍa na consensualidade de fua política, de suas instituições estáveis,de sua frlosofia; uma sociêdade qrÈ não leva a sério as idéias originais de um poeta. Por isso,a poesia de Quintana é engraçada, não porque seja risível, mas porque é construída sobre idéias originais. Porém, essaoriginalidade não significa dizer o que nunca foi dito, mas dizet as verdades mais profundas, aquelas que se encontram na origem do ser humano. Quais seriam essasidéias que suÍgem através do método da preguiça? Antes de tudo, se encontra a idéia dafalta, da ausência do outro,

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a idéia da solidão absoluta. Em um poemeto intitulado "Na aurora do mundo", pÍesente no livro sobre a preguiça, Quintana expressaassim essaque talvez seja a mais originária de suas idéias originais: "A primeira criatura que pensou numa outra criatura ausente,como deve ter-se espantado! Não sabia que se tratava de seu primeiro pensamento humano."3 A primeira das idéias é também a origem do sentimento de solidão humana, uma solidão nem sempre consciente e nem sempre causada pela falta. Pode-se,como bem sabeo poeta, sentir-se só no meio do formigueiro humano. E é aí que surge a poesia: como remédio, como cura, não propriamente da solidão (condição inevitável de todo ser humano), mas do nau* frágio do indiúduo no oceano indiferenciado do mundo. Em seu poema "Comunicação" ele nos fala deste remédio para a solidao oferecido ao leitor no ato da leitura: [...] a leitura é um remédio paraa solidãoem que üve cadaum de nós nesseformigueiro. [...] e o sonho do escritor, do poeta, é individualizar cada formiga num formigueiro, cada ovelha num rebanho - para que sejamoshumanos e não uma infinidade de xerox infinitamente reproduzidos uns dos outros.a A critica à condição opressiva de rebanho da sociedade humana se repete através dacritica a uma forma de arte que reproduz essacondição de massa impessoal. "Mas acontece - prossegue Quintana - que há também No poema autores xerox, que nos invadem com aqueles seusbest-sellers..l's. Eles, Quintana descreve essaarte (a qual poderíamos acrescentar - parodiando Benjamim - dos tempos da reprodutibilidade técnica) como arte coletiva, como poesia coletiva: "Nada mais natural que eles façam propaganda de uma arte coletiva, de uma poesia coletiva: os rebanhos desconhecem a primeira pessoado singular."6 A poesia de Quintana visa então resgatar essemomento único desperto por um poema que contém a idéia original e originária da solidão humana. Esseresgateé também o resgateda liberdade. Mas esta não é pintada pelo poeta como um sentimento de plenitude e ptazer.Ambigüamente ela é descrita como aquilo que se paga pela poesia "o preço da poesia" diz ele no aforismo intitulado Liberdade "é a eterna liberdade..."7. Nesse sentido, ser poeta significa, ao mesmo tempo, estar absolutamente só e ser eternamente livre. Como, aliás, o é todo o ser humano auto-consciente. E é por isso que Quintana se queixa da presença de "visitas" em seu ambiente de trabalho, principalmente "quando não (está) fazendo nada"8, já que o

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ócio ou a preguiça que o poeta sente - uma preguiça que definiu no aforismo intitulado A preguiça, Roma, os discosvoadorese outras coisasafins,"no sentido próprio'] como "longa, arrastada"- consiste no lugar e no tempo de preparação para a sua criação poética. Essapreguiça, por vezesatribuída ironizando algumas teorias sociológicas sobre o Brasil - "à questão de raça" e de "clima"e,.é também a purificação em relação a idéias preconcebidas e teorias preestabelecidas.É momento de esquecimento, no qual o poeta se envolve para libertar a alma de todo pensamento conceitual e formal. Por outro lado, sabe o poeta, que a criação poética não surge de um puro nada. Não se trata de esvaziar a mente de toda a idéia, buscando uma espéciede fiat divino da criação poética. No poema já referido "Filosofança I Quintana deixa isso bem claro: Sabes?Não creio muito no fiat divino. Alguém já deve ter pensado que nada setira do nada e tudo é desdesempre.Poisuma eternidadea partir de determinado instante é para mim tão impossívelcomo um infinito no quilômetro zero.Digo que alguémjá o deveter pensadoporque não leio filosofias. Bastaa minha filosofança.A qual tem a vantagem - ó divina preguiça de não armar sistemas,tratados, sumas...Agora, se o leitor for muito lido, terá o grande prazer de me denunciar. Mas, se for com eu, muito obrigado! Choque aqui estesossos!r0 A recusa do pensamento sistemático e conceitual do poeta não é de modo algum a recusa da idéia, que é superior ao simples conceito. Ao contrário deste, aidêia pode ser apreendida de forma intuitiva através do poema, assim como a escrita poética pode ser apreendida de forma intuitiva. No aforismo "Leitura", compara Quintana:'Aprende-se a escreverlendo, da mesma forma que se aprende a dançar bailando."rr Para descrever um pouco mais a criação poética, Quintana faz outra preciosa analogia. O vento, ou a canção do vento é freqüentemente tomada como inspiração para a poesia: "O vento" - diz ele - "gosta é de cantar: quem faz uma letra para a canção do vento?"12Essa analogip natural se deixa comparar com a concepção mítica presente na antiga Grôcia que descreve a origem da poesia através da transformação das ninfas das fontes em musas. As ninfas, nome que em grego significa tanto "noiva" quanto "velado" (lembrem-se que uma das mais famosas ninfas, a mãe de Hermes, se chamava Maia!), eram personificações de certos aspectosda natureza, como o mar, as fontes, os bosques e as montanhas. Ao contrário dos deusese deusas, as ninfas hão são imortais, embora sua existência seja calculada por

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uma formula quaseinfinita de tempo,que multiplica a idadedosseresmortais mais longevosda terra. As musas,essasdeusasimortais que animam com suasartes,asfestasdos deusesdo Olimpo, teriam surgido,como narra Hegelem staEstética,de uma elevaçãodasnáiades.SegundoHegel,os gregos teriam ouvido o sussurrardasfontes e se perguntado- tal como pergunta Quintana sobreo vento - o que elastinham a significar.Mas, como observaHegel,essesignificadosediferedo que elechamade "sentidoobjetivo da fonte",ou seja,o significadonãoé amúsicamesma,masa letra dada a ela pelo poeta,ou, naspalavrasde Hegel"o sentidosubjetivodo próprio sujeito".É estesentido que teria elevadoas náiadesem musas:'Asnáiades ou fontes são o começo exterior das musas.Pois os cantosimortais das musasnão sãoisto que seouve,quando seescutao murmúrio dasfontes, elassão ao contrário a produção do espírito,que ouve e dá sentido,que nesseseuescutarasproduz em si mesmo."l3 Â origem poéticada inspiraçãoé explicadapoeticamentena Estética de Hegelcomo a interpretaçãoda naturezana forma de elevaçãodo fenômeno natural ao sentidosubjetivoe espiritualproduzido pelo próprio poeta.Quem inspira o poeta não é mais a fonte natural, de águasque produzem um som pré-musical,mas a musaque já é arte, que já é deusa,que já espirituale imortal, que já é poesiamítica.A criaçãopoéticae a criaçãono sentido mítico são aproximadastodo o tempo pela metapoesiade Mário Quintana,que chegamesmoa seirritar com a perguntasobreo sentidode suacriação.Reaproximandocontraditória e ironicamentea criaçãopoética do fiat divino, ele aconselhaa eventuaisleitorespoetas:"E sete apertarem muito sobreo que quisestedizer com um poema,pergunta-lhesapenaso que Deusquis dizer com estemundo..."la"O versoé - resolveeleem outro aforismo- antes,de mais nada,uma fórmula encantatóriae o melhor poeta é aqueleque tenhadescobertomaior número dessasmágicas."ls Nesteprocessode invençãode magia,a imaginaçãopossuium papel decisivo,tanto na atividade de quem produz a obra de arte, quanto, principalmente,na posiçãosempreativa e também criativa daqueleque a contempla.No aforismo intitulado "Completude",Quintana revelauma de suasmágicasfórmulas, a que conectao sentimentooriginário da falta aqueleque consistena condiçãofundamentaldo serhumano com a atividadetambém originária da imaginação:"Olha essasantigasestátuasmutiladas!",convida o poeta, "São tanto mais belas quanto mais lhes falta. Isto é,quantomaisdevemà tua imaginação...."r6 A imaginaçãoé amâgica que ocorre no ato do ócio da contemplaçãodessemomento preguiçoso, de quem não tem nada melhor parafazerdo que ficar ali parado,olhando

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uma estátua.Um momento sem pressa,arrastado, desgarrado da vida cotidiana, enroscado nas próprias imagens, em torno de si mesmo. A circularidade e o prazer desseprocesso da imaginação são descritos em um pequeno aforismo de Quintana intitulado "Linha curva". "O caminho mais agradável entre dois pontos - define ele - enquanto a "Linha reta" é a "Linha sem jmaginaÇáo"rt. O tempo da imaginação mâgica do poeta é o tempo da eternidade, definida por Quintana como "um relógio sem ponteiros". Tiata-se do tempo presente, um tempo onde contraditoriamente habitam a "saudade" e a "esperança".Contraditoriamente, porque, segundo Quintana, mais lógico seria se a primeira vivesse"na casado passado" e a segunda "na casado futuro". E quando indagado por seu interlocutor imaginário: "Mas e o Presente, seu moço?", responde depressa:"4h, essenunca está em casa."r8 O tempo do poema é também freqüentemente associado à sua rima, ao seu ritmo interno, cuja imagem mais recorrente na poesia de Quintana consiste em outra fonte de inspiração do poeta, ou em outra ninfa tipicamente gaúcha.A chuva, com seu gotejar sincopado, serve de percussãopara melodia. Mas a a canção do poeta, da mesma forma que o vento traz a s:u;a pobre poeta não se contenta com a rima e certinha da chuva imaginação do que cai gota a gota sobre algum telhado. E ele enriquece o poema, rompendo a rima com uma idéia inesperada. Um exemplo da quebra do ritmo da poesia pela idéia original está no poema intitulado "Velho tema", que trata da chuva: Chove. Cada gota é uma rima pobre. Sabes?... Sempreque chove,tudo faz tanto tempo... E qualquer poema que acasoeu escreva Vem sempre datado de 1899.te Impossível não lembrar do singelo e sincopado poema Canção da garoa em que Quintana reúne três de seus símbolos mais carol: a chuva, o I relógioeoanjo: Em cima do meu telhado Pirulim, lulim, lulim, Um anjo todo molhado Soluça no seu flautim O relógio vai bater

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As molas rangem sem fim E o retrato na parede fica olhando para mim Chove sem saberpor que E tudo foi sempreassim Pareceque eu vou sofrer Pirulim, lulim, lulim.2o O relógio ideal e sem ponteiros de Quintana, tal como o relógio surrelista que se derrete na tela de Salvador Dali, é um relógio inútil, um relógio que não marca o tempo, mas apenaso ritmo do poema. Quintana amava os relógios e seu ritmo, mas odiava os seus ponteiros, principalmente aquele terceiro ponteiro, cruelmente inventado - dizia ele - para dar mais rapidamente (precisamente, em 60 segundos) a volta no mostrador. "Por que" - perguntava o poeta já velho - "porque tornar visível a passagemdo tempo?"2r. Para ele, "O tempo é um ponto de vista. Velho é quem é um ano *Na poesia, em geral - acrescentaele - passado e mais velho que a gente."22. presente são um tempo único."23O tempo único e eterno da poesia equivale ao tempo arrastado da melancolia, e o espaço da imaginação é o espaço interior da própria subjetividade, que nada tem a ver com a ipseidade decorrente da filosofia moderna. O processo de interiorização, necessário à criaçáo poética, é adquirido, segundo Quintana, pela própria leitura da poesia.No poema intitulado "fardim fechado", Quintana julga a moderna invenção urbana dos jardins "com vista para rua" como "mera ostentação burguesa" e defende: "Todo jardim devia ser no interior (nos dois sentidos do termo) um jardim fechado, com uma fonte ao centro e alguém sentado nele, talvez lendo estaslinhas ...."24A fonte da r'atlJÍeza,que inspira o poeta, ecoa agora para a imagem do poema que cerca o leitor ideal com seu jardim voltado para dentro. A metáfora da interiorização é também a defesa ao direito à melancolia, que, segundo Quintana, é a "maneira romântica de ficar triste"2s.Essedireito à interiorização, ao ócio contemplativo e freqüentemente melancólico de quem se retira do mundo tanto para o ato da leitura, quanto para escrevero poema, é um momento sagrado que não pode ser perturbado por visitas inoportunas, a não ser que seja algum especial"Visitante noturno", que magicamente reflete o caos obscuro que antecedea iluminação estelar da criação poética:

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Veio da noite, atraídopelaluz de minha janela.Suagenli I v isit it ttteçottr pensanão sei de quê. Fico a examiná-lo em silêncio: nada possonem sei dizer-lhe. E assimnos quedamospor um breve instante - frementes,incomunicóveis e juntos... Dois universos dentro do mesmo mundo!26 O breve instante do poema guarda a eterna profundidade da ligado poeta com esta natueza mágica, cujas formas se transforinfinita ção mam em símbolos, em cifras, em escudoscontra o mundo prosaico e sem imaginação em que somos freqüentemente obrigados a viver. Mas a poesia em geral, e em especial a poesia de Mário Quintana, nos retira desse mundo, congelando os ponteiros dos relógios, paralisando no ar as canetas, interrompendo por um instante o Pequeno vôo de um inseto e desviando o olhar das coisas aparentemente grandiosas do mundo para as pequeninas e silenciosascoisasque conseguem espelhar tão claramente a nossa eterna solidão.

*Márcia C.F.Gonçalves da DoutoraemFilosofiaeprofessora IIniversidadedo Estadodo Rio deJaneiro

NOTAS

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Pousou agora mesmo - precisamentesobre a velha canetaque eu havia erguido um momento à cata de um adjetivo - um insetozinho verde que tem a forma exata de um escudo.

r Quintana,Mário (1906-1994):Da preguiçacomométodode trabalho.SãoPaulo, Globo,2000,p.5. 2Idem. 3Ibidem,p.33. a lbidem,p.37-8. 5Idem. ó Ibidem,p.72. TIbidem, p.97. 8Ibenda,p.44. e Ibenda,p.45. 10Ibidem,p.62. 11Ibidem,p.29. 12Ibidem,p.31.

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FILOSOFIA E LITERATURA 13Georg Wilhelrn Friedrich Hegel. Voilesungenübr ilie Philosophieder Gachichte. ln Wqke in 20 Biinden (volume l2). Eva Moldenhauer e IGrl Markus Michel (org.). Frankfurt am Main, Suhrkamp,1971,p.289.(Traduçaominha.) tó Quintana, Mári,o (190ó-1994):Da pregtiça como métodoile trabalho. SãoPaulo, Globo, 2000,p.34. 15Ibenda,p.46. rólbenda,p.31. 1?Ibenda,p.53. roIbenda,p.50. It Ibenda,p.55. 20Quintana,Mario:80 anosde Poesia.Tânia FrancoCarvalho(org.). 2" Ed. Rio de Janeiro,Globo, 1987,p.30. 2t Quintana, Mário (1906-1994):Da preguiçacomo métodode trabalha. SãoPaulo, Globo, 2000,p.56. 22Ibenda,p.61. 23Ibenda,p.69. a Ibenda,p.54. ã Idem. 2óIbenda,p.57.

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