A DIGNIDADE DA PESSOA DO TRABALHADOR E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO PELA VIA DA TERCEIRIZAÇÃO

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

CAPA: imagem divulgada em https://teubrilho.files.wordpress.com/2015/04/ego.png?w=540&h=408

Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 3

TEMAS ATUAIS DE DIREITO DA PERSONALIDADE Volume II

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 5

Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro Jose Francisco de Assis Dias Mithiele Tatiana Rodrigues (Organizadores) AUTORES: Alessandro Severino Vallér Zenni / Aline Gabriela Pescaroli Casado / Andréa Silva Albas Cassionato / Camila C. O. Dumas / Daniela Menengoti Ribeiro / Fabíola Cristina Carrero / Gisele Mendes de Carvalho / Jackson Matheus Porfírio / Jeane Genara Volpato / Jose Francisco de Assis Dias / Luciana Chemim / Malu Romancini / Milaine Akahoshi Novaes / Paulo Ricardo Vijande Pedrozo / Thaís Aline Corazza / Zulmar Antonio Fachin

TEMAS ATUAIS DE DIREITO DA PERSONALIDADE Volume II Apresentação Prof.ª Dr.ª Valéria Silva Galdino Cardin - UEM Prefácio Prof. Dr. Roberto Marquesi - UEL Primeira Edição Ebook

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida! Maringá – PR – 2015

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

Copyright 2015 by Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro; Jose Francisco de Assis Dias; Mithiele Tatiana Rodrigues EDITOR: Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL: Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. José Beluci Caporalini - UEM Dr. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Bruno Macedo da Silva Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) T278

Temas atuais de direito da personalidade, volume II. / organizadores Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro, José Francisco de Assis Dias, Mithiele Tatiana Rodrigues; autores, Alessandro Severino Vallér Zenni...[et al.]; prefácio de Prof. Dr. Roberto Marquesi. – 2. ed. (impressa) – Maringá, PR: Vivens, 2015. 224 p.; 14x21 cm. ISBN: 978-85-8401-040-0 Disponível em: www.vivens.com.br 1. Direito. 2. Direito da Personalidade. CDD 22. ed. 346.013

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610 Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Sebastião Alves, nº 232-B – Jardim Paris III Maringá – PR – CEP: 87083-450; Fone: (44) 3046-4667 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..............................................................09 PREFÁCIO.........................................................................11 I - A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS E A GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO: UMA ANÁLISE DO CASO “MENSALÃO” Daniela Menengoti Ribeiro Malu Romancini Milaine Akahoshi Novaes................................................. 13 II - A DIGNIDADE DA PESSOA DO TRABALHADOR E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO PELA VIA DA TERCEIRIZAÇÃO Alessandro Severino Vallér Zenni Paulo Ricardo Vijande Pedrozo..........................................43 III - A LIBERDADE DE IMPRENSA E A CENSURA JUDICIAL: UMA PERSPECTIVA SOBRE AS OBRIGAÇÕES DE NÃO FAZER E A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Jackson Matheus Porfírio Luciana Chemim.................................................................83 IV - DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE E A JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM CAMINHO A SER PERCORRIDO NO BRASIL Aline Gabriela Pescaroli Casado Gisele Mendes de Carvalho..............................................105 V - DIVÓRCIO POR ESCRITURA PÚBLICA E GRAVIDEZ IGNORADA

Andréa Silva Albas Cassionato Jose Francisco de Assis Dias......................................... 137

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

VI - DO ACESSO À MORADIA COMO INSTRUMENTO GARANTIDOR DE EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA

Jeane Genara Volpato Fabíola Cristina Carrero Zulmar Antonio Fachin.......................................................161 VII - O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO SOLUÇÃO DA CRISE DA INFLAÇÃO PENAL

Camila C. O. Dumas Thaís Aline Corazza............................................................193

APRESENTAÇÃO

A obra “Temas Atuais De Direito Da Personalidade”: Volume II, organizada pelos Professores Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro, José Francisco de Assis Dias e Mithiele Tatiana Rodrigues, é composta por textos que versam acerca da proteção dos direitos da personalidade, dos direitos fundamentais e dos direitos humanos em prol da dignidade daqueles que integram a sociedade. Os temas são variados e estão divididos em sete capítulos, tais como: A convenção americana sobre direitos humanos e a garantia do duplo grau de jurisdição: uma análise do caso ‘Mensalão’; A dignidade da pessoa do trabalhador e a precarização do trabalho pela via da terceirização; A liberdade de imprensa e a censura judicial: uma perspectiva sobre as obrigações de não fazer e da garantia dos direitos fundamentais; Direito fundamental à liberdade e a justiça restaurativa, um caminho a ser percorrido no Brasil; Divórcio por escritura pública e a gravidez ignorada; Do acesso à moradia como instrumento garantidor de efetivação da democracia; e O princípio da insignificância como solução da crise da inflação penal. Esta obra é fruto da pesquisa realizada por acadêmicos e professores que tem por intuito a divulgação dos resultados daquela, não só para a comunidade científica como para a sociedade. Instiga ainda, o leitor a realizar reflexões acerca de temas polêmicos e que necessitam de uma análise mais acurada para que o Poder Judiciário tenha subsídios no julgamento de litígios que versem sobre os temas abordados. Portanto, é uma honra apresentar este livro que muito contribuirá para aqueles que trabalham na área do direito. Valéria Silva Galdino Cardin Maringá/PR, 2015

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PREFÁCIO

O fenômeno da interdisciplinaridade é, sem dúvida, uma tendência que vem se desenvolvendo na experiência jurídica já há algumas décadas. Ele rompe com o paradigma do engessamento do sistema, que fazia com que o Direito apresentasse uma natureza excludente e pouco permeável às outras ciências sociais. E, de igual forma, impedia que os vários ramos do Direito dialogassem entre si. A obra ora apresentada assinala essa superação de paradigmas, porquanto apresenta uma vasta ementa de temas que, oriundos dos diversos ramos das ciências humano-sociais e dos ambientes do Direito, convergem para um só ponto, que é o da proteção aos mais caros valores do ser humano, consubstanciados nos direitos da personalidade. Nesse passo, temas relacionados ao Direito do Trabalho, ao Direito de Família, ao Direito Penal e ao Direito Processual, a par de tema vinculado aos princípios democráticos, permeiam a obra, que foi construída de modo a relacioná-los e fazê-los convergentes. Os direitos da personalidade, cuja abordagem mereceu a pena de ouro de juristas como Adriano de Cupis e eram já conhecidos nos séculos que antecederam a cristandade, ganham assento constitucional, porquanto relacionados à dignidade da pessoa, que, em sistemas como o brasileiro, constituem princípio cardeal do sistema. Segue daí que o estudo contido na presente obra é digno de encômios e agregam significativo aporte ao estudo dos temas da personalidade. Roberto Wagner Marquesi Doutor em Direito Civil pela USP

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-IA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS E A GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO: UMA ANÁLISE DO CASO “MENSALÃO” Daniela Menengoti Ribeiro* Malu Romancini** Milaine Akahoshi Novaes***

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Professora do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas, graduação em Direito e Especialização EAD da Unicesumar. Pesquisadora da FUNADESP. Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) “Internacionalização do direito: dilemas constitucionais e internacionais contemporâneos”. Doutora em DireitoRelações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, França. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período de pesquisa no Mestrado em Integrazione Europea da Università Degli Studi Padova, Itália. Bolsista CNPq no mestrado e no doutorado. Especialista em Comercio Internacional y Inversiones, pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina. Especialista em Direito e Negócios Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (USFC). ** Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-PR. Pós-graduada em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional, pela Universidade Estadual de Londrina. Bacharel em Direito pela Faculdade Maringá. Bacharel em Secretariado Executivo Trilíngue pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected] *** Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá – PR. Oficial de Justiça Avaliador Federal no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Endereço eletrônico: [email protected]

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1.1 A GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO E INTERNACIONAL

O duplo grau de jurisdição é um princípio jurídico que, em breves palavras, traduz o direito de submeter o caso à análise de um órgão jurisdicional hierarquicamente superior ao prolator da decisão impugnada. A doutrina é uníssona neste ponto. Dessa forma, aquele que se sentir prejudicado com uma decisão do juízo a quo, tem o direito de recorrer, levando a matéria para ser apreciada outra vez por órgão ad quem, um Tribunal. Em outras palavras, “duplo grau de jurisdição é a garantia outorgada ao vencido de obter uma nova decisão, por um órgão jurisdicional superior e dentro do mesmo processo, que substitui a primitiva resolução recorrida” (PENTEADO, 2006, p. 41). Apesar de não assegurado explicitamente na Constituição Federal de 1988, o instituto do duplo grau de jurisdição é reconhecido de forma implícita quando se examina o disposto no art. 5º, LV, do texto constitucional: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Há ainda quem defende que o duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional que estaria implícito nos incisos LIV (devido processo legal) e LVII (presunção de inocência) do artigo 5º da Constituição1. No âmbito infraconstitucional, o direito ao duplo grau de jurisdição 1

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; [...] LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988)

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está assegurado pelo art. 593, do Código de Processo Penal, quando consagra o direito à apelação. Alguns autores, como Penteado, sustentam que o duplo grau de jurisdição tem a natureza jurídica de um direito público subjetivo, cuja finalidade é invocar a manifestação jurisdicional do Estado, diante de uma lide, reexaminando-se a primitiva decisão e proferindo outra que se sobreporá àquela (PENTEADO, 2006, p. 42). Contrários a este entendimento está a corrente minoritária de processualistas que nega o caráter de garantia constitucional do instituto do duplo grau de jurisdição, utilizando-se do argumento de que se trataria de mera regra de organização judiciária, não contingente e não dependente do devido processo legal (SÁ, 1999, p. 99). No entanto, tal raciocínio não se sustenta cientificamente, uma vez que se afasta claramente dos preceitos do Estado Democrático de Direito. A possibilidade de recorrer a um Tribunal superior é fundamental por duas razões principais. A primeira consiste no fato de que este benefício compele o juiz de primeira instância a decidir com mais cuidado, ao saber que sua decisão pode ser reformada. No mais, ademais, isto atende a compreensível insatisfação do réu condenado com sua sentença, que pode realmente ter tido como base fundamentos incorretos, ou ser considerada injusta (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2001, pp. 23-24). Além disso, a recorribilidade de decisões também cumpre a função de controle dos atos estatais. Isso porque, toda decisão do Poder Judiciário constitui ato carregado do caráter autoritário estatal, e assim, deve haver a possibilidade de ser submetido à revisão. O instituto do duplo grau de jurisdição surgiu no ordenamento brasileiro após a publicação do Decreto nº 678 de 1992, que promulgou e inseriu no direito brasileiro as cláusulas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, e que o reconhece como um direito líquido,

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indiscutível e incondicionado, e está contemplado no art. 8º, 2, h, ao dispor que “toda pessoa acusada de um delito tem direito [...] de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior” (PLANALTO. Pacto de São José da Costa Rica). Ou seja, após a promulgação do Decreto que inseriu a Convenção no ordenamento jurídico brasileiro, o duplo grau de jurisdição passou a ser previsto expressamente. Grande foi a discussão doutrinária e torno da hierarquia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, uma vez que a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, acrescentou o § 3º ao artigo 5º, determinando que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes à emenda constitucional. A questão tornou-se pacífica quando o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, em 3 de dezembro de 2008, modificou sua postura acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, determinando que os mesmos, antes equiparados às normas ordinárias federais, apresentam status de norma supralegal – isto é, estão acima da legislação ordinária e abaixo da Constituição. Para o ministro Gilmar Mendes2 parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções sobre direitos humanos. A tese prega que tais tratados seriam infraconstitucionais, porém, diante do seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, 2

Em seu voto, no Recurso Extraordinário 349.703-1/RS, o ministro Gilmar Mendes demonstra preocupação diante do disposto no artigo 98 do Código Tributário Nacional, que determina a prevalência do direito internacional sobre o direito interno em tratando-se de matéria tributária. Em relação aos tratados sobre direitos humanos, porém, reconhece-se a possibilidade de que seus efeitos sejam suspensos em razão de edição de lei ordinária. Ver a respeito em: JUSBRASIL. STF - Recurso Extraordinário: RE 349703 RS, p. 729.

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também gozariam de supralegalidade. Assim, manifestouse o ministro no sentido de que as normas internacionais devem estar acima da legislação infraconstitucional e abaixo da Carta Magna. Tais medidas também gozam de aplicabilidade imediata tão logo sejam ratificadas, conforme o § 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). Pode-se afirmar que os direitos e garantias previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos integram o rol de direitos fundamentais, em razão do artigo 5º, §2º da Constituição, sendo ainda auto-aplicáveis, segundo prevê o artigo 5º, §1º da Constituição. De acordo com o § 2º do artigo 5º, o rol de direitos e garantias previstos na Carta Magna não excluem aqueles decorrentes de tratados internacionais que o Brasil tenha ratificado. Em outras palavras, no que tange a direitos e garantias fundamentais, não há que se falar em taxatividade, mas sim em abertura para novos direitos (LOPES, 2012, p. 1156). Ademais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1966, dispõe em seu art. 14, 5, que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Pacto internacional sobre direitos civis e políticos.) Ainda a respeito do duplo grau, o STF finalmente incorporou em 2007 em seu repertório jurisprudencial, ao reconhecer que o instituto integra o sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais e que o Pacto fora incorporado ao ordenamento posteriormente ao CPP, concluiu que, mesmo que lhe seja negada envergadura constitucional, essa garantia deve prevalecer sobre o art.

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594 do CPP. (HC 88.420/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 8 jun. 2007) De acordo com o julgado, o duplo grau de jurisdição tem status constitucional, e, de outro lado, está contemplado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ainda, após a revogação do art. 594 do CPP, pela Lei nº 11.719 de 2008, não existe mais margem para discussão sobre o direito ao duplo grau de jurisdição no âmbito criminal. Sobre o duplo grau de jurisdição estabelecido em tratado internacional como norma constitucional, Lima explica que: Os pactos, ao tratarem do Duplo Grau de Jurisdição, estabeleceram sua aplicação incondicional no processo penal, desde que em benefício do acusado, uma vez que os Direitos e Garantias Fundamentais têm sempre o escopo de proteger o ser humano, nunca de prejudicálo. Segundo tais tratados, o Duplo Grau de Jurisdição é garantia jurídico-processual mínima e não deve ter nenhum tipo de interpretação restritiva. Ao contrário, sua aplicação diz respeito a todos, inclusive as autoridades sujeitas ao foro por prerrogativa de função (LIMA, 2006, p. 871).

As garantias contempladas nos tratados internacionais enfocam a pessoa humana como o sujeito do direito internacional dos direitos humanos. A pessoa, no sentido da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2, h), é o ser humano, e não o Estado ou seus representantes. (GOMES; MAZZUOLI, 2013, p. 146) Assim, conclui-se que o duplo grau de jurisdição é uma garantia constitucional consubstanciada no direito do acusado, de submeter o caso ao reexame por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior, para a tutela de interesse subjetivo. É, pois, possível perceber com clareza que não há respeito ao duplo grau de jurisdição em processos cuja competência originária seja do órgão que, na organização judiciária brasileira, se encontra na instância mais alta – o Supremo Tribunal Federal.

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Considera-se também que as normas que estabelecem a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar e processar ações penais estão em desacordo com a garantia do duplo grau de jurisdição, e, portanto, violam a Convenção Americana de Direitos Humanos. Neste contexto, insere-se o foro por prerrogativa de função dos envolvidos em um dos maiores escândalos de corrupção da política brasileira, conhecido como “mensalão”. O escândalo envolveu presidentes de partidos políticos, diretores e presidentes de banco, particulares e deputados federais – estes últimos, responsáveis por “atrair” a competência para julgamento ao STF. O foro por prerrogativa de função surgiu no ordenamento jurídico brasileiro, com o advento da Constituição de 1988 e está positivado no artigo 102, inciso I, alínea “b”. Esta norma tem por objeto garantir a tranquilidade dos agentes públicos políticos em exercer livremente seu múnus. Em síntese, a prerrogativa estabelece um tribunal, geralmente, superior, para julgar ações penais em que figurem como réus pessoas que desempenhem funções políticas, ou altos cargos do Poder Judiciário. O duplo grau de jurisdição, por sua vez, tornou-se norma constitucional após a recepção da Convenção Americana de Direitos Humanos, através do Decreto n. 678/1992, posterior à Constituição de 1988. Desta forma, vez que o Poder Constituinte Originário não dispôs sobre o duplo grau de jurisdição e criou o foro por prerrogativa de função, sem nenhuma referência à garantia em análise, é difícil se sustentar a sua constitucionalidade/inconstitucionalidade. Contudo, aparentemente ocorre um conflito entre normas, e os intérpretes do direito devem buscar soluções para resolver tal questão.

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1.2 BREVE ANÁLISE DA AÇÃO PENAL 470

Este tópico tratará da possível negativa do duplo grau de jurisdição no caso “Mensalão”, assim como os prováveis reflexos da referida situação em um contexto internacional de proteção aos direitos humanos. Para tanto, é imprescindível uma breve explicação a respeito da Ação Penal 470, que conta com 49 réus entre deputados, ministros, donos de bancos e publicitários3, mais de cinquenta mil páginas, distribuídas em mais de trezentos volumes, e após 53 sessões e quatro meses de duração, o julgamento deste caso foi um dos mais longos da história do Supremo Tribunal Federal. O termo Mensalão, é uma alusão ao termo utilizado por Roberto Jefferson em entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, em junho de 2005. A reportagem trouxe à tona o esquema de compra de apoio político no Congresso através do suposto pagamento de uma “mesada” – o Mensalão –, por membros do Partido dos Trabalhadores – PT.

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Os réus da Ação Penal 470 são: José Dirceu de Oliveira e Silva, José Genoíno Neto, Delúbio Soares de Castro, Silvio José Pereira, Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach Cardoso, Cristiano de Mello Paz, Rogério Lanza Tolentino, Simone Reis Lobo de Vasconcelos, Geiza Dias dos Santos, Kátia Rabello, José Roberto Salgado, Vinícius Samarane, Ayanna Tenório Tôrres de Jesus, João Paulo Cunha, Luiz Gushiken, Henrique Pizzolato, Pedro da Silva Corrêa de Oliveira Andrade Neto, José Mohamed Janene, Pedro Henry Neto, João Cláudio de Carvalho Genu, Enivaldo Quadrado, Breno Fischberg, Carlos Alberto Quaglia, Valdemar Costa Neto, Jacinto de Souza Lamas, Antônio de Pádua de Souza Lamas, Carlos Alberto Rodrigues Pinto (Bispo Rodrigues), Roberto Jefferson Monteiro Francisco, Emerson Eloy Palmieri, Romeu Ferreira Queiroz, José Rodrigues Borba, Paulo Roberto Galvão da Rocha, Anita Leocádia Pereira da Costa, Luiz Carlos da Silva (Professor Luizinho), João Magno de Moura, Anderson Adauto Pereira, José Luiz Alves, José Eduardo Cavalcanti de Mendonça (Duda Mendonça) e Zilmar Fernandes Silveira.

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No relatório redigido pelo Ministro Joaquim Barbosa, a ação penal nº 470 descreve um sofisticado esquema, dividido em setores de atuação, no qual se praticava os crimes de corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas, gestão fraudulenta de instituição financeira e peculato (JUSBRASIL. STF – Ação Penal 470/MG, p. 6). A acusação afirma que “todos os graves delitos que serão imputados aos denunciados ao longo da presente peça têm início com a vitória eleitoral de 2002 do Partido dos Trabalhadores no plano nacional e tiveram por objetivo principal, garantir a continuidade do projeto de poder do Partido, mediante a compra de suporte político de outros Partidos Políticos e do financiamento futuro e pretérito (pagamento de dívidas) das suas próprias campanhas eleitorais. (JUSBRASIL. STF – Ação Penal 470/MG, pp. 5621/5622). Primeiramente, veio à tona, em agosto de 2012, questão de ordem sobre a competência do STF para o julgamento de todos os réus, tendo em vista que apenas três dos acusados seriam parlamentares e gozariam do foro por prerrogativa de função. Por nove votos a dois, foi rejeitada tal questão de ordem, decidindo-se pelo julgamento de todos os réus na Corte Suprema do país, prejudicando, assim, o Pacto de San José da Costa Rica, no que toca a garantia ao duplo grau de jurisdição. Por fim, o Supremo Tribunal Federal, após negar o desmembramento da Ação Penal 470, julgou o caso para, ao final, condenar vinte e cinco réus. No que tange as penas, de dosimetria duvidosa, foram fixadas em níveis elevadíssimos, em total discrepância com o aplicado em outras situações, mormente pela importância midiática e revolta da população, que assistia às sessões de julgamento diariamente.

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Nesse sentido, o editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em edição dedicada à Ação Penal 470, observa que A Ação Penal 470 é um divisor de águas por diversas razões. A primeira delas é a popularização do Supremo Tribunal Federal. Com a intensa cobertura dada pela mídia ao julgamento, os brasileiros passaram a conhecer cada um dos Ministros, elegendo ídolos e desafetos, acompanhando seus votos, criticando ou elogiando seus posicionamentos. A discussão de teses jurídicas sofisticadíssimas passou a ser conversa corriqueira entre leigos. Professores das Universidades foram chamados a escrever colunas nos jornais de grande circulação e a dar entrevistas em programas televisivos, esclarecendo à população aspectos relacionados ao julgamento, tornando um pouco mais palatável os pronunciamentos intrincados assistidos na TV Justiça. (INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS, 2013)

Na verdade, este julgamento tornou-se um grande espetáculo. Não só no que tange a prolação da sentença, mas também a respeito dos embargos infringentes, opostos pelas defesas de alguns réus4, que se viram condenados por julgamento não unânime, pois, quatro votos divergiam para a absolvição. Inicialmente, o STF entendeu pelo não cabimento de embargos infringentes. Assim, foram interpostos agravos regimentais pelos acusados. Deu-se provimento ao agravo regimental, e por fim, foram admitidos os embargos infringentes. Importante trazer o voto do Ministro Teori Zavascki a respeito do provimento do agravo regimental, mormente porque votou favoravelmente à admissão do agravo e consequentemente, pela admissibilidade dos embargos infringentes e trouxe como argumentação que o cabimento 4

Como Delúbio Soares, José Dirceu, José Genoíno, José Roberto Salgado e Kátia Rabello.

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encontra fundamento no duplo grau de jurisdição. Ademais, destacou que o Brasil deve respeito às disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos. Entretanto, não se atentou ao fato de que o duplo grau de jurisdição exige, para sua efetiva aplicação, que a questão seja analisada por tribunal superior, o que não seria possível no caso em tela. A Ministra Rosa Weber votou em consonância com o Ministro Luiz Roberto Barroso, no sentido de admitir os embargos infringentes, pois isto não implica em conformação normativa do direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, mormente porque o referido recurso será julgado pelo mesmo órgão. Por fim, o Ministro Celso de Mello asseverou que a admissibilidade dos embargos infringentes se consubstancia no preceito estampado no artigo 8º, 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos, o duplo grau de jurisdição. Nota-se que, por diversas vezes, os Ministros do Supremo Tribunal Federal abordaram o cabimento dos embargos infringentes sob a ótica do respeito aos preceitos constantes no Pacto de San José da Costa Rica. Alguns dos votos abordaram expressamente como uma das razões para seus votos a garantia ao duplo grau de jurisdição. Nesse contexto, é inevitável que se pergunte se seriam os embargos infringentes meios aptos a garantirem o duplo grau de jurisdição aos réus condenados em processo de ação penal originária no Supremo Tribunal Federal? Por fim, apesar da breve análise do julgamento dos embargos infringentes – o que não será levado a cabo neste trabalho – vale destacar que os recursos, em sua maioria, foram acolhidos.

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1.3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi constituído a partir do momento em que os Estados das Américas, no exercício de sua soberania e no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), adotaram instrumentos internacionais que se converteram na base de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos. O instrumento de maior importância no sistema interamericano é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em San José, Costa Rica em 1969, e que entrou em vigor em 1978. Segundo Flávia Piovesan, substancialmente, a Convenção reconhece um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Desse universo de direitos destacam-se: [...] o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial. (PIOVESAN, 2013, p. 332)

Para promover a tais direitos, foram criados dois órgãos destinados a velar pela observância de referidos direitos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Promover a observância e a proteção dos direitos humano na América, é a principal função da Comissão

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Interamericana de Direitos Humanos. É o órgão consultivo da Organização dos Estados Americanos (OEA), e, em um primeiro momento, tem competências com dimensões políticas, entre as quais se destacam a realização de visitas in loco e a preparação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Estados membros. Em um segundo momento, este órgão realiza funções com uma dimensão quase judicial. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, é um dos três Tribunais regionais de proteção dos Direitos Humanos, juntamente com a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos.5 Trata-se de uma instituição judicial autônoma, cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana aos Estados que assim a aceitaram. A Corte é, pois, o órgão jurisdicional do sistema regional, e exerce primordialmente função contenciosa, com a resolução de casos contenciosos, bem como o mecanismo de supervisão de sentenças; função 5

Há um incipiente sistema árabe e a proposta de criação de um sistema regional asiático. “Sobre o incipiente sistema árabe, acrescenta-se que, em 1945, foi criada a Liga dos Estados Árabes, e em 1994 os Estados da Liga adotaram a Carta Árabe dos Direitos Humanos, que reflete a islâmica lei da sharia e outras tradições religiosas. Até outubro de 2009, 10 Estados haviam ratificado a Carta Árabe de Direitos Humanos. Já no tocante ao sistema asiático, em 1997 uma Carta Asiática dos Direitos Humanos foi concluída, sob forma de uma declaração feita por expressivas ONGs. A Carta endossa os princípios da universalidade e da indivisibilidade dos direitos humanos, bem como os direitos ao desenvolvimento sustentável, à democracia e à paz, com crítica à visão autoritária dos “asian values”. A Carta apresenta medidas concretas para a proteção dos direitos humanos na região, ressaltando a importância dos Estados asiáticos adotarem instituições regionais para a proteção e promoção dos direitos humanos, bem como elaborarem uma Convenção regional, que reflita os peculiaridades regionais e que seja compatível com os parâmetros protetivos internacionais, contemplando órgãos de monitoramento, como uma Comissão e uma Corte independentes, aos quais as ONGs tenham direto acesso.” (STEINER apud PIOVESAN, 2013, p. 327)

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consultiva; e função de ditar medidas provisórias. No plano consultivo, além das relativas à interpretações das disposições da Convenção Americana, a Corte ainda pode opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efetuando, assim, o “controle de convencionalidade das leis”6. Sabe-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é instância protetiva subsidiária, invocada quando da ineficácia do aparato estatal interno de administração da justiça. “Por isso, muito comum nos julgados da Corte uma análise reflexa da proteção judicial, cuja afronta primária decorreu de outros artigos da Convenção (vida, liberdade e integridade pessoal, etc.).” (BLANCO, 2012, p.106). Assim, deve-se exaurir os meios domésticos para que se possa levar um caso a julgamento pela Corte Interamericana. Partindo deste pressuposto, analisar-se-á o caso “Mensalão” e a possibilidade do mesmo ser levado à julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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O controle de convencionalidade das leis, que nada mais é do que o processo de compatibilização vertical (sobretudo material) das normas de Direito interno com os comandos encontrados nas convenções internacionais de direitos humanos. Ver a respeito em: MAZZUOLI, 2011, pp. 379-380.

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1.4 O CASO “MENSALÃO” E A INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

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CORTE

O Direito Internacional e o Direito Interno, durante décadas, mantiveram-se separados e afastados, sendo alvo apenas de discussões preponderantemente teóricas. Atualmente, no entanto, percebe-se uma internacionalização do direito dos Estados, o que implica em uma relação mais próxima entre esses dois campos. Assim, diante da crescente produção normativa internacional – como tratados, que não mais atinge apenas a relação entre Estados, mas também rege a relação Estado e cidadão – surgiu a necessidade inadiável de que o conteúdo dos tratados integrasse o ordenamento pátrio desses países. O Estado brasileiro é membro da Organização dos Estados Americanos, e ratificou o Pacto São José da Costa Rica. Neste momento, conforme já abordado, as normas constantes desta convenção internacional passaram a integrar o ordenamento jurídico brasileiro. Apesar do reconhecimento da ser a Convenção Americana de Direitos Humanos o tratado-regente do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, e ter sido incorporado no ordenamento jurídico brasileiro com força de norma supralegal, ainda há controvérsias em torno do fato de ter ou não o Estado brasileiro infringido norma constante deste tratado. Isto ocorre porque, no caso do Mensalão, três dos réus contavam com o benefício da prerrogativa de foro, ou seja, por exercerem determinado cargo político deveriam ser julgados pelo mais alto tribunal brasileiro, qual seja, o STF. Parte dos juristas entende que, ao concedê-los esta prerrogativa, o STF estaria suprimindo o duplo grau de jurisdição, devido à sua competência originária para julgar tais crimes. Portanto, os réus não poderiam recorrer da

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decisão que seria proferida, mormente por não existir órgão superior que pudesse analisar um possível recurso. No início do julgamento, ainda pairava a preocupação com relação aos réus que não exerciam funções públicas, e, neste sentido, houve pedido de desmembramento da ação penal, o qual foi julgado improcedente. No início dos trabalhos deste caso, o Ministro Ricardo Lewandowski, na decisão da Questão de Ordem referida, demonstrou preocupação a respeito: Preocupa-me, por fim, o fato de que, se este Supremo Tribunal persistir no julgamento único e final de réus sem prerrogativa de foro, ele estará, segundo penso, negando vigência ao mencionado art. 8.º, 2, h, do Pacto de São José da Costa Rica, que lhes garante, sem qualquer restrição, o direito de recorrer, no caso de eventual condenação, a uma instância superior, insistência essa que poderá ensejar eventual reclamação perante a Comissão ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (STF, AP 470/MG, p. 92).

Luiz Flávio Gomes também concorda que o STF infringiu o que recomenda a Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, para ele, não houve apenas uma violação, mas pelo menos duas. A primeira delas diz respeito ao fato de que o mesmo juiz que investigou o caso, o ministro Joaquim Barbosa, presidiu também o julgamento, o que seria também incompatível com as normas previstas na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (GOMES, 2014). O juiz, neste caso cumpriu dois papeis: o de investigar e o de julgar, procedimento adotado Idade Média, nos processos inquisitivos, e não pode ocorrer nos tempos atuais. De outro lado, Gomes acrescenta que houve ainda outra violação, uma vez que foi descumprida a garantia do duplo grau de jurisdição (GOMES, 2014), tal como reconhecido no julgamento da Corte Interamericana de

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2009, Caso Barreto Leiva, que possui semelhanças com o “Mensalão”. No Caso Barreto Leiva vs Venezuela, o Senhor Barreto encontrava-se vinculado a uma causa na qual apareciam como autores do delito deputados da República e o Presidente da República da Venezuela. A conexidade das causas se encontrava regulada no primeiro caso, isto é, a existência de uma causa conjunta com um deputado da República, o que implicava em um julgamento pelo TSSPP – Tribunal Supremo da Venezuela. Porém, o ordenamento jurídico venezuelano não regulava a situação na qual uma pessoa não amparada pelo foro especial se encontrava vinculada com uma causa penal contra o Presidente da República cujo ajuizamento, segundo a Constituição Política e a Lei Orgânica, correspondia em única instância a este alto tribunal. A falta de regulamentação levou o Senhor Barreto a ser julgado em única instância, aplicando em ausência de normatização, a conexão entre os delitos e julgamento (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, p.15). Após sua condenação, o Sr. Leiva denunciou o Tribunal venezuelano por infringir os direitos consagrados e ratificados por seu país pela Convenção, dentre eles o duplo grau de jurisdição. No caso levado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, foi constatado que realmente houve violação do artigo 8.2, “h” da Convenção, pois uma das consequências da aplicação do foro privilegiado foi que a vítima não poderia impugnar sentença condenatória (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, p.17).7 “As duas exceções ao direito ao duplo grau de jurisdição, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus, são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação imposta pelo tribunal máximo do país. Mas a sistemática do direito e da jurisprudência 7

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No mesmo caso, a Comissão reiterou que também não foi satisfatório o direito de ser julgado por um tribunal imparcial, uma vez que as pressões exercidas por outros funcionários e poderes sobre a Corte Suprema de Justiça e as motivações políticas muito influenciaram no decorrer do processo (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, p. 20). Sobre o caso, Valério Mazzuoli esclarece: Após condenado, Barreto Leiva recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, em 2008, admitiu a queixa e fez recomendações à Venezuela. Ausente qualquer resposta do Estado, a Comissão submeteu, então, a causa à jurisdição da Corte Interamericana, que entendeu, ao final, que a Venezuela violara o direito (consagrado na Convenção Americana) relativo ao duplo grau de jurisdição, ao não oportunizar ao Sr. Barreto Leiva o direito de apelar para um tribunal superior, eis que a condenação sofrida por este último proveio de um tribunal que conheceu do caso em única instância. Em outras palavras, a Corte Interamericana entendeu que o sentenciado não dispôs, em consequência da conexão, da possibilidade de impugnar a sentença condenatória, o que estaria a violar a garantia do duplo grau prevista (sem ressalvas) na Convenção (MAZZUOLI, 2014).

Luiz Flávio Gomes também se posiciona a respeito da sentença no caso Leiva:

interamericana é distinta. Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição, diferentemente do que ocorre no sistema da Convenção Europeia de Direitos Humanos – repita-se.” (GOMES; MAZZUOLI, 2013, pp. 150-151)

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O caso Barreto Leiva contra Venezuela mostra que a Corte, em sua decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas. A primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição, ou seja, o direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada. A segunda surpresa é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa (GOMES, 2014).

O que se observa é que o precedente do Caso Barreto Leiva coincide com a situação dos réus condenados no processo do “Mensalão”. Isso porque todos eles (tendo ou não foro por prerrogativa de função) foram impedidos de recorrer da sentença condenatória para outro tribunal interno (eis que julgados pela instância máxima do país, o STF), em violação à regra expressa na Convenção Americana (art. 8.º, 2, h). No entanto, situação mais grave é aquele referente aos réus que não possuíam prerrogativa de função, e mesmo assim, foram julgados pela instância máxima do judiciário brasileiro. Nesse sentido, continua Mazzuoli: Na Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) há ressalva expressa a permitir o julgamento de quaisquer pessoas pelo mais alto tribunal do país, sem que tal configure violação ao duplo grau de jurisdição (art. 2.º, 2, da Convenção Europeia). Porém, no que tange ao Brasil, é certo que o país encontra-se sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos desde que aceitou a competência contenciosa daquele tribunal, por meio do Decreto Legislativo 89/1998; e não há qualquer ressalva ou exceção – diferentemente do que faz a Convenção Europeia – no que tange ao direito ao duplo grau de jurisdição na sistemática da Convenção Americana (MAZZUOLI, 2014).

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Sobre o fato do Estado brasileiro ter aceitado a jurisdição interamericana, Silva afirmam: Pode-se dizer que a partir da decisão do Brasil em aceitar a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, dá-se início a um amadurecimento e expansão do seu pensamento jurídico, mostrando-se mais lúcido, além de congregar as instituições do poder público e as organizações nãogovernamentais e demais entidades da sociedade civil brasileira em torno de uma causa comum: a do alinhamento pleno e definitivo do Brasil com o movimento universal dos direitos humanos, que encontra expressão concreta na considerável evolução dos instrumentos internacionais de proteção nas cinco últimas décadas (SILVA, 2006, p. 54).

A Corte Interamericana tem jurisdição supranacional, podendo ordenar medidas ao Estado que violou direitos humanos consagrados pelo tratado em questão. “Trata-se da aplicação da regra pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, porém, devem ser fielmente cumpridos”. (GOMES; MAZZUOLI, 2013, p. 151) Percebe-se que o Estado brasileiro está sujeito às normas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, uma vez que aceitou se submeter à competência contenciosa da Corte Interamericana. Há ainda quem pense que não existe efetividade nesta aceitação, que seria um mero “dever diplomático internacional” do Brasil. Quanto à possibilidade de condenação em âmbito internacional, Mazzuoli afirma: Considerando a similitude absoluta entre o Caso Barreto Leiva, julgado pela Corte Interamericana em 17.11.2009, e o que foi decidido na Questão de Ordem da Ação Penal 470 (“Mensalão”), não há dúvidas de que esta última poderá ser objeto de demanda perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (a iniciar-

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se na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, EUA) (MAZZUOLI, 2014).

Quando perguntado se o caso “Mensalão” deveria chegar à Corte, Gomes defende que: De forma direta, a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição. Isso porque a adesão é livre e espontânea. Porém, de forma indireta, sim. Muitos ministros do STF – por exemplo, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa — depreciam a jurisdição interamericana. Dizem que ela não tem nenhum valor. Lendo esses infelizes comentários deles, a sensação que se tem é de que a Corte ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF e que as sanções dela são basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas. São emanadas de juristas que tiveram formação jurídica legalista, sem conhecerem os progressos do direito internacional. Continuam presos ao grande jurista vienense Kelsen, que desenvolveu o sistema jurídico legalista. Estão ultrapassados. Bastaria ver o que aconteceu com Maria da Penha, cujos direitos foram reconhecidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para perceberem que o mundo está mudando (GOMES, 2014).

O que se percebe é um consenso no qual o caso “Mensalão” feriu a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, e por esta razão, e pelo fato do Estado brasileiro aceitar a jurisdição internacional da Corte Interamericana, o caso deveria ser submetido a julgamento neste órgão. Apesar do descrédito dado por alguns Ministros do STF à jurisdição interamericana, outros Ministros manifestaram opinião diversa. Cite-se o Ministro Celso de Mello, por exemplo:

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Nada impedirá, contudo, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., esgotada a jurisdição doméstica (ou interna) e atendidas as demais condições estipuladas no art. 46 e nos arts. 48 a 51 do Pacto de São José, submeta o caso à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ordem a permitir que esta exerça o controle de convencionalidade (STF, AP 470/MG, pp. 569-570).

Mazzuoli acrescenta sua conclusão acerca da conduta do STF: De fato, não há dúvidas de que o STF negou vigência à regra do art. 8.º, 2, h, da Convenção Americana, abrindo, a partir desse momento, a possibilidade de os interessados recorrerem ao sistema interamericano contra o Estado brasileiro (que agiu, por meio de um dos seus Poderes, o Judiciário, de maneira inconvencional, ou seja, contrária a um tratado de direitos humanos). Em outros termos, uma vez esgotada a competência da justiça brasileira – no caso do “Mensalão”, o processo já começou em última instância, – é incontroverso que poderão os condenados, imediatamente, demandar o Brasil perante a Comissão Interamericana. Esta, por sua vez, se entender admissível eventual queixa proposta, e depois de percorrido certo trâmite interno previsto na Convenção Americana, poderá ingressar com a ação competente perante a Corte Interamericana (em San José, Costa Rica) requerendo a anulação do julgamento do “Mensalão”, para que os réus (todos eles) sejam julgados por uma instância inferior e, se condenados, tenham a oportunidade de recorrer à instância superior, em respeito ao duplo grau de jurisdição consagrado no art. 8.º, 2, h, da Convenção Americana (MAZZUOLI, 2014, p.1).

Levando em consideração as ideias entrelaçadas dos autores supracitados, percebe-se que, no caso analisado – Caso “Mensalão” da Ação Penal 470 – houve violação expressa do art. 8.º, 2, h, da Convenção Americana, inclusive com precedente recente julgado pela Corte no mesmo sentido (CORTE INTERAMERICANA DE

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DERECHOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela). Dito isto, devem ser observados os requisitos para que se leve uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão inicial competente no sistema para recebe as queixas. O primeiro dos requisitos diz respeito à submissão do Estado brasileiro à jurisdição interamericana. Não há dúvidas que este requisito está preenchido, uma vez que o Brasil publicou o Decreto n. 678 de 1992, que promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos no direito brasileiro. O segundo requisito é terem sido esgotados os procedimentos internos do Estado, ou seja, deve ter transitado em julgado sem possibilidade de recorrer a órgão algum. No caso, percebe-se que este requisito foi claramente preenchido, à medida que alguns dos réus possuíam prerrogativa de foro especial e atraíram a competência originária de julgamento no STF para todos os réus. Sobreveio sentença, da qual os réus interpuseram embargos infringentes, na tentativa de se garantir o duplo grau de jurisdição. Este recurso foi negado, o que ocasionou a interposição de um agravo regimental, que foi provido e consequentemente, os embargos infringentes foram analisados. Findos tais julgamentos, nada alternativa mais resta aos réus em âmbito interno. O terceiro e último requisito é ter havido violação do disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, qual seja, art. 8º, 2, h. Sendo assim, pode-se afirmar que, caso os réus assim o desejem, poderão denunciar o caso à Comissão Interamericana, e poderão obter êxito, tendo seus julgamentos anulados em detrimento do direito humano ao duplo grau de jurisdição. O problema que isso causaria é a repercussão na sociedade brasileira, que finalmente está vendo crimes de

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corrupção, lavagem de dinheiro, dentre outros sendo punidos. Em desabafo, Luiz Flávio Gomes Valério de Oliveira Mazzuoli esclarecem que: O julgamento do STF, com veemência, para além de revelar a total independência dos seus membros, reafirmou valores republicanos de primeira grandeza, tais como reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc. O valor histórico e moralizador dessa sentença é inegável. Mas do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do jogo do Estado de Direito, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis. Por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes, autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral político e cultural nebulosamente ofuscado. (GOMES; MAZZUOLI, 2013, p. 152)

É evidente que, se Comissão Interamericana aceitar denúncia, e submeter à Corte Interamericana a competente ação de responsabilidade internacional contra o Estado brasileiro, poderá a Corte decidir pela anulação do julgamento AP 470/MG, e determinar novo julgamento, o que trará uma insegurança jurídica considerável ao povo brasileiro, que acompanhou dia após dia as sessões de julgamento clamando por justiça.

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1.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo principal que proporcionado pelo presente estudo foi a possível compatibilização entre o princípio/direito fundamental do duplo grau de jurisdição e os processos de ação originária no Supremo Tribunal Federal – STF. Para tal, foram introduzidos os conceitos de duplo grau de jurisdição e brevemente explanado sobre o foro por prerrogativa de função, fundamentais para a compreensão da profundidade do tema, passando a análise da Ação Penal 470, mais popularmente conhecida como caso “Mensalão” e inter-relacionado com os preceitos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Realizou-se uma breve análise do que consiste e de como funciona o Sistema Interamericano de direitos Humanos para posteriormente investigar a possibilidade de ser apresentada denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso “Mensalão”, em razão da aceitação por parte do Brasil da jurisdição da Corte Interamericana, e ainda, pela ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica – que prevê expressamente o direito ao duplo grau de jurisdição. O que se concluiu foi que, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de ações penais, originariamente, esvazia por completo a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. Isso porque, sendo o STF o mais alto tribunal, mesmo que sejam interpostos recursos, como embargos infringentes – como ocorreu no caso estudado – não se está garantido o duplo grau de jurisdição, mormente por se tratar de recurso interposto perante o mesmo órgão. Sendo assim, por fim, tem-se que o caso “Mensalão” cumpriu todos os requisitos para que possa ser

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denunciado à Comissão Interamericana, e se aceita tal denúncia, poderá ser levado à apreciação, julgamento – e possível anulação de sentença – pela Corte Interamericana. Isso poderá ocorrer porque o Brasil, ao não propiciar o duplo grau de jurisdição violou o art. 8º, 2, h da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e, portanto, pode ser responsabilizado internacionalmente. A grande questão que envolve este tema é a possível anulação da sentença, e determinação de novo julgamento, causando insegurança jurídica em uma população que há anos clamava por justiça, e finalmente, conseguirá um precedente. Para evitar que tais frustações aconteçam, é preciso que os juízes nacionais estejam atentos e receptivos às normas incorporadas por tratados pelo Brasil, e, em especial, que exerçam o direito de consultas à órgãos internacionais sobre eventual incompatibilidade de preceitos da legais de ordem interna em face dos instrumentos internacionais.

1.6 REFERÊNCIAS

BLANCO, Carolina Souza Torres. O direito de acesso à justiça nas jurisprudências interamericana e brasileira, uma análise comparativa. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 61, pp. 85 - 125, jul./dez. 2012. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Malheiros, São Paulo, 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2014.

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CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela. Sentencia de 17 de noviembre de 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2014. INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 21, nº 242, Janeiro/2013. GOMES, Luiz Flávio. Corte pode anular julgamento do mensalão. In: Vi o Mundo. Disponível em: . Publicado em: 07 mar. 2014. Acesso em: 10 nov. 2014. GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie e Ações de impugnação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. JUSBRASIL. STF - Recurso Extraordinário: RE 349703 RS. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. JUSBRASIL. STF – Ação Penal 470/MG. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. LIMA, Carolina Alves de Souza. O duplo grau de jurisdição nos processos de competência originária dos Tribunais em razão da prerrogativa de função. In: Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. Coord. COSTA, José de Faria;

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SILVA, Marco Antonio Marques da. São Paulo: Quartier Latin, 2006. LOPES, Aury Júnior. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2012. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. ___________. O caso “Mensalão” e a regra do duplo grau de jurisdição. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2014. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Pacto internacional sobre direitos civis e políticos. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2014. PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo grau de jurisdição no processo penal: garantismo e efetividade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013. PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível: . Acesso em: 25 nov. 2014. PLANALTO. Pacto de São José da Costa Rica. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2014. SÁ, Djanira Maria Radamés de. Duplo grau de jurisdição: conteúdo e alcance constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.

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SILVA, Andressa de Sousa e. A Corte Interamericana de direitos humanos. Revista Jurídica, Brasília, v. 8, n. 79, p.47-61, jun./jul., 2006. STF. Relatório Mensalão. Ação Penal 470/Minas Gerais. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2014.

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- II A DIGNIDADE DA PESSOA DO TRABALHADOR E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO PELA VIA DA TERCEIRIZAÇÃO Alessandro Severino Vallér Zenni* Paulo Ricardo Vijande Pedrozo**

2.1 INTRODUÇÃO

A proposta ora em exame diz com a crítica ao novel projeto de lei sob o n. 4330/2004 que encampa a possibilidade de terceirização indiscriminadamente no direito do trabalho brasileiro.

*

Professor do Programa de Mestrado em Direitos da Personalidade do Centro Universitário Cesumar (UNICESUMAR), Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1991), Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (1997) e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor titular da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel (Univel), Professor Titular das Faculdades Maringá, Professor da União de Faculdades Metropolitanas de Maringá (UNIFAMMA) e Professor T-40 do Centro Universitário de Maringá. Advogado. ** Mestrando no Programa de Mestrado em Direitos da Personalidade do Centro Universitário Cesumar (UNICESUMAR), graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS, 1990), Especialista em Direito (UFSC, 1993), Auditor-Fiscal do Trabalho (desde 2007), Chefe Substituto da Fiscalização em Maringá/PR (desde 2012) e Gerente Regional do Trabalho e Emprego em Maringá/PR (desde 2013), cargo e funções do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Professor de Direito do Trabalho. Endereço de e-mail: [email protected]

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De sabença geral que a terceirização, técnica flexibilizatória no direito laboral, encontra legislação parcial nalgumas atividades, mas não traz uma legislação uniforme acerca de suas possibilidades e responsabilidades, temas que são registrados na jurisprudência uniforme do Tribunal Superior do Trabalho. A partir da crise econômica experimentada pelo Estado brasileiro houve um esforço de setores empresariais para fazer prevalecer um projeto de lei que pudesse admitir, sem peias, a terceirização no âmbito trabalhista. O problema gerado a propósito da terceirização reproduzida no projeto em testilha está no abalo aos direitos personalíssimos no mundo do labor, sem embargo de comprometer o signo político-jurídico do valor social do trabalho, pondo em risco, inclusive o meio ambiente do trabalho. Ocorre que a terceirização passa a ser fenômeno sociológico e economicamente indispensável ao êxito da livre iniciativa, igualmente valor baluarte no Estado Democrático de Direito. Portanto, impõe-se o exame dos valores constitucionais que tecem as relações entre o capital e o trabalho e que podem sublimar uma mais valia social, resguardando, precipuamente, a dignidade da pessoa do laborista, sem neutralizar os ideários liberais do lucro. Somente apontando limites às técnicas de flexibilização dos direitos trabalhistas será possível desenvolver a sustentabilidade e o equilíbrio entre as forças socioeconômicas, e, sobremodo a plenitude da pessoa humana no ambiente de labor. Eis a prévia para interpretar o tegumento do Projeto de Lei 4330/04, de autoria do Deputado Federal Sandro Mabel, cuja tônica é de hipertrofiar as condições de terceirização nas relações trabalhistas. Também se pretende, no presente artigo, a título de considerações finais, propor-se uma leitura sobre a legitimidade e/ou constitucionalidade ou não do referido normativo.

A dignidade da pessoa...

2.2 PROMOÇÃO HUMANA JURÍDICO-POLÍTICA

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E

INTERVENÇÃO

Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana compõe o manancial ético-político-jurídico do projeto estatal de democracia, tanto que alocado no art. 1º, III, da CF, como valor essencial, fonte e fundamento da Constituição da República. Sobre as políticas públicas como meio de promoção da pessoa humana, Maria Paula Dallari Ducci afirma que o campo de interesse da disciplina nas relações entre a política a ação do Poder Público - tem sido tratado até hoje, na Ciência do Direito, no âmbito da Teoria do Estado, do direito constitucional, do direito administrativo ou do direito financeiro. Na verdade, o fenômeno do direito, especialmente o direito público, é inteiramente permeado pelos valores e pela dinâmica da política.8

Mais adiante, a autora lembra a importância das políticas públicas como estabelecimento de metas e de caminhos para a consecução de tais metas, também para agentes econômicos e particulares, inclusive no âmbito trabalhista.9 Assim, a necessidade de se dar concretização ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana também nas relações de emprego, há de se ter políticas públicas correspondentes que organizem a ação do Estado sobre a sociedade, bem como que vinculem os particulares entre si.

8

DUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 1. 9 Ibidem, p. 58.

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Tratando-se o trabalho de valor a compor a existencialidade mínima da pessoa, um direito híbrido, individual e social, insculpido no art. 5º., XIII e no art. 6º, da Constituição, com proteção de bens mínimos, sem prejuízo de condições mais favoráveis, ex vi do art. 7º e seguintes, do Texto Maior, fora de dúvidas de que se traduz em bem a arrecadar tutela especial do Estado, inclusive no âmbito afirmativo das políticas públicas.

2.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Inicialmente há de se destacar que a dignidade da pessoa humana corresponde a valor de natureza ética, de cunho essencialmente filosófico, e que se implica diretamente com o sentido à vida, requestando exame profundo na definição. Se o ser humano é essencialmente corpo e inteligência, já definido como tal pela metafísica grega10, a formulação do conceito de pessoa parte em Tomás de 10

ARISTÓTELES, Ética Nicomaquea, p. 295, 1102a. In: ARISTÓTELES, Obras. Trad. del griego, estudio preliminar, preâmbulos y notas por Francisco de P. Samaranch, Madri, Aguilar, 1982: “Es evidente que la virtud que hemos de considerar es la virtud humana; pues el bien que buscamos es así mismo um bien humano, y la felicidad, uma felicidad humana. Ahora bien, llamamos virtud humana no a la del cuerpo, sino a la del alma; y llamamos a la fecicidad uma actividad del alma. Si ello es así, es evidente que el político debe conocer de algún modo lo que concierne al alma, de la misma manera que el médico que pretende curar los ojos debe conocer en algún grado el cuerpo en su conjunto; y, en el caso del alma, ello es tanto más así cuanto que la Política es más noble y mejor que la medicina; por lo demás, entre los médicos, los más apreciados dedican um gran esfuerzo al conocimiento del cuerpo. Es, pues, también necesario que el político atienda al estúdio del alma [...]”.

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Aquino a do ser do humano em relação de conformidade com seu dever ser.11 O devir corresponde aos valores que o ser do humano naturalmente há de cumprir para dar sentido à vida, o desenvolvimento de suas potencialidades, desde as paixões corporais às faculdades da alma, em uma linha de verticalidade que o faz transcender no ser, um ser a fazer, cuja ordem e fim se há de observar, inclusive no ambiente laboral.12 Essa ascensão valorativa que parte do ego e responde aos prazeres materiais, máxime o útil, que se traduz na afeição aos bens que geram satisfação provisória, o puro eu em demasia, tem como intermediário o vital indispensável ao existir, e amplia-se nos bens da alma, a ética, a beleza e a verdade, faz-se pela liberdade como motor. Ocorre que nem todos conseguem palmilhar a vereda sponte sua, exigindo, portanto, a suplência de grupos, entre eles a empresa, os sindicatos, e o próprio Estado, dando-lhes condições de igualdade para tornarem-se pessoas dignas. Vê-se, portanto, que a concepção de pessoa, sempre relação com o alter, e com os sentidos e os valores, reivindica a definição de justiça, a garantia de fruição de bens consoante o mérito, e ao Direito impõe-se, como instrumento de realização do justo e tradução natural 11

AQUINO, Santo Tomás de. Suma de Teología, I, Parte I. Trad. de José Martorell Capó, 4ª. ed., Madri, Biblioteca de Autores Cristianos, 2001, questão 82, artigo 2, p. 748: “[...] hay bienes particulares no relacionados necesariamente com la felicidad, puesto que, sin ellos, uno puede ser feliz. A dichos bienes, la voluntad no se adhiere necesariamente. En cambio, hay otros bienes relacionados necesariamente con la felicidad, por los que el hombre se une a Dios, el único en que se encuentra la verdadera felicidad. Sin embargo, hasta que sea demonstrada la necesidad de dicha conexión por la certeza de la visión divina, la voluntad no se adhiere necesariamente a Dios ni a lo que es de Dios. En cambio, la voluntad del que contempla a Dios esencialmente, por necesidad se une a Dios del mismo modo que ahora deseamos necesariamente la felicidad. [...]” 12 ZENNI, Alessandro Severino Valler. (Re)Significação dos Princípios de Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 67.

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da metafisica humana, a tarefa de dignificar pessoas, inclusive os laboristas no mundo da faina.13 Não é por outra razão que, alinhavando os valores político-jurídicos fundamentais da República, a Constituição exige a compatibilização entre valor social do trabalho e a livre iniciativa, sugerindo, no plano dos direitos econômicos o respeito à dignidade do trabalhador, à plenitude do emprego e o respeito ao meio ambiente, incluindo o do trabalho. Assim, o exame de qualquer norma no plano juslaboralista há de ser contrastada com essa plêiade de valores, supracitada, à luz do princípio formal da interpretação conforme à Constituição.14 O valor social do trabalho indica que a garantia de alimentos a satisfazer as mínimas condições de existência se colhe do labor, tornando os contratos de emprego os mais sociais entre os pactos firmados, sugerindo-se uma vontade social de suas cláusulas que se sobrepõem às vontades individuais e transcendem mesmo as intenções das partes. Sabe-se que as maiores tensões históricas tiveram origem na escassez das ofertas de labuta, gerando-se um caos social que, em certo momento da experiência humana eclodiu na própria gênese do direito laboral, inaugurando-se, mesmo, um novel modelo de Estado e de Direito, de caris interventivo e reconhecedor de hipossuficiências grupais a recrutar prestações positivas.15

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Ibidem, p. 69. Ibidem, p. 78. 15 Sabe-se que até o advento da Revolução Industrial, o labor como objeto de contrato tinha suas cláusulas fixadas pelos sujeitos contratantes, ao sabor das suas vontades, vislumbrando-se a adesão do operário a crivo burguês, até que a escorchante situação de labuta redundou em vera revolução trabalhista, dando-se ensejo ao Manifesto Comunista e, também, à Encíclica Rerum Novarum, no que, de comum, deliberaram sobre a dignidade do laborista como exigência do Direito, semeando as bases do protecionismo e do próprio Direito do Trabalho. 14

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Contemporaneamente a Constituição galga o trabalho a direito social, e a relação de emprego conta com garantias mínimas no bojo da Carta, tratando-se de direitos fundamentais reconhecidos pela Suprema Corte como cláusulas pétreas insuscetíveis, mesmo, de reforma constitucional.16 Outrossim, ainda delineando os valores incorporados à Constituição, não se pode relegar a limitação taxativa à livre iniciativa, prescrita no art. 170, VI, no sentido de que o meio ambiente impõe respeito daquele que se propõe ao lucro, considerando-se como subitem, o meio ambiente do trabalho, à luz do que dispõe sistemicamente a compreensão dos dispostos nos artigos 225 e 200, VIII, da CF. Portanto, qualquer relação trabalhista que descurar de tais bens jurídicos protegidos constitucionalmente, padecerá de inconstitucionalidade material.

2.4 O PRINCÍPIO DO PLENO EMPREGO COMO LIMITE À LIVRE INICIATIVA

A forma de contrato de trabalho que goza de proteção jurídica, por excelência, diz com o pacto empregatício, à medida que a subordinação lhe dá tônica, submetendo o laborista não só a estruturação diretiva do empregador, senão às suas ordens diretas, supondo-se, por conta disso, uma espécie de presunção de coação no agir do trabalhador que, por si só, está a justificar um regime de tutela estatal. E também porque o empregado mantém dependência estrutural e econômica com o empregador, 16

BELTRAMELLI NETO, Silvio. Limites da flexibilização dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2008, p. 70 e seguintes.

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ainda que lhe seja reconhecido o direito de resistência, às ordens anticontratuais e/ou indignas, está ínsita, pelo próprio elemento subordinativo, uma certa restrição à autonomia do sujeito laborista no ambiente de trabalho. No mais, o sujeito empregado, classificado pelo art. 3º, da CLT, pela pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação, mesmo adicto às diretrizes pessoais e ou estruturais do empregador há de ser reputado pessoa em sua concepção, havendo de dignificar-se, também, na esfera do trabalho. Exatamente porque o empregador dispõe da capacidade organizacional e irradia suas diretrizes aos laboristas contratados, sempre no anseio do lucro, o respeito à pessoa do empregado para evitar a sua alienação e “mecanização” na sistemática do regime do capital. Sobre essa preocupação já anunciava Leão XIII, o compromisso social assumido pela humanidade em pleno regime de livre iniciativa invocando a função social do contrato.17 Em nosso sentir a plenitude da empregabilidade recomendada pela Constituição como linde à livre iniciativa implica em que o empregador, a quem é legítimo o lucro

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A doutrina social da igreja, irradiadora das raízes do direito do trabalho, sempre objetou a pura ideia de socialização plena da propriedade privada, mas advertia ser indispensável, no âmbito da livre iniciativa, que, por questão ética, e à vista de o todo preexistir às partes, que os contratos de trabalho reconhecessem o trabalhador como um sujeito e não como objeto, buscando emancipá-lo como pessoa, ao mesmo tempo em que excogitou de sua participação nos lucros, como técnica de justiça na plano da mais valia. Já se defendeu que uma das formas de construção da mais valia social está na implantação dos planos de participação em lucros ou resultados como distribuição ética dos bens e forma justa de partilha no capital e trabalho. ZENNI, Alessandro Severino Valler & SILVA, Elizabet Leal da. A dignidade do trabalhador: bússola aos novos paradigmas do trabalho, emprego e incremento harmonizador entre capital e trabalho. Disponível na Internet em: Acesso em: 31 de julho de 2015.

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por força principiológica fundamental18, em nome da função social da propriedade, que se traduz como compromisso ético igualmente cardeal, ex vi do Texto Magno (art. 5º, XXIII), está vedada a precarização no campo das relações contratuais envolvendo o capital e o trabalho. E mesmo que a CLT tenha reduzido a perspectiva do contrato de emprego ao “plano meramente patrimonial”, nos dizeres de Mallet, ressalta o juslaboralista mostrar-se injustificada a proposta do estatuto trabalhista, a fortiori por ser o laborista uma pessoa com direito à dignidade humana19, ou seja, a leitura do vínculo de emprego passa pela repersonalização no âmbito da Constituição Federal e à luz do princípio basilar da dignidade da pessoa.20 18

Deve-se a Locke a empreitada primeva de afirmar a livre iniciativa como direito e garantia pública posta como reconhecimento e, ao mesmo tempo, limite imposto contra o Estado nos albores do liberalismo. De acordo com o filósofo o trabalho livre conduz à aquisição da propriedade privada e, por consequência, à sua utilização e aproveitamento, dando gênese ao lucro como direito instituído. Veja-se o seguinte parágrafo: “Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta, ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade.” John Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos, trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa ,3ª. ed., Petrópolis, Vozes, 2001, p. 98. 19 MALLET, Estêvão. Direitos da personalidade e direito do trabalho, Juris Plenum Trabalhista e Previdenciária, v. 13, p. 7-22, 2007, p. 8. 20 Aliás, doutrina-se que a dignidade da pessoa humana ressignificou os princípios de direito do trabalho, dando-lhes dimensão personalíssima que, até o advento da Constituição em 1.988, eram

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Inegável que a Consolidação já trazia preocupação com a preservação da dignidade do trabalhador, conquanto fosse esse o valor a lançar luzes na edificação do direito do trabalho em seu nascedouro, bastando leitura da Encíclica Rerum Novarum. No escopo de proteger o empregado como pessoa, a CLT, alhures já tratava de priorizar um ambiente de trabalho hígido, saudável e protegido de todos os agentes de risco, impondo ao empregador cuidados com a preservação da saúde, segurança e medicina no trabalho como, ainda, instituindo um direito administrativo do trabalho, cujo caris é de autorizar fiscalização e imposição de sanções por agentes do Estado ( Ministério do Trabalho e Emprego), chegando às imprecações máximas de interditar a atividade econômica quando o espaço da labuta gera risco à vida e ou integridade física aos laboristas. Enfim, desde 1943, uma preocupação cardinal se enfeixa na CLT, superando a visão patrimonialista dos vínculos contratuais até então vigorantes, vertendo normas de proteção aos direitos de personalidade do trabalho, inclusive com a intervenção direta do Estado, via Ministério do Trabalho e Emprego, cujas linhas evidenciam, a um só tempo, a novel postura do Estado Democrático reconhecida a partir do direito do trabalho, de intervenção na esfera privada, dotando o grupo laborista, de bens jurídicos, em razão de sua hipossuficiência.21

diretivas, sobretudo, de cunho patrimonial. In ZENNI, Alessandro Severino Valler. (Re)Significação dos Princípios de Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 60. 21 O Capítulo da CLT “Da Segurança e da Medicina no Trabalho” tem hoje a denominação científica de “Segurança e Saúde do Trabalho”, já que contém regras referentes à saúde do trabalhador que não são estritamente de medicina do trabalho, como, por exemplo, as referentes à ergonomia do trabalho, previstas na Norma Regulamentadora (NR) 17, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), disponível na Internet em: . Acesso em: 01/02/2015.

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A propósito, todas as Normas Regulamentadoras (NRs) de Segurança e Saúde do Trabalho, editadas pelo Ministro do Trabalho e Emprego por força do art. 200 da CLT (dentre as quais se encontram as de n. 15 e 16, referentes à insalubridade e à periculosidade dos locais de trabalho) também tratam de direitos da personalidade dos trabalhadores, uma vez que têm como objetivo a proteção da vida e da saúde da pessoa humana22. Desafia estudo mais aprofundado à legislação quando prevê a existência de adicionais salariais ligados à segurança e à saúde do trabalho, pela labuta em atividades designadas como de risco, fixadas na Constituição como àquelas que projetam o laborista em contato com agentes insalubres, ambientes periculosos, como, ainda, penosos, a despeito de o STF já se ter manifestado pela natureza não auto exequível da norma (art. 7º, XXIII, da CF), padecendo as atividades penosas de um acréscimo legal instituído. Com efeito, se a Constituição se propõe a blindar o sujeito empregado de toda “coisificação”, dotando-lhe de uma condição pessoal, exigindo que haja compromisso com preservação do meio ambiente, inclusive o do trabalho, em leitura sistêmica dos arts. 225 e 198, VIII, da CF, além de cercear o escopo do lucro (inciso VI, do art. 170), a geração dos adicionais no inciso XXIII, do art. 7º, haveria de ser entendida como uma espécie de desestímulo a captação da vantagem econômica na exploração do risco à saúde e vida dos laboristas. 23

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: . Acesso em: 27 de maio de 2014. 23 Há quem faça a defesa das normas inconstitucionais entronizadas na Constituição, de que seria exemplo essa do inciso XXIII, do art. 7º, ao criar os adicionais às atividades de risco, quando a preocupação central do direito constitucional do trabalho é de preservar a dignidade da pessoa humana. In ZENNI, Alessandro Severino Valler. 22

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Todavia, com fixação de adicionais em níveis parcos, e o reconhecimento da natureza salarial da verba e reflexos remuneratórios, torna-se, ao contrário, um atrativo ao laborista o exercício da labuta em ambiente de risco, sem embargo de que o próprio empregador, fazendo uma planilha de custo e risco, no engajamento das regras de direito, prefere manter a precariedade do ambiente de trabalho mediante quitação dos adicionais respectivos a engendrar investimentos custosos para evitar a periclitação da vida ou da saúde dos trabalhadores, subvertendo a noção de pessoa, reduzindo-a ao critério utilitarista presente na cultura pós-moderna24. De todo modo o meio ambiente do trabalho tem sido aplacado pela doutrina juslaboralista como tema de vanguarda e das mais relevantes preocupações, sobretudo por inteirar-se da vida e integridade físicopsíquica dos trabalhadores. Leda Maria Messias da Silva o delimita: o meio ambiente do trabalho está contido no meio ambiente geral, o qual, na esfera trabalhista, e, especialmente, do contrato de trabalho deve-se compreender como meio ambiente do trabalho não só o local onde o trabalhador presta o seu serviço, mas também como parte do meio ambiente do trabalho, todos os fatores internos ou externos que possam interagir com o trabalho e influenciar de alguma forma esse meio ambiente, contribuindo para o seu equilíbrio ou desequilíbrio.25

(Re)Significação dos princípios de direito do trabalho. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, p. 88. 24 ZENNI, Alessandro Severino Valler e FILHO ANDREATA, Daniel Ricardo. O direito na perspectiva da dignidade humana. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2010. 25 SILVA, Leda Maria Messias da. O cumprimento da função social do contrato no tocante ao meio ambiente do trabalho. Disponível na Internet em: . Acesso em: 17 de novembro de 2014. Disponível

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A decência no meio ambiente laboral exorta o empregador à prevenção dos riscos da atividade e fomenta a prática fiscalizatória dos órgãos estatais, mormente o Ministério do Trabalho e Emprego, sem embargo da atividade de custódia do Ministério Público do Trabalho. Raimundo Simão Melo comenta sobre a prevenção dos riscos no meio ambiente de trabalho como parte do “princípio constitucional da dignidade humana e os valores sociais do trabalho”, aludindo que “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado”26. A seguir implementa: [...] há degradação das condições de trabalho no Brasil e em países chamados emergentes, submetidos francamente às regras internacionais, com aumento dos acidentes e doenças do trabalho. Diante disso, o valor ou princípio da dignidade da pessoa humana deve ter sentido de normatividade e cogência e não de meras cláusulas “retóricas” ou de estilo ou de manifestações de bons propósitos, daí por que é preciso dar tratamento adequado aos instrumentos de efetivação dos direitos que poderão realmente garantir a dignidade do trabalhador e o valor verdadeiramente social do trabalho, como estabelece nossa Carta Maior. 27

também em: . Acesso em: 14 de novembro de 2014. A passagem é citada no livro que a autora publicou em conjunto com Marice Taques Pereira, Docência (In)Digna – o meio ambente laboral do professor e as consequências em seus direitos de personalidade, São Paulo, LTr, 2013, p. 25. 26 MELO, Raimundo Simão. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador. 5ª. Ed., São Paulo: LTr, 2013, p. 66. 27 Ibidem, p. 68.

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De toda sorte um constructo de sustentabilidade no meio ambiente do trabalho ancora o ideário da mais valia social, como alinhavar de interesses. E no direito do trabalho a vala para evitar a implantação arbitrária do socialismo em que os bens são, pura e simplesmente repartidos, sem levar em consideração o mérito na distribuição do justo e o prestígio à autonomia.28 A tal respeito, a lição de Segadas Vianna, referindo-se ao final do século XIX, e o surgimento do direito do trabalho pelas orientações da Encíclica Rerum Novarum: [...] o Papa Leão XIII publica a Encíclica “Rerum Novarum” e proclama a necessidade da união entre as classes do capital e do trabalho, que têm “imperiosa necessidade uma da outra; não pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital. A concorrência traz consigo a ordem e beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo, não podem resultar senão confusão e lutas selvagens”. A palavra do Sumo Sacerdote ecoou e impressionou o mundo cristão, incentivando o interesse dos governantes pelas classes trabalhadoras, dando força para sua intervenção, cada vez mais marcante, nos direitos individuais em benefício dos interesses coletivos. 29

No tempo presente, o pontificado de Francisco trouxe a exortação apostólica Evangelii Gaudium, lendose o que segue: 189. A solidariedade é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o 28

ZENNI, Alessandro Severino Valler; OLIVEIRA, Claudio Rogeiro Teodoro. (Re)Significação dos princípios de direito do trabalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 72. 29 SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de direito do trabalho. v. I, 21ª ed., SP, LTr, 2003, p. 39.

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destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A posse privada dos bens justificase para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes. 30

O início de tal passagem é lembrado por Eduardo Vera-Cruz Pinto, relacionando-a ao “legislador, o magistrado, o doutrinador que fizeram da propriedade privada um dogma absoluto a serviço do proprietário e agora leem o Papa”31. Posto isso não paira dúvidas de que a livre iniciativa há de consorciar a expectativa do lucro à realização da pessoa humana no âmago da exploração da atividade econômica, máxime pela função social da propriedade privada, imperativo erigido na Constituição no art. 170, III, da CF.

30

FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do Santo Padre Francisco ao Episcopado, ao Clero, às Pessoas Consagradas e aos Fiéis Leigos, sobre o Anúncio do Evangelho no Mundo Actual. Disponível em: . Acesso em: 17 de novembro de 2014. 31 PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Mudar o direito para chegar à justiça através da crítica ao capitalismo. Revista da Faculdade de Direito da PUC/SP, n. 2, 2º semestre de 2014, p. 67.

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2.5 PESSOA E PERSONALIDADE HUMANA

A preocupação central do artigo está na construção da personalidade no mundo do trabalho diante do capitalismo selvagem que tem assolado a humanidade presentemente. Também se fez assentar que a origem do termo pessoa é de cunho religioso, pautada na doutrina da Igreja, especialmente no Concílio de Nicéia, vindo a ser tema de grande elucubração na Suma Teológica do doutor angélico. Em poucas ocasiões na história da humanidade o princípio da dignidade da pessoa fez ecoar seu conteúdo essencial, ressalvando que, inicialmente, coube ao próprio tomismo nutrir o direito com igualdade entre pessoas, a partir da exigência de dignidade entre todos os seres irmanados no Criador.32 E num segundo instante, já em plena modernidade de segunda fase, coube ao Papa Leão III, recorrer ao princípio da dignidade humana para tutelar a classe operária, tão massacrada pela obsessão burguesa ao lucro, como se lê da Encíclica Rerum Novarum: Quem tiver na sua frente o modelo divino, compreenderá mais facilmente o que Nós vamos dizer: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude é o património comum dos mortais, ao alcance de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece inclinarse mais. Jesus Cristo chama aos pobres bemaventurados: convida com amor a virem a Ele, a fim de 32

TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología, I, Parte I. Trad. de José Martorell Capó. 4ª. ed., Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2001.

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consolar a todos os que sofrem e que choram; abraça com caridade mais terna os pequenos e os oprimidos. Estas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma altiva do rico e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e inspirar-lhes resignação. Com elas se acharia diminuído um abismo causado pelo orgulho, e se obteria sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e as vontades se unissem na mesma amizade.33

Nesse instante, aliás, recorrendo-se ao princípio da isonomia material e a exigência de tratamento dispare à medida das desigualdades reais que circunscreviam a realidade econômica e técnica nas relações de trabalho, surge o Direito do trabalho como remédio aos males do liberalismo de da postura pálida do Estado na preservação da dignidade operária. Diogo da Costa Gonçalves formula um conceito de pessoa: “é aquele ente que, em virtude da especial intensidade do seu acto de ser, autopossui a sua própria realidade ontológica, em abertura relacional constitutiva e dimensão relacional unitiva”34. Outrossim, personalidade é “o conjunto das qualidades e relações que determinam a pessoa em si mesma e em função da participação na ordem do ser, de forma única e singular”35. Tais conceitos descrevem a realidade relacional da pessoa humana e da personalidade que ela detém. Isso 33

LEÃO XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum do Sumo Pontífice Papa Leão XIII a Todos os Nossos Veneráveis Irmãos, os Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos Do Orbe Católico, em Graça e Comunhão Com a Sé Apostólica, Sobre a Condição Dos Operários. Disponível na Internet em: Acesso em: 17 de fevereiro de 2015. 34 GONÇALVES, Diogo da Costa. Pessoa e direitos de personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008, p. 64. 35 Ibidem, p. 68.

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significa dizer que tal realidade se concretiza na vida em sociedade, nas relações que os seres humanos mantêm uns com os outros, cada um com a sua participação individual, e construindo, todos, uma realidade social unitária. Vistos tais conceitos de pessoa e de personalidade, forçosamente há de ser postular garantias fundamentais sem as quais a periclitação do ser detrai a condição humana do sujeito. No entorno da pessoa gravitam os direitos fundamentais, inclusive os de natureza social, como de matriz trabalhista. Não é demais destacar que os direitos humanos, outrora postularam-se bens de natureza ético-cristã, sucessivamente a Revolução Francesa os torna conquistas políticas, imprimindo-lhes efeitos vinculantes pela via da positivação jurídica até serem concebidos como direitos fundamentais a requestarem máxima efetividade. Registre-se, por oportuno, que a plenitude do emprego, como opróbio à selvageria do capitalismo, alçado a bem jurídico na Constituição, como já se aludiu, esparge imediatamente eficácia, tanto no âmbito positivo, no sentido de concebê-lo direito subjetivo a ser advogado judicialmente, como, ainda, no sentido negativo, empecendo uma interpretação a contrario ao baluarte consagrado ao mesmo tempo em que reprova energicamente legislação infra-constitucional da precarização do pacto empregatício em direitos, a par de conter o retrocesso social.36

36

Sobre os efeitos hermenêuticos da interpretação constitucional, convém registrar obra de fôlego de Anna Paula de Barcelos, onde sublinha a eficácia positiva ou simétrica, e a eficácia negativa, decompondo-a em interpretativa e não retrocessiva dos direitos sociais: BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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2.6 O SENTIDO DA VIDA E O PAPEL DO DIREITO

A linha de verticalidade e transcendência que persegue o ser humano na sua vereda à dignidade exorta aos valores, inicialmente os que dão sentido a corporeidade, rematados por paixões, alhures, pelos clássicos, onde o prazer é o afeto e o estético na relação sujeito e sentido; mas não se esgota no útil que espolca da matéria, tampouco, conforma-se com o sentido de uma existencialidade mínima, cuja característica está em avaliar o vital, expandindo-se no que há de permanente e imperecível, o ético e o verdadeiro, patamar a conferir a felicidade.37 Em vida, já o dizia Heidegger, na concepção de seu existencialismo, as relações do sujeito com as significações do ser-aí, tornam-lhe um ser-para, dando-lhe dimensão ontológica, pelo que as faculdades cognitivas atraem a infinitude de valores tecendo o ser do humano no seu existir, e uma angústia existencial tende a ser aplacada no ato de conhecer e inteligir.38 Como se a felicidade dependesse dessa transcendência da consciência ao ser-aí da mundanidade.

37

ARISTÓTELES, Ética Nicomaquea. p. 288-289, 1100a. In: ARISTÓTELES, Obras. Trad. del griego, estudio preliminar, preâmbulos y notas por Francisco de P. Samaranch, Madri, Aguilar, 1982: “Hemos dicho, en efecto, que la felicidad era una determinada actividad del alma en conformidad com la virtud; en cuanto a los demás bienes, unos forman necesariamente parte de la felicidad, mientras que otros son auxiliares y son naturalmente útiles como instrumentos. Por lo demás, esto no está en desacuerdo com lo que hemos dicho antes al comienzo. Hemos reconocido como el más elevado de los fines el de la ciência política, pues se encarga de hacer que los ciudadanos sean personas de uma cierta cualidad y dotados de bondad, capaces de realizar acciones nobles.” 38 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcio de Sá Cavalcante Schuback. 15ª ed. Petrópolis, Vozes, 2005, vol. I (parte I).

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Menos metafísico é Sigmund Freud, narrando os aspectos superficiais, e, portanto, puramente psíquicos da cognição humana ao esclarecer sobre uma physis que o leva a agir, designando-a de princípio do prazer. Na visão da psicanálise esse prazer não se preenche, é sempre uma lacuna a exortar o desejo, como se o desejo de desejar fosse tateando às cegas, pela via da ação, a vida humana. De toda maneira, este prazer está associado à vida humana, como passa a considerar detidamente: Aquilo que em seu sentido mais estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade. O sofrimento ameaça de três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos. O sofrimento que provém desta última fonte talvez seja sentido de modo mais doloroso que qualquer outro; tendemos a considerá-lo como um ingrediente de certo modo supérfluo, embora não seja menos fatalmente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. 39

Enfrentada a teoria freudiana da psicanálise, afeiçoa-se ao desejo a ação para atingir-se o prazer, a despeito de interceptar o exame do agir no plano 39

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Trad. de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 63-64.

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psicológico, relegando a esfera do ético e do metafísico por seguir as ensinanças nietzschianas de que no recôndito do ser habita um Dionísio que impede a situação derradeira de desespero. Mais otimistas são as contribuições de Carl Gustav Jung: A energia psicológica tem o capricho de querer satisfazer suas próprias exigências. Por maior que seja a quantidade de energia existente, não podemos aproveitá-la enquanto não conseguirmos estabelecer um fluxo. O problema do fluxo é uma questão eminentemente prática que se coloca na maioria das análises. Por exemplo, no caso propício de haver um encaminhamento da energia disponível, a chamada libido, para um objeto razoável, a nossa tendência é acreditar que a transformação foi operada por um esforço consciente da vontade. Mas nos enganamos redondamente. Nem com o maior esforço do mundo conseguiríamos isso, se já não houvesse simultaneamente um fluxo natural no mesmo sentido. A importância do fluxo é constatada quando, apesar dos mais desesperados esforços e de o objeto escolhido e a forma desejada serem os mais convincentes e sensatos possíveis, não se consegue operar a transformação, produzindo apenas uma nova repressão.40

Jung vai esclarecer, ainda, o significado de libido como “energia psíquica, para mim, ou o mesmo que intensidade energética de conteúdos psíquicos.”41 A busca da felicidade é tema que tem ocupado os filósofos desde há muito. Para Santo Agostinho de Hipona, a felicidade consiste em ter Deus favorável a si, e Deus favorece a quem O procura, o que faz com que a procura 40

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. Trad. de Maria Luiza Appy. Petrópolis, Vozes, 1980, capítulo IV. 41 Ibidem.

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em si já seja um encontro do indivíduo com Deus, já que a própria procura atrai o favor divino: quem já encontrou Deus e tem-n’O favorável, é feliz; quem procura Deus, tem-n’O favorável mas ainda não é feliz; pelo contrário, quem se afasta de Deus, por vícios e pecados, não só não é feliz como não vive com o favor de Deus.42

O que se mostra tangível e histórico, portanto, é a dimensão do ético, enquanto estágio intermediário entre o puramente egóico, e o misterioso místico. No plano do bem comum, ou seja, no sítio ético, em que as relações humanas exigem dos consortes respeito recíproco porque são pessoas, há uma transcendência horizontal catalogada em Mondin, que conduz ao permanente e duradouro, estende felicidade, e imanta de sentido a ação.43 Por outro lado, em concretização mundana da dignidade, a pessoa humana ter pelo menos a possibilidade de buscar a felicidade na relação de emprego na qual se insere é algo sem o que não se cogita que possa ter seu fluxo psicológico de encaminhamento energético com destino a um objeto (ou seja, motivação) efetivamente concretizado. Pois bem, o modus vivendi do homo faber o impele ao trabalho para produção, com significado cultural ímpar, não somente garantindo-lhe fonte de sustentação própria e familiar, o mínimo existencial sem o qual padece, razão por que a primeira diretriz da Encíclica Rerum Novarum foi a do salário vital, sugerindo-se paga à energia de trabalho que pudesse garantir a integridade físico-psíquica do 42

AGOSTINHO, Santo. Diálogo sobre a felicidade. Trad. do original latino de Mário A. Santiago de Carvalho. 2ª. ed. Lisboa: Edições 70, 2014, capítulo III, parágrafo 21, in fine. 43 MONDIN, Battista. O homem quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. Tradução de R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari, São Paulo: Paulus, 2005.

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laborista, independente da sua produtividade. Eis a solidez de existência e preservação da natureza humana. Abraham Maslow verbera que é preferível expressar e encorajar a natureza humana a suprimi-la e destaca sintomaticamente que uma natureza humana que guie e ancore o sujeito é reflexo de crescimento “sadio, fecundo e feliz”. Se, pelo contrário, esse “núcleo essencial da pessoa for negado ou suprimido, ela adoece, por vezes de maneira óbvia, outras vezes de uma forma sutil, às vezes imediatamente, algumas vezes mais tarde.”44 Portanto, o exercício do labor há se ser caucionado por medidas ético-jurídicas que permitam esse desabrochar da natureza humana, desaguando em deveres limitantes ao Estado no sentido de reconhecer a legitimidade de qualquer trabalho lícito, o que já se pontua no art. 5º, XIII, da CF, mas também de fixar-se limites e garantias horizontais, tarefa cabente ao direito do trabalho, bastando a leitura do caput do art. 7º, da CF, para se escrutar os deveres do tomador em relação ao laborista, retratando, ademais, que estes abordes mínimos não esgotam a proteção às relações de trabalho quando deveres mais favoráveis forem estendidos aos laboristas, sejam do plano individual ou do coletivo (princípio da autonomia coletiva de que cogita o art. 7º, XXVI, da CF). E, ainda, uma imposição de natureza afirmativa dos grupos intermediários, como sindicatos, associações, e o Estado, como grupo melhor aparatado a interceder em prol da classe trabalhadora. O sentido de vida, e sua eminente dignidade, portanto exorta um aporte à integridade físico-psíquica do trabalhador, sem bastar à metafísica humana que, como projeto a-fazer, implica em espaço ético dentro do qual as

44

MASLOW, Abraham H. Introdução à psicologia do ser. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Eldorado, s/d, p. 28. O autor enumera ali pressupostos básicos de seu ponto de vista acerca do que considera consistir em uma “psicologia da saúde”.

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potencialidades da alma transcendam, e isso há de ser viabilizado no ambiente de trabalho.

2.7 O GARANTISMO TRABALHISTA E O ABRANDAMENTO PELO FENÔMENO FLEXIBILIZAÇÃO

SEU DA

Alhures já aduzia Amauri Mascaro do Nascimento ao garantismo trabalhista que enxerta a Constituição Federal, fixando impediência à tentativa de ajuste contratual flexível, porquanto uma vontade social imanta as relações empregatícias, como se nota de seu escólio: [...] que supõe uma concepção de direito do trabalho inflexível e indisponível quanto a determinados direitos, que, por serem de ordem pública social e fundamentais para o trabalhador, são assegurados, pela legislação, como mínimos e inderrogáveis, garantia essa da qual não são cercados os demais direitos acima desse patamar imodificável.45

Não descura de certa tendência atual no sentido de que o protecionismo implacável pudesse ceder em algumas hipóteses, dadas as necessidades sócioeconômicas próprias de uma sociedade dinâmica, considerando: É importante para o País o funcionamento das empresas para produzir bens e prestar serviços à sociedade e para abrir vagas para os trabalhadores. O direito do trabalho é complexo. Tem como principal função a tutela do trabalhador mas não pode ignorar as necessidades 45

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 14ª, ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 121-122.

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substanciais das empresas. Esse atendimento é necessário. As empresas precisam crescer e impulsionar a economia para dar maior número possível de vagas de trabalho.46

Esse dirigismo trabalhista cedeu parcialmente, aos olhos do saudoso mestre, diante de três paradigmas: “as crises econômicas, a redução de custos como meio de enfrentamento da competição empresarial e o avanço tecnológico que permite maior produção com menor número de empregados.”47 Outrossim, lavram os doutrinadores do trabalho lições uniformes de que proteções à personalidade do laborista não poderão ser expungidas do contrato, até porque a legislação constitucional do trabalho foi guindada ao plano de cláusula pétrea, e nem mesmo o poder reformador haveria de cingir os bens originariamente consagrados ao empregado. Evidente que, nos espaços fixados pela própria Constituição, a saber, a redução de salários, a compensação de jornada e os turnos ininterruptos de revezamento, mediante interferência sindical, admite-se a flexibilização trabalhista, sem que isso signifique a precarização do emprego.48 Resta escrutar se a terceirização, enquanto técnica de flexibilização trabalhista, pode ser admitida pelo sistema jurídico pátrio, mormente nas condições em que está elaborado pelo Projeto Lei 4.330/2004, já aprovado pela Câmara dos Deputados.

46

Ibidem, p. 117-118. Ibidem, p. 119. 48 ZENNI, Alessandro Severino Vallér; OLIVEIRA, Cláudio Rogerio Teodoro. (Re)Significação dos princípios de direito do trabalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 82 e seguintes. 47

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2.8 A TERCEIRIZAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

A rigor, o direito brasileiro admite a terceirização, desde que não suscite a ideia de precarização das relações empregatícias, porquanto nesse modelo estaria a ofender as barreiras postas à livre iniciativa. A terceirização é, com efeito, uma forma de flexibilização do direito do trabalho, porque perverte a ordem de relação presente no art. 2º, da CLT, acometendo a terceiro os requisitos do patrão, tais como a contratação, remuneração, poder diretivo e os riscos da atividade, a despeito de o laborista render a energia laborativa ao tomador. Nesse sentido é uma flexibilização horizontal, dando-se no processo de contratação da mão-de-obra obreira. O fenômeno passa a ser vislumbrado no direito brasileiro na década de oitenta, agudizando-se nos anos 90, entrementes a terceirização exsurge pela implantação do modelo toyotista de produção, em que a esteira e o cadenciamento linear são substituídos pela descentralização produtiva e a simultaneidade dos processos, designados de just-in-time, pelo que partes do setor de produção são deslocados, migrando à rede produtiva. O capitalismo tardio tenciona à máxima eficiência do sistema e a forma expedita, célere e de baixo custo estaria na técnica da terceirização da produção. Aliás, os doutrinadores apontam como efeitos da terceirização a economia de passivo no treinamento e aperfeiçoamento

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da mão de obra, ainda a redução nos investimentos com máquinas, equipamentos e utensílios.49 Já os juristas indicam um enfraquecimento vertiginoso na atuação sindical, dada a fragmentação das categorias em face à classificação da representatividade sindical no direito brasileiro. A diluição da categoria profissional declina o processo representativo e fragiliza a negociação, a fortiori o exercício da greve. Teoricamente a terceirização é procedimento flexibilizatório implicitamente admitido no Texto Constitucional, porquanto a livre iniciativa pressupõe que o empregador articule o processo estrutural para captação do lucro, dirigindo o negócio como lhe aprouver, desde que observados os limites consubstanciados no art. 170, da CF. Maurício Godinho Delgado aponta a legalidade da terceirização e seu surgimento no direito brasileiro a partir do Decreto-Lei 200/67 e Lei 5.645/70, a propósito do recrutamento de labuta pela Administração Pública, no âmbito das atividades executivas ou operacionais relacionadas à esfera pública.50 A precariedade do direito positivo fez eclodir o entendimento sumulado no Enunciado 256, do TST, limitando as terceirizações àquelas provenientes de expressa disposição legal, embora não expansiva às terceirizações no setor público. Após o surgimento da terceirização prevista pela legislação na esfera de serviços de apoio em vigilância bancária e nas limpezas e zeladorias, o TST encorpou em Súmula o expediente da terceirização no tegumento do 49

MARTINS, Sérgio Pinto. A terceirização trabalhista e o direito do trabalho. 9ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009, p. 11. 50 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 13ª. ed. São Paulo: LTr, 2014, p. 453 e 455 e seguintes. O autor deixa claro que tais hipóteses evidentes de terceirização, mais modernas em relação à edição da CLT, somam-se àquelas mais discretas já previstas no texto original consolidado, da empreitada e da subempreitada, incluída a pequena empreitada.

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Enunciado n. 331, admitindo, em síntese, que somente nas atividades meio o procedimento da flexibilização horizontal é legítimo, e, ainda assim, atrai a responsabilidade subsidiária do tomador do trabalho, excepcionando-se a Administração Pública na licitação, cuja responsabilidade recairá ao Ente Público se for comprovada a negligência na averiguação do repasse de valores nos pagamentos dos licitados a seus laboristas. A terceirização nas atividades fim conduz ao reconhecimento direto da relação empregatícia com o tomador do trabalho, à guisa das consequências lançadas à terceirização por interposta pessoa, como, ainda, passou a ser tratada com deferência a atividade inserida em zona de cizânia, em que não se reconhece com absoluta limpidez ser ou não atividade fim, no que se passa a admitir a terceirização desde que não haja subordinação e pessoalidade diretas entre tomador e laborista terceirizado. A responsabilidade supletiva imputada ao tomador consiste no “dever de fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa escolhida. É o desdobramento da responsabilidade civil quanto às relações do trabalho, por meio da culpa in eligendo e in vigilando. Deve solicitar, mensalmente, a comprovação quanto aos recolhimentos previdenciários, fiscais e trabalhistas”.51 Entrementes, já na vigência da Súmula 331, do TST, a essência da terceirização denuncia técnica de precarização das relações de emprego, conquanto advenha de um sistema de otimização engendrado pelo capitalismo onde o empregador angaria aumento produtivo e redução de custos pela via da contratação de mão de obra. Obviamente que a fragmentação sindical conduz à

51

JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2009, p. 99.

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redução de salários e benefícios coletivamente conquistados.52 O próprio discurso empresarial endossa a precarização nas relações de trabalho, porquanto o vínculo empregatício terceirizado passa a ser a retórica a justificar o preço avultante e impediente à competitividade, próprio de uma relação tradicional preconizada pelo art. 2º, da CLT. Noutra senda, são diversos os expedientes de fraude no âmbito das terceirizações, exemplificando-se com as cooperativas de trabalho, hodiernamente regidas pela Lei 12.690, de 19 de julho de 2012, sendo que as limitações naturais encontradas pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério Púbico do Trabalho induzem ao praxismo do subterfúgio. Não se descura que o laborista terceirizado que foi vítima de uma fraude sofre aguda discriminação na forma de tratamento, tema que ensejaria reflexão no campo dos direitos da personalidade.

2.9 AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES DA TERCEIRIZAÇÃO NO PROJETO DE LEI N. 4.330/04

De plano os doutrinadores maculam o projeto por vislumbrarem nele grosseira inconstitucionalidade.53 Se alhures a terceirização ultra legis redundava em macroscópica fraude à luz da interpretação do TST, 52

FRANCO, Tânia & DRUCK, Graça (org.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 65. 53 AMORIM, Helder Santos. O PL 4.330/2004-A e a inconstitucionalidade da terceirização sem limite. Disponível em: Acesso em: 17 de junho de 2015. 54 Art. 2º Para os fins desta Lei, consideram—se: I - terceirização: a transferência feita pela contratante da execução de parcela de qualquer de suas atividades à contratada para que esta a realize na forma prevista nesta Lei; II - contratante: a pessoa jurídica que celebra contrato de prestação de serviços determinados, específicos e relacionados a parcela de qualquer de suas atividades com empresa especializada na prestação dos serviços contratados, nos locais determinados no contrato ou em seus aditivos; e III - contratada: as associações, sociedades, fundações e empresas individuais que sejam especializadas e que prestem serviços determinados e específicos relacionados a parcela de qualquer atividade da contratante e que possuam qualificação técnica para a prestação do serviço contratado e capacidade econômica compatível com a sua execução. § lº Podem figurar como contratante, nos termos do inciso II do caput deste artigo, o produtor rural pessoa física e o profissional liberal no exercício de sua profissão. § 2º Não podem figurar como contratada, nos termos do

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Releve-se o tegumento dos artigos 15 e 17 § 5º ao preverem a responsabilidade solidária entre contratante e contratada pelo inadimplemento de obrigações previstas nos incisos I a VI do art. 16 e por contribuições previdenciárias. Ainda assim, no escólio de Helder Santos Amorim há “afronta diretamente à Constituição da República, por violar o necessário equilíbrio entre os princípios inciso III do caput deste artigo: I — a pessoa jurídica cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado da contratante; II — a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios guardem, cumulativamente, com o contratante do serviço relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade; III — a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham, nos últimos 12 (doze) meses, prestado serviços à contratante na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os referidos titulares ou sócios forem aposentados. § 3º A contratada deverá ter objeto social único, compatível com o serviço contratado, sendo permitido mais de um objeto quando este se referir a atividades que recaiam na mesma área de especialização. § 4º Deve constar expressamente do contrato social da contratada a atividade exercida, em conformidade com o art. 511 da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. § 5º A qualificação técnica da contratada para a prestação do serviço contratado deverá ser demonstrada mediante: I - a comprovação de aptidão para o desempenho de atividade pertinente e compatível com o objeto do contrato; II — a indicação das instalações, dos equipamentos e do pessoal adequados e disponíveis para a realização do serviço; III — a indicação da qualificação dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos, quando for o caso. § 6º Tratando-se de atividade para a qual a lei exija qualificação específica, a contratada deverá comprovar possuir o registro de empresa e a anotação dos profissionais legalmente habilitados, nos termos do disposto na Lei nº 6.839, de 30 de outubro de 1980. Art. 3º A contratada é responsável pelo planejamento e pela execução dos serviços, nos termos previstos no contrato com a contratante. § 1º A contratada contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus empregados. § 2º A terceirização ou subcontratação pela contratada de parcela específica da execução do objeto do contrato somente poderá ocorrer quando se tratar de serviços técnicos especializados e mediante previsão no contrato original. § 3º A excepcionalidade a que se refere o § 2º deste artigo deverá ser comunicada aos sindicatos dos trabalhadores das respectivas categorias profissionais.

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constitucionais conflitantes, privilegiando os interesses expansivos do capital em detrimento do sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais dos trabalhadores”, valorizando sobremodo a livre iniciativa, alargando a “liberdade de contratação de serviços para além do permissivo constitucional, já que submete a sacrifício desproporcional os princípios do valor social do trabalho e da função social da propriedade”.55 Mas o tema da terceirização nas atividades fins do tomador já era debatido na doutrina em 2005, tanto que Augusto Cezar Ferreira de Baraúna criticava a posição dos Tribunais do Trabalho salientando que “a jurisprudência não deve restringir a terceirização aos estágios inicial e intermediário, com a inclusão do avançado, desde que a terceirização não seja fraudulenta”.56 Ocorre que a terceirização nas atividades fins representa, indubitavelmente, um retrocesso à proteção aos direitos personalíssimos, ignorando o principal elemento da dignidade da pessoa enquanto valor supremo, porque derroga a inexorável presença da igualdade no mundo do trabalho e derriça o direito coletivo do trabalho. Essas objurgações não passaram despercebidas por Alice Monteiro de Barros: Tanto a Justiça do Trabalho como o Ministério Público não têm medido esforços no combate à terceirização de serviços ligados à atividade-fim da empresa fora dos limites traçados pelo Enunciado nº 331 do TST. Entre os malefícios da terceirização em atividade-fim das 55

AMORIM, Helder Santos. O PL 4.330/2004-A e a Inconstitucionalidade da Terceirização Sem Limite. Disponível em: Acesso em: 17 de junho de 2015. 56 Apud Jorge Neto, Francisco Ferreira in NETO JORGE, Francisco Ferreira e CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2009, p. 98.

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empresas encontram-se a violação ao princípio da isonomia, a impossibilidade de acesso ao quadro de carreira da empresa usuária dos serviços terceirizados, além do esfacelamento da categoria profissional. 57

Registre-se que o projeto de lei propõe a plenitude da contratação terceirizada nas esferas privadas, pulverizando-se em todos os setores da economia e atingindo qualquer profissão, atividades e funções, bastando que a empresa de terceirização seja especializada. Esse panorama trazido à colação pelo projeto implica em revogação dos quadros instalados no direito brasileiro a propósito da terceirização, atualmente admitida nos serviços de vigilância, limpeza, asseio e conservação, limpeza, os demais serviços ligados às atividades de apoio do tomador, sem que se mantenha subordinação e pessoalidade diretas, e para os que assim compreendem no quadro classificatório, o trabalho temporário. A terceirização indiscriminada desembocará na inevitável migração dos laboristas permanentes e ancorados nos quadros funcionais dos tomadores às labutas por terceirização, enfraquecendo sensivelmente a garantia de direitos, mormente pela cisão das categorias profissionais e a palidez das negociações coletivas. O próprio sentido de categoria se esvaziaria, cambiando os laboristas em prestadores de serviços e os desqualificando como profissionais categorizados, como, por exemplo, bancários, professores, comerciários. Se já se observa no âmago da terceirização dação de direitos trabalhistas de menor envergadura em cotejo com os direitos previstos aos empregados diretamente contratados pelo tomador empregador, indubitável que a terceirização amplificada redundará em minorações salariais, cláusulas simplistas, e a existencialidade mínima 57

BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 7ª. ed., revista e atualizada. São Paulo: LTR, 2011, p. 358.

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consolidada pelo direito do trabalho será afetada portentosamente, qualificativo que não se compraz com o princípio do valor social do trabalho. Nem se releguem os aspectos previdenciários subjacentes à terceirização, que também serão precarizados, não só em virtude de as rendas serem aviltadas e, consequentemente, interferirem nas receitas previdenciárias, como, ainda, causará um curto-circuito no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e no Sistema Único de Saúde (SUS), dadas as perdas de receitas parafiscais e o número inigualável de acidentes de trabalho e doenças profissionais vislumbrados nas relações terceirizadas, cujas estatísticas já são alarmantes. Tratar o laborista como dado, estatística, ou número no cálculo do engajamento socioeconômico é, naturalmente, relativizar valor absoluto da dignidade da pessoa humana, com o que o direito não pode convolar.

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2.10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Daniel Sarmento, tanto o Direito quanto a Política são praticados por homens que bem andarão ao adotar uma ética altruísta, cada indivíduo voltado não somente para si próprio, mas para todos e cada um dos demais integrantes da comunidade, valorizando-nos todos uns aos outros como pessoas humanas que somos. 58

O trabalho como direito social exige a realização do bem comum, como imperativo ético de relações intersubjetivas de distribuições justas dos valores, confere ao laborista a manutenção própria e familiar, fomentando um clima de estabilidade com pulverização ao seio comunitário, sem prejuízo de que qualquer espaço comum de realização ética é, também, uma oportunidade para transcendência horizontal, seja no plano da verdade, da justiça ou da beleza, eis o sentido permanente que requesta a dignidade da pessoa. Se as relações trabalhistas passam pelo procedimento de precarização, com garantias menos expressivas, diluição de classes e representatividade, e tudo em nome da pujança da livre iniciativa, a contrapartida da responsabilidade social da propriedade, o denodo à valorização social do trabalho e, enfim, a dignidade do empregado, não passarão de postulados constitucionais sem eco, menos ainda ampla efetividade, frustrando os objetivos da teoria dos direitos fundamentais. Assim, mesmo com o abrandamento do garantismo trabalhista, mencionado por Amauri Mascaro Nascimento conforme acima se referiu, aspectos fundamentais da 58

SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010, p. 332-333.

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proteção da dignidade da pessoa humana hão de ser preservados pelo direito do trabalho, como os mencionados por último. Conforme se demonstrou, tais aspectos fundamentais da proteção da dignidade da pessoa humana não são preservados pelo Projeto de Lei n. 4.330/2004, aprovado na Câmara dos Deputados e em trâmite no Senado Federal quando da elaboração do presente artigo.

2.11 REFERÊNCIAS

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- III A LIBERDADE DE IMPRENSA E A CENSURA JUDICIAL: UMA PERSPECTIVA SOBRE AS OBRIGAÇÕES DE NÃO FAZER E A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Jackson Matheus Porfírio* Luciana Chemim**

3.1 INTRODUÇÃO

A liberdade de imprensa traduz o direito de expressar opiniões e ideologias quando da transmissão de determinada informação, garantindo-se, assim, o Estado Democrático de Direito. Não se pode pensar em democracia sem liberdade de expressão e informação. E

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Advogado. Mestrando no Programa de Mestrado em Processo Civil e Cidadania da UNIPAR – Universidade Paranaense. Especialista em Processo Civil. Professor do Curso de Direito da UNIVEL. - Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Coordenador do projeto de pesquisa “Combate à corrupção: uma questão de cidadania” ** Advogada. Mestranda no Programa de Mestrado em Processo Civil e Cidadania da UNIPAR – Universidade Paranaense – Sede Umuarama. Especialista em Processo Penal e Direito Penal pela UNICURITIBA. Professora do Curso de Direito da UNIVEL. - Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UNIVEL – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel. Colaboradora e participante dos Grupos de Pesquisa “Consumidor Consciente: Direitos e Deveres”, “O Direito Humano Fundamental a Cultura, sua diversidade e efetivação” e “Combate à corrupção: uma questão de cidadania”. Colunista Convidada da Revista de Psicologia “Psicobela Digital”. E_mail: [email protected]

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também não se pode pensar em liberdade de expressão sem limites, de modo a se obter harmonia social. (...) só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, exatamente o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto... O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo o exercício de poder, que se afastar dessa base, é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo. (BECCARIA apud MIRANDA, 1995, pp. 82 e 83).

Por conseguinte, é indubitável que a imprensa é o meio facilitador da comunicação popular, é o interprete da opinião pública, o veículo de onde emanam as ideias e os ideais, as aspirações, as lutas travadas, os desafios lançados, os anseios, expectativas e manifestos de um povo, de modo que qualquer restrição que se lhe imponha, no sentido de se aniquilar o interesse coletivo, será o prenúncio da força sobre o direito. (MIRANDA, 1995, p. 83). Entretanto, importa ressalvar que a liberdade de informação e de expressão dos veículos responsáveis pela notícia não é exercida em caráter absoluto, notadamente quando há colisão de outros direitos fundamentais, tais como o direito à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem, de modo a respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana. A liberdade de imprensa, embora ampla, não é ilimitada, visto que o próprio texto constitucional restringe essa liberdade em determinadas situações em que outros bens jurídicos fundamentais se encontram em confronto com a liberdade de informação jornalística. Em sendo assim, eventuais abusos ou a extrapolação dessa liberdade que ofenda a honra, a vida, a intimidade ou a

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imagem de alguém é vedada pelo ordenamento jurídico. (DONNINI, 2002, p.47).

Ainda neste sentido: O conflito ou a colisão de direitos fundamentais ocorre no momento em que duas pessoas, titulares de direitos diversos, enquadrados na categoria de fundamentais, têm em confronto, conflito ou colisão o exercício destes direitos (...) com efeito, nossa Lei Maior resolve, no mencionado § 1°, do art. 220, essa aparente antinomia. Em verdade, não há primazia da liberdade de expressão e informação sobre os direitos da personalidade aqui apontados (honra, vida privada, intimidade e imagem). O que se coíbe é o excesso, o abuso no exercício da liberdade de imprensa em detrimento de valores fundamentais que são inerentes à pessoa, consagrados no texto constitucional. (CANOTILHO apud DONNINI, 2002, pp.97 e 99).

A liberdade de expressão e de informação participa de modo incisivo na orientação da opinião pública, notadamente num país democrático, servindo de guia para o exercício de outros direitos fundamentais, razão pela qual não pode se revestir de caráter absoluto. A liberdade de expressão e informação, que atinge o nível máximo de sua proteção quando exercida por profissionais dos meios de comunicação social, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluta, tem limites. Assim, além do limite interno referido da veracidade da informação, a liberdade de expressão e informação deve compatibilizar-se com os direitos fundamentais dos cidadãos afetados pelas opiniões e informações, bem como ainda com outros bens constitucionalmente protegidos, tais como a moralidade pública, saúde pública, segurança pública, integridade territorial, etc. (FARIAS, 2000, p. 169).

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Assim, o presente artigo tem por escopo analisar a liberdade de imprensa, como garantia do direito a expressar livremente o pensamento, perpassando pelos limites legais decorrentes de eventuais abusos, notadamente quando em colisão com outros princípios e garantias fundamentais constitucionalmente previstos.

3.2 LIBERDADE INFORMAÇÃO

DE

IMPRENSA

E

DIREITO

À

3.2.1 Conceito Em um início de explanação, mister se faz entender qual o significado ou conceito da palavra imprensa. “Etimologicamente, imprensa vem do latim impressa, impressu, e significa prensa das artes gráficas. A imprensa periódica é denominada jornalismo (...)” (DONNINI, 2002, p.15). Num sentido mais popular, pode-se conceituar imprensa como sendo qualquer veículo de informação, impresso ou não, destinado a produzir notícia. Imprensa, atualmente, não significa apenas meio de difusão de informação impressa, vale dizer, aquela realizada na forma impressa, mediante impressão, como, verbi gratia, no caso de jornais, periódicos e revistas. Abrange a palavra imprensa os meios de comunicação ou informação, tais como jornais, periódicos, revistas, televisão, rádio e internet. (DONNINI, 2002, p. 53).

Assim, por liberdade de imprensa, entende-se o direito de poder expressar livremente o pensamento

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acerca de determinado acontecimento, abrangendo, por consequência, o direito à informação. O direito de informar divide-se em direito à expressão pública de idéias ou opiniões e direito à transmissão pública de notícias. O primeiro é a faculdade de expressar o pensamento (conceitos, opiniões, idéias) por meio de qualquer forma de comunicação (escrita, falada, televisiva, etc.). O segundo é o direito de transmitir à opinião pública notícias de qualquer espécie, através de um meio de comunicação apto à prática desse atividade. (EKNEKDJIAN apud DONNINI, 2002, p.40).

A Constituição Federal de 1988 assegura plena liberdade de expressão e informação no artigo 220, ao estabelecer que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Igualmente garante a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sem qualquer censura ou licença, bem como avaliza a livre manifestação do pensamento, consoante se depreende da leitura do artigo 5º, incisos IX e inciso IV, respectivamente. Pode-se perceber, portanto, que a redemocratização advinda com a Constituição de 1988 avançou no sentido de coibir a censura, permitindo o livre acesso a informação, por meio dos veículos de imprensa, garantindo-se, desta feita, o Estado Democrático de Direito. Na perspectiva do Estado Democrático, a imprensa se apresenta como detentora do papel fundamental de servir como meio de informar ao povo o que os seus representantes estão deliberando em seu nome e até mesmo o alcance e significado das decisões tomadas, minimizando, assim, os riscos de desmoralização do regime democrático. (Souza, 2008, p. 89)

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Veja-se que, no âmbito da proteção constitucional ao direito à livre manifestação do pensamento, através da informação, está embutido o direito de receber também com liberdade, informações corretas. No aspecto passivo dessa relação da comunicação, destaca-se o direito do público de ser adequadamente informado, tema que Rui Barbosa já chamava atenção sobre o mesmo em sua célebre conferência intitulada ”a imprensa e o dever da verdade” e que, atualmente, invocando-se a defesa dos interesses sociais e indisponíveis, desemboca na tese de que o direito positivo brasileiro tutela o “direito difuso à notícia verdadeira”. (CARVALHO apud FARIAS, 2000, p. 166).

Ainda, dentro de um contexto mais aprofundado sobre a complexidade do direito de liberdade e informação, seguem as dimensões que podem ser encontradas sobre o tema: A liberdade de informação jornalística tangencia diretamente a idéia de liberdade de expressão e possui função instrumental relativamente à afirmação da liberdade individual de pensamento e de opinião e à garantia de autodeterminação democrática da comunidade globalmente considerada e, como decorrência dessas suas características, envereda por distintas dimensões vinculadas ao (i) direito fundamental reservado do indivíduo de ser corretamente informado; (ii) ao direito fundamental de buscar as informações que entender serem do seu interesse; e (iii) ao direito fundamental dei informar, expressando livremente suas opiniões e idéias (...) constituindo-se em uma necessidade irrenunciável, sem a qual não há participação, não há liberdade, desmorona-se a igualdade e inexiste democracia (SOUZA, 2013, pp.12 e 13).

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Importa ressaltar que esse posicionamento acerca da necessidade da notícia divulgada ser verdadeira não é absoluto, de modo que parte da doutrina entende que a liberdade de expressão possui conteúdo mais amplo que a liberdade de informação, prescindindo da necessidade de se noticiar apenas fatos verídicos. A liberdade de expressão se traduz na emissão de uma opinião, uma determinada posição sobre um tema, não havendo assim, um vínculo de dependência com a verdade, ainda que os abusos não só possam, como devam ser punidos. (GOMES JUNIOR, CHUEIRI, 2011, p. 122).

3.2.2 Contexto histórico acerca da imprensa no brasil – breves apontamentos A primeira notícia que se tem de imprensa no Brasil é datada de 1706, em Pernambuco. Entretanto, essa e outras tentativas posteriores de se implantar a imprensa no Brasil restaram frustradas e acabaram proibidas por ordem do governo português. Tais vetos consistiram no atraso de quase cem anos da efetiva propagação da imprensa no país, a qual ressurgiu apenas em 1808, pelas mãos governamentais. (LOPES, disponível em: acesso em 20/05/2014) No Brasil, a história da imprensa iniciou-se da forma mais indesejada: com a sua proibição. Em 1747, por meio de uma carta régia, a Corte portuguesa vetou a impressão de livros e avulsos. Com a medida, foi destroçado o primeiro e único empreendimento gráfico da época, uma tipografia aberta um ano antes no Rio de Janeiro por Antônio Isidoro da Fonseca. (DONNINI, 2002, p. 20/21)

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Ainda nesse mesmo ano, foram criados o Correio Braziliense, em Londres, classificado pelos livros de história como sendo o primeiro jornal em português a circular no Brasil, embora tenha nascido fora da Colônia e a Gazeta do Rio de Janeiro, publicação estatal editada sob a censura prévia e oficial. Em 1821 nasceram os jornais Diário do Rio de Janeiro e Reverbo Constitucional Fluminense, ambos com veias sensacionalistas, adotando um cunho mais político, abordando temas como economia, relatos de crimes e assuntos gerais, sendo que esse último tinha por objetivo precípuo a luta pela independência, tanto que parou de circular com a proclamação da mesma, vez que seus redatores acreditavam que já haviam cumprido com seu fim. Com a proclamação da independência muitos jornalistas, por se engajarem em movimentos políticos contrários aos interesses da época, acabaram perseguidos, presos e, em alguns casos, exilados, vez que almejavam mais do que a simples separação entre Brasil e Portugal, lutavam por um país livre. Dos jornais do início do século XIX, o único que continua a ser publicado até hoje é o Direito de Pernambuco, lançado em 1825, considerado o mais antigo diário com circulação ininterrupta na América Latina. (DONNINI, 2002, P. 21)

Após a independência, a primeira Assembleia Constituinte procurou elaborar nova Lei de Imprensa, entretanto, quando o projeto ainda estava na pauta para discussão, a Constituinte foi dissolvida. Entretanto, o projeto foi posteriormente aproveitado, transformando-se no decreto de 22 de novembro de 1823, o qual “repudiava a censura e declarava livres a impressão, a publicação, a venda e a compra de livros e escritos de toda qualidade, com algumas exceções. Foi essa a nossa primeira lei de imprensa.” (MIRANDA, 1995, p. 44).

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A Constituição de 1924 manteve a liberdade de manifestação do pensamento por palavras escritas e veiculadas através da imprensa. Entretanto, foi o Código Penal de 1830 que, incorporando dispositivos de um projeto de lei que tentava regular o texto constitucional, regulou os abusos provenientes da liberdade de imprensa no Brasil, de modo que esses passaram a constituir delitos comuns, o que perdurou até a proclamação da República. (MIRANDA, 1995, PP. 44 e 45). Em 1891, foi promulgada a primeira Constituição Republicana, a qual em seu artigo 72, parágrafo 2º, já dispunha acerca da liberdade de imprensa através da manifestação do pensamento, sem dependência de censura, respondendo cada um por eventual abuso cometido, sendo vedado o anonimato. Em 1923 foi promulgada a Lei 4.743, a qual subtraía do Código Penal as normas referentes aos delitos contra a liberdade de imprensa. A Constituição de 1934 igualmente previa a liberdade de imprensa, sem censura, ressalvando-se quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos termos em que a lei determinar, sendo assegurado o direito de resposta e sendo vedada a propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política. Dois dias antes da promulgação da mesma, o então Presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas, baixava o Decreto 24.776, que foi a segunda lei de imprensa pós a proclamação da República. (MIRANDA, 1995, pp. 45 e 46). Com o golpe de Estado em 1937 e instauração do Estado-Novo, o decreto sofreu profundas alterações com o advento da Constituição outorgada, sendo estabelecida a censura prévia da imprensa, a qual era controlada pelo DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, criado pelo governo ditatorial criado por Vargas. No Brasil, apesar dos regimes de exceção, em que as liberdades e garantias individuais foram acintosamente

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violadas, todas as constituições federais, salvo a Carta de 1937, ao menos previram a liberdade de imprensa, embora na prática poucos tenham sido os períodos de absoluta liberdade de comunicação do pensamento pela imprensa. (DONNINI, 2002, pp.45/46).

O regime de censura durou até 1945, com o fim do estado ditatorial, voltando à vigência o decreto 24.776, revigorado pela Constituição de 1946, o qual perdurou até a promulgação da Lei 2083/53, pelo Presidente Getúlio Vargas, a qual revogou o referido decreto e permaneceu regendo toda matéria relativa aos crimes de imprensa até o advento da Lei 5.250/67, da lavra do então Presidente, Castello Branco. 3.2.3 Revogação da Lei Nº 5.250/67 – vácuo legislativo Com o ajuizamento da ADPF 130 – DF no Supremo Tribunal Federal questionando acerca da constitucionalidade da Lei de Imprensa em face da ampla liberdade conferida a essa pela Constituição Federal de 1988, a qual culminou com a revogação da referida lei, novos questionamentos surgiram, na medida em que se abriu um vácuo legislativo, dando espaço para que, diante do caso concreto, cada juiz decida conforme sua própria vontade. É certo que o fim da Lei 5.250/67 foi prematuro, na medida em que deixou um vazio que até os dias atuais não foi preenchido, ameaçando sobremaneira a segurança jurídica. O ideal seria a manutenção, ainda que parcial, da lei revogada, tendo-se em conta que a maioria de seus artigos era de acordo com a Constituição de 88, ao menos até a aprovação de nova legislação sobre a matéria, como defendem alguns estudiosos. Acerca dos prejuízos causados pela lacuna legislativa que se instaurou com a ausência de legislação específica para disciplinar a atividade dos órgãos de

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informação, pertinente o entendimento esposado pelos autores Luiz Manoel Gomes Junior e Miriam Fecchio Chueiri (GOMES JUNIOR, CHUEIRI, 2011, p. 14): Havia uma disciplina específica para os processos judiciais que fossem ajuizados. Revogada a lei, cada juiz adota o procedimento que entender melhor. No direito de resposta, que possui previsão constitucional e não pode ser negado por falta de disciplina legal, por exemplo, será ajuizado em um local no juízo cível, e em outro, no juízo criminal; um julgador irá exigir como condição o pedido administrativo anterior, como na revogada lei de imprensa, outro entenderá que não há necessidade, causando perplexidade para todos os interessados e, pior, para os órgãos de imprensa que não saberão como proceder em cada situação concreta.

Assim, até que haja nova disciplina regulamentadora das atividades de imprensa, essa ficará entregue à própria sorte e deverá contar unicamente com a jurisprudência que, se espera, possa responder de modo satisfatório aos conflitos provenientes da liberdade de informação e dos demais direitos fundamentais.

3.3 OBRIGAÇÕES DE NÃO FAZER: CONTROLE JUDICIAL PARA SALVAGUARDAR DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CENSURA PRÉVIA.

3.3.1 Conflitos de direitos fundamentais Hodiernamente se fala em Estado de Direito Constitucional, vez que, cada vez mais se ressalta a preocupação em salvaguardar os direitos fundamentais previstos pela Carta Maior, o que se revela nos julgados

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atuais e nas notícias veiculadas por todos os meios de informação. Ocorre que, pode haver conflito entre os próprios direitos fundamentais e, na falta de lei ordinária que possibilite uma solução para o caso concreto, a resposta em caso de colisão entre dois direitos fundamentais fica por conta dos juízes e tribunais. Verificada, no entanto, a existência de um autêntica colisão de direitos fundamentais cabe ao intérpreteaplicador realizar a ponderação dos bens envolvidos, visando resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo. Nessa tarefa, pode guiar-se pelos princípios da unidade da constituição, da concordância prática e da proporcionalidade, dentre outros, fornecidos pela doutrina. (FARIAS, 2000, p. 122).(sic)

Ou seja, é inegável que os direitos fundamentais previstos na atual Constituição Federal, envolvem valores principiológicos. No entanto, é entendimento acertado que estes valores fundamentais não contenham prevalência imediata ou formal sobre outros. Não há como se taxar em um primeiro momento, que um determinado valor fundamental seja superior a algum outro. O que deve ocorrer em uma primeira interpretação é a aplicação do princípio da harmonização destes direitos, tentando-se ao máximo a preservação de ambos os direitos. Ocorre que nem sempre isto é possível, ocasião em que a partir de uma explanação fundamentada, se dará prevalência de um sobre o outro. Nesta linha de raciocínio: Essa riqueza do constitucionalismo brasileiro, faz com que seu contexto constitucional, mormente o de 1988, agregue valores diversos, como diversos também eram os interesses representados pelos constituintes de 1987, sem que haja demonstração de supremacia de uma corrente doutrinária sobre as demais, possibilitando que nesse acomodação de interesses diversos, surjam

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conflitos como o que ora é apresentado, envolvendo valores principiológicos, os quais encontram solução em métodos tradicionais e tampouco permitem concluir, antecipadamente, pela prevalência de um princípio frente ao outro, aconselhando, sempre, que se proceda à análise do caso concreto, com vistas a apurar qual o valor preponderante em cada caso, tarefa essa reservada ao Poder Judiciário (...) o que não afasta a possibilidade de concessão de uma proteção preventiva, antecipatória, se o direito à honra está sob ameaça ou na iminência de ser maculado (SOUZA, 2013, p.117).

3.3.2 Submissão ao dano indenizável Passados por este ponto, o que se pretende esclarecer agora é que o entendimento, em muitas vezes corriqueiro, de que o direito à liberdade de expressão estaria de plano em um nível superior automaticamente, isto com o fundamento de que caberia à parte supostamente lesionada, buscar a reparação deste dano no judiciário, é totalmente inconsistente. Assim, no início deste ponto, mister se faz entender que não deve ser regra absoluta a liberdade de imprensa e a reparação do lesionado posteriormente, sem qualquer tentativa da preservação de sua honra antes que seja violada. Para esclarecer o assunto, seguem as lições de FUX: (…) não tem que necessariamente se submeter aos efeitos do dano, para somente então buscar a tutela jurisdicional estatal, podendo pleitear do Estado uma tutela efetiva que impeça o ataque a sua dignidade (...) o requerente há de demonstrar que, se ocorrente a violação temida, não receberá da justiça a resposta adequada face dos desastrosos efeitos da aparição pública, passível de impedimento apenas pela inibição judicial. É mister comprovar que a ilicitude da divulgação da imagem e a inoperância do provimento final

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porquanto exsurgente após a transgressão (FUX apud SOUZA, 2013, p.119).

Esquecem-se, quem postula pela necessidade de se aguardar a violação do direito, que a indenização, na maioria das vezes, será apenas compensatória, a qual não irá erradicar o dano causado por completo, eis que os prejuízos intrínsecos à pessoa não serão apagados. Referendando os argumentos ora postos: (…) rompendo com os postulados do dogma de que o ressarcimento é a única forma de tutela para o caso (...) prejuízos de interesse de ordem biológica, espiritual, ideal e moral, não matrimonial, que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados, que não exatamente indenizados, com a obrigação pecuniária imposta ao agente (SOUSA apud SOUZA, 2013, p.120).

Nessa perspectiva, é lógico que se necessita de uma construção teórica muito bem estruturada e fundamentada para se dar a prevalência de um valor sobre o outro. O magistrado deve demonstrar o caminho tomado e quais os embasamentos que o levou a construir o seu raciocínio. A adoção deste critério por parte do julgador, permite, assim, que através da aplicação da proporcionalidade, na judicialização do problema, se preserve o “núcleo essencial” de ambos os valores em colisão, e se justifique sociológica e juridicamente a oposição de obstáculo ao exercício da liberdade de informação jornalística (...) (SOUZA, 2013, p.123).

3.3.3 A tutela preventiva (obrigação de não fazer) e a censura prévia Uma vez entendido o conceito e uma breve história sobre a liberdade de imprensa, analisando a sua valoração

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frente aos demais direitos fundamentais, cumpre por fim, analisar a possibilidade de medidas de intervenção, consistentes em obrigação de não fazer, face à liberdade de imprensa e se esta situação jurídica consistiria em eventual configuração de censura prévia. Parte da doutrina entende ser possível a utilização de tutelas inibitórias, consistentes em obrigação de não fazer, como por exemplo, de não divulgação de informação ou imagem, sem que isso caracterize de plano a idéia de censura prévia. A partir do momento que o direito de liberdade de expressão atinge o patamar de outro direito fundamental tão protegido quanto este, nasce para o juiz o poder de limitar esta exacerbação praticada. Esta ação do juiz é tão somente para evitar o excesso de direito, bem como para proteger direito fundamental. Não há como se entender que a proteção de direitos se revele em censura judicial. Neste sentido: Frisa-se que o exercício da tutela preventiva, em suas várias formas, do direito à sua dignidade não pode ser entendido como censura, nem prévia (impeditiva da divulgação da matéria), nem posterior (exercida depois da reprodução, mas antes da publicação) (...) porque, como já foi afirmado, qualquer manifestação dos meios de comunicação, deve respeitar, entre outros direitos da personalidade, o direito fundamental à honra, ao nome, à imagem de que todos os indivíduos possuem, como característicos, mesmo, da dignidade da pessoa humana (SOUZA, 2013, p.128).

Com extrema habilidade, RAMONET explica a diferença entre atos de censura prévia, existente principalmente em regimes ditatoriais e ao que chama de “censura” democrática, ou seja, atuação preventiva do Estado para coibir a exacerbação do direito, inclusive se

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insurgindo contra a ideia de que um setor da sociedade seria detentor de todas as verdades. Seguem os seus ensinamentos: Desde sempre, o conceito de censura é assimilado ao poder autoritário, do qual ela é, de fato, um elemento constitutivo importante. Censura significa supressão, interdição, proibição, corte e retenção de informação. A autoridade tem plena certeza de que um atributo forte de seu poder consiste em controlar a expressão e a comunicação de todos aqueles que estão sob sua tutela. É assim que procedem os ditadores, os déspotas ou os juízes da discussão. Esta tolerância, nós a vivemos como um milagre, a tal ponto que negligenciamos ver uma nova forma de censura se estabeleceu subrepticiamente, uma censura que poderíamos chamar “censura democrática”. Esta, em oposição à censura autocrática, não se funda mais na supressão ou no corte, na amputação ou na proibição de dados, mas na acumulação, na saturação, no excesso e na superabundância de informações (...) a mídia não deve mais fingir que acredita que ela é o olho que olha, mas que não pode ver-se (...) esta metáfora não é mais válida, porque a mídia não tem mais esta posição privilegiada de periscópio ou panóptico. Hoje todo mundo vê a mídia, a observa, a analisa, e muitos dossiês mostram, com toda clareza, que ela não é perfeita (...) não há espaço para posições maniqueístas e tampouco para a aceitação pura e simples de que determinado setor da sociedade seja detentor de todas as verdades (...) os que defendem de forma intransigente a superioridade ética dos jornalistas, em relação aos demais segmentos sociais parecem olvidar que a mídia vem, de há muito, passando por um indesejável processo de perda de credibilidade (RAMONET apud SOUZA, 2013, pp.130 e 132/133).

Neste mesmo sentido: A expressão “censura do Poder Judiciário”, é, portanto, inadequada mesmo que eventual restrição à liberdade

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de imprensa seja realizada antes da publicação ou transmissão da notícia jornalística, impedindo sua vinculação. Isso se dá em situações de urgência em que a parte que está na iminência de ser lesada requer a prestação jurisdicional para evitar o prejuízo. Nesses casos, o magistrado não age como censor, mas apenas cumpre seu dever jurisdicional, tendo o possível ofensor o direito e a possibilidade de se defender e alterar a decisão judicial, mesmo que para tanto tenha que recorrer à instância superior (...) com efeito, nem todos os acontecimentos, críticas, opiniões, podem ser difundidos, sem critério, pelos meios de comunicação. Se a imprensa divulga informação denegrindo a honra de uma pessoa, violando o direito à intimidade e à vida privada de alguém, ou ainda infringindo o direito à imagem, estará abusando do direito de informar, extrapolando seu direito fundamental consistente da liberdade de expressão e informação (...) (DONNINI, 2002, pp.50 e 54).

Além disso, cumpre salientar que se “percebe que os modernos canais de comunicação de massa podem representar um perigo tão grande como o próprio segredo” (CINTRA apud SOUZA, 2013, p.128). Uma colocação muito bem estruturada e que deve ser ressaltada é que “o poder de imprensa é arbitrário e seus danos irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa não há norma nem para estabelecer o que é notícia, quanto mais ética. Mas a diferença é que no julgamento da imprensa as pessoas são culpadas até prova em contrário” (VENTURA apud SOUZA, 2013, p.128). Obviamente, como já mencionado neste trabalho, o exercício da tutela preventiva dentro do poder judiciário deve se valer de alguns requisitos autorizadores mínimos, ou seja, não será em qualquer situação corriqueira que a liberdade de expressão será obstada. Explicando melhor estes requisitos:

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As restrições autorizadas à liberdade de expressão – a reserva da ordem pública – a que alude o art. 10°, n° 02, da CEDH e o art. 13°, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contemplam três categorias de restrições: (i) para proteção do interesse geral, (ii) para a proteção de outros direitos individuais e (iii) para a garantia da autoridade e imparcialidade do poder judiciário. Essas excepcionais restrições têm como denominador comum, consagrado pelo TEDH, a assertiva de que a liberdade de expressão é um princípio fundamental da sociedade democrática, enquanto que aquelas restrições consentidas constituem exceções, e, como tal, devem ser interpretadas restritivamente, sendo admitidas com uma margem de apreciação pelos Estados, desde que presentes três condições: (i) legalidade, (ii) legitimidade e (iii) necessidade democrática (...) a jurisprudência dos tribunais brasileiros e de outros países jurisdicionados da Corte Interamericana de Direitos Humanos registra, em caráter excepcional, uma flexibilidade acerca da possibilidade do deferimento de medida inibitória com a proibição de publicação de matéria jornalística, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos essenciais: (i) ausência de interesse público da matéria; (ii) verossimilhança da alegação de falsidade do conteúdo da matéria e (iii) real potencialidade da matéria para causar grave dano à honra ou outro direito fundamental da pessoa visada ou a terceiros (SOUZA, 2013, pp.128 e 217).

Questão muito interessante levantada por DWORKIN é que, por mais que haja o direito de resposta ou a publicidade da sentença, declarando a inveracidade ou o abuso da informação, dificilmente se conseguirá a mesma amplitude de efeitos de divulgação do dano. Assim: As declarações sensacionalistas, mesmo as publicadas por um jornal cuja imprecisão é notória, são amplamente divulgadas por outros meios de comunicação; já a

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declaração judicial de que a informação estava errada pode não der tão largamente divulgada, mesmo que o próprio jornal que cometeu o erro tenha a obrigação de publicar essa declaração (DWORKIN apud SOUZA, 2013, p.212).

Neste contexto, importa colacionar recente decisão emanada do Supremo Tribunal Federal sobre a discussão referente às biografias não autorizadas. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4815, conforme notícia propagada pelo próprio STF, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). Falaram, pela requerente Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, o Dr. Gustavo Binenbojm, OAB/RJ 83.152; pelo amicus curiae Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, o Dr. Thiago Bottino do Amaral, OAB/RJ 102.312; pelo amicus curiae Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coelho, OAB/PI 2525; pelo amicus curiae Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, a Dra. Ivana Co Galdino Crivelli, OAB/SP 123.205-B, e, pelo amicus curiae INSTITUTO AMIGO, o Dr. Antônio Carlos de Almeida Castro, OAB/DF 4107. Ausente o Ministro Teori Zavascki, representando o Tribunal no simpósio em comemoração aos 70 anos do Tribunal de Disputas Jurisdicionais da República da Turquia, em Ancara. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 10.06.2015.

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A questão das biografias não autorizadas ainda é muito emblemática e causa bastante discussão, tendo em vista o envolvimento de dois preceitos fundamentais, a liberdade de expressão do pensamento e a preservação da intimidade.

3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É certo que a liberdade de imprensa deve ser exercida com responsabilidade, jamais podendo se permitir o abuso, vez que é fato notório que poucas coisas podem produzir um efeito tal devastador, no que se refere à imagem de uma pessoa, quanto o ataque da imprensa. A Constituição Federal de 1988 garantiu o legítimo exercício da liberdade de imprensa, todavia, não atestou, com isso, o abuso, ao contrário, vez que, igualmente assegurou o direito à preservação da imagem, da honra e da intimidade. É fato que a liberdade de imprensa carece de uma legislação específica que delimite seu exercício, não no sentido da censura desmedida, caótica, desordenada e cruel, a qual deveria ser veementemente rechaçada por um autêntico Estado Democrático de Direito, mas na acepção de se preservar direitos de personalidade igualmente previstos e garantidos por esse mesmo Estado. Diante do vácuo legislativo aberto pela revogação da Lei 5.250/67, cabe aos juízes e tribunais, verificar eventual abuso no exercício regular de um direito e, caso confirmado, medidas restritivas à liberdade de expressão poderão ser tomadas em caráter estritamente excepcional, atentando-se, sobremaneira, à proteção do interesse

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público, bem como para a proteção de outros direitos individuais. Desta forma, o que se verifica é que, ainda que a liberdade de imprensa seja prevista como direito fundamental e, considerando que é vedada a censura de qualquer espécie pelo ordenamento jurídico brasileiro, denota-se que sempre que houver abuso do direito de expressão, com a violação de outros direitos fundamentais, caberá ao Poder Judiciário decidir acerca da existência ou não de eventual ilícito civil ou penal praticado, bem como limitar eventual excesso.

3.5 REFERÊNCIAS

CHUEIRI, Miriam Fecchio; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Direito de imprensa e liberdade de expressão. 1ª ed. São Paulo, SP: Revista dos Tribunais, 2011. DONNINI, Oduvaldo; DONNINI, Rogério Ferraz. Imprensa livre, dano moral, dano à imagem, e sua quantificação à luz do novo código civil. 1ª ed. São Paulo, SP: Método, 2011. FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2ª ed. Porto Alegre, RS: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. LOPES, Dirceu Fernandes. Resgate histórico do jornalismo brasileiro. Parte 1: Dos primórdios até a proclamação da república. Disponível em: Acesso em: 20/05/2014.

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

MIRANDA, Darcy Arruda. Comentários à lei de imprensa. 3ª ed. São Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais, 1995. SOUZA, Sérgio Ricardo de. Controle judicial dos limites constitucionais à liberdade de imprensa. 1ª Ed; Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris Editora, 2008.

- IV DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE E A JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM CAMINHO A SER PERCORRIDO NO BRASIL Aline Gabriela Pescaroli Casado* Gisele Mendes de Carvalho**

4.1 INTRODUÇÃO

A justiça restaurativa tem sido identificada como uma proposta viável e possível no combate aos problemas carcerários que a maioria dos países enfrenta com a criminalidade e a superlotação de presídios. Além de ser uma medida viável de implementação da justiça de paz, a justiça restaurativa pode ser um mecanismo não apenas de restauração de situações conflituosas, mas sobretudo de resgate da dignidade da pessoa humana, visto tanto pela ótica do ofensor quanto da vítima, mas sobretudo do meio social em que vivem. Embora os últimos anos tenham destacado o recrudescimento das penas e das decisões judiciais, vale ressaltar que, os processos restaurativos podem inclusive proporcionar uma efetiva salvaguarda de direitos fundamentais do indivíduo muito mais que o processo penal retributivo, uma das perspectivas que analisaremos.

*

Mestranda em Ciências Jurídicas pela Unicesumar, Especialista em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá (2011), Graduação em Direito pela Universidade do Oeste Paulista (2003). ** Pós-Doutorado (2009) em Direito Penal pela Universidade de Zaragoza, Espanha, Doutorado (2007), Mestrado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2003), Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2000).

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

A metodologia utilizada foi integralmente bibliográfica, analisando os principais textos acerca do tema a fim de demonstrar que, a atividade jurisdicional atualmente reclama uma nova perspectiva e a justiça restaurativa tem sido analisada como um caminho viável para minimizar os impactos do massacre punitivo que atualmente estamos enfrentando. Pretendemos destacar o quanto a justiça restaurativa se aproxima daquilo que Ferrajoli denomina de doutrina reformadora e as ações do Conselho Nacional de Justiça em promover as práticas restaurativas em todo o Poder Judiciário brasileiro, seguindo uma tendência preconizada internacionalmente pela ONU – Organização das Nações Unidas, aparentam ser alternativas menos impactantes e mais próximas da realidade que pretendemos evidenciar no processo penal.

4.2 LIBERDADE: CONCEITO E AMPLITUDE

A liberdade é um termo extremamente amplo e que, comporta todo tipo de interpretação, ao longo da história humana a liberdade foi o eixo central de muitas lutas e guerras exatamente para que fosse garantida a própria liberdade. Para Rogério Grecco1 a liberdade pode ser entendida desde a possibilidade de o indivíduo se comportar de forma antissocial até praticar algum ato contrário ao ordenamento jurídico, e a partir do exercício do direito de liberdade ser responsabilizados por seus atos.

1

GRECCO, 2011, p. 87.

Direito fundamental à liberdade...

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Alguns estudiosos identificam a liberdade como direito fundamental do indivíduo ou ainda como direito de primeira geração na ordem constitucional. A Constituição Federal em seu art. 5º, inciso LIV, reafirma a liberdade enquanto direito e garantia fundamental do indivíduo, sobretudo sob o escopo de somente ser cerceado o direito de liberdade do indivíduo após o devido processo legal. No processo penal, a liberdade do indivíduo deve ser mantida em um patamar superior de segurança e garantia do indivíduo. Isto porque, no processo penal além de se perquirir a responsabilização do indivíduo em razão de uma conduta que tenha violado um tipo penal, há também a inexorável intenção de que o mesmo se submeta a uma sanção penal, em sendo o caso e, geralmente acarreta o cumprimento de uma pena. O conceito de liberdade, portanto passa a ser de suma importância dadas as repercussões sociais acerca deste bem fundamental. O indivíduo encarcerado injustamente sofre, mas a sociedade de modo geral sempre sai prejudicada em razão de não proteger de forma eficaz a liberdade do indivíduo, enquanto primado de qualquer democracia. A liberdade deve ser analisada como base essencial, um direito fundamental do Estado Democrático de Direito e a garantia a este direito pressupõe uma ampliação da própria liberdade que, deve ser encarada no processo penal, por exemplo, como ampla liberdade do indivíduo denunciado em produzir provas a comprovar sua inocência ou ainda, a manter-se um indivíduo encarcerado apenas quando fosse extremamente necessário, ou por via reflexa identificar a ultima ratio do direito penal, com intervenção direta na liberdade do indivíduo. Desta forma identifica-se vários espectros da liberdade, mas preserva-se a sua finalidade constitucional de base da garantia individual de um direito fundamental

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que, pode ser relativizado em determinada circunstância ou situação. Esta relativização se justifica em certa medida, por reconhecer que, há um interesse maior em manter o indivíduo encarcerado, antes mesmo de sua condenação definitiva e, este interesse maior pode se identificar com a necessidade de manutenção da ordem pública ou de preservação do bem-estar comum. Neste aspecto Hayek2 problematiza com muita propriedade a questão do bem comum, externando uma preocupação ainda prevalente acerca da liberdade restrita em razão de interesses que podem se justificar sempre, para proteção de um bem não comum: O conceito de bem-estar comum, ou de bem público, permaneceu até nossos dias, extremamente recalcitrante a qualquer definição precisa, podendo, portanto, receber quase qualquer conotação proposta pelos interesses do grupo dominante.

Os limites da liberdade individual são delimitados pelo equilíbrio conforme ressalta de forma muito clara Claus Roxin3: O poder estatal de intervenção e a liberdade civil devem ser levados a um equilíbrio, de modo que garanta ao indivíduo tanta proteção estatal quanto seja necessário, assim como também tanta liberdade individual quanto seja possível.

A liberdade do indivíduo passa a ter um confronto direto com as necessidades ou aspirações sociais e tais aspirações podem de forma impositiva e legitimada pelo Estado minimizar a amplitude de direito fundamental da liberdade.

2 3

HAYEK, 1899/1985, p. 2 ROXIN, 2009, p. 39

Direito fundamental à liberdade...

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Grecco4 mesmo admitindo que a liberdade é um direito inerente ao ser humano e que todos nascemos para ser livres, pondera que a liberdade não pode ser concebida como absoluta, podendo ser limitada, em razão da violação do imaginário contrato social e, ainda assim somente as condutas extremamente graves poderiam justificar a segregação do indivíduo: Nesse último caso, somente o Estado, através de suas normas, pode fazer com que alguém seja privado dessa liberdade ambulatorial. Essa privação, contudo, não pode ser arbitrária, tirânica, devendo ser determinada somente em casos extremos.

A própria colocação de Claus Roxin não deixa de relativizar a liberdade individual quando a protege na medida do possível, ou seja, em algumas situações se admite minimizar a liberdade em contraposição com um direito que, em tese, defende ou protege interesses que devem se sobrepor ao interesse do indivíduo em manter-se liberto. Cabe destacarmos ainda que a liberdade do indivíduo alcançando um espectro ainda mais amplo deve ser conjugada com a previsão constitucional de que, o indivíduo deve ser presumidamente inocente até que haja provas irrefutáveis de que é culpado, reconhecidamente em sentença penal condenatória transitada em julgado. Neste sentido Alexandre de Moraes5 explica exatamente o sentido da presunção de inocência na Constituição Federal: A Constituição Federal estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, consagrando presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de

4 5

GRECCO, 2011, p. 90. MORAES, 2003, p. 269.

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Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal.

Corrobora ainda o entendimento de que o indivíduo possui uma série de garantias com vistas a protegê-lo da arbitrariedade do próprio Estado, impondo ao Estado a incumbência de comprovar que a garantia constitucional deve ser afastada por reconhecer a prática do fato delituoso. A liberdade, portanto, é além de direito fundamental, garantia constitucional do indivíduo de que somente após a comprovação de que cometeu crime é que se verá desprovido temporariamente de sua liberdade. A legitimação, portanto, da expropriação da liberdade é o último caso, deve ser a última situação do indivíduo, com exceção dos casos que a própria Constituição já excepcionou a regra da liberdade do indivíduo, como é o caso da prisão preventiva ou ainda da sentença condenatória em crimes inafiançáveis. E ainda assim, nestas situações excepcionais de restrição da liberdade do indivíduo, exige o legislador fundamentação das decisões do magistrado e forma a evidenciar que existe a necessidade de restringir a liberdade. A preocupação do legislador tem fundamento, não apenas teórico, mas sobretudo fático, com o encarceramento exagerado que, geram outros problemas estatais/sociais, a falta de vagas em presídios e as condições péssimas que o encarceramento em massa reproduz. Problemas que não são nenhuma novidade, infelizmente esta é uma realidade do nosso sistema carcerário de muitas décadas e o problema de se aglomerar demasiadamente muitos indivíduos num único lugar é que o controle sanitário se esvai e o sujeito sob custódia do Estado, vive o flagelo do cárcere. A constatação desta mazela é evidente, mas foi destacada pelo magistrado gaúcho Dr. Márcio Kepler, ex-

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juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça, durante o IV Curso de Iniciação Funcional para Magistrados da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figeueredo (ENFAM)6. O magistrado trabalhou no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Medidas Socioeducativas (DMF) e, destacou que hoje a população carcerária ultrapassa 580 (quinhentos e oitenta) mil detentos, dos quais cerca de 44% (quarenta e quatro por cento) são presos provisórios e destacou a responsabilidade do Estado e da magistratura em relação a este cenário: Isso é responsabilidade direta dos juízes, porque ou deixaram de julgar o provisório ou não determinaram que ele saísse de lá. Nós estamos banalizando a prisão provisória. Então a superlotação do sistema não é culpa só do Executivo.

A constatação do magistrado demonstra com maestria o problema que estamos destacando aqui, a relativização da liberdade do indivíduo, em nome de um interesse público ou social mais preponderante. O Estado tem alijado o indivíduo de sua liberdade e tem pouco controle ou condições em relação ao que acontece no cárcere, o que justifica em grande medida os inúmeros mutirões carcerários que vimos nos últimos anos para tentar minimizar o número de presos provisórios esquecidos no cárcere. A liberdade, portanto, deve preponderar inclusive sobre o interesse público ou social, porque a liberdade do indivíduo pode representar um ganho social, principalmente porque se poderá conduzir com maior responsabilidade o próprio processo penal. 6

http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/24745-magistratura-tambeme-responsavel-por-caos-no-carcere-diz-juiz. Acessado em 26/11/2014 às 09hs10.

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4.3 BINÔMIO DIREITO FUNDAMENTAL E DEVER ESTATAL

A liberdade, em razão de nosso antecedente histórico de brutalidades desmedidas com a liberdade do indivíduo, foi consagrada pelo Poder Constituinte como direito fundamental do indivíduo. A ditadura no Brasil impulsionou o Constituinte de 88 a proteger de forma especial e essencial a liberdade, em seus mais variados espectros. Assegurou no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal a liberdade do indivíduo, apenas admitindo sua privação após obedecido o devido processo legal. Desta forma desejou, o Poder Constituinte assegurar que, a regra no processo penal deva ser a liberdade, admitindose encarceramento provisório ou durante o processo penal, apenas como exceção ou quando extremamente necessário. Aqui estamos diante de uma dupla função estatal em relação ao próprio indivíduo infrator, uma, a de protegê-lo da própria arbitrariedade do Estado, entendida a partir do Poder de punir o indivíduo por suas violações a bens jurídicos penalmente protegidos. E, ao mesmo tempo, a de proteção da própria coletividade ou sociedade, diante de fatos que esta repudia e deseja punição, embora muitas vezes, a qualquer custo. Acerca da esfera pública que nos interessa definir para discutirmos a questão da dicotomia em punir e proteger o indivíduo, Sales7: Há uma construção social que regula política e culturalmente os indivíduos, mesmo quando parece estar em crise e no centro das polêmicas filosóficas, qual seja: a esfera pública. Desde os gregos, ela reúne os 7

SALES, 2007, p. 97

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cidadãos, instaura disposições e é também berço de mudanças e revoluções. Na sociedade moderna, dela fazem parte todos os indivíduos e suas expressões coletivas, mesmo sem o saberem e se darem conta. A esfera pública e, pois, por excelência, o lugar do encontro com o outro. E é sobre essa esfera e força centrípeta, geradora da sociabilidade, que nos interessa falar (...).

Em Vigiar e punir, esta situação do Estado encontra seu verdadeiro intento em conciliar o Poder de Punir confrontado com o direito de liberdade do indivíduo e, como ressaltou Foucault8: “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar”. Obviamente que, entre o direito da sociedade em ser protegida pelo Estado e a liberdade do indivíduo prevalecer há que se resguardar o interesse coletivo, neste ponto a doutrina é esmagadoramente majoritária e o ponto pouco se modifica. Ocorre que, relativizar a liberdade que, é um bem tão caro ao indivíduo deve ser repensada com mais cautela, sob o fundamento de que se deve preservar interesses maiores ou mais relevantes e invocar a prevalência do interesse público, por exemplo. Nossa sociedade tem caminhado por este trilho há décadas e o que se tem visto é o encarceramento em massa e sem controle algum relativamente à razoabilidade que se deve exigir do Poder Judiciário principalmente, como ator social fundamental na garantia da liberdade do indivíduo. É claro que estamos diante de dois direitos fundamentais, de um lado a segurança pública e social, de outro a liberdade do indivíduo e, nos inquieta identificar na doutrina nacional e internacional posicionamentos que, indicam a prevalência do interesse público não importando qual o bem jurídico que se menospreza sob o fundamento 8

FOUCAULT, 1987.

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de ser mais justo cotejar o interesse que a sociedade exige. O desafio que se revela aos olhos de toda a sociedade é buscar mecanismos e argumentos que afastem esta ideia de prevalência de um interesse sobre o outro somente porque se vislumbra proteger uma gama ainda maior de pessoas, do que apenas um indivíduo. O foco da doutrina precisa ser redirecionado. Isto porque, não podemos admitir que a liberdade seja menosprezada, porque uma vez tolhida, o indivíduo nunca mais poderá viver o que deixou de ser vivido ou esquecer o que eventualmente tenha sofrido encarcerado. O processo penal não pode ser utilizado como instrumento de vingança social, sob pena de retrocedermos aos tempos narrados na obra de Foucault9. A previsão constitucional de proteção da liberdade do indivíduo nos legitima olhar a liberdade e, cotejar a prevalência desta sobre qualquer outro bem, mesmo que este outro bem ou interesse tenha mais titulares como a sociedade. Desta forma, pretendemos destacar que a liberdade deve ser prevalente, porque muito mais importante que outros interesses, mesmo que tenha inúmeros titulares. A figura do castigo, da punição pela violação de uma norma, com a supressão do seu bem mais caro – a 9

Damiens. Vigiar e Punir. [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.

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liberdade, identifica uma postura primitiva do indivíduo acerca daquilo que ele pretende afastar do seu convívio, mas sem se preocupar em resolver definitivamente o problema10.

4.4 O CÁRCERE E A (NÃO) RESSOCIALIZAÇÃO

As críticas reverberadas pela sociedade que, deseja o recrudescimento das leis e das penas porque tem a impressão de que vige a impunidade, impulsionam um garantismo penal perigoso e que pode de certa forma promovem a grande inflação legislativa penal. O que nos inquieta é perceber que a inflação legislativa não resolve o problema da questão carcerária do país, tampouco diminuem as taxas de criminalidade. O indivíduo não se afasta da conduta criminosa apenas porque o tipo penal existe, o que já confronta e põe em xeque a questão das teorias da pena, identificando que a prevenção geral é ineficaz efetivamente. A criação de novos tipos penais inunda o ordenamento jurídico visto pelo legislativo e pela sociedade como única maneira de resguardar bens jurídicos, na tentativa de reprimir “mais” a escalada da violência, o que acaba via de consequência, aumentando os números do sistema carcerário, ou ainda repercutem nas sentenças ou decisões tomadas no curso do processo penal que, como forma de tentar conter a criminalidade, resolvem relativizar a liberdade do indivíduo para manter uma aparente situação de controle do Estado. E o cárcere passa a ser o depósito de seres que a sociedade não quer se preocupar em mudar o paradigma

10

CARNIO, 2008, p. 45.

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e, escondendo-os em local pouco visível fica fácil manter o problema distante e, aparentemente resolvido. O poder passa da selvageria, retratada por Foucault, em Vigiar e Punir a uma espécie de necessidade em demonstrar o poder absoluto do soberano conforme destaca Sales11: Essa política penal, porém, teve o seu auge, numa época em que o próprio excesso de violência era uma marca do seu triunfo, a ostentar o poder absoluto do soberano e a condição indigna e infamante do supliciado.

Entretanto o cárcere há muito não é o local que efetivamente resolve os problemas sociais, principalmente no âmbito das ciências penais. Mas a tônica social tem sido em sentido contrário a esta nossa constatação, conforme destaca BATISTA12: Se na Argentina aparece um pai “vítima” na cena política, com possibilidade de ser candidato a Presidente, no Brasil serão os pais e mães das vítimas (brancas, é claro) que darão o tom do debate criminológico e da mudança das leis penais no sentido de maior “rigor”. Essa emocionalidade é estratégica para o processo de expansão de poder punitivo no mundo contemporâneo.

Na criminologia muitos discursos têm sido no sentido de que deve haver um evidente recrudescimento das penas, vem à tona o discurso do punitivismo, da expansão do Direito Penal, conforme destaca Saavedra13: Pelo contrário, na Criminologia, tem-se identificado o ressurgimento de uma “cultura do punitivismo” e, no âmbito da dogmática penal, fala-se em “Expansão do 11

SALES, 2007, p. 167 BATISTA.2009, p.37. 13 SAAVEDRA. 2011, p. 102/103. 12

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Direito Penal”. Infelizmente, parece que, cada vez mais, o Direito Penal tem sido compreendido acriticamente como instrumento imprescindível de concretização de políticas públicas e proteção de bens jurídicos.

Os critérios de ressocialização do indivíduo perderam o sentido, frente à barbárie que assistimos nos últimos anos, com evidente degradação do sistema prisional brasileiro. Cresceu também a descrença na justiça, no indivíduo, na sua “recuperação”. Quando Foucault14 descreve as cenas de barbárie que eram inerentes às penas, descritas em sentenças, cada etapa do suplício ao qual o sujeito seria submetido, na verdade pouco se afasta do que atualmente temos visto nos telejornais, ou em entrevistas com indivíduos que estão submetidos ao cárcere. A diferença, entretanto, é que o suplício descrito por Foucault era imposto pelo Estado e compunha a própria jurisdição estatal, hoje o suplício se reveste da ausência do Estado e da falta de garantias que o encarcerado possui, logo após atravessar os portões ou as grades de ferro dos estabelecimentos prisionais. Parece inevitável cansar-se de tentar mudar os discursos e as práticas criminais, faltam forças para convencer que ainda se pode fazer alguma diferença ser notada em relação aos problemas carcerários, embora o impulso inicial deva ser em relação à própria cultura do Estado em punir apenas com indícios e não com efetiva comprovação da prática do delito. A pena antecipada a que se submete o indivíduo que, durante o processo penal já é alijado de sua liberdade tem sido mais recorrente e perceptível, não apenas pela superlotação de presídios, mas por constatação e números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, inclusive encomendou uma pesquisa especial para mapear o encarceramento no Brasil. 14

FOUCAULT, 1899/1995.

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Segundo esta pesquisa15 os presos provisórios no Brasil, impulsionaram o país ao 4º lugar num ranking mundial dos países com maior população carcerária ou prisional. Os dados são alarmantes, mas a pesquisa revela ainda que o número necessário de vagas deveria ser dobrado para atender a demanda prisional no país, sem considerar o número de mandados de prisão em aberto sem cumprimento. Tal cenário revela que, a ineficiência do Estado em alocar seus presos provisórios ou definitivos é insuficiente, mas sobretudo não se tem adotado uma política adequada acerca da superpopulação carcerária, que poderia na prática refletir o respeito à manter a regra do processo penal – a liberdade e, somente admitir a exceção em casos mais graves. Não podemos deixar de considerar ainda que além da liberdade do indivíduo o Estado deve manter e proteger a dignidade do encarcerado. Violar o direito fundamental da liberdade é também violar consequentemente a dignidade do indivíduo mantido no cárcere em condições subumanas. Não se trata mais de debater acerca da dignidade humana do encarcerado que, há muito está consolidada como direito fundamental, mas de efetivá-la. Grecco16 destaca que a dignidade da pessoa humana reflete em outros tantos direitos: Na seara penal, o princípio da dignidade da pessoa humana serve como princípio reitor de muitos outros, tal como ocorre com o princípio da individualização da pena, da responsabilidade pessoal, da culpabilidade, da proporcionalidade etc., que nele buscam seu fundamento de validade”

15

http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presa s_correcao.pdf . Acessado em 25/11/2014, as 23hs55m. 16 GRECCO, 2011, p. 101.

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E a indagação que Grecco lança é no sentido de entendermos qual a dimensão da dignidade da pessoa humana quando a violação a este direito fundamental é perpetrada pelo próprio Estado. Em relação ao sistema penitenciário a violação à dignidade da pessoa humana é mais evidente, no sentido de que após a pena imposta e a privação da liberdade, parece ser um desejo do Estado também proporcionar ao indivíduo o maior castigo possível no cumprimento de sua reprimenda corporal, como se o Estado pudesse ainda impingir ao indivíduo uma garantia do desprezo por suas características humanas. Ocorre que, ao agir com este desejo de vingança duplamente direcionada ao indivíduo o Estado deixa de cumprir o dever de proteger a dignidade do encarcerado que, não desaparece pelo fato de ter cometido uma conduta que viola o contrato social, conforme Grecco17 preleciona: O descumprimento, pelo delinquente, do “contrato social” parece despertar a fúria do Estado, que passa a trata-lo como desprezo, esquecendo-se de que é portador de uma característica indissociável da sua pessoa, vale dizer, a sua dignidade.

Cumpre destacar que a ação do Estado bem como sua omissão podem destacar o descumprimento de suas obrigações em preservar a integridade do indivíduo, preservar sua dignidade. Furlan18 destaca a dinâmica e o valor supremo da dignidade da pessoa humana: Ao colocar a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, transformou-a em valor-fonte, valor supremo do sistema jurídico brasileiro. Como fundamento do Estado 17 18

GRECCO, 2011, p. 103 FURLAN, 2009.

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Democrático de Direito, o constituinte, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade precípua e não meio da atividade estatal.

Obviamente que a evolução do princípio da dignidade da pessoa humana precisa ser moldada e remodelada conforme as estruturas jurídicas modificam o papel do indivíduo no ordenamento jurídico, isto porque, quanto mais o indivíduo precisar de proteção, maior será o espectro de interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana. Mas ainda devemos destacar o que a violação ao princípio da dignidade humana representa quando as violações são perpetradas pelo Estado. Neste ponto cabe destacar que, uma constatação imediata da violação da dignidade da pessoa humana pode ser demonstrada pela ausência de preocupação com a questão de tentar minimizar a criminalidade ou a ocorrência de crimes. Não apenas pela repressão ao crime, pela via repressiva ou dos mecanismos ineficientes da polícia, enfim, mas por um viés mais criminológico da questão buscando em modelos de outros países práticas que tenham alcançado resultados satisfatórios, adequando o modelo importado à nossa realidade social. O Estado tem sido omisso em “recuperar” o indivíduo e isso tem sido a sua maior demonstração de violação da dignidade da pessoa humana.

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4.5 A JUSTIÇA RESTAURATIVA APROXIMAÇÃO CONCEITUAL

121



UMA

Visto o panorama que se apresenta do caos carcerário e da grande massificação do encarceramento, enquanto pensadores do direito, devemos identificar novas alternativas e soluções para os problemas que identificamos. A crítica pela crítica em nada ajuda ou melhora a resolver o problema é preciso pensar novos parâmetros para a solução. Eis que outros países desde o final dos anos 70, já estão utilizando novos mecanismos de solução de conflitos. Cabe ressaltar que, embora neste trabalho estejamos enfocando a justiça restaurativa sob o aspecto penal, a justiça restaurativa pode ser aplicada em qualquer âmbito ou relacionamento entre pessoas, tais como o ambiente familiar, escolar, de trabalho, etc. Antes de adentrarmos nas práticas ou nos mecanismos que a justiça restaurativa, precisamos entender seu significado e sua amplitude. Para Howard Zehr, um dos precursores no trabalho de disseminar a justiça restaurativa, nos sugere o seguinte conceito: O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança.

Para Renato Sócrates19 a justiça restaurativa pode ser assim definida:

19

PINTO, 2005, p. 20.

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A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime.

Por tais definições podemos destacar algumas características da justiça restaurativa, como o consenso, o encontro, o diálogo, reparação e reconciliação. Tais termos nos mostram que, inicialmente precisamos admitir um novo paradigma de solução de conflitos. E, no momento em que a violência se expande e torna as pessoas cada vez mais resistentes a mudanças de paradigmas, este já se mostra uma barreira a ser transposta pela justiça restaurativa já que também agregam a ideia de impunidade à ideia de justiça restaurativa. Entretanto a impunidade ou a ausência de responsabilização não integram as práticas restaurativas, ao contrário, compõe a base da prática restaurativa a auto responsabilização do indivíduo que tenha cometido um crime. Neste sentido a lição de ZEHR20: Os ofensores precisam, de fato, ser responsabilizados por seu comportamento. Mas o que significa responsabilizar? Para esse juiz, e para a maioria das pessoas, no mundo de hoje, a responsabilização significa que o ofensor deve sofrer consequências punitivas – no mais das vezes, a prisão – seja com o intuito de coação ou de punição. “Responsabilizar” significa forçar as pessoas a “tomar um remédio amargo” – uma velha metáfora para algo tão insalubre como a prisão.

20

ZEHR. 2008, p. 40.

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A mudança de paradigma necessário está no fato de repensar novas formas de responsabilização diferentes do cárcere e que, tenham muito mais resultados positivos. É fato que, na justiça restaurativa a prática consiste no diálogo entre a vítima e o ofensor e, quando possível e recomendável, de outros indivíduos que tenham sido atingidos de alguma forma pela conduta do ofensor. Para que este encontro aconteça é necessário que vítima e ofensor queiram se encontrar e tentar uma nova perspectiva de responsabilização. O não querer de qualquer dos envolvidos pode afastar imediatamente a condução da solução do litígio por meio da justiça restaurativa. Conforme demonstramos neste trabalho e, com vistas a identificar os problemas reais do cárcere, mas sobretudo com uma visão real da prejudicialidade da prisão para o próprio infrator temos a lição de Zehr21: Será que a prisão ensinará a ele padrões de comportamento não violento? Dificilmente. Com toda probabilidade o tornará ainda mais violento. Conseguirá a prisão proteger a sociedade deste rapaz? Talvez por algum tempo, mas, por fim, ele sairá bem pior do que entrou. E enquanto estiver lá dentro, talvez se torne uma ameaça para os outros internos.

Este aspecto destacado por Zehr reforça os argumentos de boa parte da doutrina acerca do fenômeno do encarceramento, o sujeito não se recupera, tampouco reflete a respeito de sua conduta, com vistas a se “arrepender” do crime praticado. Assim, a justiça restaurativa passou a representar em outras comunidades (internacionais) uma prática eficiente na solução de conflitos, fora da espera punitiva estatal com vistas a reparar o dano da vítima de forma efetiva e, ainda proporcionar uma real possibilidade de 21

Ibidem, p. 41.

124

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responsabilização do indivíduo com a perspectiva de que tenha uma reinserção social evidente. Cabe destacar ainda que, a mudança de paradigma da justiça restaurativa frente à justiça retributiva, também importa em mudança de resultados. Como por exemplo, o fato de a vítima ter sua reparação efetiva, vez que a reparação do dano tem mais evidência na justiça restaurativa, ao passo que, na justiça retributiva apenas se vislumbra a pena a ser cumprida pelo indivíduo e nenhuma reparação pode ser buscada pela vítima que, se quiser ser ressarcida material ou moralmente precisa de outro processo para tentar alcançar seu intento. A participação da vítima no processo restaurativo tem resultados significativos na solução do conflito, isto porque, sua participação ativa promove a construção mais eficiente do acordo que as partes celebram. Seja qual for o método, na justiça restaurativa, a vítima participa de forma ativa, enquanto que na justiça retributiva nem se percebe a vítima. Neste sentido CARNELUTTI22: Em uma palavra, enquanto o juiz está lá para impor a paz, o Ministério Público e advogados estão lá para fazer a guerra. Justamente, no processo, é necessário fazer a guerra para garantir a paz.

Impende destacar que nem se refere à vítima, isto porque, a vítima apenas faz uma narrativa de sua versão dos fatos e nada mais, talvez ela seja informada sobre a sentença que venha a ser prolatada nos autos. E sua crença na injustiça aumentará certamente, vez que, o dano foi integralmente mantido com esta e o sujeito estar recolhido ou preso para a vítima pouco muda. O que significa de verdade para a vítima o homem na jaula? Por um breve período provavelmente talvez, sinta alguma segurança e depois? 22

CARNELUTTI, 2011, p. 15.

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Carnelutti23, nem fez menção à justiça restaurativa, mas evidenciou que a jaula não faz com que indivíduo transforme seus padrões de comportamento, somente porque está enjaulado ou porque foi castigado: Os Sábios, os quais continuam a considerar a pena segundo uma fórmula célebre, como um mal que se impõe ao delinquente pelo mal que ele causou, ignoram ou esquecem aquilo que Cristo disse a propósito do demônio que não serve para expulsar o demônio: não é com o mal que se pode vencer o mal.

A citação de Carnelutti reforça quão importante e necessário nos é atualmente tentar, ao menos, entender a justiça restaurativa aplicá-la, na tentativa de conseguirmos melhores resultados no combate à criminalidade. Algumas críticas sofrem a justiça restaurativa, a principal delas, o fato de associarem a justiça restaurativa com as ideias abolicionistas. Sobre as ideias abolicionistas Ferrajoli24 preleciona: Considero abolicionistas somente aquelas doutrinas axiológicas que acusam o direito penal de ilegítimo, ou porque moralmente não admitem nenhum tipo de objetivo como capaz de justificar as aflições que o mesmo impõe, ou porque consideram vantajosa a abolição de forma jurídico-penal da sanção punitiva e a sua substituição por meios pedagógicos ou instrumentos de controle de tipo informal e imediatamente social.

Por esta ideia proposta por Ferrajoli podemos identificar imediatamente que a justiça restaurativa não tem em seu bojo os preceitos abolicionistas, isto porque sequer pretende que o direito penal institucionalizado seja afastado completamente.

23 24

Ibidem, p. 21. FERRAJOLI, 2006, p. 231.

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Ao contrário a justiça restaurativa na verdade, pelas lições de Ferrajoli25, parece estar relacionada com as doutrinas reformadoras: (...) são simplesmente reformadoras as doutrinas penais que preceituam a redução da esfera de intervenção penal, ou, ainda, a abolição da específica pena moderna que constitui a reclusão carcerária em favor de sanções penais menos aflitivas.

A justiça restaurativa propõe uma mudança de paradigma da punição do indivíduo com uma ressignificação da responsabilidade deste na qualidade de infrator e, ainda que os envolvidos no conflito possam se conhecer e estabelecer um acordo viável e com possibilidade de cumprimento efetivo por todos. Ademais existem os casos em que os envolvidos não querem se submeter ao processo restaurativo, para estes a solução do conflito seria a via tradicional do processo penal retributivo. Mas a justiça restaurativa pode contribuir com muito mais do que apenas restaurar situações deterioradas por conflitos, pode ser o instrumento de resgate da dignidade da pessoa humana.

25

Ibidem, p. 231.

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4.6 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O RESGATE DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A justiça restaurativa pode aumentar os “ganhos” de todos, envolvidos direta ou indiretamente pelo conflito originado do fato criminoso cometido. O cárcere já dissemos, no Brasil, não ressocializa ou recupera nenhum dos indivíduos que lá estão. Carnelutti26 coaduna desta mesma ideia: Cada um de nós em as suas predileções, também em questão de compaixão. Os homens são diferentes entre eles até na maneira de sentir a caridade. Também este é um aspecto da nossa insuficiência. Existem aqueles que concebem o pobre com a figura do faminto, outros do vagabundo, outros do enfermo; para mim, o mais pobre de todos os pobres é o encarcerado.

Esta demonstração da crueldade que representa o cárcere a ponto de ser superior ao flagelo do faminto, representa uma necessidade a ser modificada, mas não apenas pela aflição do cárcere em si, mas sobretudo porque a dignidade do indivíduo deixa de ser respeitada, aliás é estupidamente violada no cárcere. A ausência do Estado relativamente aos que estão sujeitos ao cárcere é flagrante, vários são os relatos de descaso, estrutura parca, higiene e condições sanitárias péssimas, além de outras tantas mazelas. Sob qualquer destes aspectos o cárcere denigre o indivíduo, então devemos pensar em soluções alternativas ao cárcere até como mecanismo de preservação da dignidade da pessoa humana, mesmo quando tenha cometido um crime.

26

CARNELUTTI, 2011, p. 21

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Daniel Achutti27 em sua obra Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal destaca a diferença da justiça restaurativa: A grande diferença, como se viu, está na Justiça Restaurativa, que oportuniza uma complexificação do conflito, tornando impossível uma resposta meramente jurídica ao problema em pauta.

Aqui percebe-se que a possibilidade de solução de conflito de forma mais satisfatória a todos os envolvidos ainda parece ser a justiça restaurativa. Grecco28 ao analisar alternativas à privação da liberdade, identifica também a justiça restaurativa e preleciona: A ideia de reparação da vítima, como alternativa à imposição da pena, apresenta-se como a terceira via do Direito Penal, e, inclusive, afirma-se que cumpre melhor os fins da pena, pois soluciona o conflito mediante a reposição do estado anterior ao delito, o que satisfaz a consciência jurídica coletiva e consegue que o infrator – ao reparar o dano – reconheça o valor do bem jurídico que lesionou e tenha oportunidade de reintegrar-se socialmente.

Embora não tenha trazido exatamente o conteúdo ou o benefício frente à dignidade da pessoa humana, analisando os termos de Ingo W. Sarlet29, podemos entender a amplitude do conceito de dignidade da pessoa humana: a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres 27

ACHUTTI, 2009, p. 82 GRECCO, 2011, p. 370. 29 SARLET, 2009, p. 60. 28

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fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

As considerações de Sarlet são fundamentais para nos esclarecer o alcance que a dignidade da pessoa humana deve representar para a humanidade. Cabe destacarmos que, a concepção normativa da dignidade humana tem patamares constitucionais e deve ser entendido como direito fundamental. O problema carcerário e da violência não escaparam aos olhos das Nações Unidas que, há muito tem indicado a utilização das práticas restaurativas pelos países, tentando disseminar uma cultura de paz. Tanto assim que a Resolução 2002/12 propunha diretamente a adoção das práticas restaurativas, dos processos restaurativos, etc. Tal postura acena para o mundo a necessidade de promover uma justiça de paz, com a menor degradação humana possível. Até aqui destacamos que, o indivíduo encarcerado enfrenta várias adversidades dentro do cárcere, ocorre que, devemos ainda salientar que, tais adversidades são verdadeiramente hipóteses em que o Estado viola a dignidade da pessoa humana, mas outras podem ser as omissões do Estado e que também deflagra violações à dignidade da pessoa humana. Aqui a prática restaurativa deve ser destacada por sua capacidade em resgatar a dignidade da pessoa humana, tanto da vítima quanto do ofensor, no conflito oriundo da conduta criminosa.

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Isto porque, no método dos círculos restaurativos30, tanto a vítima quanto o ofensor têm a possibilidade de falar sobre tudo o que tenha advindo como resultado para cada uma das partes da conduta do infrator. Neste método, a vítima passa de mero ator coadjuvante do processo penal retributivo a um dos atores principais para a solução do conflito, na justiça restaurativa, tendo inclusive a oportunidade de se expressar em relação aos seus sentimentos, angústias e sofrimentos que tenha enfrentado pelo evento que viveu em razão dos atos do infrator mas, também tem a possibilidade de conhecer a realidade de quem cometeu o crime, entender os motivos que o levaram à prática criminosa e a partir deste conhecimento entre as partes é possível estabelecer um acordo de reparação de danos. E onde está o resgate da dignidade nestas hipóteses? Ora, em todo o processo as partes falam de suas angústias, de seus traumas e de suas aspirações e isto por si só, resgata o sentido essencial da dignidade, em ser respeitado pelos que a escutam no momento da prática restaurativa. Além disso, o resgate da dignidade se destaca com a hipótese que os sujeitos possuem de se justificar, de desculpar e de se perdoarem mutuamente. Ao passo que, no cárcere as violações são a regra, conforme destaca Grecco31, inclusive “toleradas” pelo Estado:

30

Os processos circulares variam muito, mas há geralmente quatro etapas: primeira etapa – determina se o caso específico é apropriado para m processo do círculo; 2) segunda etapa – prepara as partes que estão envolvidos no círculo. Isto se faz informando a ambos acerca do que ocorrerá no círculo, escutando as experiências que hão tido e informar quem participará no círculo; 3) terceira etapa – procura um acordo consensual no círculo; 4) quarta etapa – fornece o monitoramento e assegura que o ofensor cumpra o acordo. 31 GRECCO, 2011, p. 103.

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(...) Veja-se o que acontece em inúmeras penitenciárias brasileiras, onde presos são espancados por seus próprios companheiros de cela e o Estado (representado, ali, por seus agentes públicos), que deveria protege-lo, nada faz para evitar esse espancamento, pois, no fundo, aprova que os presos se agridam, ou mesmo causem a morte uns dos outros.

É evidente a diferença concreta que se estabelece entre as práticas retributivas e restaurativas. Na prática restaurativa existem elementos que, constituem sua base valorativa tais como o encontro, a participação, a reparação e a reintegração.

4.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse modo, partindo de uma perspectiva teórica acerca da liberdade do indivíduo, podemos destacar que, este é um direito fundamental constitucionalmente concebido sob este enfoque e que, tem sido subjugado no ordenamento jurídico, mas sobretudo nas decisões judiciais criminais. Isto porque, na garantia da liberdade do indivíduo contrapondo-se com o interesse público ou social de determinada conduta criminosa, tem prevalecido o interesse público em detrimento do interesse do indivíduo em manter-se em liberdade. A regra do processo penal tem sido invertida, mesmo em contraposição ao que determina a própria Constituição Federal ao determinar que, a restrição da liberdade ocorra apenas quando houver trânsito em julgado da sentença condenatória, o que legitimaria o Estado na restrição da liberdade do indivíduo.

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Entretanto, tem sido comum a decisão judicial que determina a relativização do direito de liberdade, ainda no curso do processo penal, o que também viola ainda que indiretamente a dignidade da pessoa humana. Aliás as decisões judiciais consistentes em antecipar a privação da liberdade, sob fundamentos vários, tais como a decretação de prisão preventiva, ensejam violação grave ao direito de liberdade do indivíduo e viola flagrantemente a dignidade da pessoa humana. Ademais os direitos fundamentais, tais como a liberdade e a dignidade da pessoa humana, não são meros enfeites constitucionais, constituem a base do próprio Estado Democrático de Direito, com reflexos imediatos na paz social e na segurança jurídica. Em razão das discussões que levantamos durante a elaboração do presente trabalho, pudemos perceber que, recrudescimento de penas, endurecimento do tratamento destinado aos indivíduos que praticam crimes não são as alternativas mais exitosas atualmente. Toda forma de endurecimento que apenas dirige o sujeito ao cárcere não resolve o problema social de encarceramento em massa e desmedido que atualmente superlotam os presídios brasileiros. Identificar práticas que contribuam com a diminuição ou deflação carcerária podem ser a solução mais viável e responsável neste momento. Neste ponto a justiça restaurativa aparece como uma alternativa que pode contribuir com tal situação, principalmente porque se mostra como alternativa não apenas ao cárcere, mas sobretudo em relação às possibilidades de promover a paz social. Os mecanismos e práticas restaurativas tem sido objeto de estudo e proposta de implementação no Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça que, tem observado por pesquisas dirigidas, os problemas carcerários brasileiros, e pretende tornar mais eficientes ações que tenham no bojo a prática restaurativa

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Até porque tem sido elaborado no Brasil desde o ano de 2000, medidas mais efetivas de implementação das práticas restaurativas, principalmente evidenciadas como possíveis nos casos da justiça penal. Em outros países a justiça restaurativa tem surtido efeitos muito positivos tanto que, alguns destes países adotam integralmente a justiça restaurativa. A justiça restaurativa pode trazer resultados mais positivos quanto à reparação de danos causados à vítima, bem como propiciar uma forma alternativa de responsabilização do infrator com impactos mais positivos, refletidos na dignidade de cada um dos atores do processo restaurativo. Ao assumir papel ativo no processo restaurativo a vítima percebe a maior eficiência da justiça, com a efetiva reparação de seus danos, sem a necessidade de encarcerar o indivíduo o que ao final é o que representa maior interesse da própria vítima. Para a vítima interessa mesmo a reparação de seus danos, restabelecer ao status anterior à ofensa do infrator todos os bens que foram eventualmente atingidos. O Conselho Nacional de Justiça tem elaborado pesquisas no sentido de efetivamente implementar a justiça restaurativa no Brasil, com propósitos seguros e com mecanismos bem definido. Acreditamos que o caminho esteja sendo percorrido pelo Poder Judiciário que, aos poucos, lentamente vai assimilando que, a justiça restaurativa pode ser o caminho para uma maior efetividade judicial. Tais ponderações podem ser extraídas, principalmente com base nos projetos pilotos32 em andamento no Brasil. 32

Os projetos pilotos são projetos de justiça restaurativa em andamento no Brasil, com ênfase na solução de conflitos criminais, como é o caso do Projeto de São Caetano do Sul em São Paulo. O projeto tem atuado na ressocialização de jovens infratores. O projeto começou em 2005, atuando em escolas e foi sendo expandido até alcançar em 2006 os crimes de menor potencial ofensivo, principalmente os casos envolvendo violência doméstica, alcoolismo e uso de drogas. Em 2011

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Os casos de utilização ou implementação da Justiça Restaurativa começam em pequenas doses. Primeiramente os crimes de menor potencial ofensivo e vão avançando até alcançar e imprimir socialmente uma mentalidade de prevenção de crimes e solução pacífica de conflitos criminais. O caso zero33 no Brasil, demonstra que as práticas restaurativas não precisam alcançar todos os crimes praticados, mas que é possível começarmos a implantar e disseminar a cultura de solução de conflitos, por outros meios que não efetivamente os judiciais. Ainda não se tem dados acerca da diminuição da reincidência com as práticas restaurativas no Brasil, mas em outros países a reincidência em casos da justiça restaurativa são muito superiores do que nos casos da justiça judicial tradicional. Infelizmente os casos de justiça restaurativa estão sendo aplicados informalmente, sem qualquer respaldo seguro acerca das práticas restaurativas e, também isto pode ser um grande problema a posteriori a ser enfrentado, por isso a necessidade de se pensar uma legislação clara e segura acerca do tema. Mas acreditamos que a justiça restaurativa possa ser sim um aliado muito eficiente na diminuição da criminalidade e na solução de conflitos, de toda ordem, com muito menos impunidade ou sensação de impunidade.

o projeto avançou na utilização da justiça restaurativa em relação a crimes mais graves. Estes dados constam do site do Conselho Nacional de Justiça. In http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/22917-tjsp-usa-justicarestaurativa-na-ressocializacao-de-jovens. Acessado em 26 de novembro de 2014. 33 http://www.sul21.com.br/jornal/estado-aposta-na-justicarestaurativa-para-situacoes-de-conflito-e-violencia/ acessado em 26 de novembro de 2014.

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4.8 REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Daniel. Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça terapêutica, instantânea, restaurativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2009. BATISTA. Vera Malaguti. Criminologia e política criminal. In: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro. Vol. 1. N. 2, julho/dezembro 2009, p. 20-39. CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Leme: Cledijur, 2011. CARNIO, Henrique Garbellini. Kelsen e Nietzsche: aproximações do pensamento sobre a gênese do processo de formação do Direito. Dissertação apresentada para obtenção de título de mestre na PUC/SP. In http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp 078383.pdf, acessado em 25/11/2014 às 23hs52m. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petropólis: Vozes, 1987. FURLAN, Alessandra Cristina. Dignidade da pessoa humana. In: Inclusão Social e direitos fundamentais/ Dirceu Pereira Siqueira, Miguel Belinati Piccirillo (coordenadores). Birigui: Boreal, 2009. GAUER, Ruth M. Chittó. Memória, punição e justiça: uma abordagem interdisciplinar/ Ruth M. Chittó Gauer, Giovani Agostini Saavedra, Gabriel J. Chittó Gauer. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

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GRECCO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011. HAYEK, Friedrich August Von. Direito, legislação e liberdade, uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, 1985. http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pe ssoas_presas_correcao.pdf . Acessado em 25/11/2014, as 23hs55m. http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/24745magistratura-tambem-e-responsavel-por-caos-nocarcere-diz-juiz. Acessado em 26/11/2014 às 09hs10. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pag. 269 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: Justiça Restaurativa (Brasília – DF Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org e trad. André Luiz Callegari. Nereu José Giacomolli. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogdo. 2009. SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 88. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2009. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2008.

-VDIVÓRCIO POR ESCRITURA PÚBLICA E GRAVIDEZ IGNORADA Andréa Silva Albas Cassionato* Jose Francisco de Assis Dias**

5.1 INTRODUÇÃO

Finalmente promulgado o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), a legislação processualista atualizará todo o ordenamento jurídico a fim de agregar de forma didática e eficaz todas a alterações ocorridas no Código de Processo Civil de 1973. Dentre referidas alterações está a promovida pela Lei nº 11.441/2007 que autorizou a realização de separação ou divórcio consensual mediante escritura pública a ser firmada no Tabelionato de Notas e posteriormente averbada no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais. Referida lei foi responsável pela *

Especialista em Direito Civil e Processo Civil e mestranda em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá/PR. Endereço eletrônico: . Lattes: http://lattes.cnpq.br/4275817652253513 ** Professor doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano (2003-2005); doutor em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade (2006-2008). Atualmente é Professor de Filosofia do Direito na Graduação, Pós-graduação e Mestrado em Direito; e também professor de Filosofia e Ética, no Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, no UNICESUMAR; coordenador do projeto de pesquisa FUNDAMENTAÇÃO ONTOLÓGICA DO DIREITO À VIDA E SEUS LIMITES INICIAIS E FINAIS; membro do Grupo de Pesquisa EDUCAÇÃO E GESTÃO NAS ORGANIZAÇÕES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231

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inclusão do artigo 1.124-A no antigo e ainda vigente Código de Processo Civil. Sua redação foi mantida no novo Código de Processo Civil no artigo 733 que, além de prever a possibilidade de realizar mediante escritura pública a separação ou o divórcio consensual, também permitiu a dissolução da união estável nos mesmos moldes. Outra alteração na redação anterior deu-se através da inclusão da figura do nascituro juntamente com a do filho incapaz como impeditivo para firmar-se a dissolução mediante escritura. No entanto, é plenamente possível que o casal realize a escritura pública com o objetivo de por fim ao matrimônio ou a união estável sem ter conhecimento da existência da gravidez. Não há previsão legal a respeito, se a escritura pública terá sua validade plena ou não. Diante disso, será necessário estabelecer-se mediante entendimentos doutrinários e/ou jurisprudenciais qual a melhor alternativa para casos como esse. Para tratar do tema será necessário, inicialmente, tecer esclarecimentos sobre o fim do casamento e da união estável, relembrar alguns conceitos importantes sobre o nascituro e sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos para, somente então, chegar-se a alguma conclusão sobre a discussão ora proposta.

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5.2 ROMPIMENTO DA SOCIEDADE E DO VÍNCULO CONJUGAL

As hipóteses do fim da sociedade e do vínculo conjugal estão previstas no artigo 1.571 do Código Civil, que prescreve: Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; II - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. § 1o O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente. § 2o Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.

Dentre as hipóteses acima elencadas há a possibilidade de término da sociedade conjugal pela separação judicial (inciso III) ou pelo divórcio (inciso IV) que, após o advento da Lei 11.441/2007 e com a promulgação do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), podem ser realizadas também no âmbito extrajudicial. Nota-se que o caput do dispositivo legal alhures não trata da dissolução do casamento, e sim da dissolução da sociedade conjugal. Isso porque há importantes diferenças entre esses dois institutos. É através do casamento que se regula a vida dos cônjuges de forma geral. As obrigações materiais e morais dos consortes de um para com o outro e de ambos para com a prole são regidas por este instituto. Já a sociedade conjugal é um instituto mais restrito.

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Faz parte do casamento uma vez que trata especificamente do regime de bens dos cônjuges e da comunicação ou não dos frutos civis adquiridos pelo trabalho. Deve-se ressaltar que à união estável são aplicadas todas as normas referentes ao casamento. Assim, há possibilidade de se romper a sociedade conjugal sem pôr fim ao casamento. É o que ocorre, por exemplo, na separação de fato do casal. A situação ainda não está formalizada, mas já não existe os deveres conjugais e a comunicação de bens. Nesse sentido é o Enunciado 2 do IBDFAM1: A separação de fato põe fim ao regime de bens e importa extinção dos deveres entre cônjuges e entre companheiros. Entretanto, sempre que há o fim do casamento ou da união estável haverá o fim da sociedade conjugal. A existência da separação judicial prevista no inciso III do artigo 1.571 do Código Civil passou a ser questionada após a Emenda Constitucional nº 66/2010, responsável pela nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal. Antes o texto legal citado possuía a seguinte redação: O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Atualmente, o § 6º estabelece que: O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. Assim, é forte o entendimento de que a separação judicial está extinta de nosso ordenamento jurídico, restando apenas o divórcio como meio de dissolução tanto

1

IBDFAM: Instituto Brasileiro de Direito de Família.

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da sociedade conjugal quanto do vínculo matrimonial2. O divórcio, que é a dissolução de um casamento válido (Código Civil, art. 1.571, IV e § 1º), ocorrerá mediante sentença judicial3, ou mediante escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas e averbada no Registro Civil de Pessoas Naturais onde os cônjuges casaram-se4, habilitando as pessoas a convolar novas núpcias. O Código Civil prevê duas modalidades de divórcio: o divórcio indireto (art. 1.580 e § 1º) e o divórcio direto (art. 1.580, § 2º). O divórcio indireto seria a conversão da separação extrajudicial ou da separação judicial consensual ou litigiosa em divórcio, feito por ambos ou por qualquer um dos cônjuges (Constituição Federal, art. 226, § 6º; Código Civil, art. 1.580 e § 1º; Lei n. 6.515, arts. 35, 36, I e II e 47; Lei 11.441/2007; art. 733 do novo Código de Processo Civil). No entanto, como dito, sua vigência é duvidosa em face da nova redação do § 6º do artigo 226 da Constituição Federal. Já o divórcio direto, que seria a dissolução do vínculo conjugal sem prévia separação judicial ou extrajudicial, feito por ambos ou por qualquer um dos cônjuges (Constituição Federal, art. 226, § 6º; Código Civil, art. 1.580 e § 2º; Lei 11.441/2007; art. 733 do novo Código de Processo Civil), persiste, mas perde a qualificadora de "direto" por ser o único meio de pôr fim ao matrimônio. Resta apenas a possibilidade de o divórcio ser consensual ou litigioso. Se consensual, ou seja, se ambos os cônjuges estão de comum acordo com os termos do divórcio, este 2

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 205; Resolução 120, de 30.09.2010 do Conselho Nacional de Justiça. 3 GOMES, Orlando. Direito de Família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 309. 4 Conforme artigo 1.124-A do CPC e artigo 733 do novo CPC.

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poderá ser realizado tanto judicialmente, através de ação de homologação de divórcio consensual, quanto extrajudicialmente, mediante a lavratura de escritura pública de divórcio no Tabelionato de Notas.5 Já o divórcio litigioso, que ocorre quando os cônjuges discordam da forma como se dará o fim da sociedade conjugal, somente poderá ser feito pela via judicial, uma vez que caberá ao magistrado, representando o Estado, solucionar a lide da melhor forma possível. Para o desenvolvimento do tema proposto é interessante apenas o divórcio consensual, porque este é passível de ser realizado mediante escritura pública conforme todos os dispositivos legais já citados. 5.2.1 O divórcio e a dissolução da união estável extrajudicial Atualmente no ordenamento jurídico brasileiro o divórcio extrajudicial é regido pelo artigo 1.124-A do Código de Processo Civil (CPC), que elenca como seus principais requisitos: a) não haver filhos menores ou incapazes do casal (comuns); b) existir consenso entre os cônjuges quanto à pensão alimentícia, quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento e quanto à descrição e 5

Art. 733 do novo CPC: "O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. § 1 o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial."

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partilha dos bens comuns, in verbis: Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. (original sem grifo)

Pela atual redação do artigo 1.124-A o divórcio extrajudicial é prejudicado pela existência de filhos comuns menores (incapazes por disposição legal) e/ou incapazes (por qualquer causa superveniente à maioridade que retirem o discernimento do filho ou que não o deixe exprimir sua vontade, nos termos dos artigos 3º e 4º do Código Civil). É importante observar que o legislador não tratou da figura do nascituro, que não são considerados nem menores e nem incapazes. No entanto, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) manteve o instituto do divórcio extrajudicial, contudo modificou sua redação, que vale transcrever para fins de comparação: O divórcio consensual, a separação consensual e a

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Temas atuais de direito da personalidade: Volume II

extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731.

Nota-se que o legislador incluiu a possibilidade de extinção consensual da união estável extrajudicial, incluiu a figura do nascituro no texto legal e, alheio a Emenda Constitucional nº 66/2010, manteve a figura da separação. Por um lado, foi uma fantástica evolução; por outro lado, foi um imenso retrocesso, e tudo no mesmo dispositivo legal. Contraditoriamente, dessa vez acatando a Emenda Constitucional nº 66/2010, foi excluída a exigência de observância de prazos como requisito de prévia separação judicial por mais de um ano (para o divórcio indireto) ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos (para o divórcio direto). Logo após a publicação da Lei 11.441/2007, o CNJ6, a fim de regulamentar a lavratura das escrituras de separação e divórcio em todo o país, editou e publicou a resolução nº 35 que trouxe disposições comuns entre separações e divórcio e também trouxe disposições especificas referentes a cada instituto isoladamente, alterada posteriormente pela Resolução nº 120/2010 para adequá-la à Emenda Constitucional nº 66/2010. As disposições comuns sobre separação e divórcio vieram previstas nos artigos 33 a 46, que prescrevem sobre: a) artigo 33: trouxe a previsão relacionada aos documentos que devem ser apresentados; b) artigo 34: dispôs sobre a declaração feita pelos cônjuges ao tabelião, no sentido de não existirem filhos comuns ou, havendo, que os mesmos sejam absolutamente capazes;

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CNJ: Conselho Nacional de Justiça.

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c) artigo 35: dispôs sobre a necessidade de os cônjuges terem ciência das consequências da separação e do divórcio para que não existam dúvidas quanto à manifestação de vontade de ambos e também sobre a inexistência de reconciliação naquele momento; d) artigo 36: dispôs sobre a necessidade do comparecimento pessoal dos cônjuges que, entretanto, poderão ser representados por procurador, desde que por instrumento público com poderes especiais, descrição das cláusulas essenciais e prazo de validade de trinta dias; e) artigo 37: dispôs sobre a necessidade de constar no corpo da escritura, no caso de partilha de bens, a distinção do patrimônio individual de cada cônjuge daquilo que é patrimônio comum do casal; f) artigo 38: dispôs sobre a necessidade do recolhimento de ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) ou ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação) quando houver transmissão de propriedade do patrimônio individual de um cônjuge ao outro ou na partilha desigual do patrimônio comum; g) artigo 39: dispôs que a partilha na separação e no divórcio ocorreram segundo as regras da partilha no inventário extrajudicial, aplicando-se no que couber; h) artigo 40: dispôs sobre a desnecessidade de autorização judicial e de audiência do Ministério Público para averbação da alteração do estado civil no Oficio de Registro Civil das Pessoas Naturais; i) artigo 41: dispôs sobre o sistema de remissões previsto na Lei dos Registros Públicos; j) artigo 42: dispôs que não haverá sigilo nas escrituras de separações e divórcio devido ao princípio da publicidade dos atos notariais; k) artigo 43: dispôs sobre a necessidade de orientação aos cônjuges no sentido de que a lavratura da escritura não é o último passo, devendo seu traslado ser apresentado no Ofício de Registro Civil das Pessoas

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Naturais da localidade do casamento dos cônjuges para averbação devida; l) artigo 44: dispôs sobre a possibilidade de alteração das cláusulas de obrigações alimentares ajustadas na separação e no divórcio; m) artigo 45: dispôs sobre a possibilidade de lavratura de nova escritura mediante declaração de um só dos cônjuges para voltar ao uso do nome de solteiro (a), devendo nesta escritura comparecer um advogado como assistente; n) artigo 46: dispôs sobre a cautela que o tabelião deve ter na orientação dos cônjuges sobre eventuais prejuízos decorrentes da escritura, bem como se a vontade é externada livremente. Já o artigo 52 prevê disposição referente apenas ao divórcio, no sentido de que a separação judicial ou extrajudicial pode ser convertida em divórcio, com manutenção ou alteração das condições anteriormente estabelecidas. Frise-se que referido artigo foi alterado pela Resolução 120/2010 do CNJ, que passou a ter a seguinte redação: Art. 52. Os cônjuges separados judicialmente, podem, mediante escritura pública, converter a separação judicial ou extrajudicial em divórcio, mantendo as mesmas condições ou alterando-as. Nesse caso, é dispensável a apresentação de certidão atualizada do processo judicial, bastando a certidão da averbação da separação no assento do casamento.

Ainda, a mesma Resolução revogou o artigo 53 da Resolução nº 35 do CNJ, que tratava justamente da obrigação do tabelião em observar os prazos legais, o que coaduna aplicabilidade imediata da Emenda Constitucional nº 66/2010, inexistindo, portanto, o prazo de dois anos para o divórcio direto.

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5.3 O NASCITURO

Feitos os devidos esclarecimentos acerca do rompimento do casamento e da união estável mediante escritura pública, passa-se a analisar o conceito de nascituro a fim de que se adote uma dentre todas as teorias existentes sobre quando tem início a personalidade civil do nascituro. 5.3.1 Conceito de nascituro Etimologicamente a expressão nascituro tem seu significado relacionado àquele que está por nascer, derivando do latim nasciturus. O minidicionário Luft conceitua nascituro como sendo: “adj. e s.m. Que (m) está para nascer”7. Na doutrina, existem vários conceitos sobre o que seria o nascituro. Dentre eles, selecionamos José Carlos Moreira Alves8 que conceitua o nascituro como sendo aquele que ainda está para nascer e conclui como sendo o feto em gestação. Em resumo, na doutrina costuma-se conceituar o nascituro como sendo aquele que ainda está dentro do ventre materno e ainda não nasceu. Entretanto, referido conceito merece melhor análise pois existem outras formas de concepção afora a natural. Assim, o nascituro apresenta fases evolutivas. Vejamos:

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Minidicionário Luft, organizado por Celso Pedro Luft, 8ª ed., São Paulo: Ática e Scipione, p. 438. 8 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. Volume I, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1.978, p. 127.

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a) Zigoto: a fecundação compreende vários processos biológicos e fisiológicos bastante independentes. Por uma parte, os espermatozóides devem chegar nas proximidades do óvulo, encontra-lo e penetrar em seu citoplasma, desencadeando um mecanismo finamente ajustado de reações morfológicas e físioquímicas. b) Blastócito e preembrião: nesta fase tem-se o período de segmentação que compreende as trocas e divisões desde que o zigoto seja uma única massa compacta de células ao redor do corpo esférico vazio. Durante esse período, o tamanho do embrião chamado de blastócito não muda. c) Embrião: Forma-se na fase denominada de gastrulação. Nesta fase a capa única de células que formava a blástula dá lugar a outras capas de células chamadas capas germinais formando complexos esboços, a partir dos quais se forma os órgãos do novo corpo. d) Feto: é o período de crescimento, em que os órgãos passam a crescer e aumentar de tamanho, chegando o novo ser a uma estrutura e a propriedades específicas para realizar suas funções vitais, inclusive tendo certa autonomia para viver fora do útero materno9.

Com os conceitos acima, fica evidenciado que a doutrina não faz distinção entre embrião e feto, tratando ambos como nascituro. 5.3.2 Teorias sobre a personalidade jurídica A Personalidade Jurídica, para a Teoria Geral do Direito Civil, é a aptidão genérica para ser titular de direitos e para contrair obrigações. 9

HIDALFO ORDÁS, Maria Cristina. Analisis jurídico-científico del concebido artificialmente – E el marco de la experimentación gênica. Editora Bosch, Barcelona/Espannha: 2002, pp. 66/67 – tradução livre das frases feita por ZAINAGHI, Maria Cristina – Os meios de defesa dos direitos do nascituro, São Paulo: LTR, 2.007, pp. 22/23.

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No Brasil, a personalidade jurídica plena inicia-se com o nascimento com vida, ainda que por poucos instantes. Logo em seu início, no artigo 2º do Código Civil Brasileiro, traz a seguinte disposição: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." Existem, na doutrina, três teorias que tentam explicar a situação da personalidade jurídica do nascituro10: 1ª) Teoria natalista: para seus defensores, a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, o que traz a conclusão de que o nascituro não é pessoa. Portanto, tem apenas expectativa de direitos. Adeptos dessa corrente sustentam que a proteção que a lei dispensa ao nascituro não lhe confere reconhecimento ou atribuição de personalidade. Apenas significa que existe uma situação pendente, que somente se efetivará com o nascimento. 2ª) Teoria concepcionalista: sustenta que o nascituro é pessoa humana desde a concepção, tendo direitos resguardados pela lei. Essa teoria está prevista no item I do artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), in verbis: 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

3ª) Teoria da personalidade condicional: afirma que a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, ficando os direitos do nascituro numa condição resolutiva. Ocorrendo o nascimento com vida, a personalidade se iniciou desde a concepção. Se não

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ZAINAGHI, Maria Cristina. Os meios de defesa dos direitos do nascituro. São Paulo: LTR, 2.007, pp. 43/50

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ocorrer o nascimento com vida, também não houve início da personalidade. Arruda Alvim afirma que: 11 O nascituro, dado que já a partir da sua concepção, põe a lei a salvo os seus direitos, (art. 4º, do Código Civil), ainda que só com a concepção está apto para ‘adquirir’ efetivamente, direitos que se tornam ‘cristalizadamente’ seus, com o nascimento com vida. Mas, se nascer morto, configura-se a condição resolutiva imanente a uma tal situação – isto é, resolvem-se os direitos que se pretendia tivessem sido adquiridos. A circunstância de se falar em condição resolutiva não significa, todavia, que se afirme que o nascituro 'pode adquirir direito' tal como uma pessoa pode. Quer-se dizer que os pode adquirir enquanto nascituro, mas de forma resolutória, na hipótese de não nascer com vida; ou, nascendo, com vida, terá adquirido efetivamente direitos, desde a sua concepção não há solução de continuidade entre ter sito nascituro e vir a ser pessoa.

O nascimento com vida, para fins da Lei 6.015/73 ocorre com a respiração fora do vente materno. Se respirar a criança nasceu com vida, devendo ser feito seu registro de nascimento. Se não respirou, não adquiriu personalidade e não nasceu para o direito. Vejamos: Art. 53. No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito. (...) § 2º No caso de a criança morrer na ocasião do parto, tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o de nascimento e o de óbito, com os elementos cabíveis e com remissões recíprocas.

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ALVIM, Arruda. Tratado de direito processual civil. Volume 2, 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1.996, p. 23.

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Também é nesse sentido o artigo 29, inciso VI, da Resolução nº 1/1988 do Conselho Nacional de Saúde: Nascimento Vivo – é a expulsão ou extração completa do produto da concepção quando, após a separação, respire e tenha batimentos cardíacos, tendo sido ou não cortado o cordão, esteja ou não desprendida a placenta;

Para compreensão plena da teoria da personalidade condicional faz-se necessário alguns esclarecimentos acerca das condições previstas no Código Civil Brasileiro. Segundo a art. 114 do Código Civil “considera-se condição a cláusula, que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto”. A definição de condição é muito clara na lei, pois o legislador ao se referir sobre a eficácia (capacidade de produzir consequências de direito) do negócio jurídico, deixa seus efeitos dependentes de um acontecimento futuro que pode ou não se realizar. Para que haja condição, o acontecimento, além de futuro e incerto, deve ser possível física e juridicamente. A impossibilidade física da realização de determinado acontecimento gera a invalidação da condição, porém, mantém o negócio ileso, devendo ignorar a existência da cláusula condicional impossível, para que possa produzir efeitos desde sua formação12. A condição pode ser: a) Suspensiva: É a condição que suspende os efeitos do ato jurídico durante o período de tempo em que determinado evento não ocorre. Está prevista no artigo 125, do Código Civil, in verbis: "subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta 12

Disponível em: , autor: Marcus Vinícius Saavedra Guimarães de Souza. Fato, Ato e Negócio Jurídico, acesso aos 04/10/2010.

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se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa". b) Resolutiva: A condição resolutiva acarreta a extinção do contrato quando verificado determinado fato. Está prevista no artigo 127, do Código Civil, in verbis: "Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido". Porém, necessário lembrar que assim que sobrevier a condição, extinguirá o direito a que ela se opõe. Para a figura do nascituro, se NÃO houver o nascimento com vida, aplicase a condição resolutiva, resolvendo-se os direitos que se pretendia tivessem sido adquiridos, ou seja, o nascituro será considerado inexistente para o mundo jurídico, apesar de sua existência ter ocorrido no mundo natural, no ventre materno. Conforme a teoria adotada, o nascituro passará ou não a ser titular de direitos, dentre os quais estão os direitos de personalidade. O nobre doutrinador Limongi França propõe um rol dos referidos direitos13. I – Direito à integridade física: 1) direito à vida e aos alimentos; 2) direito sobre o próprio corpo, vivo; 3) direito sobre o próprio corpo, morto; 4) direito sobre o corpo alheio, vivo; 5) direito sobre o corpo alheio, morto; 6) direito sobre as partes separadas do corpo, vivo; 7) direito sobre as partes separadas do corpo, morto. II – Direito à integridade intelectual: 1) direito à liberdade de pensamento; 2) direito pessoal de autor científico; 3) direito pessoal de autor artístico; 4) direito pessoal de inventor. III – Direito à integridade moral:1) direito à liberdade civil, política e religiosa; 2) direito à honra; 3) direito à honorificência; 4) direito ao recato; 5) direito ao segredo

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FRANÇA, R. LIMONGI. Instituições de direito civil. 4. ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1996, pg. 1037/1038.

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pessoal, doméstico e profissional; 6) direito à imagem; 7) direito à identidade pessoal, familiar e social.

Assim, todos esses direitos hão de ser protegidos ao nascituro até este adquirir a personalidade jurídica. Dentre as teorias apresentadas entende-se com melhor aplicabilidade ao direito pátrio a teoria da personalidade condicional, pois o melhor entendimento deve se inclinar para o início da personalidade com o nascimento com vida, ficando os direitos do nascituro numa condição resolutiva. Havendo o nascimento com vida, a personalidade se iniciou desde a concepção. Se não houver o nascimento com vida, também não houve início da personalidade.

5.3 DA VALIDADE DA ESCRITURA PÚBLICA E GRAVIDEZ IGNORADA

Diante do que foi exposto, vale-se discutir se a escritura pública de divórcio perderá a validade e/ou a eficácia se, quando da assinatura, a mulher estava gestante e ignorava essa condição. Por óbvio que se a gravidez for do conhecimento das partes que pretendem o rompimento da união, esta não poderá ser realizada na via extrajudicial, nos termos do já citado artigo 733 do novo Código de Processo Civil, que dirimiu qualquer dúvida a respeito do tema. No entanto, se a gravidez for ignorada, é plenamente possível que as partes resolvam suas questões pela via extrajudicial, sem garantir nenhum dos direitos do nascituro. A conclusão mais lógica seria a de que a escritura púbica perde sua validade e/ou sua eficácia e as partes

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deverão procurar a via judicial para efetivar o divórcio ou a extinção da união estável. Entretanto, a escritura pública de divórcio foi finda e fez entre as partes efeitos irrefutáveis, tal como a alteração do estado civil e a partilha de bens. O artigo 104 do Código Civil inaugura o tema dispondo que: Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Esse dispositivo legal contempla os três planos do negócio jurídico: existência, validade e eficácia. Para que o negócio jurídico exista é necessário que este seja externado mediante documento público ou particular no qual haverá todos os elementos que o constituem. Portanto, deverá contemplar partes, manifestação de vontade, a causa do negócio e os termos do negócio em si.14 Já no plano da validade é necessário preencher os requisitos constantes no artigo 104 do Código Civil, qual seja, que o agente seja capaz, que o objeto do negócio jurídico seja lícito e possível e que seja observada a forma devida do negócio. Para que o negócio possua validade é necessário, ainda, que o agente manifeste sua vontade de forma livre e desimpedida. Se algum desses requisitos não for cumprido o negócio jurídico estará eivado de vícios determinantes para sua nulidade (não possuirá validade em momento algum) ou anulabilidade (possuirá validade até que o vício seja suscitado por alguém). Sobre a eficácia, não há qualquer previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro, sendo esta uma exigência 14

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 382.

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doutrina e jurisprudencial. Para que o negócio jurídico seja eficaz é necessário que exista nele todos os fatores necessários para produzir efeitos no mundo jurídico.15 No caso da escritura pública de divórcio ou da extinção da união extinção na hipótese em análise, é existente, uma vez que existe partes (cônjuges), manifestação de vontade (ambos declaram perante o tabelião o desejo de pôr fim ao matrimônio), a causa (existência do casamento) e os termos do negócio em si (descrição e partilha dos bens comuns, pensão alimentícia entre os cônjuges e modificação ou não do patronímico). Da mesma forma, é um negócio jurídico válido posto que as partes são plenamente capazes, o objeto do negócio jurídico é lícito e possível, foi observada a forma prescrita em lei (escritura pública) e a vontade de ambos foi manifestada de forma livre e desimpedida. A questão mais complexa refere-se a eficácia do negócio jurídico firmado pelos ex cônjuges. Inicialmente a escritura pública, por ser existente e válida, produzirá efeitos plenos entre as partes e perante terceiros. Feita a lavratura do ato (transcrição da escritura pública no livro competente no Tabelionato de Notas), a averbação no registro civil das partes (modificação do estado civil) e no registro de imóveis, se houver imóveis a serem partilhados, todos os efeitos foram concretizados no mundo jurídico. A descoberta posterior de uma gravidez existente desde a assinatura da escritura pública de divórcio ou da dissolução da união estável, mas ignorada pelas partes tornaria a escritura incompleta, mas não ineficaz. Não houve por parte dos ex cônjuges/companheiros qualquer vício que desqualificasse o negócio jurídico firmado. A simples

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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 381.

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ignorância dessa circunstância essencial não é capaz de anular um negócio jurídico perfeito e acabado. Assim, a escritura pública ainda gozaria de plena validade e eficácia no mundo jurídico, em respeito aos princípios da boa fé e da segurança jurídica. Com relação ao nascituro, os termos que garantem seus direitos deverão ser firmados mediante ação judicial, nos termos do art. 733 do novo Código de Processo Civil. No entanto, inobstante a legislação atual entender por bem direcionar ao judiciário os divórcios e as extinções de união estável consensuais que possuam filhos menores, incapazes ou nascituro, pensa-se que a melhor alternativa seria a permissão legal para a realização de qualquer extinção do casamento ou da união estável consensual pela via extrajudicial. O principal argumento para que casos como tais sejam regulamentados via ação judicial é a de que é necessária a intervenção do Ministério Público para garantir os direitos dos incapazes envolvidos. Ocorre que nos processos de habilitação para casamento, que obviamente são de responsabilidade do Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais, já existe a intervenção do Ministério Público. Uma vez concluído o processo, o Oficial encaminha o processo, se o caso, para que o Ministério Público se manifeste se favorável ou não. Se desfavorável por algum motivo, encaminha o processo para o Magistrado para que sejam adotadas as medidas cabíveis. Ora, comprovado na prática que esse procedimento funciona, poderia ser utilizado para garantia dos direitos dos incapazes quando do divórcio consensual por escritura pública. Seria uma medida inovadora responsável por desafogar ainda mais o Poder Judiciário, já abarrotado de processos que realmente necessitam de atenção para solução eficaz da lide proposta. Ainda mais com o artigo 5º da Recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público nº 16/2010, que

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reduziu ainda mais a atuação do Ministério Público em casos como tais. É o que prevê no referido artigo, em seus incisos II e III: Art. 5º. Perfeitamente identificado o objeto da causa e respeitado o princípio da independência funcional, é desnecessária a intervenção ministerial nas seguintes demandas e hipóteses: (...) II - Habilitação de casamento, dispensa de proclamas, registro de casamento in articulo mortis – nuncupativo, justificações que devam produzir efeitos nas habilitações de casamento, dúvidas no Registro Civil; III – Ação de divórcio ou separação, onde não houver cumulação de ações que envolvam interesse de menor ou incapaz. Diante do exposto, o Ministério Público deixa de atuar em casos desnecessários e passa a atuar, obviamente, nos casos que incapazes possam ser prejudicados de fato. Poderá, portanto, atuar nos processos extrajudiciais que envolvam incapazes de maneira eficaz, a fim de garantir os direitos tanto dos incapazes quanto do nascituro, sem a necessidade de interposição de ação judicial.

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5.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo Código de Processo Civil foi inovador ao estabelecer os termos do divórcio extrajudicial em seu artigo 733. No entanto, a insistência por parte do legislador em manter a burocracia excessiva para dissoluções em que há incapazes ou nascituros continua a prejudicar o funcionamento eficaz do Judiciário. As consequências de uma escritura pública de divórcio e de extinção da união estável são eficazes e atingem o mesmo objetivo do processo judicial. Um simples aditivo à escritura pública seria suficiente para sanar qualquer problema de uma gravidez descoberta após todo o procedimento extrajudicial. Contudo, tal como no caso de existir filhos incapazes, mais uma vez persiste o conservadorismo excessivo do legislador. No entanto, aos poucos, a evolução do tema se faz presente.

5.5 REFERÊNCIAS

ALVIM, Arruda. Tratado de direito processual civil. Vol. 2. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1996. BRASIL. Constituição, 1988. BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. BRASIL. Código civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

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BRASIL. Código de processo civil: Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro Direito de Família. 5º vol. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. FRANÇA, R. LIMONGI. Instituições de direito civil. 4. ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1996. GOMES, Orlando. Direito de família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. GUIMARÃES DE SOUZA, Marcus Vinícius Saavedra. Fato, ato e negócio jurídico. Disponível em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. PEDRO, Celso (org.). Mini dicionário Luft. 8ª ed. São Paulo: Ática e Scipione. MIRANDA, Pontes. Tratado de direito civil. Tomo 3 e 4. Campinas: Bookseller, 2000. MOREIRA, José Carlos Alves. Direito romano. Vol. I. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 10. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. SANTOS, Luís Gustavo dos. A Situação do nascituro frente à Lei nº 11.441/07. Disponível em: TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011. VELOSO, Zeno. Lei n° 11.441, de 04.01.2007 - Aspectos práticos da separação, divórcio, inventário e partilha consensuais. Disponível em: ZAINAGHI, Maria Cristina. Os meios de defesa dos direitos do nascituro. São Paulo: LTR, 2007.

- VI DO ACESSO À MORADIA COMO INSTRUMENTO GARANTIDOR DE EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA Jeane Genara Volpato* Fabíola Cristina Carrero** Zulmar Antonio Fachin***

6.1 INTRODUÇÃO

A conquista da democracia representa um importante triunfo social, na medida em que possibilita à sociedade, através da participação ativa na escolha de seus representantes, participar da construção política do Estado e promover a defesa dos interesses da coletividade.

*

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina-UEL. Pós-Graduada em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina – UEL. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Unicesumar. Analista Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral lotada na 179 Zona Eleitoral do município de Apucarana. E-mail: [email protected] ** Advogada, graduada em Direito pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina-UEL, Mestranda no Programa de Pós-graduação da Unicesumar, Professora na FAP-Faculdade de Apucarana. E-mail: [email protected] *** Doutor em Direito Constitucional (UFPR). Mestre em Ciência Política (UEL). Mestre em Direito (UEL). Docente do Curso de Mestrado em Ciências Jurídicas do UniCesumar. Membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Autor de diversos livros, entre os quais "Curso de Direito Constitucional" (7ª ed., Forense). Advogado.

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Através da democracia, o cidadão torna-se membro ativo do cenário político. Isto porque, a partir dela, o cidadão vislumbra a possibilidade de manifestar seus interesses e opiniões através do exercício do voto, ou da promoção de sua própria candidatura, desde que obedecidas as condições legais previstas no ordenamento jurídico. É dever do Estado Democrático de Direito promover a existência digna de seus cidadãos através da implementação de programas sociais que possibilitem que os menos favorecidos possam sair da linha da miséria. Dessa forma, livres da falta de recursos que as aprisiona, essas pessoas podem estar aptas a manifestar de forma livre seus interesses e ideais. O presente trabalho pretende demonstrar a importância do acesso à moradia para a garantia da dignidade humana. Isso porque, a efetivação de tal garantia constitui uma importante via de acesso para outros direitos igualmente essenciais para a existência do indivíduo, sendo essencial inclusive para efetivação do próprio regime democrático. Dessa forma, esta pesquisa abordará, em especial, algumas ações de acesso à moradia adequada como instrumento garantidor da dignidade humana e de promoção social. Isso porque, trata-se de política inicial de acesso à outras políticas públicas que objetivam a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos de forma geral, posto que a diminuição das desigualdades sociais é ideal constitucional indispensável à manutenção da própria democracia. Por fim, será realizado um estudo que trata da importância das políticas públicas como via de acesso aos direitos fundamentais. Ademais, tratará ainda do importante papel que exercem para a diminuição das desigualdades sociais, com especial destaque à ampliação do acesso à moradia como elemento promotor da dignidade humana.

Do acesso à moradia...

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6.2 DEMOCRACIA

A democracia é definida pela doutrina como o regime de governo que se manifesta através da representação da vontade popular. Neste modelo, os representantes políticos são livremente escolhidos pela sociedade, na expectativa de que promovam as ações necessárias para a satisfação dos anseios sociais. Verifica-se, portanto, que, através do regime democrático, a sociedade é convidada a participar das decisões políticas por intermédio das ações de seus representantes eleitos. A estes, por sua vez, cumprem o dever de promover o fortalecimento do Estado e desenvolver os mecanismos necessários para a diminuição das diferenças sociais. Em síntese, pode-se dizer que a democracia consiste na relação direta entre povo e governo, com o objetivo primeiro de contribuir para a construção política do Estado. E, para que isso ocorra, ou seja, para que se verifique a verdadeira instalação da democracia, deve haver um ideal comum entre políticos e governados, no sentido de buscar realizar o que é bom para todos, através dos mecanismos políticos adequados para realização da vontade coletiva. Assim, o regime democrático é consolidado pela participação popular, por intermédio das decisões políticas de seus representantes, a quem cumpre a difícil tarefa de promover a harmonia entre as mais diversas camadas sociais existentes. Neste sentido, a democracia funciona como instrumento de regulação social e de solução de conflitos. Corroborando com esse pensamento, ensina Norberto Bobbio que, “[...] sem democracia não existem

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condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos [...]”1. Desta forma, para que se tenha uma democracia de fato, seus institutos devem tornar-se uma ideia concreta na vida dos cidadãos, para que estes passem a sentir-se verdadeiros integrantes do processo político. Somente desta forma, será possível resgatar os valores sociais que a sociedade anseia nos dias atuais, em especial dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, para construção de uma sociedade independente e com uma consciência política efetiva. A idéia central de democracia está fundada em três princípios: liberdade, igualdade e dignidade. Através do princípio da igualdade, todos os indivíduos devem usufruir da oportunidade igual de participação na construção da vontade política. O princípio da liberdade, por sua vez, garante aos indivíduos o direito de realizarem suas escolhas sem a interferência direta de terceiros. Por fim, a democracia contempla também o princípio da dignidade, uma vez que não se pode deixar de preservar os valores indispensáveis à pessoa humana. Além da influência dos princípios supracitados, pode-se dizer ainda que, uma das principais características da democracia é a ampla proteção aos direitos sociais. Assim, percebe-se que, quanto mais democrático o Estado, maior proteção no sistema jurídico será conferida aos mencionados direitos. Nesse sentido, a Constituição Federal conferiu ampla tutela aos Direitos Sociais, com objetivo de consolidar o regime democrático instituído. Sadek confirma este pensamento: Do ponto de vista dos direitos, a Constituição de 1988 consagra duas mudanças fundamentais: de um lado, reconhece, além dos direitos individuais, os denominados direitos sociais, como direito ao trabalho, 1

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 93.

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à moradia, à educação, à saúde, à Previdência Social; de outro, fortalece os mecanismos de tutela de direitos. Essas inovações podem ser consideradas um ponto de inflexão na história nacional, uma vez que tanto os novos direitos como os mecanismos para sua tutela evocam a exigência de atuação estatal.2

Essa extensa proteção é indispensável para a construção do ideal solidário de Estado, bem como para o próprio fortalecimento do Estado. Entretanto, apesar da positivação existente, a falta de mecanismos que possibilitem a efetivação dos direitos amparados pela Constituição Federal é bastante criticada pela doutrina. A carga ideológica presente no texto da Constituição Federal Brasileira também é alvo de críticas, conforme destaca o autor Armando Antonio Sobreiro Neto: No contexto crítico que aqui elaboro, merece menção a extrema dificuldade de se incutir no seio da sociedade civil organizada, em especial junto aos “operadores do direito”, a necessidade de postura defensiva dos princípios constitucionais, a busca de cultura política e a adoção de comportamento ativo na preservação do Estado Democrático de Direito, sem apego aos cacoetes acadêmicos dos demais ramos do Direito. 3

Através da crítica do autor, depreende-se que cumpre também à sociedade cobrar o cumprimento das garantias constitucionais. Felizmente, isso tem ocorrido com maior frequência, pois na medida em que os indivíduos tomam conhecimento de seus direitos, há uma cobrança por resposta de seus representantes, para que estes promovam as ações necessárias para o 2

SADEK, Maria Tereza. Judiciário e arena pública: um olhar a partir da ciência política. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 1-32. 3 SOBREIRO NETO, Armando Antonio. Direito eleitoral: teoria e prática. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 21.

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desenvolvimento social. Neste sentido, defende o autor Flavio Luiz Schieck em sua obra que, Nas últimas duas décadas, a sociedade brasileira tem dado passos importantes em sua progressiva democratização. O intenso processo de mobilização e reorganização de vários setores da sociedade civil, seja em nível do movimento sindical, de partidos políticos ou de outras formas organizativas, colocou em cena novos atores políticos. A sociedade brasileira amadureceu. Se avançamos na democratização política, ainda estamos engatinhando na democratização da esfera econômica e social.4

Entretanto, apesar dos esforços da sociedade, ainda hoje se verifica, na prática, um verdadeiro distanciamento dos interesses sociais por grande parte da classe política. A população, por sua vez, muitas vezes não se sente inserida na engrenagem política. Isso porque, cada vez mais surgem novos episódios de corrupção que enfraquecem a imagem política do Estado. Isso é prejudicial para a estruturação política do país, bem como para o fortalecimento do ideal de liberdade e de justiça, nos termos do ideal protegido pelo texto constitucional. 6.2.1 Democracia e exercício da soberania popular Preliminarmente, cumpre destacar algumas definições terminológicas para se estabelecer a distinção entre os conceitos de sufrágio e voto. O termo sufrágio deriva do latim suffragium, que significa aprovar por votos. Consiste na manifestação livre da vontade da sociedade, que escolhe seus representantes políticos por intermédio do voto. O sufrágio 4

VALENTE, Flavio Luiz Schieck. Do combate à fome à segurança alimentar e nutricional: o direito à alimentação adequada. In: VALENTE, Flavio Luiz Schieck. Direito humano à alimentação desafios e conquistas. Cortez, 2002, p. 35-53.

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constitui o direito fundamental que garante o exercício da soberania popular, ao passo que o voto é o mecanismo através do qual se realiza este direito. A doutrina ensina que existem duas espécies de sufrágio: o restrito e o universal. O sufrágio restrito diz respeito ao modelo censitário, no qual apenas determinada parcela da sociedade recebe autorização para o exercício do voto. De modo diferente, o sufrágio universal é estendido a todos os membros da sociedade, sem distinção de nenhuma espécie. Este último é o modelo adotado pelos países que possuem regimes democráticos. O Brasil, por exemplo, adota o modelo de sufrágio universal, garantindo a todos os cidadãos o direito de participar ativamente da formação da vontade política do Estado. Assim, tem-se que, graças à universalidade conferida ao sufrágio, a participação popular não está vinculada a nenhuma condição cultural ou econômica. A adoção do sufrágio universal pela Constituição Federal de 1988 foi resultado do movimento social existente naquela época. A concessão deste direito foi uma resposta aos anseios da sociedade que, por muito tempo, teve a sua voz calada pelo rígido regime ditatorial que antecedeu a edição do mencionado texto constitucional. Para a geração atual, já tão acostumada ao regime de liberdade instaurado, seria inconcebível a adoção de modelo diverso do existente. 6.2.2 Democracia e igualdade É sabido que, um dos pilares que sustenta a democracia é a efetivação do princípio da igualdade. Todavia, existe uma severa dificuldade no que tange a implementação deste princípio. Isto se dá em razão do longo histórico de desigualdade social, que de certa forma paralisa a migração social entre as camadas mais pobres da sociedade. Dentro do ideal democrático, o objetivo

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principal do princípio da igualdade seria proporcionar a diminuição da desigualdade existente para promover a unificação da sociedade, visando diminuir os conflitos sociais. Apesar de encontrar dificuldades na aplicação do princípio da igualdade, o Estado não pode, de forma alguma, esquivar-se do dever de buscar formas de implementá-lo. Deve então, fazê-lo através da elaboração de mecanismos capazes de reduzir as desigualdades existentes, oferecendo maior proteção aos menos favorecidos. Quando se trata do estudo do princípio da igualdade, deve-se ter em mente que sua essência, ao contrário do que inicialmente se denota pelo nome, não significa conferir, a todos, igualdade de tratamento. Significa, pelo contrário, dar a todos as mesmas oportunidades, podendo para tanto, permitir o tratamento diferenciado de determinada classe, para que ela tenha condições equivalentes àquelas dos mais favorecidos socialmente. Fachin leciona sobre o significado da palavra igualdade: A igualdade é um vocábulo de grande riqueza semântica. Tem sido tomada como sinônimo de justiça. Nesse sentido, conforme lição de Chaim Perelman, ela pode significar dar a cada um a mesma coisa; dar a cada um segundo seus méritos; dar a cada um segundo suas obras; dar a cada um segundo sua posição; dar a cada um segundo o que a lei lhe atribui; dar a cada um segundo suas necessidades.5

Nesse contexto, pode-se afirmar que existe muita dificuldade quando se trata do propósito de diminuir as desigualdades sociais existentes. Tal dificuldade ocorre em razão deste fenômeno estar historicamente enraizado 5

FACHIN, Zulmar. Op., cit., p. 270.

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e de não haver real interesse político para que essa mudança ocorra. As mais diversas fases da história foram construídas alicerçadas na divisão de classes, em que os detentores do poder econômico exerciam total poder e controle sobre as classes menos favorecidas. A desigualdade social existiu deste os primórdios da constituição da sociedade, tendo se agravado bastante no período do desenvolvimento industrial, ocasião em que se verificou uma verdadeira massificação da classe dos marginalizados. Através da explosão do sistema capitalista pelo mundo, as desigualdades ampliaram-se de forma gigantesca, inclusive a desigualdade econômica. Desde então, verificou-se o aumento do número de necessitados, ao passo que o número de privilegiados só diminui. Embora tal fenômeno seja mais evidente em países de menor desenvolvimento econômico, não se pode dizer que isto não ocorre na realidade dos países mais ricos. Nicz confirma este entendimento: A liberdade econômica desenfreada acrescida ainda de outros fatores, inclusive os de ordem política, implantada à época do laissez-faire ainda que tenha teoricamente proporcionado progresso econômico de um lado, do outro, deixou profundas marcas da miséria, abusos e injustiças que configuraram uma real e efetiva desigualdade social.6

Dessa forma, deve ser levado em conta a condição especial de cada região do país, para que haja um enfrentamento eficaz do problema e proporcione assim, uma distribuição de renda mais justa. Neste sentido, manifesta-se Castro, que realizou um dos principais estudos acerca do tema da desigualdade no Brasil, analisando os problemas sociais específicos de todas as regiões do território nacional. Esse autor aduz que: 6

NICZ, Alvacir Alfredo. Op., cit., p. 1 – 12.

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Promover o desenvolvimento econômico-social autêntico será antes de tudo procurar atenuar esses desníveis, através de uma melhor distribuição da riqueza e de um mais justo critério de investimentos nas diferentes regiões e nos diferentes setores das atividades econômicas do país.7

Nesse contexto, constata-se que, a mudança deste cenário de gritante desigualdade econômica, que dificulta o acesso dos menos favorecidos à conquista de condições dignas de sobrevivência, requer o investimento adequado na área de políticas públicas, de acordo com as necessidades específicas de cada região do país. 6.2.3 Democracia e dignidade Primeiramente, insta salientar que é impossível tratar acerca da dignidade sem antes mencionar os direitos fundamentais. Em linhas gerais, pode-se dizer que estes direitos constituem um conjunto de garantias especiais, cujo principal objetivo é a proteção da dignidade humana, bem como garantir as condições mínimas de vida. Tudo para que, ao fim, os indivíduos tenham condições para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. A ideia de dignidade não deve afastar-se do indivíduo, posto que não se concebe a existência de uma pessoa que não seja digna. Cumpre então ao direito criar os mecanismos de proteção da dignidade humana, garantindo-lhe condições mínimas de sobrevivência. A dignidade humana possui duas dimensões: uma interna, que diz respeito ao valor pessoal de cada indivíduo, e outra externa, que trata dos anseios dos indivíduos em relação aos terceiros. Conforme preleciona Diogo Costa Gonçalves “a pessoa é por si, mas só com os 7

CASTRO, Josué de. Geografia da fome o dilema brasileiro: pão ou aço. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 272.

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outros se realiza”8. No que se refere ao âmbito da democracia, a dignidade da pessoa humana também consiste na possibilidade de participar da construção da vontade política do Estado, na defesa dos interesses da sociedade. Neste sentido, conforme sustenta Cantali, “a dignidade da pessoa humana é valor fundante que serve de alicerce à ordem jurídica democrática.”9 Assim, tem-se que, a instituição de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, consiste, primordialmente, na construção de uma vontade política que busca a diminuição das desigualdades sociais. Dessa forma, deve fazê-lo de forma a promover ações necessárias para a garantia da existência digna de todos os membros da sociedade, sem qualquer distinção. Otero complementa: Cabe assim, ao Estado Democrático de Direito prover meios para que sejam asseguradas as garantias mínimas para a existência digna de todo ser humano, mediante o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais, tais como a liberdade, a igualdade, o acesso à saúde e à educação, entre outros.10

Atualmente, a dignidade da pessoa humana ocupa posição de destaque nas discussões no cenário jurídico, em razão da sua importância enquanto elemento essencial do Estado Democrático de Direito. Otero confirma tal entendimento: Denota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é da maior relevância para preservação do Estado Democrático de Direito e, portanto, deve ser 8

GONÇALVES, Diogo Costa. Pessoa e direitos de personalidade: fundamentação ontológica da tutela. Coimbra: Almedina, 2008, p. 10. 9 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 86. 10 OTERO, Cleber Sanfelici; HILLE, Marcelo Luiz. Dignidade da pessoa humana em face da escassez de recursos do estado. Revista Jurídica Cesumar Mestrado: Unicesumar, Maringá, v. 13, n. 2. p. 485 - 511.

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protegido e amparado pelo Poder Público, seja por meio de políticas prestacionais, seja pelo seu amplo reconhecimento nas suas mais variadas facetas, permitindo, ainda, a sobrevivência digna do ser humano.11

Desta forma, o respeito à dignidade humana é essencial para o reconhecimento da figura do Estado Democrático, uma vez que, um indivíduo que tem suas garantias mínimas resguardadas, torna-se capaz de exercer plenamente seus direitos, bem como queda apto a contribuir para a construção social e política do país.

6.3 POLÍTICAS PÚBLICAS

Em breves palavras, pode-se dizer que a finalidade das políticas públicas é desenvolver os mecanismos para a promoção das mudanças que a sociedade necessita, trazendo para a esfera da realidade os direitos formalmente previstos no texto constitucional. As políticas públicas desenvolvem as ferramentas necessárias para promover a diminuição das desigualdades sociais e garantir a concretização da dignidade humana. Nesse contexto, Maria Paula Dallari Bucci conceitua políticas públicas como [...] programas de ação governamental que resulta de um processo ou um conjunto de processos juridicamente regulados - processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as

11

OTERO, Cleber Sanfelici; HILLE, Marcelo Luiz. Op., cit., p. 485 - 511.

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atividades privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. 12

Enquanto instrumento de efetivação da Democracia, as políticas públicas detêm papel de destaque. Isso porque, a democracia, em sua essência, é uma forma de regime político que representa a vontade do povo. Assim, a figura do povo deve ser o destaque na elaboração das políticas públicas, que deverão vislumbrar as camadas mais necessitadas da sociedade. Em razão de sua importância para a consolidação da democracia e para a criação de uma sociedade livre e independente, na qual os indivíduos sejam capazes de realizar suas escolhas sem qualquer pressão econômica, e assim colaborar para o desenvolvimento do Estado, as políticas públicas traduzem a realização das garantias previstas no texto constitucional. Nesse sentido, Silva assevera que a democracia [...] impõe-se como postulado no contexto do constitucionalismo contemporâneo, ultrapassando o conceito de legalidade, para alcançar o da legitimidade, emprestando às constituições, efetivamente, a função de “constituir”, para além de meramente “declarar” direitos. vê-se, portanto, que as estruturas e forças sociais têm papel determinante sobre as decisões de interesse da sociedade, em especial aquelas denominadas “de governo”, tornando-se claro que tal esfera de deliberação não pode mais permanecer circunscrita ao ambiente formal do governo. O sucesso de uma política pública relaciona-se ao grau de conhecimento que se detém sobre o seu objeto, o que tende a maximizar a viabilidade de implantação de programa de ação governamental, ao mesmo tempo em

12

GRINOVER, Ada Pellegrini. Discricionariedade administrativa em matéria de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 93 -124.

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que sua eficácia está vinculada ao grau de articulação de seus atores (poderes e agentes públicos).13

Dessa forma, percebe-se que o objetivo das políticas públicas é promover o desenvolvimento de programas e ações capazes de solucionar os problemas da sociedade, especialmente através de ações que possibilitem a diminuição das desigualdades socioeconômicas existentes. Estas podem ser consideradas as principais funções das políticas públicas, pelas quais o Estado, através de seus programas, busca estabelecer equilíbrio na sociedade. A garantia de acesso às políticas públicas, por sua vez, corresponde à realização do caráter solidário adotado pelo texto constitucional. Cumpre então ao Estado, incentivar os membros da sociedade a participar das políticas elaboradas, para que as mesmas atinjam seu objetivo final de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua o artigo 3º, inciso I, do texto constitucional. Neste contexto, importante salientar que o processo de elaboração de políticas públicas pelo Estado leva em consideração as desigualdades e os problemas e conflitos por ela gerados. Assim, o processo de criação de uma determinada política pública leva em conta a construção histórica da situação vigente. Além disso, fatores culturais e econômicos são analisados de forma profunda, pois é através deste trabalho de pesquisa que depende a obtenção do resultado pretendido. Höfling afirma que as políticas públicas não devem apenas oferecer serviços sociais como educação, mas, pelo contrário,

13

SILVA, Rogério Luiz Nery da. Políticas públicas e administração democrática. Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, jul. 2012. Disponível em . Acesso em 02. Fev. 2015.

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[...] as ações públicas, articuladas com as demandas da sociedade, devem se voltar para a construção de direitos sociais. Numa sociedade extremamente desigual e heterogênea como a brasileira, a política educacional deve desempenhar importante papel ao mesmo tempo em relação à democratização da estrutura ocupacional que se estabeleceu, e à formação do cidadão, do sujeito em termos mais significativos do que torná-lo “competitivo frente à ordem mundial globalizada”. 14

Assim, pode-se dizer que as políticas públicas têm o ideal imprescindível de estruturar a sociedade, e desta forma, torná-la mais consciente e participativa. Para tanto, é importante que a sociedade se envolva no momento de elaboração e de implementação das medidas idealizadas. Nesse sentido, para que as políticas públicas criadas se mostrem eficientes e alcancem os resultados esperados, é necessário o real empenho da sociedade, bem como dos demais envolvidos, no momento de sua elaboração, através da análise detalhada da conjuntura social e elaboração de perspectiva do resultado pretendido. No entanto, Soczek salienta que há um desafio a ser vencido: O desafio do século XXI não é o de lutar contra um governo, mas fazer um governo, intervir no jogo político para além de discursos simplificadores, simplistas e insustentáveis. Esta concepção se aproxima do conceito de empoderamento (empowerment) social. A prestação ou promoção de serviços sociais básicos tem-se transformado em um meio de empoderamento (com vistas à emancipação) e não em um fim em si mesmo. Nesse sentido, não se trata apenas de conhecer direitos e exercê-los, mas também de construir novos direitos e influir em políticas públicas e dentro da esfera do 14

HÖFLING, Eloisa de Mattos. Estado e políticas públicas sociais. Cad. CEDES. vol. 21. n. 55. Campinas, nov. 2001. Disponível em . Acesso em 31. jan. 2015.

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mercado. Essas ações pavimentam o caminho para um passo adicional, qual seja, mostrar que a diversidade de identidades e formas de vida culturais concretas existentes não são um obstáculo, mas condição de possibilidade para a concretização de uma política global que atenda à diversidade de interesses humanos.15

Entretanto, deve-se atentar ao fato de que, a garantia da dignidade humana dos indivíduos através da criação de políticas públicas gera custos elevados ao Estado. Dessa forma, é função do Poder Público elaborar um plano de custos para a aplicação dos recursos necessários. Isso porque, o sucesso de determinada política pública depende diretamente da gestão adequada dos recursos que lhe são destinados. Ressalte-se que, não raras vezes verificam-se casos de corrupção e desvio de verbas que inviabilizam a efetivação de projetos que foram cuidadosamente criados, impedindo o acesso dos mais necessitados às garantias mínimas para uma existência digna. Infelizmente, esse tipo de notícia compromete a seriedade das ações implementadas pelo governo e prejudicam a imagem do Estado perante o cenário internacional. A população, em razão disso, cada vez menos se sente inserida no contexto de participação social, pois lhe são cerceados os direitos mínimos para a garantia de sua existência. Esse distanciamento prejudica também a promoção de mudanças na estrutura da sociedade, pela falta de tutela de seus direitos. Neste sentido, destaca Watanabe, Porém, num país como o Brasil, com enormes dívidas sociais, com problemas de pobreza, de marginalização, de desigualdades sociais e regionais, de desenvolvimento nacional, de falta de moradia, de 15

SOCZEK, Daniel. Ongs e democracia metamorfoses de um paradigma em construção. Curitiba: Juruá, 2007, p. 150.

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distribuição desigual de rendas e outros mais, pretender que todos os direitos fundamentais sociais sejam implementados de uma só vez, inclusive com a intervenção do Judiciário, é um sonho idealista que esbarra em obstáculos práticos intransponíveis. Com gradualismo e sempre impulsionado pela “vontade de Constituição” e pela busca do “máximo possível”, certamente a situação do país se encaminhará cada vez mais em direção à realização desse sonho [...]16

De fato, ainda persiste uma certa dificuldade de implementação de políticas públicas eficientes, que permitam a realização prática das garantias constitucionais e facilite a diminuição das desigualdades sociais.

6.4 DIREITO À MORADIA

O direito à moradia fora consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948. No entanto, o referido direito somente foi positivado no ordenamento jurídico brasileiro após o advento da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que o incluiu no artigo 6º na Constituição Federal de 1988. Sendo assim, percebe-se que o direito à moradia no Brasil é elevado à categoria dos direitos fundamentais. Nesse sentido, é um direito dos mais elementares à manutenção da vida humana. Isso porque, ter um local digno e seguro para viver é uma via de acesso a diversos WATANABE, Kazuo. Controle Jurisdicional das Políticas Públicas – Mínimo existencial e demais Direitos Fundamentais Imediatamente Judicializáveis. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 213 - 224. 16

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outros elementos e serviços igualmente importantes para a manutenção da vida humana. Assim, tem-se que, tais garantias, em tese, estão vinculadas a uma estrutura mínima para a garantia da dignidade humana. Aliado a isso, o ato de morar também envolve aspectos culturais e afetivos, servindo de elo entre os indivíduos e como instrumento de manutenção da sanidade mental e da felicidade dos sujeitos. O ato morar e de reunir-se com os membros da família em um mesmo ambiente, é sobretudo um momento em que o indivíduo se concentra em si mesmo e em suas necessidades vitais. A ideia de habitação está diretamente ligada à renda, uma vez que o indivíduo tem melhor acesso à uma moradia digna quando dispõe dos recursos necessários para fazê-lo. Ter uma moradia, um endereço próprio, é forma de inclusão social, bem como de desenvolvimento. Isto faz com que os indivíduos deixem de ser números e tornem-se sujeitos. Nesse sentido, Wanderley afirma que a pobreza e a exclusão no cenário brasileiro são faces da mesma moeda. A autora explica o porquê de sua afirmação: As altas taxas de concentração de renda e de desigualdade – persistentes em nosso país, convivem com os efeitos perversos do fenômeno do desemprego estrutural. Se, de um lado, cresce cada vez mais a distância entre os “excluídos” e os “incluídos”, de outro, essa distância nunca foi tão pequena, uma vez que os incluídos estão ameaçados de perder direitos adquiridos. O Estado de Bem-Estar (que no Brasil já foi muito bem apelidado de Estado de Mal Estar) não tem mais condições de assegurar esses direitos. Acresça-se a isso tudo, a tendência política neoliberal de diminuição da ação social do Estado.17

17

WANDERLEY, Mariangela Belfiore. As artimanhas da exclusão análise psicossocial e ética da desigualdade social refletindo sobre a noção de exclusão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 25.

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No mesmo diapasão, Valente assevera que O desenvolvimento local, no contexto da busca de modos de vida sustentáveis, é um dos muitos caminhos alternativos no sentido da construção de um novo paradigma para a humanidade. É no local onde as pessoas vivem, no local em que vivem os meninos na e da rua, no local onde existem pessoas desempregadas, vivendo e sendo sustentados por suas famílias, sem teto, sem terra e sem comida. É no local onde os desnutridos e todos os excluídos podem deixar de ser estatísticas e recuperar seus rostos e nomes. É no local que decisões imediatas, sejam individuais ou coletivas, podem salvar ou mudar a vida de um indivíduo, de uma família ou mesmo de uma comunidade.18

Assim, o que se constata é que, o direito à moradia é uma garantia assegurada a todo cidadão, cabendo ao Poder Público elaborar medidas que visem a diminuição das diferenças sociais e melhor distribuição de renda, promovendo a dignidade como valor fundante dos direitos fundamentais. Nota-se que, o legislador não incluiu a dignidade humana no rol de direitos fundamentais, mas como fundamento do Estado. Assim, a dignidade é valor supremo agregador a todos os direitos fundamentais. No mesmo sentido, complementa a autora Helena Regina Lobo da Costa: A dignidade humana, no sentido de atributo da pessoa que se refere à sua singularidade, é o fundamento jurídico de inúmeras normas, além de conferir legitimidade ao Estado, por meio da limitação de seus poderes em face da pessoa.19

VALENTE, Flavio Luiz Schieck. Op., cit., p. 101 – 128. COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade humana: teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.33 18 19

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Por sua vez, Alexandre de Moraes define a dignidade humana como “um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”20 No mesmo entendimento, Canotilho discorre: Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. 21

Além da tutela constitucional, a dignidade humana vem sendo internacionalmente invocada na proteção dos direitos, conforme preceitua Barroso: [...] a dignidade humana, consagrada expressamente ou não no texto constitucional, tem se tornado um instrumento argumentativo poderoso para Tribunais Constitucionais e Cortes Supremas de diferentes continentes.22

Entretanto, o direito, bem como o pensamento jurídico estão há muito tempo amoldados além de fronteiras políticas e geográficas. Nesse contexto, percebe-se que, atualmente, as decisões superiores de diferentes países influenciam na jurisprudência uma das outras. 20

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. 21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 225. 22 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 29

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Na medida em que os direitos fundamentais exprimem os valores nucleares de uma ordem jurídica democrática, seus efeitos não podem se resumir à limitação jurídica do poder estatal. A dimensão objetiva decorre do reconhecimento de que os direitos fundamentais condensam os valores mais relevantes para determinada comunidade política. E, como garantia de valores morais coletivos, os direitos fundamentais não são apenas um problema do Estado, mas de toda a sociedade. Importante tecer o posicionamento de Sarlet: É justamente nesse sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade.23

Assim, é preciso abandonar a perspectiva de que a proteção dos direitos humanos constitui um problema apenas do Estado. Enfim, o doutrinador Daniel Sarmento discorre: Parece-nos que é plenamente aplicável ao ordenamento constitucional brasileiro a teoria dos deveres jurídicos de proteção aos direitos fundamentais, a qual agrega a tais direitos – mesmo os de feição individual – uma nova dimensão prestacional.24

A dimensão à qual o autor se refere é a objetiva, que estende a incidência dos direitos fundamentais sobre 23

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 49. 24 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014, p. 169

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novos campos e searas e amplia o espaço de aplicação das normas constitucionais. Assim, essas normas vão irradiar para praticamente todos os domínios da vida social. Inobstante este fenômeno, à primeira vista positivo, não se deve chegar ao ponto de utilizar todo o espaço de liberdade das instâncias sociais, limitando demais seus caminhos. Isso porque, cumpre manter tais caminhos abertos em uma sociedade que se diz ser democrática e pluralista. Ainda, importante salientar que, é objetivo do Estado Democrático de Direito instituir políticas públicas que assegurem o direito à moradia digna no Brasil, uma vez que esses programas têm como objeto reduzir as desigualdades sociais, garantindo o mínimo necessário para a sobrevivência humana. Ademais, o conteúdo jurídico da dignidade humana possui como núcleo material elementar o mínimo existencial, que se identifica como o mínimo necessário para uma sobrevivência digna. Dessa forme, se for retirado este conteúdo mínimo, tem-se uma verdadeira afronta ao princípio em tela. Isto posto, o mínimo necessário pode ser caracterizado como a garantia das condições mínimas para que o cidadão tenha condições de usufruir de todos os direitos fundamentais. Visando atender a grande parcela da população que não possui a garantia do direito à moradia digna, um dos programas sociais implementados pelo governo brasileiro atualmente, foi o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, que fornece habitação às famílias de baixa renda com custo reduzido. Sarmento, sobre o programa: O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social SNHIS foi instituído pela Lei Federal nº 11.124 de 16 de junho de 2005 e tem como objetivo principal implementar políticas e programas que promovam o acesso à moradia digna para a população de baixa renda, que

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compõe a quase totalidade do déficit habitacional do País. Além disso, esse Sistema centraliza todos os programas e projetos destinados à habitação de interesse social, sendo integrado pelos seguintes órgãos e entidades: Ministério das Cidades, Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, Caixa Econômica Federal, Conselho das Cidades, Conselhos, Órgãos e Instituições da Administração Pública direta e indireta dos Estados, Distrito Federal e Municípios, relacionados às questões urbanas e habitacionais, entidades privadas que desempenham atividades na área habitacional e agentes financeiros autorizados pelo Conselho Monetário Nacional.25

Importante elencar que, o Programa “Minha Casa, Minha Vida” regulamentado pela Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009 e posteriores alterações, traz a possibilidade de aplicação do princípio da igualdade àqueles que, de outra forma, não teriam acesso à habitação digna em razão de possuírem poucos recursos financeiros. É dever também dos Estados e Municípios, juntamente com a União, apresentar e colocar em prática um conjunto de ações integradas que trabalhem na defesa dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos. Ainda, é papel do Poder Judiciário, implementar ações que possibilitem o acesso à moradia digna que, por vezes é negado pelo Poder Público. Nesse sentido, há diversas formas de garantia. No tocante à proteção aos direitos fundamentais, existem meios diferenciados, podendo ser aplicáveis a forma preventiva e a forma reparadora. Ao se falar em tutela reparadora, tem-se que, quando os indivíduos têm seus direitos violados, cabe a aplicação da legítima defesa, desde que os atos não ultrapassem os limites da autotutela. 25

BRASIL. Disponível em http://www.cidades.gov.br/index.php/sistema-nacional-de-habitacaode-interesse-social-snhis.html. Acesso em 14 de abril de 2015.

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Já no âmbito da tutela preventiva, a proteção deverá ocorrer antes da lesão, ou antes de encerrar a violação aos direitos da personalidade. Nesse sentido, deve-se proteger as violações que produzem efeitos ao longo do tempo, visando cessar a perturbação já iniciada, mas que ainda perduram os efeitos. No mesmo diapasão, Elimar Szaniawski corrobora: A vítima terá por escopo obter, por parte do Judiciário, a cessação da execução da violação. A interdição da perturbação se dará através da tutela inibitória, que além de fazer cessar o atentado atual e contínuo, removendo os efeitos danosos, que são produzidos e que se protraem no tempo, possui natureza preventiva contra a possível prática de novos atentados pelo mesmo autor. 26

Nesse sentido, pode a tutela dos direitos fundamentais ser aplicada de forma antecipada, conforme previsto no Código de Processo Civil. Esta tutela preventiva tem como objetivo de assegurar o resultado prático através da tutela específica daquela obrigação, ampliando o rol de direitos para além dos obrigacionais, incluindo os direitos da personalidade. Assim, a tutela inibitória antecipada tem o escopo de impedir a ocorrência do dano a todos os que podem ser atingidos pelos efeitos de um ato atentatório aos direitos fundamentais, dentre eles o de moradia digna. No âmbito da tutela reparadora, o direito atuará quando já houve lesão a algum direito de personalidade, ou já existam efeitos danosos. Assim, poderá a lesão ser reparada através de indenização por danos morais, não excluindo de apreciação o dano material, em caso de coexistência. Isto posto, quando violados os direitos, cabe aplicação da responsabilidade civil, visando a reparação de danos sejam patrimoniais ou extrapatrimoniais. Tais 26

SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 248.

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indenizações estão dispostas na Constituição Federal e no Código Civil, assegurando efetivas soluções para cada caso concreto. Em caso de conflitos, a melhor solução para a controvérsia entre a preponderância da tutela dos direitos fundamentais está na aplicação do princípio da proporcionalidade. Assim, tal princípio deve ser aplicado no direito sempre que se verificar algum conflito entre direitos fundamentais tuteláveis em cada caso concreto. Acerca do princípio da proporcionalidade, o jurista Zulmar Fachin assevera: O princípio da proporcionalidade é apontado pela doutrina constitucionalista como critério solucionador da colisão de direitos fundamentais. Diante do caso concreto, feita a ponderação de valores entre os bens jurídicos em colisão, um deles deve ser protegido, em sacrifício ao outro. Mas ambos os bens permanecem íntegros no sistema jurídico e por eles protegidos. 27

Cabe também atentar para a proporcionalidade em sentido estrito. Alexy explica que “a máxima da proporcionalidade em sentido estrito – a terceira máxima parcial da máxima da proporcionalidade – expressa o que significa otimização em relação a princípios colidentes”.28 Entretanto, Murari aponta também que o ponto de equilíbrio para aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade é o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo este atuar como verdadeiro instrumento a balizar a aplicação daqueles.29 27

FACHIN. Zulmar Antonio. Informação, imagem e princípio da proporcionalidade. Revista Unopar Científica. Ciências Jurídicas Empresariais, v. 02 n. 01, Londrina, mar 2001, p. 192 28 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 593 29 MURARI, Marlon Marcelo. Limites constitucionais ao poder de direção do empregador e os direitos fundamentais do empregado: o equilíbrio está na dignidade da pessoa humana. São Paulo, LTr, 2008, p. 100.

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Por isso, conclui-se que, a utilização do princípio da proporcionalidade pode funcionar como um sistema eficaz e necessário para a obtenção e salvaguarda do equilíbrio entre valores fundamentais em conflito. 6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do estudo realizado, se pode constatar que a democracia é um importante instrumento de regulação do convívio social, na medida em que permite que os cidadãos, sem distinção de qualquer natureza, participem da construção da vontade social. Desta forma, os indivíduos podem contribuir para a construção do próprio Estado e interferir nas políticas que trazem reflexos às suas rotinas. No Brasil, o principal marco de defesa da democracia e dos direitos elementares do homem, deu-se com o advento da Constituição Federal de 1988. Em razão da natureza ditatorial do regime antecedente, o novo texto constitucional abarcou considerável gama de direitos fundamentais, com objetivo de eliminar os traços autoritaristas de seu ordenamento constitucional. Dessa forma, conferiu legítima proteção à dignidade humana e determinou a criação de mecanismos eficientes para a existência digna dos membros da sociedade. Como exercício de sua liberdade democrática, os cidadãos escolhem seus representantes, que devem preservar os interesses da sociedade e a dignidade da coletividade. No entanto, é notório que este ideal depende de uma consistente construção democrática, o que ainda não se verificou no Brasil, em razão da ainda recente implantação do regime democrático. A garantia do direito à moradia, neste sentido, consiste em uma ferramenta essencial à manutenção e à promoção da democracia, posto que consiste na garantia

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do mínimo existencial para a vida humana. Morar dignamente é uma das condições essenciais para que o indivíduo tenha uma vida digna. Ter vida digna, por sua vez, faz com que o cidadão possa contribuir para a construção da sociedade e de lutar pelas melhorias que julga necessário implementar. Por outro lado, a falta de moradia adequada é uma forma de aprisionamento social. Isto porque, o indivíduo que não tem acesso à uma habitação digna, não está minimamente inserido no contexto social. Assim, não é capaz de manifestar livremente suas vontades, nem de contribuir a contendo para a construção do próprio Estado. Por fim, pode-se concluir que, a implementação de políticas públicas que promovam o acesso à uma moradia adequada e digna a todos os cidadãos, como medida de redução das desigualdades sociais e ferramenta de promoção do desenvolvimento da sociedade, consiste em mecanismo essencial à existência real da própria democracia.

6.6 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução de Humberto Laport de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2013. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 7. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

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- VII O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO SOLUÇÃO DA CRISE DA “INFLAÇÃO” PENAL Camila C. O. Dumas* Thaís Aline Corazza**

7.1 INTRODUÇÃO

É de conhecimento de todos que o Direito não se esgota na lei, se apresenta também como um sistema composto de princípios. No entanto, não raro se verifica o descompasso entre o princípio e a lei. É nesse contexto que se justifica o acolhimento do princípio insignificância, uma vez que a lei é apenas um meio, e não o único, para se chegar ao fim, que é o Direito. A justificativa da relevância da utilização do princípio da insignificância está em excluir do mundo criminal condutas que causam ofensas mínimas ao bem jurídico tutelado, que nada ou pouco afetam o bem jurídico, salvaguardando e possibilitando maior dedicação na apuração e repressão das infrações consideradas graves. O Direito Penal tem por finalidade a garantia de quais condutas serão consideradas crime e a prevenção dos delitos a fim de manter a harmonia na sociedade.

*

Advogada, especialista em direito do trabalho pela faculdade INESP. Mestranda em Direitos da Personalidade no Centro Universitário de Maringá (Unicesumar). ** Advogada. Especialista em direito púbico pela Universidade Potiguar. Mestre em Direitos Direitos da Personalidade no Centro Universitário de Maringá (Unicesumar).

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No entanto, atualmente verifica-se que a pena de prisão não cumpre suas funções de ressocialização, reabilitação e nem ao menos sua função inocuizadora (de isolamento), devido às diversas fugas que ocorrem nos presídios. A realidade é que com presídios superlotados, ao invés de ressocialização ocorre a dissocialização, que produz efeitos gravíssimos na personalidade da pessoa. Dessa maneira, o crescente número de leis juntamente com o desmedido rigor penal, denota na atualidade um pensamento prevencionista, como se a cominação abstrata fosse, por si só, a solução para o grave problema da criminalidade no Brasil. A criação exagerada do número de leis é a manifestação da decadência do Direito Penal, e o uso abusivo da pena acaba por gerar a perda de sua função intimidadora. Assim, tal fenômeno tem sido chamado por alguns, dentre eles Francesco Carnelluti, como Inflação Legislativa, cujos efeitos são análogos à inflação monetária, vez que desvalorizam as leis penais e aviltam sua eficácia preventiva geral. Corroboram para a Crise da Inflação Penal alguns aspectos como a morosidade judicial, o acesso à justiça e a crise da pena privativa de liberdade, apresentando-se o princípio da insignificância como solução para tais problemas. O presente trabalho buscar apresentar possíveis soluções para desafogar o Judiciário, que perdido em meio aos processos não consegue analisar com ênfase cada caso em concreto, passando muitas vezes despercebidas grandes injustiças.

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7.2 A CRISE DA INFLAÇÃO PENAL

É cediço que a pena criminal é na verdade uma solução imperfeita, vez que não atinge sua verdadeira finalidade, por isso deve ser utilizada somente em ultima ratio. Conjuntamente com esse fato, “[...] a partir da segunda década do século XIX, as normas penais incriminadoras cresceram desmedidamente, ao ponto de alarmar os penalistas dos mais diferentes parâmetros culturais1.” Carl Joseph Anton Mittermaier2, em 1819, escreveu um trabalho detalhando ser um dos erros fundamentais da legislação penal de seu tempo à dilatação exagerada dessa legislação e a convicção do legislador de que a pena era o único meio de combate à violação dessas regras. A criação exagerada desse número de crimes era a manifestação da decadência do Direito Penal e da ordem jurídica em sua totalidade. Lopes3 afirma que esse fenômeno do crescimento desmedido do Direito Penal também ocorre no mundo anglo-saxão, como Estados Unidos, Canadá, entre outros, apontando que, [...] têm sido inúmeras as advertências sobre o esvaziamento da força intimidadora da pena como conseqüência da criação excessiva e descriteriosa de delitos. Francesco Carnelluti fala em inflação legislativa, expressão também empregada por Martinez Peres, sustentando que seus efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois ‘desvalorizam as leis, e no 1

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal: análise à luz da Lei 9.099/95: Juizados especiais penais e da jurisprudência atual. Op. cit., p. 76. 2 Carl Joseph Anton Mittermaierapud. Op. cit., p. 76. 3 Ibidem, p. 77.

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concernente às leis penais aviltam a sua eficácia preventiva geral’.

Na chamada Crise da Inflação Penal, de acordo com Eduardo Araújo da Silva4, [...] o Direito Penal se presta a tutelar todas as condutas sociais reprováveis, com inevitável desgaste de sua imagem perante seus destinatários. Em razão dos alarmantes índices de criminalidade e da inércia do Estado em gerar políticas públicas eficazes para contornar a crise social sem precedentes que assola o País, o Direito Penal aparece como o grande vilão, em razão da falsa expectativa criada quanto ao seu papel de sanear todos os problemas que afligem a sociedade.

Desse modo, conclui-se que a Crise da Inflação Penal decorre da atuação do Direito em tutelar todas as condutas sociais, desgastando a imagem da máquina estatal, uma vez que mover todo o aparato judicial em torno de um prejuízo de pequena monta é atitude que inviabiliza a tomada de decisões mais adequadas em fatos de maior relevância para a sociedade. Ainda, com o grande índice de criminalidade, a inércia do Estado em criar políticas públicas eficazes para contornar a crise e o abuso na edição das leis penais acaba por culminar na banalização do Direito Penal. 7.2.1 A morosidade judicial A preocupação hodierna do país tem sido a violência, uma vez que devido sua expansão desenfreada tem tomado contornos relevantes na sociedade, abarrotando o Judiciário com processos e levando a sua morosidade.

4

SILVA, Eduardo Araújo da. Intervenção mínima e falta de habilitação. Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 8, n. 97, p. 07, dez./2000.

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Sabe-se que a violência possui diferentes causas, no entanto, destaca-se entre elas a urbanização desordenada somada a miséria, ante a inércia Estatal5. Afirma Marcos Fernando da Silva Fontes6 que alguns pseudojuristas e políticos influenciados pelo movimento Lei e Ordem, apresentam como solução para o aumento do índice de criminalidade a criação de novos tipos penais, a pena de morte, o agravamento da pena e a redução das garantias processuais. No entanto, afirma que o resultado dessa política irracional levará ao êxodo rural e a uma explosão dos índices de criminalidade, A questão é complexa, mais impõe investimentos sérios na área social, tais como habitação, emprego, saúde, educação e segurança. A falta de investimentos nesses setores levou o cidadão a sentir os efeitos maléficos da ausência do Estado sobre suas vidas e seu patrimônio. É preciso ainda uma reformulação eficiente na legislação processual penal, que produza uma investigação policial célere, técnica e eficaz; que estruture adequadamente o Ministério Público, e que estimule seus membros a participarem efetivamente da investigação criminal com a polícia judiciária. [...] uma reforma das instituições policiais. [...] Esses investimentos e reformas são possíveis de serem realizados, bastando tão somente à vontade política e competência administrativa7.

A crise do Judiciário está relacionada ao grande desenvolvimento e às grandes transformações sociais, econômicas e políticas, ou seja, o Judiciário não conseguiu acompanhar as novas demandas trazidas pelas modificações na sociedade.

5

FONTES, Marcos Fernando da Silva. A criminalidade. O Estado do Paraná, Curitiba, 08 de dezembro de 2002, Direito e Justiça, p. 12. 6 Ibidem, p. 12. 7 Ibidem, p. 12.

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Em consequência disso, a sociedade vive insatisfeita com a Justiça, como um todo, uma vez que esta não evoluiu para lhe dar um resultado significativo, e ainda, demonstra-se uma morosidade e ineficiência dos órgãos estatais para a solução dos casos submetidos ao Poder Judiciário. No entanto, “A lentidão da Justiça não é privilégio do Brasil, mas problema universal, que atinge todos os países, desde os mais desenvolvidos até os mais pobres”.8 Por este motivo, Jader Marques9 expõe o seguinte pensamento, O estado penal pode (perdoem a infantilidade da metáfora), ser comparado a um elefante, por serem grandes, lentos, fortes, devastadores por onde passam, mas, principalmente, por serem dispensáveis em casos de ‘serviços leves’.

A Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004), acrescentou ao artigo 5º o inciso LXXVIII, da Constituição Federal que garante a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Ainda, o artigo 93, inciso XIII, do mesmo diploma, que afirma que o número de juízes será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população; a distribuição imediata de todos os processos (art. 93, inciso XV, da Constituição Federal) e por fim, a instituição da súmula vinculante (art. 103-A, da Constituição Federal). Esse avanço legislativo, segundo René Ariel Dotti10,

8

OLIVEIRA, Lauro Laertes de. Da morosidade judicial. O Estado do Paraná, Curitiba, 02 de outubro de 2005, Direito e Justiça, p. 08. 9 MARQUES, Jader. Op. cit., p. 68. 10 DOTTI, René Ariel. A razoável duração do processo. O Estado do Paraná, Curitiba, 20 de março de 2005, Direito e Justiça, p. 15.

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[...] tem fontes bem definidas e reflete a cultura dos tempos modernos: a Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948); a Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e as democráticas constituições de Portugal e Espanha. Surge, com um novo tribunal, uma nova esperança, porque a administração da justiça é um bem humano e social de valor inestimável e um gênero de primeira necessidade.

A tendência atual é buscar fórmulas ágeis para a solução dos conflitos submetidos à intervenção do órgão jurisdicional, Padrões obsoletos e formalismos exagerados de outrora, contudo, sentem-se acuados frente à marcha pelo ideal de uma justiça rápida e efetiva. Já não basta um pronunciamento célere do Judiciário às causas que lhe são submetidas à decisão, como quis o constituinte derivado elegendo como direito e garantia fundamental a razoável duração do processo [...]. Além de rápida, a prestação jurisdicional reclamada deve ser efetiva, porque nada adianta o velocista chegar em primeiro lugar se a medalha que tanto anseia lhe custa chegar às mãos11.

O aumento da ilegalidade assombra a sociedade, conjuntamente com o sentimento de impunidade, ante a morosidade judicial, culminando em uma nova faceta da justiça penal. Não se quer dizer que o Direito Penal não deva assumir os novos problemas surgidos, ao contrário, quer se afirmar que a solução para os problemas

11

BENITE, Claudionor Siqueira. Perspectivas para uma tutela jurisdicional rápida e efetiva. O Estado do Paraná, Curitiba, 20 de novembro de 2005, Direito e Justiça, p. 08.

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contemporâneos se encontra dentro do ordenamento jurídico e da própria sociedade. A ideia da aplicação do princípio da insignificância e do Direito Penal mínimo não pode ser afastada jamais. Não se visa com isso resolver a crise do Judiciário, mas simplesmente atenuá-la, oferecendo uma alternativa ao Poder Judiciário, com o escopo de torná-lo mais rápido e eficiente, a fim de que se possa desburocratizar este lento e sobrecarregado Poder da Justiça. 7.2.2 O acesso à justiça O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal garante que não haverá lei alguma capaz de excluir da apreciação do Poder Judiciário a oportunidade de apreciar lesão ou ameaça de lesão a Direito. Segundo Milken Jacqueline Cenerini12“Este artigo visa garantir ao cidadão o direito de provocar o pronunciamento jurisdicional acerca de um litígio. Ele visa garantir que não haverá restrições de acesso à justiça”. No entanto, no cotidiano a realidade que se tem é outra, Não raramente nos deparamos com barreiras difíceis de serem transpostas em virtude do elevado valor das custas processuais cobradas pela serventia judicial. O problema se estabelece, pois eis que, de um lado temos a Carta Magna assegurando o acesso à justiça, e de outro lado o cidadão, impossibilitado de exercer seu direito de ação em virtude desta barreira econômica, que não raro deixam de pleitear seus direitos por não terem condições de arcar com as custas processuais. Este tipo de problema atinge como sempre, aqueles que mais

12

CENERINI, Milken Jacqueline. Princípio do Acesso à justiça e sua efetividade. O Estado do Paraná, Curitiba, 19 de outubro de 2003, Direito e Justiça, p. 12.

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necessitam da oprimidos13.

tutela

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jurisdicional:

os

fracos

e

Ainda, tratando-se de um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXIV consagra que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, e é um dever deste Estado assegurá-la para todos, não para uns poucos, Ora, este outro preceito também não vem sendo cumprido. Digamos que, apesar de ter apoio da sociedade organizada, através das faculdades de direito ao oferecerem assistência jurídica gratuita com os alunos dos cursos de graduação supervisionados pelos advogados, este tipo de serviço, apesar de muito nobre não é capaz de atender toda demanda da população necessitada. É preciso também estabelecer e organizar a Defensoria Pública e captar bons profissionais interessados neste ramo de carreira jurídica14.

Nessa linha, denota-se que o acesso à justiça efetivamente não ocorre e a assistência gratuita prestada pelas universidades de Direito é incapaz de atender toda a demanda. Pode-se afirmar que sem a efetividade do acesso à justiça o Judiciário já se encontra abarrotado de processos, ademais se o princípio do acesso à justiça fosse exercido em sua plenitude. Por este e outros motivos, é que se deve buscar soluções imediatas para desafogar o Poder Judiciário, que perdido em meio aos processos, não consegue analisar cada caso com a ênfase que merecia, passando muitas vezes despercebidas grandes injustiças. O princípio da insignificância surge como uma esperança que, dentre outras, deverá lograr sucesso para 13 14

Idem, ibidem, p. 12. Idem, ibidem, p. 12.

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o bem da sociedade, trazendo uma justiça mais acessível, digna e mais perto de quem precisa. 7.2.3 A crise da pena privativa de liberdade Para o fenômeno social da criminalidade que assombra a sociedade muito se tem cogitado em aplicação de penas mais severas ou ainda aumento das tipificações penais. Porém, proclama Luís Guilherme Vieira15 que, Já temos leis. Leis até demais. Basta que elas sejam cumpridas, sem qualquer violação aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição, um dia chamada de Cidadã. A Criminalidade é um fenômeno social fruto da omissão e da incompetência do Poder Público.

A pena privativa de liberdade encontra-se em verdadeira decadência, uma vez que não cumpre mais as suas finalidades, não sendo mais eficaz na defesa da sociedade, nem garante os Direitos fundamentais assegurados constitucionalmente aos presos, visto que o sistema prisional brasileiro se encontra em precárias condições para garantir tais Direitos, levando à população ao seu total descrédito. Eduardo Araújo da Silva16 afirmou que [...] o abuso na edição de leis penais tem levado à banalização do Direito Penal, impondo-se revisitar as idéias iluministas, no sentido de delimitar a esfera de proibição legal, em consonância com a função preventiva da pena.

15

VIEIRA, Luís Guilherme. Lei para quê? O Estado do Paraná, Curitiba, 25 de maio de 2003, Direito e Justiça, p. 01. 16 SILVA, Eduardo Araújo da. Intervenção mínima e falta de habilitação. Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 8, n. 97, p. 07, dez./2000.

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203

Em consequência disto, argumenta Luís Guilherme Vieira17 que, O rigor penal, nascido sob o manto da vingança, não reduzirá a criminalidade. Ao contrário, a alimentará. Criminalidade e inflação não são resolvidas com lei. Se assim fosse, teríamos inventado a roda. Criminalidade e inflação não são eliminadas, são controladas.

No entanto, verifica-se que a pena, em alguns casos, é desproporcional à gravidade do crime, não cumprindo assim com o princípio da proporcionalidade das penas e dos delitos, como também legitima o desrespeito aos Direitos Humanos censurando o homem18. A pena de prisão, de acordo com Cézar Roberto Bitencourt19, se encontra falida, já que não consegue reduzir a criminalidade. Sua imposição também acarreta a superpopulação carcerária, porque não há um sistema penitenciário adequado, e sua aplicação não consegue recuperar ninguém, uma vez que a maioria esmagadora daqueles que passa pelo sistema prisional voltam a delinquir. Sepúlveda Pertence20 salienta que “A prisão não recupera ninguém e não evita crime nenhum. Só serve hoje para uma coisa: segregar a fera. Tudo o mais é ilusão”.21 17

VIEIRA, Luís Guilherme. Op. cit., p. 01. OLIVEIRA, Edmundo. Política criminal e alternativas à prisão. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 09. 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 143-144. 20 Sepúlveda Pertence apud OLIVEIRA, Marco Aurélio Moreira de. O direito penal e a intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 5, n. 17, p. 150, jan./mar./1997. 21 No mesmo sentido: “[...] considera-se que o ambiente carcerário, em razão de sua antítese com a comunidade livre, converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar nenhum trabalho reabilitador sobre o recluso”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 143). 18

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Corrobora Mário Elias Soltoski Júnior22, [...] é uma ilusão acreditar em panacéias, ditadas pelo fanatismo repressivo, como a pena de morte para diminuir a criminalidade, mesmo porque o Brasil ainda não logrou fazer com que os autores dos crimes submetidos às sanções rigorosas, já constantes da nossa legislação, fossem punidos. Isto acontece porque, na grande maioria dos casos, não se consegue seque descobrir a identidade dos responsáveis para puni-los. Portanto, como afirmou Beccaria há 240 anos, esta impunidade, e não a pretendida brandura das nossas leis, tem sido o grande estímulo para a prática dos delitos que inquietam nossa sociedade.

Verifica-se assim que a falha está no sistema estatal, sendo que nada adianta aumentarem as sanções criminais ou as tipificações delitivas com a finalidade de diminuir a criminalidade. Ao contrário, deve-se fazer com que os autores dos crimes sejam submetidos às sanções existentes no Direito Penal, no entanto, faz-se necessário que a pena privativa de liberdade seja imposta somente em ultima ratio, ou seja, só em relação aos crimes mais graves e aos delinquentes de intensa periculosidade, como ordenam os princípios constitucionais. Nos outros casos, deve ser substituída pelas medidas de penas alternativas se não forem solucionadas por outros ramos do Direito, esta é a posição das Nações Unidas evidenciada no IX Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado no Cairo (abril/maio de 1995)23. Nesse sentido, o princípio da insignificância traz como objetivo a evitabilidade da pena privativa de liberdade, uma vez que exclui a tipicidade penal, ou ainda 22

SOLTOSKI JÚNIOR. Mário Elias. Pena de morte: o mal pelo mal? O Estado do Paraná, Curitiba, 27 de março de 2005, Direito e Justiça, p. 09. 23 JESUS, Damásio E. de. Penas alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 12-13.

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a antijurididade ou a culpabilidade. De qualquer maneira, a pena não incidirá sobre aquele agente que praticou uma conduta com ofensa ínfima ao bem jurídico, podendo, no entanto, ser aplicado outro meio para reparar o dano. Se não se veja a assertiva do Relator Amilton Bueno de Carvalho24 ao analisar um caso concreto, Presente, então, a bagatela. Cuida-se de valor que dispensa a insurgência punitiva – ultima ratio da interferência controladora estatal – com que resta afastada a tipicidade da conduta. Não há justificativa para a movimentação de uma máquina cara, cansativa, abarrota, cruel, como o Judiciário. A banalização do litígio – leia-se atuação sem maior interesse social – o torna moroso e desacreditado, pois situações que realmente interessam ficam em segundo plano e concorrem com as inúteis, o que inviabiliza a realização do papel transformador atribuído ao Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito.

Logo, busca-se a solução para o conflito e a garantia aos Direitos fundamentais do ser humano através do princípio da insignificância e dos demais princípios fundamentais do Direito Penal (fragmentariedade, subsidiariedade, da intervenção mínima, entre outros). 7.2.4 O princípio da insignificância como solução para a Crise da Inflação Penal Como já ressaltado anteriormente, o princípio da insignificância pode servir como uma solução, ou ao menos, como uma atenuação para esse intenso problema da Crise da Inflação Penal, sobre a qual se discorreu. Uma observação que deve ser realizada, é com relação ao fato de que a intervenção mínima do Estado

24

Amilton Bueno de Carvalho apud MARQUES, Jader. Op. cit., p. 74.

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não pode ser confundida jamais com o abolicionismo penal. Sobre isso Eduardo Araújo da Silva25 afirma que, Enquanto a primeira vertente de pensamento pugna pela intervenção do Direito Penal apenas quando houver grave ofensa a bens jurídicos relevantes (vida, integridade física, patrimônio, liberdade sexual, etc.), a segunda linha filosófica defende a idéia da substituição do Direito Penal por vias informais de resolução dos conflitos de interesse social, privilegiando a negociação entre as partes na esfera civil ou administrativa.

Desse mesmo modo, o princípio da insignificância não tem a finalidade de negar a aplicação do Direito Penal, ao contrário, quer salvaguardá-lo para condutas que realmente mereçam a intervenção da máquina estatal, a fim de que se mantenha preservada a função de prevenção geral. Porém, ressalta-se que alguns doutrinadores propõem a aplicação do princípio da insignificância conjuntamente com outras medidas nas esferas cível ou administrativa, a fim de se evitar a total impunidade. Inesquecível e cada vez mais atual, a observação feita pelo jurista patrício Otávio Caruso da Rocha26 de que os Estados mais frágeis são justamente aqueles que editam um maior número de leis. De outra forma, o abuso legislativo de normas traz como consequência cada vez maior o seu descumprimento, e o Estado, embora com aparência forte e intervencionista, acaba se demonstrando incompetente para fazer cumprir suas próprias leis, e consciente de sua debilidade recorre a outras leis de cunho punitivo, distorcendo a destinação das mesmas para servirem como normas meramente instrumentais destinadas a se fazer

25

SILVA, Eduardo Araújo da. Op. cit., p. 07. Otávio Caruso da Rocha apud OLIVEIRA, Marco Aurélio Moreira de. Op. cit., p. 147. 26

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cumprir outras normas, e não a sua verdadeira destinação, que é a proteção dos bens fundamentais da sociedade27. Essa tendência de proliferação desordenada na criação de leis penais é responsável pela quebra da harmonia na legislação e na doutrina, culminando no descrédito do próprio poder punitivo28. Assim, A crise de anomia que atinge a sociedade nos dias de hoje, jamais será superada pela edição de leis penalmente draconianas. Somente soluções políticas educacionais respeitáveis e de longo alcance terão poder de proporcionar seriedade à ordem jurídica e paz à sociedade29.

Em razão do exposto, passou-se a adotar as denominadas sanções alternativas, uma vez que o sistema carcerário demonstra-se falido no sistema penal brasileiro, mas as penas alternativas, que já vêm sendo aplicadas por parte da doutrina, abrem vagarosamente perspectivas para a solução dessa crise30. O fim a que a norma penal se destina é o de interferir o mínimo possível na vida individual, respeitando o critério da necessidade. A liberdade do homem somente poderá ser afetada, quando o delinquente atingir um bem relevante para a tutela penal, uma vez que desrespeitada essa relação de adequação concretiza-se a injustiça31. Conclui Marco Aurélio Moreira de Oliveira32que, [...] há de se entender que o dever do Estado, ao estabelecer as normas penais, deve subordinar-se ao princípio da intervenção mínima, delimitado pelos critérios da necessidade e da realização da justiça substancial, punindo penalmente apenas aqueles que tenham atentado contra bens essenciais à vida social. 27

Ibidem. Ibidem, p. 149. 29 Ibidem, p. 150. 30 Ibidem. 31 Ibidem, p. 152. 32 Ibidem. 28

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O Direito Penal, devido ao princípio da intervenção mínima, não deve se ocupar com delitos ínfimos, sendo que decorre de a análise do injusto verificar se sua conduta pode ou não ser considerada típica. Em sendo considerada atípica, por ser penalmente insignificante, poderá receber tratamento em outro ramo do Direito que não o criminal, uma vez que esse atua somente quando estiver em jogo interesses socialmente relevantes. Ricardo Felipe R. Macieira33 assegura que “Buscase, com esse posicionamento, evitar que o tipo penal não se limite a um superficial e apriorístico juízo de subsunção. O comportamento humano, para ser típico, precisa, também, ser materialmente lesivo”. Verifica-se que o princípio da insignificância pode servir como uma solução, se não total, ao menos parcial, para a Crise da Inflação Penal tão difundida atualmente, uma vez que não busca negar a aplicação do Direito Penal, ao contrário, quer aplicá-lo aos casos que realmente mereçam o dispêndio de tempo e da movimentação da máquina estatal, para que não se perca de vista a função de prevenção geral da pena. E note-se que com a aplicação do princípio da insignificância como descriminalização judicial, não se estará desestimulando a honestidade. A desonestidade surge pela situação socioeconômica do agente. Dessa forma, não será a impunidade do fato irrelevante que fomentará o crime, mas a situação econômica do povo. A movimentação da máquina judiciária frente a casos de ínfima lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, embora técnica e legalmente correta, mostra-se prescindível. Não se diga que irá servir de estímulo ao indiciado para perseverança na criminalidade ou a outrem para a iniciação. Quem porventura resolver escolher este 33

MACIERIA, Ricardo Felipe R. Pareceres e trabalhos forenses: Princípio da Insignificância. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n.15, p. 358, jul./set./1996.

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caminho do submundo do crime, certamente sofrerá com a ação da justiça e com a aplicação dos instrumentos penais vigentes. Não se desconhece posicionamento em contrário, mas a melhor posição jurisprudencial para casos de ínfima ou inexistente lesão ao bem juridicamente tutelado pelo Direito Penal parece mesmo ser a interpretação in bonam partem. Não haverá de parte da sociedade, considerando o critério ou reflexão no plano do homo medius nenhum rechaço ou menosprezo a este posicionamento, uma vez que o Ministério Público e o Poder Judiciário, apesar do afogamento da sobrecarga processual e o excesso de trabalho, têm respondido à sociedade com soluções justas, equilibradas e sensatas em benefício do bem-estar geral comum.

7.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas vezes toma-se conhecimento de determinados fatos que verdadeiramente não coadunam com o senso de Justiça da sociedade, onde se move a máquina estatal, com dispêndio de tempo e dinheiro, em razão de ínfima ou inexistente ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado, onde apenas a aplicação das vias administrativas ou cíveis já teria servido de punição ao sujeito, e a ciência penal não quer atingir esses casos, vez que é utilizada somente como ultima ratio. Contudo, os operadores do Direito, muitas vezes arraigados às concepções do Positivismo, terminam por esquecer as regras básicas de interpretação e aplicam, ou pelo menos tentam aplicar, a mesma solução jurídica a casos totalmente diferentes.

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E utilização do princípio da insignificância como alternativa se afigura urgente hodiernamente, visto que com o passar dos anos, inúmeras leis foram criadas como ferramentas de controle social para a manutenção da ordem imposta, no entanto, o aumento dos índices de criminalidade e a inércia do Estado em sanear os problemas que afligem a sociedade culminaram na Crise da Inflação Penal, impondo-se a imprescindibilidade de delimitar a esfera da proibição legal em consonância com a função preventiva da pena. A Crise da Inflação Penal decorre da atuação do Direito em tutelar todas as condutas sociais, desgastando a imagem da máquina estatal, uma vez que mover todo o aparato judicial em torno de um prejuízo de pequena monta é atitude que inviabiliza a tomada de decisões mais adequadas em fatos de maior relevância para a sociedade. Ainda, com o grande índice de criminalidade, a inércia do Estado em criar políticas públicas eficazes para contornar a crise e o abuso na edição das leis penais, acaba por culminar na banalização do Direito Penal. A morosidade judicial se apresenta como um problema, que se deve ao desenvolvimento e as transformações sociais, econômicas e políticas, vez que o Judiciário não conseguiu acompanhar as novas demandas ocorridas culminando na insatisfação da sociedade com a morosidade e ineficiência dos órgãos estatais para a solução dos casos submetidos à sua apreciação. Por isso a aplicação do princípio da insignificância e do Direito Penal mínimo não devem ser afastados jamais. Não busca com isso resolver a crise do Judiciário, mas simplesmente atenuá-la, oferecendo uma alternativa com a finalidade de torná-lo mais rápido e eficiente, a fim de que possa desburocratizar este lento e sobrecarregado Poder de Justiça. O acesso à justiça efetivamente não ocorre e quando sobrevém não é capaz de atender a demanda. Porém, é de se observar que sem a efetividade, o Poder Judiciário já se encontra abarrotado de processos,

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imagine-se como estaria se o princípio do acesso à justiça fosse exercido em sua plenitude. O princípio da insignificância surge como uma esperança que, dentre outras, deverá lograr êxito para o bem da sociedade, trazendo uma justiça mais acessível e digna. O sistema prisional encontra-se em situação precária levando à decadência da pena privativa de liberdade, uma vez que não cumpre mais suas finalidades, não assegura os Direitos constitucionais garantidos aos presos e não é mais eficaz na defesa da sociedade, restando o total descrédito da sociedade. Assim, verifica-se que a falha está no sistema estatal, pois de nada adianta aumentar-se às leis e as sanções penais com a finalidade de diminuir a criminalidade, vez que a pena privativa de liberdade deve ser imposta somente como ultima ratio ou ainda deve ser substituída por medidas de penas alternativas caso o problema não seja solucionado por outros ramos do Direito. Nesse sentido, o princípio da insignificância tem como objetivo evitar a pena privativa de liberdade, uma vez que exclui a tipicidade penal, ou ainda a antijuridicidade ou a culpabilidade. De qualquer maneira, a pena não incidirá sobre aquele que praticou uma conduta com ofensa mínima ao bem jurídico, podendo, no entanto, ser aplicado outro meio para reparar o dano.

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9. REFERÊNCIAS

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OS ORGANIZADORES:

Prof.ª Dr.ª Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro: Professora do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas, graduação em Direito e Especialização EAD da Unicesumar. Pesquisadora da FUNADESP. Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) "Internacionalização do direito: dilemas constitucionais e internacionais contemporâneos". Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período de pesquisa no Mestrado em Integrazione Europea da Università Degli Studi Padova, Itália. Bolsista CNPq no mestrado e no doutorado. Especialista em Comercio Internacional y Inversiones, pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina. Especialista em Direito e Negócios Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (USFC). Aperfeiçoamento em Marchés Internacionaux pela École Supérieure dAgriculture dAngers, França. Bacharel em Direito pela Unicesumar. Advogada. Dentre as linhas de pesquisa estão: Direito Internacional (Público e Privado), Direitos Humanos, Desenvolvimento Humano e Econômico. Colaboradora do blog: pretextointernacional.blogspot.com

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Prof. Dr. José Francisco de Assis Dias:

Nasceu em Umuarama-PR; estudou Filosofia no Instituto Filosófico N. S. da Glória, Maringá-PR (1983-1985); e Teologia no Instituto Teológico Paulo VI, Londrina-PR (1986-1989), obtendo a validação no UNICESUMAR, em 2014. Obteve a Licenciatura Plena em Filosofia na Universidade de Passo Fundo-RS (1996). É mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano (1990-1992), com a monografia “DE ACQUISITIONE BONORUM”: na legislação particular da Diocese de Umuarama-PR. É mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano (2004-2006), com a dissertação “CONSENSUS OMNIUM GENTIUM”: o problema do fundamento dos direitos humanos no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). É doutor em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano (2003-2005), com a tese “DIREITOS HUMANOS: fundamentação onto-teleológica dos direitos humanos”. É doutor em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, com a tese “NÃO MATAR! o princípio ético não matar como imperativo categórico no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004)”. Atualmente: Professor Titular da UNICESUMAR, atuando na Graduação, Pós-graduação e Mestrado em Direito; também atuando no Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR. Parecerista de várias revistas filosóficas e jurídicas; e também do CONPEDI. Suas publicações versam principalmente sobre Filosofia e Ética, Direito Canônico e Direitos Humanos.

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Prof.ª Mithiele Tatiana Rodrigues: Mestranda em Direitos da Personalidade pela Unicesumar - Centro Universitário de Maringá-PR. Pós-graduada em Direito Processual Civil, Penal e Trabalhista (ITE/PP-SP - 2003) e Direito Ambiental (IDCC/Londrina - 2013). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente/SP - ITE - Instituição Toledo de Ensino (2002). Professora de Direito Ambiental e Constitucional na Faculdade Alvorada, em Maringá. Advogada em Maringá-PR. Endereço eletrônico: [email protected]

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Printed in Brazil Gráfica Viena Setembro de 2015 Capa: papel Tríplex 250g Miolo: Papel Off Set 75g Fonte: Arial Corpo: 8, 9, 10, 11

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