A DIMENSÃO DO DIREITO À CIDADE NA EXPANSÃO DO URBANO AMAZÔNICO: CONSTATAÇÕES EM CANAÃ DOS CARAJÁS/PA

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* Formando do curso de Arquitetura e Urbanismo/UFPA, bolsista do Laboratório Cidades na Amazônia, [email protected]
** Bacharel em Direito, Especialista em Direito Ambiental e Gestão Estratégica de Sustentabilidade/PUC-SP e mestranda em Direito Urbanístico/PUC-SP; [email protected]
1 CARDOSO, Ana Cláudia Duarte (org). O Rural e o Urbano na Amazônia: diferentes olhares em perspectiva. Belém: EDUFPA, 2006.
2 IBGE Séries Históricas
3 MACHADO, L. O. Urbanização e mercado de trabalho na Amazônia Brasileira. Cadernos do IPPUR, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 110-137, jan./jul. 1999.
4 BROWDER, John O.; GODFREY, Brian J. Cidades da floresta: urbanização desenvolvimento e globalização na Amazônia Brasileira. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2006. 384p.
5 OLIVEIRA, Francisco. A questão regional: a hegemonia inacabada. Estudos Avançados. v. 7, n. 18. São Paulo, maio/agosto, 1993. p. 43-63.
6 Carta de Atenas, 2003.
7 BECKER, B. K. Amazônia. São Paulo: Ática, 1990.


8 BANDEIRA, Alex de O. Alterações Sócio-espaciais no Sudeste do Pará: a mudança de terra rural para solo urbano na cidade de Canaã dos Carajás.

9 CORRÊA, R. O espaço urbano. São Paulo: Ed. Ática, 1999.

10 LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5 ed. São Paulo: Centauro, 2001.
11 NALINI, José Renato. Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011
12 CARDOSO, Ana Cláudia Duarte. O problema das escalas e o desafio do urbano na Amazônia Oriental. In: Almir Reis. (Org.). Arquitetura, Urbanidade e Meio ambiente. 1ed. Florianópolis: Editora da USFC, 2011, v. 1, p. 67-87.

13 DIAGONAL URBANA. Relatório Técnico da Revisão do Plano Diretor Participativo de Canaã dos Carajás. Canaã dos Carajás, 2011.

14 DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006
15 Art. 33 e seguintes da Lei n. 162/2007, que institui o Plano Diretor de Canaã dos Carajás.
16 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2010
17 Os referidos preceitos vêm descritos e desenvolvidos no Estatuto da Cidade, documento datado de 10 de julho de 2001 que desenvolve seu texto apontando diretrizes e instrumentos de política e desenvolvimento urbano. A perceber o texto contido em seu artigo segundo:
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; (...)



VIII CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO
INFRAESTRUTURA, SERVIÇOS URBANOS E DIREITO À CIDADE


A DIMENSÃO DO DIREITO À CIDADE NA EXPANSÃO DO URBANO AMAZÔNICO: CONSTATAÇÕES EM CANAÃ DOS CARAJÁS/PA

Lucas Souto Cândido*
Mariana Souza Villacorta**

Resumo: O presente trabalho busca, por meio de uma releitura de autores que tratam da realidade amazônica e do direito à cidade, assim como lançando mão de informações colhidas em campo, desenvolver um diagnóstico acerca da situação de expansão urbana em cidades amazônicas e a provisão de infraestrutura decorrente de tal processo, tendo como principal objeto de análise a cidade de Canaã dos Carajás, no Pará. Observou-se que em um primeiro período as estratégias de intervenção no território amazônico, guiadas por ações de controle no âmbito federal, pouco levaram em consideração o espaço intra-urbano, agindo de forma a invisibilizar atores e práticas tradicionais. Atualmente, a entrada de um novo agente no jogo das cidades – a saber, o capital imobiliário – cristaliza problemáticas pretéritas no que diz respeito a questão do direito à cidade e a oferta de infraestrutura. Conclui-se, por fim, que o distanciamento entre as ações do Estado e a realidade local origina um urbano com alto grau de precariedade e improvisação, negando ao cidadão qualquer direito real à cidade.

Palavras-chave: Cidades amazônicas; crescimento urbano; infraestrutura; Direito à Cidade.

INTRODUÇÃO

Durante a segunda metade do século XX, a Amazônia se conformou como ambiente de fortes intervenções a nível federal que, por meio de estratégias de planejamento macrorregional, voltadas para a integração territorial e econômica da região ao país, criaram um ambiente de fortes mudanças no âmbito das cidades. É dentro deste contexto, originado de um assentamento rural e palco de um grande projeto de extração mineral, que surge o município de Canaã dos Carajás, utilizado aqui com o objetivo de exemplificar a realidade das cidades amazônicas e os impactos decorrentes do crescimento instantâneo na oferta de infraestrutura e no direito à cidade.
O artigo se estrutura em duas partes: primeiramente faz-se uma releitura histórica dos processos enfrentados pela Amazônia no âmbito das ações do Estado desenvolvimentista dos anos 1960 em diante. Em seguida, apresenta-se o município de Canaã dos Carajás que se, em um primeiro momento, se estrutura sob uma lógica da produção agropecuária, vê sua realidade mudar com a implantação de grandes projetos de mineração, a exemplo do que ocorreu nas cidades amazônica no século passado.
Por fim, conclui-se que a inserção de novos agentes, que carregam consigo um ritmo e intensidade de transformações discordantes da realidade local, assim como ações do Estado desconexas com esta realidade, cristalizam práticas de construção de cidades sem infraestrutura adequada, e onde o direito à cidade descrito por Lefebvre é completamente obliterado.

O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO E EXPANSÃO DA REDE URBANA AMAZÔNICA

As fissuras atuais no ambiente urbano amazônico somente se mostram visíveis à luz de uma compreensão histórica dos diferentes processos que perpassaram a região. Tida como área de "vazio populacional" até meados do século XX, a partir desse período, o território passou por processos que alteraram profundamente as dinâmicas regionais, transformando-o no principal palco das ações de mudanças econômicas e espaciais do país.
Até os anos 1960, a região amazônica era dominada por uma rede urbana dendrítica, onde prevaleciam práticas extrativistas e transações de trocas entre pequenos produtores ribeirinhos, além de um urbano caracterizado muito mais como ponto de apoio ao controle do território e oferta de pequenos serviços do que como articulador do desenvolvimento regional1. A chegada dos militares ao poder deu início a uma série de políticas públicas federais, que sob a sombra do discurso "integrar para não entregar", delegou à região Norte o papel de absorver os excedentes populacionais que migravam em massa para o Sudeste à época, e que serviriam como mão de obra barata para o propósito de industrializar a Amazônia por meio de grandes projetos de mineração, agropecuários e de geração de energia.
Em função disso, a região enfrentou um crescimento populacional sem precedentes, com o surgimento de diversos núcleos populacionais, alguns deles em forma de novos municípios, além do enfraquecimento da população rural. Em números, a região Norte passou de 153 para 203 municípios entre 1960 e 1980, sendo 23 desses apenas no estado do Pará2. Para se ter uma ideia mais geral, o quadro a seguir mostra uma comparação do crescimento populacional, nos meios urbano e rural, entre os números brasileiros, regionais e estaduais.

Tabela 01 – População total, por região e situação de domicílio.
 
Brasil
Região Norte
Pará
 
Urbana
Rural
Urbana
Rural
Urbana
Rural
1960
32.004.817
38.987.526
1.041.213
1.888.792
630.672
920.263
1970
52.904.744
41.603.839
1.784.223
2.404.090
1.037.340
1.159.732
1980
82.013.375
39.137.198
3.398.897
3.368.352
1.702.403
1.804.909
1991
110.875.826
36.041.633
5.931.567
4.325.699
2.609.777
2.571.793
2000
137.555.550
31.835.143
9.002.962
3.890.599
4.116.378
2.073.172
Fonte: IBGE Séries Históricas

Machado3 defende que a atuação direta do Estado na criação de novas cidades em regiões de ocupação pioneira, contudo, não se caracteriza como uma singularidade da Amazônia dos anos 1960, mas que a sua peculiaridade advém do surgimento quase instantâneo desse urbano, que é simultaneamente condicionante e produto do sistema de povoamento da região.
Em um comparativo com a Carta de Atenas de 1933, é possível notar uma semelhança de contexto, onde a primeira é fruto do crescimento urbano nas cidades europeias pós Revolução Industrial, enquanto que na região amazônica é possível observarmos o crescimento das cidades em torno de grandes projetos, mineradores e agropecuários, atraindo população em busca de oportunidades. No texto do referido documento consta que "a cidade é só uma parte do conjunto econômico, social e político que constitui a região".
Pode-se dizer, então, que as políticas de desenvolvimento regional para a Amazônia se moldaram em um ambiente de fortes dualidades. Isso porque apesar de considerarem as potencialidades regionais e melhorarem as condições de acesso ao território, essas políticas foram controladas por empresas nacionais e multinacionais do Brasil pós-guerra, agindo de forma a agravar disputas de terra, tensões especulativas e até mesmo o separatismo regional4 5. Dessa situação se introduziram processos e atores exógenos em uma região de forte caráter tradicional, invisibilizando agentes e práticas locais.
Tais processos, pautados em desenvolver a região sem se importar com a sua identidade, caminham na contramão dos preceitos internacionais trazidos pela Nova Carta de Atenas, que valoriza a importância da identidade local para a construção de uma cidade coerente e sustentável.
A identidade pessoal dos cidadãos está muito relacionada com a identidade da sua cidade. Ora, as dinâmicas que resultarem do fenômeno da imigração urbana contribuirão para novas e mais fortes identidades urbanas. Cada cidade desenvolverá a sua própria alquimia social e cultural – resultado da sua história e das formas do seu desenvolvimento.6

Dentre as ações do Governo Federal para a região, encontram-se os PND I e II, o POLAMAZÔNIA, o Projeto Grande Carajás, além de obras de infraestrutura, como a construção das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, entre outras, e da hidrelétrica de Tucuruí, investimentos de base de apoio para as novas indústrias.
Tais elementos se caracterizaram como fortes estímulos para a estruturação das cidades na região. Becker7 elucida sobre as ações do Estado na expansão da rede urbana na Amazônia argumentando que este age usando as cidades como base logística para o que chama de "malha programada", que seria a imposição de uma malha de duplo controle, técnico-político, formada por todos os tipos de conexões e redes. As principais estratégias utilizadas pelo Estado seriam: i) implantação de redes de integração espacial; ii) subsídios ao fluxo de capital e indução dos fluxos migratórios; iii) superposição de territórios federais sobre os estaduais.
A primeira estratégia se refere à integração por meio de todos os tipos de redes, com os investimentos públicos se direcionando, principalmente, para a construção de grandes eixos viários, tais como as rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém; investimentos nas telecomunicações por satélites, que serviriam o propósito de difundir os valores modernos através da TV, e da rede telefônica; estruturação da rede urbana, onde as novas empresas se sediariam; e, por fim, a rede hidroelétrica, condição essencial para a implantação das novas indústrias (ibid).
A segunda estratégia faz referência, de um lado, aos incentivos fiscais e creditícios dos quais o Estado lançou mão para direcionar o fluxo de capital do Sudeste e do exterior para a Amazônia, por meio de bancos oficiais, como o Banco da Amazônia S.A (Basa), e por outro, ao incentivo à migração em massa, por meio de diversos mecanismos, objetivando a construção de um mercado de mão de obra local (ibid).
A terceira e última estratégia trata da federalização dos territórios estaduais criando, através de decretos, áreas sobre os quais o Governo Federal exercia controle absoluto no uso das terras. Primeiramente, por meio da Lei 5.173 de 27 de outubro de 1966, extinguiu a Superintendência do Plano de Valorização Econômica na Amazônia (SPVEA) e instituiu a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). No mesmo documento, também, apresentou o conceito de Amazônia Legal, que se sobrepôs à região Norte, e, em seguida, tomou posse dos 100 km de ambos os lados de todas estradas federais, sob a justificativa de distribuir esses terrenos para a colonização de camponeses. Somente para o Estado do Pará isto significou uma perda de 66,5% do território para o controle federal (ibid).
Nessa linha de pensamento, o Estado se configura como o principal responsável pela mutação da ordenação espacial no povoamento das décadas seguintes, em razão da rápida transição do padrão de ocupação vinculado aos rios para uma ocupação atrelada as estradas pioneiras3. A medida em que os grandes eixos viários invadiam as áreas de terra firme, as frentes de povoamento adentravam a floresta, muitas das vezes já sob a forma de cidades. Em razão disso, os assentamentos mais antigos, situados a margem dos rios, começaram a perder sua importância histórica como ponto de interstícios comerciais, a exceção dos casos de cidades ribeirinhas que também foram cortadas pelos novos eixos de circulação terrestre (ibid), tais como Marabá e Santarém, que viram aumentar sua importância regional.
Além disso, o crescimento populacional, principalmente da massa migratória informal, atraída pela ilusão do ganho fácil advindo dos maciços investimentos na região, também agiu de forma direta sob o papel das cidades na Amazônia. O rápido crescimento urbano (ver tabela 1) transformou a terra, até então tida como forma de subsistência, em mecanismo de barganha cobiçada pelos migrantes do campo e da cidade; o valor de troca se sobrepõe ao de uso, que inicialmente orientava o nativo. Tais processos agem ensejando disputas fundiárias e cristalizando processos de crescimento que se desenvolveram sobre bases de desigualdades pretéritas.
Pode-se, portanto, afirmar que as políticas desenvolvidas durante a década de 1970 não incorporavam o espaço intra-urbano, tido apenas como um polo dentro do processo de regionalização em voga à época, aos processos de progresso e estruturação das redes urbanas¹, paradigma proveniente da fragilidade das estruturas governamentais locais como instâncias políticas, que se resumiam a executoras de programas pouco eficientes.
As mudanças no modelo econômico também tampouco se caracterizaram em melhorias no território. O caráter exploratório do capitalismo industrial não tomou o espaço intra-urbano amazônico como locus de aplicação do capital que agora circulava na região – os centros de decisão, assim como a destinação dos lucros, eram externos – nem como alavanca para o desenvolvimento local, convergindo para a coexistência entre espaços de forte acumulação capitalista (ex.: cidades sedes da atividade de mineração) e ambientes tradicionais de baixo acúmulo de capital (ex.: comunidade ribeirinha), caracterizando-se dentro do processo de expansão dos valores de produção industriais8.
Nesse sentido, Machado3 aponta dois tipos de ordem para o surgimento da rede urbana amazônica do período. Em primeiro lugar, teríamos uma organização intencional, direcionada por intervenções governamentais, de empresas e instituições, e por outro, tem-se a ordem espontânea, suscitada por ações do mercado (de terras, de trabalho, de bens e serviços etc), pela ação das estruturas sociais coletivas e dos próprios indivíduos.
Por essa perspectiva e trazendo o viés da coerência econômica da Nova Carta de Atenas, entende-se a correlação entre especialização e globalização, por meio de tecnologias e investimentos na região amazônica. Pode-se, para tanto, reconhecer o Estado e a abertura das fronteiras tradicionais amazônicas para o capitalismo industrial como os principais fatores de indução das precariedades na expansão urbana da Amazônia. O resultado é a produção de um espaço urbano que segue a tendência capitalista, comportando-se de maneira fragmentada e articulada, ao mesmo tempo que se configura como um produto social9, e vai na contramão a referência do documento de 2003, que aponta o sucesso das cidades que tiram vantagem econômica cultural de suas raízes e tradições.
Trata-se, nesse amazônico, de um espaço profundamente desigual e mutável, no qual a ação de diferentes agentes se espacializa de forma desequilibrada, normalmente conduzida pelos interesses do agente dominante, dentro de um marco jurídico que as regula, mas que, no entanto, não age de forma neutra (op. cit). Neste contexto, Cardoso¹ reforça que:

As novas 'cidades' não despertam o envolvimento afetivo de seus habitantes, nem possuem uma identidade local, todavia tornaram-se lugar de concentração de mão-de-obra para a nova produção rural (indústria madeireira, agroindústria) ou local de oportunidade para o trabalhador rural expulso do campo e para os forasteiros aventureiros atraídos pelas frentes de trabalho (p. 67).

As cidades amazônicas e, em especial, as paraenses que se formam nesse período seguem em oposição aos ensinamentos de Lefebvre10, que defende a ideia de cidades como organismos com características, objetivos e identidades distintas. E, por conta disso, o crescimento saudável desse urbano depende do reconhecimento de cada um desses aspectos, sob pena de se produzir uma cidade que cresce sem qualquer ligação entre seu entorno e aqueles que ali habitam.
A respeito do que enuncia Nalini11 quando diz que "a Administração Pública tem obrigação de restituir a cidade ao cidadão", busca-se aqui repensar o conceito de planificação urbana, a forma como se molda a cidade e o controle social a ser reconhecido na região em questão, uma vez que a cidade deve servir às pessoas e não apenas o capital que lhe deu origem.

EXPANSÃO URBANA E PROVISÃO DE INFRAESTRUTURA EM CANAÃ DOS CARAJÁS

Como dito anteriormente, as ações do Governo Federal foram essenciais para o surgimento de novas cidades na Amazônia, assim como para a expansão dos núcleos pré-existentes. Ao contrário do que Cardoso12 apontou como o padrão das cidades até os anos 1960, com as mudanças induzidas pelo Estado, o urbano passou a exercer o papel de mediador sócio-político-econômico da região, caracterizando-se como forte polo de atração populacional, em decorrência da melhor oferta de bens e serviços em seu território.
As pequenas e médias cidades passaram a apresentar maiores índices de crescimento que os grandes centros e, segundo os dados do Censo 2000, detêm 70% da população regional. Cidades históricas, como Tucuruí, que viu sua população aumentar em mais de 80% entre os anos de 1970 e 1980, e Parauapebas, que já nas informações do seu primeiro censo, em 1991, apresentava uma população de 51 mil habitantes, são fortes exemplos disso.
Dentro desse contexto de grandes transformações regionais surge o município de Canaã dos Carajás, recorte de estudo deste trabalho. Proveniente de um desmembramento do município de Parauapebas, o surgimento oficial de Canaã dos Carajás foi outorgado em 5 de outubro de 1994, por meio da Lei Estadual nº 5.860. Ele se situa na porção sudeste do Estado do Pará (figura 1), integrando a microrregião de Parauapebas, localizada na mesorregião Sudeste Paraense (IBGE), assim como fazendo parte da Região de Integração de Carajás, segundo regionalização adotada pelo governo do Estado. Além da sede municipal, o município é constituído de seis vilas rurais, a saber: Serra Dourada, Bom Jesus, Feitosa, Ouro Verde e Morzartinópolis (que atualmente se encontra em processo de desmonte em razão das atividades da mina de ferro S11D), além de uma grande área inserida na Floresta Nacional de Carajás (figura 2).
A região de Carajás se conformou como um dos principais pontos de intervenção do Estado desenvolvimentista durante a década de 1980 em razão de sua grande riqueza mineral, através de ações do Projeto Grande Carajás, viabilizadas por intermédio da então estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Em consequência disso, os municípios da região enfrentaram processos de expansão precoce da malha urbana, baixa oferta de infraestrutura e, mais recentemente, uma onda de especulação imobiliária que perpetua a evolução do crescimento deficiente das cidades.

Figura 1 – Localização do município Figura 2 – Configuração das vilas rurais e projetos de mineração
Fonte: pt.wikipedia.org


Fonte: Diagonal Urbana, 2011. Adaptação: Lucas Cândido

A produção do espaço urbano em Canaã dos Carajás

A ocupação do território de Canaã dos Carajás teve início ao fim dos anos 1970, mas foi somente em 1982 que esse movimento tomou corpo em decorrência da instalação na área de um projeto de colonização dirigida pelo Estado, por meio do GETAT (Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins), sob a premissa de minimizar os conflitos fundiários na região conhecida como "Bico do Papagaio", assim como servir de suporte à oferta de alimentos básicos, tais como arroz, feijão e milho, para o Projeto Grande Carajás13. Entretanto, apenas três anos depois, a extinção do órgão desencadeou o declínio dos auxílios técnicos e financeiros oferecidos aos colonos. Estes, por sua vez, como forma de sobrevivência, se viram obrigados a vender suas terras para produtores mais capitalizados, iniciando um processo de concentração de terras que abriu portas para o declínio da agricultura e do controle do Estado, favorecendo a ascensão da pecuária extensiva praticada em latifúndios. Estima-se que do total de 1.551 famílias assentadas, somente 816 receberam o título definitivo da terra (52,61%), e apenas 10% permaneceram em suas terras na década de 1990 (ibid).
Essa expansão urbana que se construiu a base de grandes latifúndios, juntamente com a gestão ineficiente dos recursos destinados aos pequenos produtores, e o incentivo ao capital privado através da SUDAM, configurou um padrão de crescimento desigual no acesso à terra e na distribuição de infraestrutura dentro de Canaã dos Carajás, obliterando as demandas socioambientais decorrentes de tal processo.
Agravando a situação, a partir dos anos 2000 a cidade passa por um novo ciclo de grandes mudanças em função da entrada de novos projetos minerais da mineradora Vale S/A, que consigo carregam dinâmicas de produção capitalista, além de práticas, estratégias, interesses e padrões de consumos baseados no paradigma urbano/industrial, sobrepondo-se à realidade rural pré-existente.
O grande fluxo de investimentos – no caso do projeto de extração de ferro S11D, o maior operado pela Vale, os números ultrapassam $17bi e preveem a criação de até 30 mil empregos – gera uma expectativa de desenvolvimento de alto teor especulativo e, a exemplo do que ocorreu durante o Governo Militar, engendra altas taxas de crescimento, principalmente no que diz respeitos às populações de baixa renda e sem qualificação profissional, que migram em busca de melhores condições de vida. Segundo dados do IBGE (2010), o município passou de 10.922 habitantes em 2000 para 26.716 em apenas dez anos.
A despeito das semelhanças com processos de crescimento urbano pretéritos, essa nova fase de desenvolvimento é marcada pela entrada de um novo agente na dinâmica urbana: o capital imobiliário. Os latifundiários, que durante a década de 1990 se dedicaram à pecuária, resolvem diversificar seus investimentos e, apostando na bolha especulativa que recobre a cidade, apostam no ramo da produção fundiária à espera de suprir a demanda habitacional dos novos moradores8.
O rebatimento disso no plano material é a ampliação prematura da mancha urbana através de grandes loteamentos residenciais, sem, contudo, a devida ocupação necessária para se custearem as despesas de manutenção da infraestrutura. Por outro lado, a população de baixa renda, sem condições de arcar com o alto preço da terra formal, se instala nas áreas preteridas pelo capital – historicamente, áreas de vulnerabilidade ambiental, tais como margens de córregos e encostas de morros – intensificando processos de degradação ambiental e questões de saúde pública.
Com o crescimento da especulação imobiliária e os custos crescentes advindos dessas práticas, a ilegalidade acaba por ter um ranço institucional11. Organizada e espontânea, a tendência de ocupação de regiões periféricas ou de áreas vulneráveis é se apossar daquele terreno sem título de propriedade. Como Davis14 esclarece, "A terra periférica 'sem custo' tem sido muito discutida como segredo mágico do urbanismo do Terceiro Mundo: um imenso subsídio não planejado aos paupérrimos".

Figura 3 – Relação perímetro urbano x mancha urbana. Figura 4 – Relação mancha urbana x áreas de baixa
demanda de infraestrutura.

Fonte: Google Maps (2015), levantamento de Fonte: Google Maps (2015), levantamento de
campo (2015). Elaboração: autores. campo (2015). Elaboração: autores.

A espacialização e quantificação dos dados nos permite apreender que além de um perímetro urbano exacerbado em relação à mancha urbana (figura 3) – problemática derivada do interesse econômico dos latifundiários na transformação de terras rurais em urbanas que, a fim de se adequar às exigências da legislação no que tange o parcelamento da terra15 exerceram, portanto, forte pressão sobre o poder político para sucessivas revisões do perímetro urbano – que, por sua vez, se expande sob a lógica especulativa do capital imobiliário, visto que as áreas vazias ou de baixa ocupação, em grande parte frutos de loteamentos privados, representam cerca de 42% do total da mancha urbana (figura 4). Em suma, trata-se de quase metade de uma cidade que não trabalha de maneira orgânica na renovação dos recursos para manutenção dos bens comuns.
A análise dos valores fundiários (gráfico 1) após a entrada da mineradora corrobora essa situação. Juntamente com a ineficiência da gestão municipal em gerir tais processos, a dilatação do preço da terra restringe acessos a espaços públicos, serviços e condições de infraestrutura de boa qualidade ao circuito superior e a fronteira corporativa, excluindo a maior parte da população, e relegando a oferta desses bens à escala privada, indo totalmente na contramão do estabelecido no Plano Diretor da cidade que estabelece o "direito à cidade para todos, compreendendo o direito à terra, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer" (art. 2, III).

Gráfico 1 – Curva com o crescimento do preço médio dos lotes urbanos para o período de 2000 a 2014.

Fonte: Bandeira, 2014.

A despeito dos discursos das empresas e dos governantes interessados, a atividade mineradora cria um mercado monopsônico, ou seja, fortemente dependente de uma única fonte, criando um ciclo vicioso de ineficiência das municipalidades em ofertar serviços públicos. Em Canaã dos Carajás, esses processos atrelaram à Vale o papel de principal provedora de infraestrutura urbana.
Dentre as primeiras ações da mineradora no ambiente intra-urbano do município, quando da implantação do projeto de extração de cobre da Mina do Sossego, a partir de 2002, está a implantação de um bairro infraestruturado para os seus trabalhadores, o Jardim das Palmeiras. Contudo, ao contrário dos modelos das company-town recorrentes nos grandes projetos da década de 1970, a empresa decidiu por articular esse novo núcleo ao tecido urbano já existente. Se por um lado evitou o isolamento da área, por outro, criou premissas para a aceleração de processos de valorização fundiária, restringindo a ação do Estado a estas áreas de interesse político8, reforçando processos de injustiças sociais em voga desde o surgimento do município.
Segundo relatório emitido pela Vale em razão dos dez anos de presença da empresa no município, em 2014, os investimentos são inúmeros. São cerca de R$31 milhões em melhorias no fornecimento de energia; R$5,5mi de investimentos na segurança; R$9 mi em novas verbas para a educação; além de R$5 mi para a saúde, assim como para obras e projetos de saneamento na cidade.
A análise dos dados corrobora o fato de que a entrada da mineradora no município acarretou em melhorias nos indicadores de provisão de infraestrutura, refletindo inclusive no aumento do IDH municipal de 0,456 em 2000 para 0,673 em 201016, passando de um valor considerado baixo para um valor médio.

Tabela 2 – Provisão de infraestrutura
Domicílios com acesso a rede de água (%)
Domicílios com acesso ao sistema de esgoto (%)
Domicílios com acesso à coleta de lixo (%)
2000
2010
2010
2000
2010
Rede Geral
Rede Geral
Rede geral
Outra forma
Não aplicável
Coletado
Outro destino
Coletado
Outro destino
2,34
30,8
21,3
76,01
2,7
23,36
76,64
84,21
15,79
Fonte: Censo IBGE 2000, 2010.









Figura 5 – Escolas do município de Canaã dos Carajás e suas respectivas áreas de influência.

Elaboração: autores.

Figura 5 – Equipamento de saúde do município de Canaã dos Carajás e suas respectivas áreas de influência.


Elaboração: autores.

Na tabela 2 podemos perceber números bem expressivos quanto à infraestrutura básica, e nos mapas acima percebemos que o número de escolas e equipamentos de saúde já suprem a demanda atual da população (as áreas que aparecem não atendidas configuram-se como áreas de baixa densidade/vazios/empreendimentos não implantados). Entretanto, os critérios adotados pelo IBGE não conseguem prever números reais da população, em razão das altas taxas de migração decorrentes do projeto de mineração, dificultando a aplicação de planos efetivos para toda a população.
Em levantamento de campo, realizado em março de 2015, pôde-se concluir que tais números não se materializam de maneira uniforme. Existe uma concentração de melhor infraestrutura na principal avenida da cidade, a Av. Weyne Cavalcante, assim como em loteamentos mais recentes à franja do centro, mas que, como dito anteriormente, possuem baixíssimas taxas de ocupação. Em contrapartida, áreas mais centrais, onde a população habita de forma ativa, enfrentam a carência dos bens mais básicos, como ruas asfaltadas e calçadas. E nesse caso é importante frisar que até mesmo as localidades centrais de renda mais elevada enfrentam problemas desse tipo, realidade agravada para as populações mais carentes.

Figuras 6, 7, 8 e 9 – Diferentes realidades urbanas coexistentes em Canaã dos Carajás.











Fonte: Levantamento de campo, 2015.

Percebe-se, então, uma realidade totalmente oposta aos preceitos existentes na Carta Magna de 1988, que possui como um de seus fundamentos principais a diminuição das desigualdades sociais. Desta feita, é dever da política de desenvolvimento urbano, executada pel Poder Público Municipal o desenvolvimento das funções da cidade e o bem-estar de seus habitantes (art. 182, CF/88)17.
CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou investigar a respeito do direito à cidade e da provisão de infraestrutura decorrentes da expansão urbana, utilizando como objeto de estudo os diferentes processos históricos que constituem o espaço urbano de Canaã dos Carajás. Tais processos se constituem como uma síntese do que vem ocorrendo na estruturação da rede urbana amazônica desde que Estado tomou as rédeas do "desenvolvimento". A excepcionalidade do município em questão advem da velocidade extraordinária com que a evolução campo-cidade ocorreu: a cidade enfrentou diversos ciclos de mudanças sucessivas em apenas 21 anos de existência oficial do município.
A construção de um território sobre a base de políticas públicas ineficientes, que desconsideram a escala intra-urbana seja sob o ponto de vista da gestão territorial, ou da perspectiva socioambiental, assim como a introdução de atores externos, com práticas econômicas discordantes da realidade local, menos de uma década após a oficialização do município, constituiu um espaço de exploração de recursos naturais e dinâmicas de extração de riquezas, sem, contudo, conversão dessas benéficies em proveito de condições urbanas mais adequadas à população.
O produto disso é a dependência crônica da municipalidade local em obras de compensação pelos impactos da mineradora Vale S/A, servindo aquela mais como intermédio para aplicações diretas dentro do espaço urbano do que provedora de bens e serviços públicos. E ora, se temos um espaço urbano que se configura dentro da lógica de expansão da acumulação do capital, é evidente que a provisão de bens comuns age de forma seletiva, resultando na coexistência de espaços públicos estruturados, como é o caso do bairro do Jardim das Palmeiras, com localidades onde a ausência do Estado se mostra na forma da péssima qualidade urbana.
Dessa forma, obsta concluir que o efetivo direito à cidade se faz ausente no contexto da construção e do desenvolvimento urbano existente no diagnóstico apresentado ao longo do presente artigo. Isso ocorre uma vez que o crescimento pautado em alimentar as necessidades econômicas da região por conta da exploração mineradora não acontece de forma ordenada.
Há uma clara especulação imobiliária localizada em uma determinada região da cidade - bairro Jardim das Palmeiras - que acaba por segregar o espaço urbano. E, se o direito à cidade nasce a partir do seu reconhecimento como organismo, como ensina Lefebvre, isso não ocorre em Canaã, pois esta não possui qualquer identidade própria a não ser a de abrigar os trabalhadores dos projetos desenvolvidos pela Vale S/A.
Outro ponto importante é a ausência paupável das diretrizes apresentadas nas legislações vigentes acerca das cidades e seus planejamentos. O planejamento urbano de Canaã é inteiramente integrado às necessidades da mineradora e não, necessariamente, ao contexto urbano e às necessidades de sua população, traduzindo-se em uma carência de infraestrutura e serviços públicos em grande parte da cidade.
Além disso, há, talvez, a justificativa da falta de investimentos em maquinário público nas regiões mais carentes por estas serem em sua maioria irregulares, mas a falta de qualquer plano para regularização da área também não é encontrado. Se visitado o site oficial do município, toda e qualquer informação acerta de planejamento, urbanização e afins é direcionado para uma página que aponta o contato do responsável, sem maiores esclarecimentos, demonstrando uma ausência de proatividade nas questões urbanas.
Direito à cidade, além de identidade, infraestrutura e serviços públicos, também é integração das quatro funções da cidade: moradia, trabalho, circulação e lazer. Integração essa não vista e nem reconhecida no município de Canaã, que parece viver apenas da função trabalho.

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