A distribuição da preposição par no cancioneiro de cavaleiros

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A DISTRIBUIÇÃO DA PREPOSIÇÃO PAR NO CANCIONEIRO DE CAVALEIROS21 Antonio Augusto DOMÍNGUEZ CARREGAL (USC)

Antes de nada, ressalto que o título da comunicação foi ligeiramente alterado em relação àquele apresentado no congresso, já que vi a necessidade de deixar de lado a distribuição das preposições per/par e enfocar o tema nesta última forma. A evolução das preposições desde o latim às línguas românicas é um dos processos mais interessantes do ponto de vista da mudança interna da língua, já que esta categoria foi uma das que, senão a que mais, sofreu um profundo processo de reorganização interna pela perda de elementos antigos, a redefinição dos significados das restantes e a criação de novos elementos através da gramaticalização22. Dentro deste grupo, chama à atenção a especificidade das línguas ibéricas frente às demais línguas românicas num caso concreto: La existencia de la oposición por/para constituye un rasgo distintivo entre las lenguas iberorrománicas y las demás lenguas neolatinas. El nacimiento de una preposición compuesta de tipo por a, debido a varias razones externas e internas del sistema prepositivo, llegó a profundizar, por su parte, la idiosincrasia del dominio iberorrománico. Todas las lenguas románicas tienen derivados simples de las preposiciones latinas pro y per (fr. pour, par; occit., it., per; rum. pe, etc.), pero sólo las iberorrománicas han creado una preposición compuesta, utilizando además el derivado de ad. (RIIHO 1979, p.11)

Assim, a partir de duas preposições latinas com significados bem diferenciados,

PER

e

PRO,

chegamos a uma situação na que se confundem e

finalmente se fundem numa única forma, à exceção do francês. Mas, como

O presente trabalho foi realizado no contexto de atividades englobadas no programa de bolsa de FPI vinculada ao projeto HUM2005-01300, “El vocabulario de los trovadores gallego-portugueses en su contexto románico” do Ministerio de Educación e Ciencia espanhol, financiado com fundos FEDER. 22 Para um panorama românico da evolução das preposições, ver Brea (1985). Para uma discussão do processo de mudança e gramaticalização das preposições em português, ver Poggio (2002). 21

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podemos observar, a situação das línguas peninsulares é particular em relação às demais também no que diz respeito à cronologia. Enquanto para as demais línguas românicas a situação destas preposições já estava mais ou menos definida na Idade Média, nas línguas iberorromânicas só se cristalizará definitivamente no final do período, com o triunfo de por e para e a eliminação das demais formas em competição. Uma dessas formas extintas, provavelmente a menos freqüente entre todas, é a preposição par, praticamente restrita a expressões de tipo formular já na época medieval23. E qual seria a origem desta preposição? Não há acordo entre os estudiosos a respeito. Riiho (1979, pp.25-28) traça um panorama da evolução das posturas ao redor da origem da forma par, divididas entre a possível origem francesa, importada através de fórmulas do tipo par dieu (Diez (18784)24, Baist (1883)25, Hanssen (1913)26, Michaëlis de Vasconcelos (1920)27, Huber (1933)28, Magne (1944)29, Lorenzo (1977)30, Ferreiro (19994)31) e a origem autóctona como variante

Como já indicava Riiho (1979, p.13) sobre os estudos anteriores ao seu, “La preposición par de las lenguas iberorrománicas antiguas, usada casi exclusivamente en las fórmulas de juramento, era considerada, por otra parte, como un caso especial medio lexicalizado, prácticamente ajeno al sistema prepositivo activo.” 24 p. 474: “Pardiez span. interjection, dem altfr. par diex = nfr. par dieu nachgesprochen, altsp. aber auch halbfr. par dios Conq. Ultr.; vgl. mhd. ohteiz aus altfr. oh diex, dessen x gleichfalls mit z ausgedrückt ward.” Também afirmou que a expressão veio através da imigração francesa (1863, p. 130): “par Präp. in einigen durch die eingewanderten Franzosen verbreiteten Redensarten, wie par deus D. 5. 22. 34. T. 67, 1 u. (auch por deus), par nostro senhor D. 163; auch bei Gil Vicente und im Altspanischen, z. B. bei Ruiz par dios 956, noch jetzt pardiez.”. 25 Resenha ao artigo de Cornu, cf. Nota 11. Diz que Diez tem razão, descarta a possibilidade de variação vocálica para o espanhol, o que obrigaria uma origem externa, e afirma não entender a razão pela qual uma variante fonética se especializaria em um contexto determinado como rogos. 26 p. 307 §709: “El castellano antiguo tiene, en los juramentos, par al lado de por (...) Se le considera generalmente esta variante como importada de Francia; piensan de otra manera Cornu, R., XI, 91 y Men., R. XXIX, 361. En tiempos posteriores, se escribe á veces para en lugar de par”. 27 No Glossário do Cancioneiro da Ajuda (p. 64), “preposição francesa, proveniente de per. É empregada unicamente em formas de juramento como par Deus (...), par Nostro Senhor (...), par Santa Maria (...)”. [também disponível no Dicionario de Dicionarios do Galego Medieval (=DDGM), dirigido por González Seoane (2006)]. 28 Aposta pela tese da origem francesa, como por exemplo na seção de “elementos estranhos”, (empréstimos), § 41, “par < fr. par < per”. 29 Cf. p. 292, “prep. É do Fr. par, do lat. per, e corresponde a por ou per em fórmulas de juramento”. 30 Afirma (p. 967) que é “seguramente galicismo”, ainda que em seguida enumera as posturas contrárias. [também disponível no DDGM] 31 §244a, p. 364-5, afirma que par é “seguramente galicismo”. 23

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fonética de per (Cornu (1882)32, Gonçalves Viana (1884)33, Menéndez Pidal34, Coromines35, Lapa (1965)36, entre outros37). Mesmo entre os autores que defendem a origem autóctone da preposição, não há uma explicação clara sobre a sua origem. O argumento usado costuma ser a relativa freqüência da metafonia e/a em galego-português38, como sintetiza Maia (1986:372): Quando em contacto com a líquida r, o grafema e da sílaba pretónica pode, algumas vezes, aparecer substituído por a: çarrassem, cerrassem, 6ta pess. do imperf. do conj. de serrar (...) Contudo, na maior parte dos casos, a grafia constante é com e (...) Embora seja reduzido o número de formas com a, é suficiente para comprovar que, na região e na época abrangidas pelo presente trabalho, já ocorria a alteração de e pretónico para a bob a influência de r contíguo, facto ainda hoje frequente na linguagem popular portuguesa de várias regiões e no galego. Creio que se explica o escasso número

de formas

que aparece nos

textos

o enquadramento

Ver par per por = PER (p. 91-95), onde o autor rebate as posições de Diez com argumentos fonéticos, e destaca o uso de par para juramentos e por para rogos em contextos semelhantes. 33 p. 212: “Par était donc emphatique, per était atone; ce ne fut que plus tard que par, pendant l’emphase, devint sembable à per”. 34 Este reafirma a postura de Cornu, primeiro numa pequena nota etimológica (1900 p. 361), na que diz “Diez (Wörterbuch, 5ª ed., p. 474) cita ésta como ejemplo de una interjección advenediza, tomada del francés antiguo par Diex, pero Cornu (Rom., XI, 91) le rebate por lo que toca á la proposición par, sosteniendo que nada tiene de galicismo, lo cual es ya indiscutible.”, e depois no seu vocabulário à edição do Cantar de Mio Cid (1911), onde afirma que tanto par como por têm como etimologia PĔR. 35 Segue a teoria de Menéndez Pidal. Cf. DCECH vol.IV s. v. para, p. 388-389, “ (…) preposición par, que se empleaba casi generalmente en fórmulas de exclamación y juramento como par Dios, par sant Esidre [Cid, etc.], etc., y que según indico M. P. (Rom. XXIX, 361) no es en manera alguna galicismo, sino prolongación autóctona de la prep. latina PER.” e s. v. por, p. 611, “Como observa Hanssen (...), distinguían el port. ant. y el ast. entre por = fr. pour y per = fr. par, y lo mismo parece practicar en leonés ant. (...). Si la distinción llegó a hacerse sistemáticamente, pronto se perdió (...). Por lo demás, el cast. emplea par” 36 Cf. p. 69 “par prep. = por. Evolução normal da forma proclítica per” [também disponível no DDGM] 37 Machado (19773:IV, p. 401-2) discrepa dos demais, já que indica que as três preposições medievais (per, por, par) têm o mesmo étimo, do latim vulgar por > pro, e confirma o seu caráter arcaico na língua portuguesa. A sua proposta de étimo pode derivar de uma leitura confusa de Diez (18784 p. 254), que afirma que pro acaba substituindo per no espanhol (mas não o per latino, e sim o românico). Cf. Riiho (1979), p. 14 nota 3. Também Meyer-Lübke (1911) afirma que PER às vezes pode tomar algumas funções de PRO, ver REW §6396 PĔR §6762 POR. 38 Também Lausberg (1985 §225 p. 267) destaca que o processo é comum também em francês, e podemos dizer que não era estranho às demais línguas românicas, como afimam Fernández Guiadanes e Del Río Riande (no prelo). 32

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sociolinguístico da mencionada alteração, sentida, muito provavelmente, como própria da camada popular.

Mas a existência da metafonia justificaria a substituição de uma forma por outra, e não a coexistência no sistema. E realmente têm razão Cornu 39, Nobiling (1908)40, Nunes (1919)41 ao afirmarem que par tem um uso restrito a situações de juramento42? Mesmo Riiho (1979 p. 69-71) expressa as suas dúvidas quanto a isso. Para responder essas perguntas, é necessário passar à análise dos textos. Para a análise da situação, usaremos um corpus bem delimitado: a lírica profana galego-portuguesa. Mais concretamente, limitaremo-nos à análise dos textos que compõem o Cancioneiro de Cavaleiros, seguindo a proposta de António Resende de Oliveira (1994). Segundo o autor, podemos identificar na estrutura dos cancioneiros conservados atualmente resquícios de uma organização anterior que evidenciaria a existência de compilações de caráter mais restrito, hoje perdidas, que foram usadas como origem dos textos integrados no antecedente dos autógrafos italianos do século XVI. Neste caso concreto, o Cancioneiro de Cavaleiros (Oliveira 1994: 13-41, 43-98, 99-108, 109-121) estaria constituído pela recopilação de textos de trovadores de origem nobre, e estaria composto por 414 textos de 39 autores43. Op. cit. Confirma a diferença de sentido numa nota (p. 667), explicando que “por Deus = conjuro-vos por Deus; per (ou par) deus = juro por Deus”. 41 Indica brevemente na seção de fonética, referindo-se ás vogais átonas iniciais (Fonética §26.2 p. 56-57), “As mesmas vogais permutam por vezes com outras, quer sob influência das consoantes com que estão em contacto, quer por assimilação ou dissimilação das que lhe seguem: assim e pode passar a a ou para i (...) per, par (que ocorre no português antigo ao lado de por)”, e na seção relativa às preposições (Morfologia §51 p. 361 nota 1) “Ao lado desta forma [per], que hoje, afora os artigos definidos, se usa apenas em locuções como de per si, de per meio, existia na antiga língua também par, que se empregava quási exclusivamente em certas frases invocativas, como pardês ou par dês, par nostro senhor, etc.”. 42 Retoma essa idéia também Huber, op. cit., §120 nota 1, “par surge, a maior parte das vezes, com acentuação enfática em expressões como par Deus, par Nostro Senhor, par Santa Maria, ao passo que em orações e pedidos aparece por Deus.”, e 427 p. 264 “par (possivelmente do fr. par < per): 1 – em fórmulas de juramento: par Deus. – 2. = por: par tal cajom ‘por um tal infortúnio’.” 43 Seguindo os resultados do projeto de pesquisa Cancioneiros galego-portugueses: edición crítica e estudo (en formato impreso e electrónico). Proxecto coordinado: Universidade de Santiago, Universidade da Coruña, Universidade de Vigo. Universidade de Santiago: Edición do Cancioneiro de Cabaleiros (PDIDITO6CSC20401PR), financiado pela Xunta de Galicia. Seriam pois 240 cantigas de amor, 56 de amigo e 110 de escárnio, considerando entre elas as 8 composições perdidas dos 6 autores iniciais da Távola Colocciana. 39 40

59

Dentro deste conjunto, encontramos44 41 casos de emprego da preposição par, em 31 cantigas de 13 trovadores, em contextos muito claros, já que só aparecem em cinco fórmulas diferentes: par Deus (33 vezes), par santa Maria (4 vezes), par nostro Senhor (2 vezes), par fe (1 vez) e par caridade (1 vez). Já que detectamos a possibilidade de variação na grafia e a falta de uma opinião comum por parte dos especialistas sobre o status efetivo da forma estudada,

conviria

analisar

os

testemunhos

localizados

também

paleograficamente. Como já afirmam Del Río Riande e Fernández Guiadanes para a análise das formas pardon/perdon45, as abreviaturas latinas para per e par são bastante semelhantes e tendem a igualar-se nos nossos cancioneiros. Haveria então algum caso passível de confusão por parte dos editores? Para dilucidar a questão, fizemos uma leitura dos versos em questão a partir das imagens digitalizadas dos manuscritos disponíveis em MedDB, resumida na tabela a seguir:

Cantiga# Estrofa#

Verso

A

B

V

Verso# 2,3

1 5 - Par Deus, senhor, direi vos ũa ren

825 par

411 par

2,3

2 5 - Par Deus, ai coita do meu coraçon,

par

par

2,3

3 5 - Par Deus, ai mui fremosa mia senhor,

par

par

2,3

4 5 - Par Deus, senhor, ó mia coita e meu

par

-

11,11

1 4 Par Deus, filha, mando v ... -er.

660 par

47,21

1 1 Par Deus, senhor, mui mal me per matou,

61 par

47,22

1 1 Par Deus, senhor, ora tenh' eu guisado

59 par

50,12

2 3 e, s' é verdade, par nostro Senhor,

819 par

403 par

50,12

3 2 que mi dizen, meu amigo, par Deus,

819 par

403 Par

74,4

1 1 Par Deus, amigo, muit' há gram sazom

653 par

254 par

74,5

1 1 Par Deus, donas, quando veer

655 par

256 par

74,7

1 6 Par Deus, miá madr', irei!

651 par

252 par

74,7

2 6 Par Deus, miá madr', irei!

-

-

74,7

3 6 Par Deus, miá madr', irei!

-

-

74,8

3 7 filha, par Santa Maria

652 par

261 par

253 par

Cito os textos a partir das edições críticas disponíveis em Base de datos da lírica profana galegoportuguesa (MedDB) . 45 No prelo. 44

60

111,6

1 1 Par Deus, fremosa mia senhor,

115,5

1 1 Par Deus, donas, ben podedes jurar

115,6bis 3 6 par Deus, muit', e non lle custar

42 par 639 par

240 par

37 par

115,8

3 3 par Deus, donas, aqui é ja!

638 par

239 par

115,8

1 3 par Deus, donas, aqui é ja!

par

par

115,8

2 3 par Deus, donas, aqui é ja!

par

par

115,8

1 3 par Deus, donas, aqui é ja!

par

par

117,4

7 1 Leli, leli, par Deus, leli

829 par

415 par

120,27

3 1 Pero un cavaleiro sei eu, par caridade,

1655 par

1189 par

120,28

3 8 home no mundo, par Santa Maria!

985bis par

573 par

120,32

2 5 Ca, par Deus, mal o confondeu

987 par

575 per

125,18

2 3 u a non veg', e, par Deus! mui coitada-

99 par

206 par

125,25

3 2 faç' eu mui grande, par Nostro Sennor,

91 par

195 par

125,33

1 1 Par Deus, sennor, ja eu non ei poder

98 Par

205 par

125,37

1 2 aver, par Deus que pod' e val,

95 par

202 par

125,45

1 2 En seus cantares, par Santa Maria!

149,2

3 4 com' a vos quer'; e par Deus, se me dar

49 par

151,11

1 1 Par Deus, mia senhor, en quant' eu viver

84 par

151,11

3 2 o meu -¡e par Deus que vos non pes én!

 84 p

151,12

1 1 Par Deus, senhor, ja eu ben sei

79 par

151,13

1 1 Par Deus, senhor, sei eu mui ben

151,26

1 1 Senhor fremosa, par Deus, gran razon

154,2

1 4 - Par Deus, senhor, quero-vo-lo dizer:

154,5

2 4 mays par fé, sen mal engano,

154,9

3 4 - Par Deus, amiga, non vus creerey,

154,13

3 1 E pesa-m' ende, par santa Maria,

1380 par

13 Par

103 par

3 par

93 p 820 par

988 par

405 par

1506 par 822 par

407 par

1505 par

Em quase todos os versos vemos que a partícula aparece desenvolvida, sem abreviação46. Mesmo no caso nos que é possível uma leitura alternativa per, temos uma leitura em outro manuscrito que confirma a escolha do editor por par, como em 120,32, Ora ja non poss’eu creer, no que B lê par em lugar de V per; e 151,26, Senhor fremosa, par Deus, gran razon, na que existe um testemunho não abreviado em A ao lado da abreviatura em B. No único caso de abreviatura em manuscrito único (151,11, Par Deus, mia senhor, per quant’ eu viver, B84 fólio 22v, Cabe destacar que tampouco há casos de abreviatura quando aparece o substantivo par no corpus analisado.

46

61

copiada pela mão c47), o desenvolvimento de em par não seria impossível, dado o contexto48. Já que não parece haver problema de leitura e transcrição dos manuscritos, cabe então analisar o contexto de uso: é possível encontrar expressões semelhantes que usem outra preposição? E terão significado diverso, como diziam os críticos de há cem anos? Podemos encontrar dentro do mesmo cancioneiro de cavaleiros textos que demonstram o caráter não exclusivo de par nesses contextos, como o exemplo a seguir:

A quantos sabem trobar: quero eu que veiam o enfadamento das trobas fetas, e, per Deus Nostro, quen quanto ussa non pod enprestar. (Afons’Eanes do Coton, 2,5)

Ainda que se trate de uma cantiga fragmentária, podemos ver que a expressão coincide em caráter exortativo com os exemplos dados anteriormente para a forma par. Também podemos comparar os seguintes versos: Por Deus, amigas, que será? pois já no mundo non é ren nen quer amig’ a senhor ben, e este mundo que é ja? (70,40, Johan Garcia de Guilhade, I, 1-4) Por Deus, amigu’, e que será de mi poys me vos hides con el-Rey morar? (120,39, Pero da Ponte, I, 1-2)

Sobre a estrutura interna do cancioneiro B e a distribuição das mãos dos copistas, ver Ferrari (1979). 48 Ainda que deveríamos observar o comportamento do copista c em contextos passíveis de abreviação, como a transcrição das sílabas per/por/pra etc. Só a modo de ilustração, podemos ver que em várias cantigas copiadas no mesmo terceiro caderno (fólios 14 a 23) aparece a mesma abreviatura desenvolvida pelos editores por , como em B49 (149,2), B51 (47,16), B55 (47,5), B56 (47,20), B59 (47,22), B61 (47,21), B62 (47,24), B63 (47,15), B67 (47,18) e B71 (47,28), entre outras. 47

62

com o seguinte refrão de Pai Soarez de Taveirós (115,8, I):

O meu amigo, que mi dizia que nunca mais migo viveria, par Deus, donas, é aqui ja!

Não se percebe uma diferença de contextos clara nestas três cantigas de amigo. O mesmo acontece com outras locuções com carácter de juramento que, segundo os teóricos, deveriam usar a preposição par, mas que não a empregam, como por exemplo os 62 exemplos49 de per boa fe no Cancioneiro de Cavaleiros, ou de outras expressões semelhantes, como per fe sen engano (2 vezes na lírica profana). Pelo tanto, há que dizer que a indicação da diferença de usos feita por Cornu e retomada por defensores de ambas teorias (autóctone e importada) não é completamente certa, já que não cobre todos os possíveis casos. Mas há ainda outro problema: se par é mera variante de per, deveríamos esperar a presença de uma ou outra preposição nos mesmos contextos, e excluir a presença de por pelas diferenças semânticas entre as duas preposições, já que esta se empregaria em contextos menos enfáticos, como petições. Pois bem, ao consultar os exemplos vemos que tampouco esta afirmação é completamente verdadeira50: Mha senhor, por Nostro Senhor, por que vos eu venho rogar, quero-vos agora rogar (Pero d’Armea, 121,12, I, 1-3)

Oy dizer, por me fazer pesar amades vós outra, meu traedor; e, s' é verdade, par nostro Senhor, direy-vus como me cuyd' a vingar: Em 49 cantigas diferentes de 13 trovadores. A sua presença destacada no refrão de algumas das cantigas eleva o número total de ocorrências. 50 Há outros casos semelhantes na lírica profana. Ainda considerando que alguns dos exemplos registrados podem ter caráter instrumental e não exortativo, destacamos os 16 casos de por Nostro Senhor, 14 de por San(c)ta Maria e 3 casos de por caridade encontrados em MedDB. 49

63

(Fernán velho, 50,12, II, 1-4)

Vemos alguma diferença de emprego de uma e outra preposição nos exemplos acima? Seria muito difícil separar uns e outros, ou mesmo definir quais seriam os “rogos”, quais os “juramentos” e a fronteira entre estes. E, mesmo voltando ao nosso único problema gráfico, não seria lícito corrigir o desenvolvimento de p em por e não par, como parece ser o usus scribendi do copista? A modo de recapitulação podemos dizer que, como comprovamos ao longo da exposição, não há uma interpretação única para o caso de par na língua medieval. Todos os autores coincidem em indicar que é uma forma especializada em determinados contextos exortativos ou emotivos, com uma função de apelo ou chamada de atenção ao interlocutor, mas por outro lado vemos também que não apresenta oposição sistêmica frente a per ou por, já que, ainda que o seu uso nesse contexto específico seja majoritário, podem aparecer casos nos que se usem estas formas que não podem ser imediatamente descartados por problemas de tradição mauscrita. Devemos, porém, fazer uma ressalva enquanto ao contexto de uso da preposição. Se bem é verdade que as estruturas aqui analisadas são bastante restritivas e não muito comuns no conjunto da língua, cabe fazer um contraste com a situação da mesma nas demais tipologias textuais da época, como podemos ver a seguir51:

Verso

Prosa não

Prosa

notarial

notarial

TOTAL

par Deus

205

25

0

230

per Deus

5

5

0

10

por Deus

231

60

45

336

Os resultados da tabela e os exemplos posteriores foram extraídos de TMILG, Tesouro Medieval Informatizado da Lingua Galega, coordenado por Xavier Varela. 51

64

par San(c)ta Maria

20

0

0

20

per San(c)ta Maria

0

2

0

2

por San(c)ta Maria

28

3

7

38

A partir da análise dos dados em estado bruto, podemos comprovar que nos textos não literários há uma restrição ao uso de outras preposições, mesmo em contextos de juramento, como podemos observar abaixo: (...) por seus términos, que les damos et oferezemos, por Deus et por nosas almas et de nosos parentes (…) [MSPT 1257] (…)E rogo ao Abade e a o conuento por deus e por merçee que me fazan un altar cabo de mi padre e que canten missa por mi por semper e eu mando CC soldos para que se faza oaltar. (...) [GHCD 1266]

A diferença marcada por Cornu et alli, pelo tanto, não teria sentido, já que a restrição das formas não seria semântica, mas sim textual52. Mas o resultado também reforça a idéia de que par é a variante normal de per em contextos de juramento nos textos literarios, dada a sua presença residual em relação ao total de exemplos (12 de 636). Juntando essas duas idéias, convém voltar a Riiho (1979 p. 202-203):

Varias veces hemos apuntado a la dificultad de la solución del dilema de par, así como a la insuficiencia de los datos reunidos por los representantes de las dos teorías principales, la del origen francés adelantada por F. Diez (...) y la del origen autóctono emitida por J. Cornu (...). Aunque parece claro que no hay solución abierta ni definitiva, al respecto, la visión de conjunto sobre los derivados de pro y per nos sugiere ciertas probabilidades. La derivación de par a partir del lat. per no presenta dificultades, pero tampoco ofrece ninguna solución nítida. Semánticamente, el uso de

Cabe sempre lembrar que as bases de dados disponíveis hoje são, normalmente, resultado da incorporação a um suporte informático de dados já existentes –neste caso edições de textos– elaborados por diferentes pessoas que podem ter empregado diferentes criterios de transcrição dos documentos originais. Ainda destacando essa margem de erro, é interessante notar a completa ausência das outras variantes nos textos notariais. 52

65

par en juramentos tiene su correspondiente exacto en el de per, fonéticamente, el paso de –er– a –ar– no es imposible sobre todo si tenemos en cuenta la multitud de alternativas que se nos presentan en la posición pretónica (...). Las numerosas interferencias de por y par, destinados en principio éste a juramentos y aquél a invocaciones, pero en realidad a menudo confundidos, demuestran que no hay ninguna diferencia esencial en el carácter fonético de los dos (...). Es poco probable, pues, que las diferencias entre par y las demás variantes simples (...) se deba a una diferencia de las condiciones fonosintácticas, afectivas u otras (...) Queda como fundamental una discrepancia entre par y las demás formas simples, excepcionalmente chocante en el caso del portugués, donde par se opone tanto a por como a per. Sin querer afirmar lo absoluto de la posibilidad de una influencia francesa, no podemos más que comprobar la existencia de varios hechos en apoyo de la misma. Par difiere de las demás formas simples en un aspecto fundamental: apenas aparece en rección completa, dependiendo de un verbo regente (...). Se usa principalmente en exclamaciones fosilizadas, seguido de un elemento nominal solamente. No puede considerarse, por consiguiente, como un auténtico elemento de relación. Esto aumenta considerablemente la probabilidad de que se trate de un préstamo, o mejor dicho, hace posible tal suposición, prácticamente impensable en el caso de los relatores verdaderos, que constituyen uno de los subsistemas fundamentales del lenguaje y que rarísimas veces se toman en préstamo. Nada impide, evidentemente, la contribución de factores locales autóctonos, como el arraigo especial de –ar– en gallego, (...) que bien podrían constituir una línea confluyente con la influencia francesa.

Voltando então sobre o exposto e sobre a conclusão de Riiho, devemos refletir um pouco mais sobre o status das preposições. Como se vê na parte inicial destre trabalho, nos últimos cem anos não se fez mais do que repetir as duas opiniões lançadas por Diez e Cornu, às vezes escolhendo uma das teorias, outras recolhendo as duas possibilidades. Mas qual das duas tem razão? No caso da teoria mais antiga, é interessante notar o uso da dissimilação fonética para contornar uma expressão tabu. Mas formas como esp. pardiez, port. pardelhas, têm que ser obrigatoriamente um empréstimo francês, e não o reflexo de 66

um recurso linguístico de variação (românico ou universal) bastante comum, mesmo hoje53? E seria tão forte a introdução do empréstimo como para criar uma preposição analógica capaz de se extender a outros casos, ocupando um contexto tão específico, para desaparecer poucos séculos depois54? E, no caso da teoria autóctona, Riiho acaba por demonstrar que a flutuação de uso das três formas nos textos galego-portugueses é grande. Ainda podemos afirmar que par é a forma habitual dos juramentos se não aparece em textos não-literários, como são os textos notariais? Promessas de compras, vendas ou doações, por exemplo, são menos expressivas que as cantigas? Qual seria a diferença entre as duas situações? As promessas feitas ante notário seriam menos sacrílegas? Ainda há muitos pontos a desenvolver sobre este tema que nos permitam afirmar com maior clareza o verdadeiro papel da forma par na língua medieval. Falta uma análise mais extensa sobre a documentação, tanto literária como administrativa, e um controle mais rigoroso sobre as transcrições dos documentos originais. Os primeiros dados apontam a uma especialização genérica, o que pode denotar certa artificialidade (ou cultismo) sobre a origem da partícula, mas penso que não devemos descartar a possibilidade de origem autóctona. Essa mesma artificialidade explicaria a rápida desaparição da mesma no final da Idade Média 55 e o seu caráter restrito.

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