A Ditadura Militar entre a construção da legalidade e a opressão policial

October 13, 2017 | Autor: I. Garcia Felipe | Categoria: Political Theory, Political History, Military Dictatorship, Culture and dictatorship in Brazil
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A DITADURA MILITAR ENTRE A CONSTRUÇÃO DA LEGALIDADE E A OPRESSÃO POLICIAL Ildeu Iussef Garcia Felipe

Resumo: O trabalho proposto pretende abordar a paradoxal prática do regime ditatorial iniciado em 1964, de se afirmar como uma solução democrática para supostas ameaças tirânicas egressas dos respectivos opositores. A pergunta que se pretende responder indaga sobre quais artifícios o regime ditatorial adotou para fazer com que uma aparência democrática lograsse, com relativo êxito junto aos cidadãos, ocultar uma essência ou verdade ditatorial. A pesquisa vale-se de elementos históricos, com vistas a identificar aspectos estritamente políticos (como o bipartidarismo), jurídicos (como os atos normativos do regime) e psicossociais (como as propagandas e políticas educacionais), voltados à consecução do objetivo de se afirmar como democrática uma forma política de matriz autocrática.O trabalho utiliza-se de fontes teóricas secundárias, com vistas a levantar discursos teóricos que expliquem o funcionamento do regime ditatorial brasileiro pós-1964, além de fontes empíricas secundárias que permitam uma compreensão dos expedientes de justificação, nos três planos acima aduzidos, de uma suposta legitimidade democrática daqueles governos. Palavras-Chave: ditadura; legalidade (construção de); repressão; oposição

Abstract: The proposed paper aims to address a paradoxical practice of the Brazilian dictatorship started in 1964. On the one hand, the regime asserted itself as a democratic solution to alleged tyrannical threats from communists and trade unionists. On the other hand, they just denied precisely the kind of liberties and rights that they were supposed to be defending. The academic work I propose is aimed at understanding the means implemented by the dictatorial regime in order to give a democratic appearance to an autocratic government. The research draws on historical elements, in order to identify psychosocial, political like bipartisanship), legal (as the normative acts of the regime), and cultural (like advertisements and educational policies) aspects of governments´s tactics to present itself as a democracy .The work also uses secondary theoretical sources, aiming to raise theoretical discourses that explain the functioning of the Brazilian dictatorial regime post-1964. Finally, I use secondary empirical sources that allow an understanding of the expedients of justification of the supposed, but non-existent, democratic legitimacy of those governments. Keywords: dictatorship; construction of legality; repression; opposition

___________________ Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisador do Programa Jovens Talentos para a Ciência e membro do Grupo de Estudos em Ativismo Social Antirregime PROLUTA

INTRODUÇÃO Com o presente trabalho procura-se demonstrar, sob uma perspectiva histórica e por meio de uma análise sociológica, de que maneira o Estado se legitimou para considerar todo e qualquer tipo de movimento antirregime ilegal ou “comunista”, contando com o apoio de parcela significativa da burguesia brasileira. Assim analisando desde a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, passando pelos primeiros momentos após o golpe de 1964, no qual o regime tentava conseguir legitimidade ao seu projeto de organização social insistindo, arduamente, em que seus desígnios e ações estavam fundados no objetivo de instaurar o que ele denominava de “verdadeira democracia” no país. Convém enfatizar que esta análise não está, sob hipótese alguma, supondo que o regime militar tinha qualquer elemento que possibilitasse defini-lo como democrático e/ou possuidor de legitimidade democrática. Desse primeiro momento, o regime chegou, em menos de um quadriênio, ao contexto de maior tensão, marcado por elementos como a generalização de práticas como prisões ilegais e perseguições políticas, como resposta a uma emergente resistência, emblematicamente notada na Marcha dos 100.000.

No tocante ao processo de legitimação do regime militar, vemos que a pretensão de legitimidade não é atinente apenas aos regimes democráticos, mas em todos eles, inclusive as ditaduras, enfrentam o desafio de encontrar meios de alcançar reconhecimento entre os diversos segmentos sociais. Portanto, mesmo não havendo nenhum traço de legitimidade democrática no regime militar, não se pode afirmar que este não se empenhava em encontrar meios de aceitabilidade para o seu projeto de sociedade, pelo fato da ditadura ter construído uma ampla estratégia nas diversas esferas da vida social, visando a alcançar adesão para a sua forma de construção, organização e condução de uma determinada ordem social.

Além disso, o regime orientou sua busca de legitimidade através de uma aparente e autoproclamada pretensão democrática que se constituiu numa espécie de fio condutor presente em todos os governos militares. Com isso, a construção de um suposto ideário de democracia enquanto um sistema que sedimentasse determinados interesses e valores sociais foi, sem nenhuma dúvida, uma das grandes prioridades daquele período, o que remete à necessidade de investigar ao mesmo tempo quais eram os elementos subjetivos e objetivos definidores daquele processo, dessa maneira o sistema de ideias e valores sobre uma suposta democracia que a ditadura procurava elaborar estava estritamente vinculado às suas estratégias de ação nas diversas esferas, ou seja, econômica, política e psicossocial. A formulação de uma estratégia psicossocial possui, desta forma, um papel fundamental e,

por isso, é de grande importância captar a sua constante relação com as estratégias econômicas e políticas. Assim, o encontro entre as mesmas era revelador da insistência do regime em construir uma ordem social em que ele pudesse intervir sobre todos os indivíduos, grupos e instituições ilimitadamente e sob todos os aspectos. O regime militar cavava reconhecimento para os seus propósitos buscando consubstancialidade entre os valores militares e os valores (ligados à família, à religião, à pátria, à ordem e à disciplina) que, segundo ele, eram socialmente fundantes da ordem político-cultural brasileira. Ainda antes do Golpe, teve lugar a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” que consistiu numa série de manifestações, ou “marchas”, organizadas realizadas por setores do clero e instituições burguesas que congregaram segmentos da classe média, temerosos do “perigo comunista” e favoráveis à deposição do presidente da República; em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. O paradoxo pode ser notado desde os limiares da ruptura institucional. Um proeminente jurista, Pontes de Miranda, expressou o antinômico discurso golpista ao sustentar que a Constituição teria sido violada, apenas para que fosse salva. Era esse o tom da supressão de direitos e de liberdades democráticas que, em todo o governo de exceção, declarou-se como garantidora daquilo que afastava e perenizava-se em nome de uma transitoriedade.

O fato do próprio regime se autodefinir como propulsor de uma forma de democracia que seria singularmente ajustada à realidade sociopolítica brasileira, no âmbito da História e da Ciência Política não é novidade, pois quase todos os regimes autoritários nos últimos séculos lutaram por se demonstrarem como regimes democráticos. Tocqueville (1977), em sua obra Democracia na América, no século XIX, já chamava a atenção para o fato de os déspotas serem beneficiados pela confusão inextricável de ideias em torno da democracia e poderem, assim, se utilizar delas abusivamente.

Dessa maneira, a ditadura, ao tentar legitimar suas ações e medidas mediante a construção de um suposto ideário de democracia, buscava empregar o sentido de legitimidade como a busca de reconhecimento, por parte da maioria dos segmentos sociais, em torno dos valores propalados como fundantes do regime militar, bem como a procura de adesão às suas pressuposições em torno da convivência social, e desmesuradamente os condutores da ditadura labutavam para mostrar que a sua noção de ordem social era produto dos anseios da maioria da população. Dessa forma, o regime insistia em afirmar que possuía todos os elementos que permitiam a identificação popular com seus governantes.

Então,

ao

pressuporem

que

havia

esta

identificação,

os

militares

circunscreviam/submetiam a ação de todos à sua ação. Assim, tudo o que estava fora deste limite

deveria ser repelido e/ou eliminado. Justificar-se-ia, assim, a repressão a determinados grupos que se negavam a identificar-se com o regime em vigor, que ficaram taxados como “Comunistas” “Perigo Vermelho” ou, em suma, inimigos internos de um difuso conceito de interesse geral ou nacional, em nome do qual coletividades dissidentes eram suprimidas e cassadas.

A BUSCA DE LEGITIMIDADE E O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO

As buscas de adesão ao regime e para o governo se fundaram na sedimentação da crença nos valores das instituições que o regime se dizia empenhado em preservar. Portanto, as instituições políticas eram mantidas como referência neste processo. No entanto, as suas descaracterizações, que ocorreram no Congresso, fizeram com que este perdesse sua maior funcionalidade (de fazer leis) e se tornou em uma câmara de registro de leis. A eleição, que passou a ser indireta, e o sistema de partidos que se tornou bipartidário com a ARENA relativamente distanciada da estrutura autônoma ou crítica de poder (como, supostamente, se espera de partidos políticos) e encaminhando-se para uma identificação com o papel de instrumento dos militares e seus aliados civis no Legislativo (inclusive, dando origem à prática de aprovação dos projetos sem que seus representantes tivessem tido tempo de tomar conhecimento de seu conteúdo), e o MDB se ressentindo da pouca representatividade do seu desempenho, na medida em que se via impedido de exercer seu papel de oposição e obtivera uma função meramente ritual no âmbito do legislativo; eram justificadas a partir da insistência na necessidade de que elas fossem moldadas pelo novo regime político que passava a vigorar. O desmantelamento paulatino das instituições políticas fazia com que a ditadura buscasse construir sua aceitabilidade a partir de supostas qualidades dos militares no poder; as quais teriam sido conquistadas a partir de sua formação junto às Forças Armadas. O regime militar brasileiro, com vistas à obtenção de aceitação social, tentou suprir essa deficiência a partir de dois aspectos que, inclusive, o diferenciaram das demais ditaduras latinoamericanas e o tornaram peculiar: a contínua rotatividade dos generais-presidentes no poder, de modo a evitar o desgaste de uma ditadura personalista; e, por outro lado, a estruturação e criação de toda uma “teia legal”, constituída de decretos, decretos-lei, atos institucionais, atos complementares e tantas outras artimanhas jurídicas que conferiram aos chefes militares, durante longo período, a possibilidade do cometimento das maiores arbitrariedades, na medida em que praticamente anularam o Poder Legislativo, enquadraram o Judiciário e deram ao Executivo a possibilidade de silenciar a oposição.

Portanto, o simbolismo do “amparo legal”, foi uma das estratégias marcantes do regime militar para encobrir sua falta de legitimidade, ao menos se entendida sob o prisma da democracia.

A preocupação com a ilegitimidade pode ser percebida não somente na perspectiva de tentar legalizar qualquer ato, inclusive os mais arbitrários, mas, como demonstrado, na própria manutenção de instituições marcadamente identificadas com o regime democrático.

A tentativa de legitimação pode ser percebida no recurso ao simbolismo, aplicado nos Atos Institucionais nº 1 e 2 de uma suposta vontade da nação como originária do movimento “revolucionário” de 1964, o preâmbulo do AI-1 diz: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo

fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da nação”.

O grupo social no poder ou grupo de poder neste período eram os militares, tecnoburocratas, grandes proprietários fundiários e a emergente classe empresarial dos grandes centros urbanos de nosso país.

A JUSTIFICAÇÃO DO TERROR EM NOME DE UMA SUPOSTA DEMOCRACIA

O significado da democracia ligava-se à determinação objetiva das coisas, ou seja, as imposições eram uma necessidade, porém legítimas, que davam razão aos atos institucionais, aos atos constitucionais e às medidas econômicas e políticas. Dessa forma, o grupo de poder justificou o mais violento ato de exceção (AI-5), como uma imposição democrática que objetivava assegurar os anseios da maioria do povo brasileiro no sentido de aperfeiçoar o regime militar.

Então, em 1968 com maior visibilidade a partir do AI-5, é possível perceber a montagem de uma estratégia de implantação do terror1 por parte do Estado, a partir do endurecimento político do Governo Costa e Silva e da preponderância cada vez maior da linha dura no interior do aparelho de Estado; ficando assim estabelecida a impossibilidade da política com a implantação do terror, repressão e tortura se institucionalizavam e a arbitrariedade prevalecia fortemente nas relações entre Estado e população, mas mesmo assim o grupo de poder (militares, tecnoburocratas e representantes do grande capital) insistia no processo de legitimação e continuavam tentando ganhar adesão para o regime, insistindo na tese de que as medidas postas em prática reiteravam e, portanto, não negavam o sentido que eles imputavam à democracia.

1

Entende-se, aqui, como terror, a prática sistemática de vilipêndio aos direitos humanos e de constituição de um ambiente de constantes pânico e insegurança no âmbito dos grupos e indivíduos que se opunham ao regime.

As movimentações contrárias ao regime vinham de diversos setores, vejamos: uma classe artística que, inobstante a censura, tentava criticar e desafiar os elementos ideológicos constitutivos do regime; intelectuais que, invariavelmente contidos nos espaços dos campi universitários, esmeravam-se em produzir um pensamento crítico; ativistas sindicais, em geral clandestinos, que conduziam greves e protestos, alcançando um ápice já nos estertores do governo de exceção, ao final da década de 70, no ABC Paulista; religiosos, como os frades dominicanos e bispos como D. Pedro Casaldáliga e D. Paulo Evaristo Arns, que se engajavam em uma prática pastoral de resistência e luta contra a ditadura; estudantes que, mesmo de modo clandestino, tentavam edificar outra realidade política e; ainda, aqueles que se juntaram à luta armada, seja no campo (como na guerrilha do Araguaia), seja na cidade (como nas ações conduzidas por movimentos como a ALN e o MR8).

Já no final da ditadura, o reaparecimento das greves no cenário político apavorava os representantes do capital com a possibilidade de crescimento desses movimentos e sem nenhuma hesitação concordavam com a ditadura, de que a questão em jogo não era aumento de salário, mas sim o questionamento do processo político-econômico e, por conseguinte, da legitimidade do regime e de sua suposta democracia que estava sendo implantada. Também os militares e os tecnoburocratas estavam de acordo quanto ao caráter subversivo de todos os movimentos estudantis e grevistas, dessa forma, os líderes sindicais e estudantis tidos como esquerdistas eram perseguidos e os sindicatos e grêmios desmantelados em nome da institucionalização daquilo que ainda se mantinha do gople de 1964 e da fictícia normalidade democrática.

Dentro dessa lógica, os trabalhadores e os estudantes estariam sendo influenciados contra o regime por grupos clandestinos e subversivos que traziam o “espírito” de “Che”, figura emblemática e arauto dos sofrimentos de todo o continente e dos ideais de liberdade fecundadas pelo seu próprio sangue” como diz Irene de Arruda Ribeiro Cardoso (Memória de 68: terror e interdição do passado. Tempo Social; 103 Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 101-112, 2.sem. 1990.), e além disso, os movimentos de resistência criavam uma situação embaraçosa para o governo e para o próprio regime, pois segundo os militares a oposição ativa nas ruas e no Congresso era incompatível com o desenvolvimento e com a Segurança Nacional.

Então, a ditadura estabelecia uma „batalha‟ para conseguir dividendos políticos do próprio processo de recrudescimento do regime, justificando que suas medidas eram uma forma de proteger a maioria da população das investidas de uma minoria; essa justificação fica bastante evidente quando lemos a seguinte afirmação do então presidente da Associação dos Diretores de Empresas

de Crédito, Investimentos e Financiamentos, Luís Moreira de Souza: “o mais importante do encontro foi a convicção com que o Presidente (da República) demonstrou que não pretende usar a força senão na estrita medida da necessidade de defender o regime e as instituições” e posições como estas do último empresário citado, embasavam a implantação do estado de terror.

A lógica da legitimidade coercitiva supunha que o regime vigente era o gerador e o mantenedor do consentimento e não a coletividade social, pois os condutores (militares) e os sustentadores (tecnoburocratas e a classe empresarial) da ditadura militar tentavam arrancar da natureza do próprio poder os meios de justificá-lo, sendo assim a viabilidade política do regime dependia muito mais de quem comandava do que de quem obedecia e o grupo de poder era capaz de justificar o golpe dentro do golpe como a única saída, tendo em vista que os movimentos de resistências criavam uma situação de embaraço para o governo e para o próprio regime.

Enfim, o AI-5 teria, então, o objetivo de completar a revolução que, segundo Costa e Silva, já era democrática na sua origem, porque levava em conta os anseios do povo brasileiro, por essa razão o Ato Institucional de 13 de dezembro de 1968 era democrático, por corresponder aos anseios do povo de manutenção da ordem, da disciplina e de uma paz pública pautada na autoridade e num alto grau de controle sobre a sociedade; dessa maneira o movimento militar estaria, então, transformando os desejos do povo em atos e medidas concretas como forma de fortificar um sistema de ideias e valores democráticos que era ao mesmo tempo, segundo ele, algo inerente ao espírito dos brasileiros e fundamento da atuação dos militares no poder. Confirmava-se, assim, a contínua preocupação da ditadura com a elaboração de um sistema de ideias e valores sobre todos os elementos constituintes da vida social; portanto, o suposto ideário de democracia que o regime formulava funcionava como uma espécie de desaguador e justificador das demais ideias e dos demais valores que ele se dizia incumbido de defender e difundir. O grupo de poder buscava adesão para as suas ações, medidas e desígnios nas diversas áreas da vida social, no entanto, a sua estratégia de atuação no campo dos valores era, certamente, essencial; o presidente Costa e Silva, por exemplo, ressaltava que o governo precisava de símbolos que expressassem a cooperação entre as diversas classes sociais e entre estas e o governo, segundo ele, a iniciativa privada precisava atuar de modo que esses símbolos fossem multiplicados.

A ESTRATÉGIA PSICOSSOCIAL E A “DEMOCRACIA” MILITAR

A estratégia psicossocial traçada pelo regime estava começando a dar frutos, pois se avistava

um florescimento dos símbolos de cooperação, harmonia, coesão e integração em todo o território nacional, nas inúmeras obras sociais inauguradas que era fruto da parceria entre as classes empresariais e o governo, que serviam de peça fundamental no discurso progressista dos militares e de dignificação do homem. Essa constante insistência na ideia de que a ditadura tinha como objetivo básico dignificar o homem contribuía para o fortalecimento do hipotético ideário de democracia que havia sido formulado, sendo assim, a educação seria a instância básica em que a ditadura construiria esse novo homem supostamente dignificado, logo a internalização dos valores de não-contestação e não-conflito se espalhava pelas diversas instituições sociais (empresa, escola, família, dentre outras) objetivando conduzir todos os indivíduos ao congraçamento total com o regime.

A adesão e a aceitabilidade inquestionáveis eram extremamente reveladoras da legitimação pretendida pela ditadura, além disso, o regime militar pretendia, através de sua estratégia psicossocial, promover não o entorpecimento da consciência da maioria da população, mas formar uma consciência favorável e, portanto, participativa no sentido de defender e propagar, de forma contínua e sucessiva, os valores essenciais da ditadura.

Então o desenvolvimento de uma consciência altamente favorável à ditadura dependia, segundo o presidente Costa e Silva, da multiplicação dos símbolos que expressassem a cooperação e a aceitação dos diversos grupos sociais com o regime em vigor, logo a busca de internalização, pela maioria da população, de determinados valores sociais tidos pelo regime como um dos fundamentos de sua existência fazia com que a ditadura insistisse constantemente na exaltação de uma série de símbolos.

Na esfera da educação, as escolas deveriam reforçar com grande assiduidade os símbolos que expressavam o patriotismo (a bandeira nacional, o hino nacional, as datas comemorativas, dentre outros); na esfera da família, o regime batalhava para que fossem propagados, símbolos que enaltecessem os valores considerados por ele como fundamentais e na esfera empresarial, a ditadura solicitava que fossem multiplicados continuamente os símbolos de congraçamento e de cooperação entre o patrão e o empregado.

O regime tentava construir laços indissociáveis entre o povo e os militares, os quais somente podiam ser estabelecidos no plano dos supostos valores subjetivos que eram apresentados como uma das razões básicas do movimento de 1964, então com a busca da acepção desses símbolos

dava-se ênfase às supostas convicções democráticas dos militares, as quais seriam inerentes a eles como uma espécie de valor natural que permitia a justificação das medidas mais repressoras em nome dessa pretensa convicção adquirida pela sua formação militar, logo todos os valores atuantes deveriam, assim, incorporar os valores da instituição militar, tais como: o senso de ordem e de disciplina.

Assim, nessas condições, mesmo a partir da implantação do Estado de terror com a edição do AI-5 (dez. 1968), em que se aboliam paulatinamente os espaços da esfera política, o regime reafirmava de forma inédita a sua pretensão de legitimidade. No plano objetivo prevaleciam às justificativas, por parte do grupo de poder, da necessidade de tomar determinadas medidas visando resguardar, segundo ele, a maioria da população dos atos de uma minoria que contestava a suposta fórmula de democracia da ditadura, ao passo que, no plano subjetivo o regime continuava insistindo em alardear pontos de conexidade entre os seus valores e os valores dos demais grupos sociais.

O MODELO DEMOCRÁTICO MILITAR VERSUS O MODELO SCHUMPETERIANO

Os condutores do regime do período de 1968 a 1985 empenhavam-se em construir um processo de adesão à ditadura através de um pretenso ideário de democracia em que se extinguia da democracia seu caráter representativo, o papel dos diversos agentes sociais no sistema político, a aceitação das medidas legislativas e a competição pela liderança na política como fundamento do método democrático (esses dois últimos nos moldes de Schumpeter); o denominado elitismo democrático, que tomou fôlego a partir da obra de Schumpeter Capitalismo, socialismo e democracia. (SCHUMPETER, J. A. Rio de Janeiro: Zahar, 1984), empenhou-se em tornar a democracia despida de aspirações participativas populares; no entanto, esta perspectiva teórica insiste em apontar quais são os elementos definidores do método democrático; a ausência dos mesmos seria a negação da democracia segundo esta teoria. O regime militar, porém, tentava elaborar um ideário de democracia fora, inclusive, dos próprios parâmetros da teoria elitista.

O método democrático de Schumpeter, por exemplo, é pautado na organização institucional, como forma de se chegar a decisões políticas, ganhando papéis fundamentais, nesse processo, as eleições e o voto; a importância tanto das primeiras quanto do segundo apareciam nos pronunciamentos dos militares sob uma perspectiva angulada pela necessidade de controle total do executivo sobre todo processo político. No suposto ideário de democracia do regime era estabelecido que o poder executivo fosse o único representante legítimo dos diversos segmentos

sociais, enquanto Schumpeter define o caráter representativo do método democrático como um arranjo institucional para se chegar a decisões políticas através da luta pelo voto do povo, a ditadura tentava construir a ideia de que o povo participaria nas decisões tomadas pelo poder executivo independentemente da existência ou não de eleições. Em contraposição à teoria clássica que, segundo Schumpeter, dava ao eleitor um papel irreal de iniciativa, na qual se pressupõe que a competição pela liderança na política desempenha um papel central no seu método político, a competição pela liderança na política não era, porém, sequer admitida pelo regime e seu hipotético ideário de democracia, nem mesmo no interior do grupo de poder.

Nesse sentido, portanto, não surpreende que, somente dentre o período entre o golpe de 1964 e julho de 1977, o regime tenha punido 4.682 pessoas, das quais cerca de um terço foram militares e 10% políticos. Considerando-se apenas o período em que Castelo Branco ocupou a presidência, tivemos, entre cassações e punições, cerca de 2.927 casos, ainda segundo os mesmos dados, depois do governo Castelo Branco, o de Costa e Silva foi o que cassou e puniu mais, com 661casos, seguido pelo de Emílio Garrastazu Médici, com 603 casos; Aliando a forte tendência “legiferante” da ditadura brasileira, que pode ser vista, afora os diplomas legais regulares (como leis e decretos), na edição de 17 Atos Institucionais, 9 Atos do Comando Supremo da Revolução, 105 Atos Complementares e uma série de inúmeros decretos-lei (marcados por toda sua imprecisão conceitual), à montagem do sistema de espionagem, da polícia política e da censura, podemos perceber o caráter um tanto insólito da estrutura de repressão implementada pelo regime militar brasileiro, portanto fica evidente que a concepção de democracia que a ditadura tentava construir não se enquadrava em qualquer modelo teórico.

A FACE REPRESSORA DO REGIME VERSUS A PROPAGANDA DEMOCRÁTICA

O regime militar até 1968 podemos denominá-lo de “ditabranda”, não pelo fato de que até então o regime não havia praticado violência na acepção do caráter brutal de uma ação; mas até então o regime militar instaurado no Brasil estabeleceu uma serie de violências e atentados contra liberdade de expressão e um progressivo fechamento das instituições democráticas.

A promulgação do AI-5 converteu o regime em uma “ditadura” (entenda-se aqui a questão da intolerância a manifestação popular e da oposição ao regime), no qual houve a estruturação de um aparelho de tortura, no qual os métodos de interrogatórios e o sistema processual baseados na Doutrina de Segurança Nacional parecem advir da Inquisição medieval, e além do mais se

analisarmos os dados estatísticos veremos que no período de 1964 a 1977, houve 6.016 denúncias de tortura, sendo que os índices de denúncias relativas antes do AI-5 constituem 8,11% e após constituem 91,88% das denúncias neste período analisado.

Vale dizer que na caracterização dos torturados por gênero há um total de 1.461 indivíduos do sexo masculino e 382 indivíduos do sexo feminino totalizando 1.843 pessoas; vejamos a tabela abaixo:

IDADE Até 18 19 a 21 22 a 25 26 a 30 31 a 35 36 a 40 41 a 45 46 a 50 51 a 60 + de 61 Não consta TOTAL

TOTAL DE TORTURADOS 14 199 495 442 223 135 83 76 90 27 59 1.843

(Dados extraídos do Projeto “Brasil: Nunca Mais” da Arquidiocese de São Paulo, 1985, TOMO V, Volume I – A Tortura)

Neste período, os militares brasileiros iam contra aos princípios que regem os direitos humanos, ao respeito à integridade física e moral do homem, nas décadas de 60 e 70, se transformando em agentes implacáveis da prática repressiva, utilizando os mais sofisticados métodos de tortura importados dos países imperialistas, especialmente dos Estados Unidos; ao contrario do que se prega a constituição atual do Brasil, a tortura na época militar passou a ser estritamente aplicada, com o objetivo de obter informações de pessoas envolvidas com a luta armada, estudantes, presidentes de sindicatos em geral militantes de esquerda, além de servir de instrumento para desmobilizar as oposições por meio de intimidação, atingindo além do indivíduo, que era submetido a interrogatórios, as demais pessoas de seu grupo, que logo ficava sabendo do acontecido.

“A tortura é um jogo judiciário escrito. E a esse titulo mais longe do que às técnicas da

Inquisição, ela se liga as antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios: ordálias, duelo judiciais, julgamento divinos. Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que é torturado, há ainda como espécie de justa: o “paciente” – é o termo pelo qual é designado o suplicado – é submetido a uma série de provas, de severidade graduada e que ele ganha “agüentando” ou perde confessando.” (FOUCAULT, Michel. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. Vigiar e Punir pag. 36)

As torturas eram aplicadas no passado como forma de interrogatório para averiguar a veracidade do crime. O paciente – o torturado – era submetido a tortura, se resistisse a todo processo sairia como inocente ou, se não agüentasse, seria obrigado a confessar algo que talvez nem tivesse cometido, devido as dores da tortura, dessa forma, assim como no passado, na ditadura militar também se utilizavam as torturas; No Brasil com a principio finalidade de amedrontar a oposição, os militares aplicavam de maneira fria as torturas para a busca de informações de grupos que queriam acabar com a ditadura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caráter absolutamente ditatorial do regime que vigorou, no país entre 1964 e 1984, foi se elucidando à medida que esta análise avançava no desvendamento de todos os traços constituintes de sua pretensão de legitimidade. Mereceu destaque, assim, o projeto de homogeneização de toda a sociedade brasileira aos propósitos tanto objetivos quanto subjetivos da ditadura, tendo em vista que eles possibilitaram trazer à tona todos os elementos empregados pelos seus condutores no processo de manutenção daquele sistema de poder.

O efeito deste processo foi, principalmente, o seguinte: ocorreu o reforçamento de uma ideia muito presente na história política brasileira de que eram enormes os benefícios trazidos pela associação entre democracia e poder executivo forte; o que potencializou o desenvolvimento de uma mentalidade não abominadora, por completo, da ditadura.

Pode-se afirmar que o regime militar foi perpassado por duas questões básicas: as ameaças de endurecimento e a preocupação em divulgar um conjunto de idéias e valores que, segundo os seus condutores, comprovava a total e absoluta conexão entre os seus propósitos e os anseios da população brasileira; o que era justificado a partir da peculiaridade de nossa organização social e política já sedimentada através dos tempos, no qual, a construção de um ideário de democracia se constituiu na chave mestra para a compreensão da maneira como aquele regime montou, tanto as

suas estratégias de identificação com a população no plano subjetivo quanto as suas formas de justificar as diversas medidas tomadas, inclusive as mais repressoras, no plano objetivo.

Em todo o período que vigorou a ditadura militar, os seus condutores buscavam reconhecimento para as suas ações e intenções pondo em relevo as qualidades dos militares no poder, tais como: caráter, compromisso cristão, amabilidade com a família e defesa da ordem e da justiça. A criação de laços entre eles e a população era pautada na insistência de que havia uma intimidade emotiva deles com a maioria dos membros da sociedade brasileira e a estratégia psicossocial destacava que o país não estava sendo governado por uma instituição (as Forças Armadas), mas por pessoas com as quais os brasileiros se identificavam; ressaltando, assim, que sob esse aspecto eles se diferenciavam de todos os demais grupos que já tinham estado no poder. Buscava-se reconhecimento e adesão adentrando ao âmago das relações subjetivas, através de sua estratégia psicossocial, o regime difundia que a maioria dos brasileiros eram, então, membros de uma mesma família que se identificavam em todos os planos; Os militares apareciam, porém, como os únicos capazes de conduzi-la, através da correção de nossos erros, da imposição de uma rígida disciplina e da tutoração, a uma forma de organização social que eles atestavam ser superior porque estaria livre das ameaças do comunismo.

Portanto, os setores do clero e segmentos da classe média que foram congregados pelas instituições burguesas a apoiarem o Golpe deflagrado em 31 de Março de 1964, que depois sofreram e sentiram na própria pele os efeitos do regime autoritário; foram apenas vítimas de situações históricas, as quais manipuladas por pequenos e determinados grupos de poder, que possuíam interesses específicos e determinados; foram capazes de levar o povo, em curto prazo, ser gradualmente enganado e levado a fazer algo que não desejava, fazendo com que os fatos que lhe modelaram o destino fossem habitualmente equacionados e decididos em seu nome; dessa maneira concluo com uma frase de Sherry Ortner “ A história não é simplesmente algo que acontece as pessoas, mas algo que elas fazem dentro, claro dos limites muito poderosos impostos pelo sistema em que estão operando”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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