A dura vida dos imigrantes (Resenha de TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico – um século de imigração italiana no Brasil)

September 7, 2017 | Autor: Alexandre Belmonte | Categoria: Immigration
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A dura vida dos imigrantes
Alexandre Belmonte

Resenha de TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico – um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1988, 574 p.

É sempre prudente revisitar os clássicos. Sobretudo quando se trata de uma obra fundante, como é o caso de Do outro lado do Atlântico – um século de imigração italiana no Brasil. É uma obra fundamental para se compreender as peripécias dos italianos em solo brasileiro e sua contribuição para a cultura do país.
O livro traz importantes aportes sobre a história da imigração italiana no Brasil. O primeiro capítulo estabelece um panorama geral dos antecedentes da imigração, os fatores de atração e as condições na Itália às vésperas da emigração em massa. No Brasil, a imigração italiana resolveu uma situação de impasse, num momento em que os fazendeiros tiveram que abandonar gradativamente o antigo sistema baseado em mão-de-obra escrava. Trento chega a considerar a imigração como um dos fatores que levaram à abolição da escravatura.
Entre 1880 e 1924 chegaram ao Brasil aproximadamente 1.400.000 italianos. Vários fatores estimularam essa migração em massa: leis que previam o transporte gratuito, prêmios pagos aos agentes de imigração, escassíssima densidade demográfica do país, a propaganda do país na Europa, subvenção da imigração pelo Estado brasileiro etc.
O principal fator de expulsão dos italianos foi a miséria, impulsionada por depressões agrícolas, altas taxas sobre os preços dos alimentos, confisco de propriedades por dívidas etc. "A fuga, inclusive a pé em pleno inverno, para chegar ao porto de embarque – Gênova – envolvia aldeias inteiras e podia assumir aspectos de verdadeira libertação ...", diz Trento. Claro que por trás da emigração transoceânica, havia também os interesses das sociedades de navegação italianas.
Eram péssimas as condições nos navios e vapores, e a taxa de mortalidade era elevada, sobretudo de crianças. As descrições da travessia são sempre terríveis e dramáticas, incluindo casos de mortos de fome ou por asfixia. Uma vez chegados ao destino, os imigrantes eram alojados gratuitamente por oito dias. Nos anos de grande afluência, a impossibilidade de encontrar emprego imediato levou muitos italianos a mendigar sua sustentação pelas ruas. As péssimas condições de viagem e permanência desses imigrantes suscitou uma série de discussões na Itália, num momento em que surgiam leis que visassem à proteção desses migrantes.
No segundo capítulo, Trento analisa o destino regional da imigração italiana. As províncias do Sul representaram o destino privilegiado nos primeiros anos de imigração. Já em 1848 o governo concedeu a cada província 36 léguas quadradas de terras destinadas à colonização. Apesar disso, a verdadeira colonização italiana no Sul começa em 1875, e começa a estancar em 1892, devido a uma série de fatores, sobretudo à instabilidade política advinda da revolução federalista e à passagem dos serviços de imigração e colonização do governo central para os governos dos estados.
Além do Rio Grande do Sul, outros destinos acolheram esses imigrantes, como Rio de Janeiro, Espírito Santo e, em maior número, Minas Gerais. Mas foi São Paulo o lugar que concentrou mais imigrantes no Brasil: dos 4.100.000 estrangeiros entrados no Brasil entre 1886 e 1934, 56% encontravam-se nesta região, destacando-se os italianos em primeiro lugar em relação a outras nacionalidades, ocupando maciçamente a região cafeicultora, em plena expansão graças à expansão das ferrovias.
O capítulo 3 versa sobre os misteres e classes sociais nos centros urbanos. O emprego urbano será particularmente mais evidente em São Paulo, mas, em menor índice, não deixará de caracterizar cidades como o Rio de Janeiro e outras capitais. O aumento de mão-de-obra favoreceu o incremento da exportação do café e aumento no número de empregos urbanos – comércio, serviços e indústrias. Muitos colonos deixaram a fazenda e tentaram abrir um comércio nos lugarejos e cidades. Quem não dispunha de capital para abrir seu próprio negócio podia empregar-se como assalariado. O mascate foi tipicamente italiano. Ao estabelecer-se na cidade, abria uma lojinha. O mercado varejista e o de jornais estavam quase totalmente em mãos dos italianos.
Até 1920, os imigrantes e seus descendentes representavam a maior parte da classe operária em São Paulo, e uma grande porcentagem dela no Rio de Janeiro. Boa parte dos empresários também possuía origem estrangeira. Uma considerável parcela dos bancos de São Paulo estava nas mãos dos italianos.
Os processos de assimilação e a vida coletiva são abordados no quarto capítulo. Uma preocupação constante da colônia italiana, sobretudo a partir da última década do século XIX, será a recuperação dos laços identitários e a defesa da língua e da cultura italiana. A Società di Beneficenza Italiana surge em 1854 no Rio de Janeiro, já com 126 sócios. Em 1875, funde-se com a Società di Mutuo Soccorso. Em outros estados surgem outras associações de italianos, como no Rio Grande do Sul em 1871 e em São Paulo em 1878. São fundadas escolas e jornais italianos, sobretudo a partir de 1885. As exceções são no Rio de Janeiro, onde em 1854 surge o L'Iride Italiana, e logo depois o Monitore Italiano, jornal de caráter patriótico. Trento indica uma série de jornais que são fundados mais ou menos por todas as grandes cidades brasileiras, muitos estão intimamente ligados ao movimento operário de início do século XX. Em São Paulo, o primeiro jornal italiano foi o Garibaldi, surgido em 1870. Há a presença de iniciativas jornalísticas mesmo onde a colônia italiana era escassa, como no Pará, na Bahia e em Pernambuco. Vários jornais professaram abertamente uma posição apolítica Escolas italianas como a Dante Alighieri eram instrumentos para manter vivos o conceito de italianidade e os laços com a Itália.

Sobre o movimento operário é dedicado o quinto capítulo da obra. No Brasil, como na Europa, as condições do proletariado foram dramáticas, com jornadas de trabalho de até 16 horas em determinados períodos do ano. O surgimento de organizações operárias no Brasil foi tardio, como a própria industrialização. Entretanto, já em 1891 tinha-se notícia de que chegavam ao país trezentos socialistas romanos. O surgimento do movimento operário no Brasil dependeu do elemento estrangeiro. Italianos, espanhóis e portugueses formaram a maioria dos quadros dirigentes das organizações operárias. Muitos eram socialistas ou anarquistas, e surgem as primeiras publicações de orientação proletária, como Gli Schiavi Bianchi ("Os escravos brancos"), que já fala de "tirania burguesa", "escravidão do capital" e "injustiças". Segundo Trento, "uma parcela mínima de emigração com experiência política chegou de fato ao Brasil, mas seu peso quantitativo foi muitas vezes mitificado pelos libelistas da época e pela historiografia posterior" (p. 217). Em 1907 foi aprovada pelo parlamento brasileiro o projeto 1.641, que previa a expulsão do país dos estrangeiros que representassem perigo para a segurança nacional ou para a tranquilidade pública. Muitos anarquistas italianos foram extraditados, como Gigi Damiani, expulso em 1919.
No período entre as duas guerras, conforme aponta o capítulo 6, a porcentagem de italianos que entraram no país caiu drasticamente: pouco mais de 89.000 indivíduos, de acordo com as estatísticas italianas, e quase 120.000, de acordo com as brasileiras. No mesmo período, entraram na Argentina mais de 610.000 pessoas. A partir dos anos vinte, o Brasil não exercerá mais nenhuma atração, ainda que a necessidade de mão-de-obra fosse constante. As repatriações eram cada vez mais crescentes. A partir dos anos 1920, a imigração sofreu mudanças significativas na sua composição profissional, no momento em que o Brasil conheceu um forte desenvolvimento industrial. Os italianos estão maciçamente presentes no comércio, mas também começam a se afirmar nas profissões liberais, sobretudo na cidade de São Paulo. A partir da metade dos anos 1920, começou-se a assistir a uma campanha para que os italianos matriculassem seus filhos em escolas italianas. Algumas polêmicas em relação à orientação fascista das escolas italianas começaram a surgir, e atingiam inclusive os livros didáticos em uso. Num deles, Le due Patrie, de Sestilio Montanelli, descrevia-se o caboclo como "preguiçoso, sujo, indolente, capaz de passar dias inteiros deitado" (p. 295). Para minimizar a influência fascista nessas escolas, criou-se uma lei que determinava que português, história e geografia do Brasil deveriam ser ensinados exclusivamente por professores brasileiros. Além de tentar manter viva a italianidade e de inculcar uma ideologia nos descendentes dos italianos, o governo italiano do entre-guerras também esforçou-se para garantir uma maior presença intelectual no Brasil, seja enviando professores universitários, seja na criação de novas escolas. A propaganda fascista no seio da comunidade italiana não encontrava muita resistência por parte do governo brasileiro. Tanto os anarquistas quanto os comunistas italianos se mantiveram à margem do movimento antifascista.
O último capítulo da obra de Trento analisa a situação do pós-guerra. Novamente a emigração aparece para os italianos como solução para os problemas criados pela escassez de trabalho e capitais. Uma boa parte desse fluxo migratório dirigiu-se para outros países europeus, embora um fluxo consistente tenha se direcionado às Américas. Seguiu-se um período de assinaturas de acordos entre Itália e Brasil, com a abertura de um Escritório Comercial Brasileiro em Milão e de Câmaras Italianas de Comércio no além-mar. Mas nem a presença, em 1947, de 207 empresas italianas em São Paulo pôde incrementar o aporte maciço de italianos ao país. Conforme diz Trento, "o estado de espírito de quem emigrava, talvez com medo de que um novo conflito ainda pudesse sacudir a Europa (...) não podia deixar de refletir o horror pelas devastações e pelos sacrifícios humanos, os sofrimentos e o desespero que, por tanto tempo, haviam assinalado o destino da pátria" (p. 450). A mentalidade desses italianos era diferente da dos que haviam imigrado trinta ou quarenta anos antes. A recusa em submeter-se e em aceitar compromissos humilhantes traduziam novas exigências dos italianos, o que muitas vezes era visto como vagabundagem, indolência etc.
Conforme diz Trento, "fazer a América" foi uma empresa que custou fadiga, humilhação, desespero, até mesmo para quem teve êxito. Passados os tempos de imigração maciça, "os protagonistas conhecidos e obscuros desses sacrifícios não devem ser esquecidos" (p. 488). A obra de Trento é testemunho disso.

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