A emergência da mercadoria força de trabalho: algumas implicações.

September 27, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Historia, História, Teoria Social, Teoria Sociológica, TEORIA MARXISTA
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A EMERGÊNCIA DA MERCADORIA FORÇA DE TRABALHO: ALGUMAS IMPLICAÇÕES

José Flávio Motta

Iraci del Nero da Costa [1]

Largo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido,
também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro
e capital. Esse desenvolvimento nada mais é que o processo do qual resulta
a universalização das ditas formas. Mercadoria, dinheiro e capital,
relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer,
universalizam-se objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria
força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto.
Assim, pois, este último passa a dispor livremente -- porque juridicamente
livre e despossuído de outros meios de subsistência -- dessa mercadoria,
da qual é pleno proprietário, no âmbito de uma sociedade na qual todos são
fixados como proprietários absolutos de suas mercadorias. Em suma, a
emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo de produção
capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador livre em
assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos meios de
produção -- e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a propriedade de
dinheiro ou outros haveres -- em capitalista.

Dentre as inúmeras implicações do surgimento da mercadoria em
questão, ocupamo-nos, alhures, dos atributos do capitalismo como forma
superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. [2]
Agora, nossa atenção centra-se em algumas outras das mencionadas
implicações: primeiramente, o movimento de autonomização, ou seja, de
isolamento, do âmbito econômico; outrossim, o fenômeno da "coisificação" do
homem, isto é, de sua total desumanização; e, por fim, em perfeita sintonia
com ambos, a possibilidade que se concretiza, no plano das idéias, da
definição da economia como ciência autônoma com objeto próprio e claramente
delimitado e, mais ainda, o estabelecimento de uma determinada teoria -- a
teoria neoclássica -- enquanto paradigma inegavelmente bem sucedido na
descrição da realidade dada pelo modo de produção capitalista.

A autonomização do econômico decorre da mercantilização da força de
trabalho e ambas definem-se nos quadros do capitalismo. De fato, como
observa Lukács, "(...) en las sociedades pre-capitalistas las formas
jurídicas tienen que penetrar constitutivamente en las relaciones
económicas. En estas sociedades no hay categorías económicas puras --
categorías económicas son según Marx 'formas de existencia, determinaciones
de la existencia' -- presentadas posteriormente en formas jurídicas,
fundidas en el molde de la forma jurídica. Sino que las categorías
económicas y las categorías jurídicas están materialmente, por su
contenido, inseparablemente entrelazadas. (Piénsese en los ejemplos (...)
de la renta de la tierra y el impuesto, la esclavitud, etc.). Dicho
hegelianamente: la economía no há alcanzado tampoco objetivamente en esas
sociedades el estadio del ser-para-sí, y por eso no es posible, en el seno
de una tal sociedad, una posición a partir de la cual pueda hacerse
consciente el fundamento económico de todas las relaciones sociales"
(LUKÁCS, 1975, p. 62).

O exemplo do escravismo, aduzido por Lukács, é seminal ao propiciar-
nos feliz contraponto ao binômio autonomização do econômico/mercantilização
da força de trabalho. Nesse contexto, são pertinentes as considerações
efetuadas por Castro, em sua análise do escravismo da época mercantilista:
"No capitalismo, uma vez constituído o proletariado, a pressão surda das
condições econômicas sela o poder de mando do capitalismo sobre o
trabalhador. Caracteristicamente, no entanto, no escravismo moderno --
onde o escravo atua, 'portas adentro', como um proletário -- não há em
princípio mecanismos socioeconômicos a determinar o seu comportamento. No
capitalismo, mais uma vez, 'os agentes principais deste sistema de
produção, o capital e o operário assalariado, não são, como tais, mais que
encarnações, personificações do capital e do trabalho assalariado,
determinados caracteres sociais que o processo social de produção imprime
nos indivíduos ...' fazendo com que a história do proletariado tenda a
correr pelos trilhos da história do capital. No escravismo aqui estudado,
no entanto, um pelo menos dos 'agentes principais' não tem o seu caráter
social efetivamente moldado pelo regime de produção e, conseqüentemente,
não pode ser considerado como a encarnação de uma categoria econômico-
social (...). Os escravos são fundamentalmente 'cativos' e se ajustam (bem
ou mal) ao aparelho de produção de que tratamos, por uma combinação mais ou
menos eficaz de violência, agrados, persuasão etc. Paradoxalmente,
portanto, os escravos, que a tradição juridicista teima em chamar de
'coisa', impossibilitam a reificação das relações sociais - com o que fica
definitivamente prejudicada qualquer tentativa no sentido de 'descobrir a
lei econômica que preside o movimento' deste regime social" (CASTRO, 1980,
p. 93-94).

As considerações de Castro lembram, ademais, os vínculos que se
estabelecem entre a autonomização do econômico e a "coisificação" do homem,
vínculos estes que se assentam, repisemos uma vez mais, na emergência da
mercadoria força de trabalho, elemento fundante do modo de produção
capitalista. Assim, no capitalismo, o trabalhador assalariado define-se
como mero portador de relações sociais, no caso, a mercadoria em tela;
correlatamente, o capitalista atua como personificação do capital. O homem,
pois, desumaniza-se, deixa de estar presente, -- ou melhor, consubstancia-
se numa presença ausente -- aliena-se. Agir como coisa e conformar-se a
tal papel: esta a maneira de atuação efetiva do homem na forma hodierna de
sociabilidade humana.

Ora, aí estão postas as condições para o surgimento da ciência
econômica como algo dado historicamente. Seu início demanda a prévia
mercantilização da força de trabalho, pois antes era impossível a própria
emergência da ciência econômica como ramo específico do conhecimento. Seu
objeto havia que se autonomizar. Como escreve Lukács, "tampoco es casual
que la economía política no haya nacido como ciencia sustantiva sino en la
sociedad capitalista. Y no es casual porque la sociedad capitalista, por su
organización mercantil y del tráfico, há dado a la vida económica una
peculiaridad tan autónoma, tan cerrada y tan basada en legalidades
inmanentes, que en vano se buscará en las sociedades anteriores" (LUKÁCS,
1975, p. 98).

Por outro lado, se os homens agem como coisas, é preciso vê-los como
mera coisa, isto é, de uma perspectiva positivista. Daí a economia
neoclássica mostrar-se plenamente aparelhada para descrever tal homem. A
esse conhecimento, como instrumento de entendimento e/ou manipulação, basta
captar o comportamento dos agentes econômicos; para maximizar não é
necessário saber porque o homem age mas, tão-somente, como ele se
comportará tendo em vista esta ou aquela mudança nas variáveis econômicas.
O caráter ideológico da teoria neoclássica reside no fato de pretender ser
aplicável para sempre, e isto só será verdade se as condições dadas não
forem mudadas pelo homem. Dessa forma, observamos que, nos limites do
capitalismo, a aludida teoria, enquanto conhecimento que tenta captar o que
é, não é passível de reparos, à exceção dos decorrentes de critérios
internos de cientificidade. Isto porque ela espelha fielmente, presente o
seu escopo, o comportamento do homem no contexto de sua absoluta
desumanização.

Em suma, a crítica não pode ser dirigida à teoria neoclássica, mas à
sociedade - ao capital - da qual ela é mera descrição. Negar a teoria
neoclássica nada significa, pois ela só será negada de fato quando aquela
realidade for suprimida. Por conseguinte, a tarefa de negar os neoclássicos
não caberá aos economistas ou filósofos, mas ao cidadão. A crítica será
feita mediante a ação política e não pela via do discurso teórico. A este
cabe, justamente, mostrar que os neoclássicos estão certos ao espelharem
uma realidade que, esta sim, tem de ser mudada se quisermos viver -- criar
-- um mundo humano que possa se contrapor -- fazer o reencontro do homem
com sua humanidade -- à assim chamada sociabilidade natural, da qual o
capitalismo é a forma superior.



Referências Bibliográficas


CASTRO, Antônio Barros de. A economia política, o capitalismo e a
escravidão. In: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de
produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 67-107.
(Coleção História Brasileira, 5).

LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona: Grijalbo, 1975.
(Instrumentos, 1)

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 172, p. 20-23,
janeiro/1995a.

MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início
da história: um adendo. Informações Fipe. São Paulo: FIPE, n. 174, p.
21-23, março/1995b.
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[1] Professores da FEA/USP.
[2] Ver MOTTA & COSTA (1995a e 1995b).
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