A emergência do mar e os modelos de governança das áreas costeiras

August 24, 2017 | Autor: Nuno Leitão | Categoria: Coastal Management, Coastal and Marine Spatial Planning
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A emergência do mar e os modelos de governança das áreas costeiras Nuno Leitão1 1) e-GEO Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional, FCSH-UNL, Portugal [email protected]

Resumo O meio marinho caracteriza-se pela imensidão, ocupando 71% da superfície terrestre e 99% do espaço da biosfera. Simultaneamente, uma parte significativa da população terrestre (40%) vive numa estreita faixa de terreno, que é contígua aos meios marinhos (cerca de 2,8 mil milhões de pessoas vivem a 100 km da costa). Portugal, em função do seu posicionamento geográfico é um país de pendente, claramente marinha (cerca de 1,7 milhões de km2 de ZEE), mas também um país com uma extensa e ocupada zona costeira, daí decorrendo diversos conflitos relacionados com a ocupação de um espaço que apresenta limitações diversas. O progressivo esgotamento e encarecimento de recursos alimentares, minerais, energéticos ou outros, nas áreas emersas, estimulam um interesse crescente pelo mar, que se vem traduzindo em transformações nas áreas marinhas e nas faixas costeiras, transformações mais ou menos conflituantes com os usos e recursos presentes, e que sugerem novas abordagens e modelos de governança diferentes. Palavras-chave: espaço marítimo, zonas costeiras, governança

1. Introdução As transformações decorrentes do aumento de interesse pelo mar (SaeR/ACL, 2009), seja pelo crescimento de bens e serviços com ele relacionado, seja pelos maiores esforços de conservação da biodiversidade marinha ou pela crescente importância do mar no presente contexto de alterações climáticas, suscitam novos desafios para os quais, os atuais modelos de governança podem não estar preparados (Portman, 2011) (Halperna, et al., 2012). De facto, muitos dos interesses pelo mar e/ou pelas zonas costeiras são antagónicos, razão pela qual, e em especial ao longo dos últimos anos, estas preocupações se têm traduzido num conjunto de documentos, entidades institucionais e instrumentos, à escala nacional, comunitária e mundial, que procuram geri-los e compatibilizá-los (Meiner, 2010) (WWF, 2011) (Halperna, et al., 2012). Reconhecendo que muitos dos projetos e iniciativas nas áreas marinhas se traduzirão em impactos nas áreas costeiras, espaços que lidam já com pressões de várias naturezas (urbanísticas, turísticas, industriais, portuárias, piscatórias, etc.) (Toropova, Meliane,

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Laffoley, Matthews, & Spalding, 2010) (Calado, Borges, Phillips, Ng, & Alves, 2011), os modelos de governança devem considerar, especialmente a forma como se articulam ambos os territórios. 2. Zona costeira e espaço marítimo português: um enquadramento conceptual O espaço marítimo sobre soberania ou jurisdição portuguesa, presentemente compreende as áreas que vão desde a linha de máxima preia-mar de águas vivas equinociais até ao limite da Zona Económica Exclusiva, as 200 milhas náuticas, definidas de acordo com a Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97, de 14 de outubro e pela Lei n.º 34/2006, de 28 de julho. Para além deste espaço, há que considerar ainda as áreas que Portugal pode vir a reclamar no âmbito do processo de alargamento da plataforma continental, conduzido pela Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental. Se a proposta for aceite, serão mais de !2,15 milhões km2 os novos espaços sobre jurisdição portuguesa, mas apenas ao nível dos fundos marinhos e respetivos recursos, não se estendendo essa jurisdição, por exemplo à navegabilidade superficial. Portugal, e o seu espaço marítimo caracterizam-se por ser, também um somatório de partes distintas, nomeadamente, de uma que circunscreve um território continental europeu, e de outras duas que circunscrevem duas regiões insulares, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, no Atlântico. No que respeita à zona costeira nacional, ela é igualmente extensa, tanto a parte continental, como a parte arquipelágica atlântica. Ela concentra cerca de 3/4 da população e representa 85% do PIB nacional (MAMAOT, 2012). As áreas costeiras e estuarinas são zonas de elevada produtividade e diversidade de habitats, estando esta riqueza ameaçada pelo homem através de múltiplas ações, tais como dragagens de fundos, efluentes domésticos, extração de areias, descargas químicas e orgânicas, aquicultura intensiva e extensiva, sobrepesca, atividades de recreio, etc. (Costa & Marques, 2010). Para além destes problemas, podem ainda elencar-se outros tantos, cujo relacionamento com a ação antrópica é menos óbvio, nomeadamente, galgamentos/inundações, instabilidade das arribas e movimentos de massa de vertente (Calado, Borges, Phillips, Ng, & Alves, 2011) (MAMAOT, 2012).

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Outra problemática recorrente relacionada com as zonas costeiras, diz respeito à definição dos seus limites interiores, dado que a dinâmica destas áreas é quase sempre incompatível com a imposição de limites rígidos (MAOTDR, 2007a) (Gomes, 2007). Neste contexto de elevada pressão humana, podem-se conhecer agravamentos se os vários projetos e iniciativas que se conhecem e que se perspetivam para as zonas costeiras e espaço marítimo forem implementados (EC/MAF, 2011), uma vez que terão de ter apoios em terra e/ou carecerão, por exemplo, de alargamentos portuários, de novas instalações industriais próximas da costa, alterações na paisagem, etc. 3. Transformações em curso e/ou previsíveis O espaço marítimo nacional, por via dos vários estudos e interesses conhecidos, prospetiva uma série de tendências que a verificarem-se, transformarão a relação que a sociedade portuguesa tem com o mar, quer pela via da intensificação dos usos e atividades já presentes, como pelo aparecimento de novas. As zonas costeiras serão, também afetadas por essas transformações. No domínio do transporte marítimo é expectável que se observe uma valorização do transporte marítimo, tomando como premissas o acréscimo de valor através de cadeias logísticas e de instrumentos de normalização e simplificação de procedimentos, e todo o apoio em terra. O setor da construção e reparação naval também se pode valorizar, desde que centrado numa produção especializada, flexível e que vá de encontro aos critérios de especificidade de uma procura diferenciada (MOPTC, 2006). No âmbito energético, é sabido que o aumento do consumo de energia será uma realidade nas próximas décadas, bem como o encarecimento das vias tradicionais pelas quais se obtém essa energia (ex: importação de combustíveis fósseis). Espera-se, por isto, um aumento da produção energética, quer pela via dos combustíveis fósseis em áreas deep offshore (áreas ao largo da costa a profundidades elevadas), quer pela via eólica ou das ondas (Ross, 2009). Para além da energia, antevê-se que se possam extrair recursos minerais do leito marinho. Apesar dos elevados custos desta exploração, o esgotamento e encarecimento dos mesmos nas partes emersas da superfície da Terra, bem como o crescimento da procura por outros países em acelerado ritmo de desenvolvimento (ex: China, Índia, etc.), tornará, progressivamente viável a exploração e extração em áreas marinhas.

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No domínio da pesca e aquicultura, vários autores parecem convergir para a ideia de que mais investigação e uma melhor seleção das áreas marinhas mais adequadas para a pesca, aquicultura ou aquicultura offshore, permitirão aumentar a produtividade destes setores (IUCN, 2009) (Torres & Andrade, 2010). No âmbito do turismo e lazer, importa destacar a tendencial valorização do turismo nas áreas balneares, dos desportos e da náutica de recreio, da organização de provas desportivas internacionais, da pesca desportiva, do turismo de cruzeiros, e de outras atividades relacionadas com o mar (EC/MAF, 2011), potenciado por aspetos nacionais como as boas condições climáticas ou pela diversidade cénica e paisagística. As áreas costeiras são apetecíveis por todas as oportunidades económicas e ambientais que apresentam, portanto são espaços muito atrativos e que concentrarão, tendencialmente sempre muita população. A par da concentração populacional, a dispersão residencial é outra tendência que importa considerar, pois a ela se associam outros problemas como a redução das terras aráveis, a perda de biodiversidade, a degradação da qualidade do ar e da água ou uma maior exposição a riscos naturais, tecnológicos ou mistos (Sekovski, Newton, & Dennison, 2012). 4. Notas finais Considerando as várias mudanças em perspetiva e respetivos impactos é possível condensar estas ideias numa única: interesses particulares e públicos, facilmente colidirão, estando a sua gestão obrigada a novas formas de atuação. Existem domínios/setores que podem coexistir facilmente, mas outros que são incompatíveis, ou cuja compatibilidade tem de ser financiada. Por governança entende-se como um articulado de visões, princípios, objetivos, políticas, entidades e instrumentos, que se dispõem e organizam em modelos. A governança destes territórios, e sobretudo a compatibilização de abordagens e de diferentes especificidades que cada um deles apresenta tem afirmado um elemento que pode potenciar a valorização do mar, nomeadamente o ordenamento do espaço marítimo1 (Calado, et al., 2010) (Portman, 2011).

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O ordenamento do espaço marítimo pode resumir-se como um ou mais planos estratégico de regulação, gestão e proteção do ambiente marinho, considerando a multiplicidade de usos potencialmente conflituantes no mar, aos quais se podem subordinar outros planos ou processos relacionados com o espaço marítimo.

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A complexidade da governança das áreas costeiras e do espaço marítimo é evidente pelo elevado número de documentos, entidades e instrumentos que se têm de articular, só do lado da ação pública (Martín, 2012). As entidades particulares não devem ser excluídas destes modelos, contudo, acrescentam-lhes complexidade, e adensam a conflitualidade. Outras experiências não-nacionais de governança do espaço marítimo e costeiro têm revelado abordagens e resultados distintos. Importa, naturalmente considerar os casos em que há mais semelhanças com a realidade nacional, ou seja, as áreas onde se observem conflitos entre diferentes usos do solo (turismo, urbanismo, aquicultura, transportes marítimos, pesca, etc.). Os casos europeus serão, por isto, os mais próximos e os exemplos mais significativos para o modelo português. Em síntese, a governança deste interface poderá oscilar entre modelos mais dirigistas onde o Estado e as suas instituições assumem maior protagonismo, ou modelos mais liberais em que o Estado está presente e promove o envolvimento de entidades particulares na construção e implementação do modelo de governança e respetivas políticas. Se os Países Baixos optam por um modelo de governança mais liberal, deixando aos particulares espaço para o desenvolvimento das respetivas iniciativas, em Portugal a tradição tem sido a de o Estado ser o principal ator nos modelos de governança, não obstante o esforço de abertura à sociedade civil por meio de amplos programas de participação pública e de apelos à participação financeira na concretização de políticas e projetos no espaço marítimo. Os desafios aos quais é preciso dar resposta são imensos e obrigarão à redefinição de modelos de governação centrados na figura do Estado, como é o caso português. A participação de organizações não-governamentais, de entidades particulares e/ou de outros elementos da sociedade civil é fundamental, não só para minimizar conflitos que se venham a observar pela disputa de territórios e respetivos recursos, como também para concretizar a almejada valorização do espaço marítimo nacional, e não menos importante, das respectivas zonas costeiras. 5. Referências bibliográficas Calado, H., Borges, P., Phillips, M., Ng, K., & Alves, F. (2011). The Azores archipelago, Portugal: improved understanding of small island coastal hazards and mitigation measures. Natural Hazards, 427-444.

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Calado, H., Ng, K., Johnson, D., Sousa, L., Phillips, M., & Alves, F. (2010). Marine spatial planning: Lessons learned from the Portuguese debate. Marine Policy, 34(6), 13411349. Costa, M. J., & Marques, J. C. (2010). Bacias Hidrográficas e Zonas Costeiras. In N. V. Matias, V. Soromenho-Marques, J. Falcato, & A. Leitão, Políticas Públicas do Mar. Para um Novo Conceito Estratégico (pp. 82-85). Lisboa: Esfera do Caos. EC/MAF. (2011). Study on the economic effects of Maritime Spatial Planning. European Commission, Martime Affairs and Fisheries. Luxembourg:: Publications Office of the European Union. Gomes, F. V. (2007). A Gestão da Zona Costeira Portuguesa. Revista da Gestão Costeira Integrada, 7(2), 83-95. Halperna, B. S., Diamondb, J., Gainesc, S., Gelcichd, S., Gleasone, M., Jenningsf, S., . . . Ziviant, A. (2012). Near-term priorities for the science, policy and practice of Coastal and Marine Spatial Planning (CMSP). Marine Policy, 36, 198-205. IUCN. (2009). Guide for the Sustainable Development of Mediterranean Aquaculture Aquaculture Site Selection and Site Management (Vol. 2). Gland, Switzerland & Malaga, Spain: International Union for Conservation of Nature and Natural Resources. MAMAOT. (2012). Plano de Ação de Valorização e Proteção do Litoral [2012-2015]. Lisboa: Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território. MAOTDR. (2007a). Estratégia Nacional para a Gestão Integrada da Zona Costeira. Lisboa: Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. Martín, M. L. (2012). Governança Oceânica - Bases estratégicas para o desenvolvimento do “Mar dos Açores” (Vol. Dissertação de Doutoramento). Ponta Delgada: Universidade dos Açores. Meiner, A. (2010). Integrated maritime policy for the European Union - consolidating coastal and marine information to support maritime spatial planning. Journal of Coastal Conservation, 14(1), 1-11. MOPTC. (2006). Orientações Estratégicas para o Setor Marítimo-Portuário. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações. Portman, M. E. (2011). Marine spatial planning: achieving and evaluating integration. Journal of Marine Science, 68(10), 2191–2200. Ross, C. (2009). Exploiting the Deep Oceans for Energy Retrieval and for the Burial of Carbon Dioxide. The Open Oceanography Journal, 3, 50-58. SaeR/ACL. (2009). O Hyperculster da Economia do Mar - Um Domínio de Potencial Desenvolvimento da Economia Portuguesa. Lisboa: Associação Comercial de Lisboa. Sekovski, I., Newton, A., & Dennison, W. C. (2012). Megacities in the coastal zone: Using a driver-pressure-state-impact-response framework to address complex environmental problems. Estuarine, Coastal and Shelf Science, 96, 48-59. Toropova, C., Meliane, I., Laffoley, D., Matthews, E., & Spalding, M. (2010). Global Ocean Protection - Present Status and Future Possibilities. New York, France: IUCN WCPA. Torres, C., & Andrade, C. (2010). Processo de decisão de Análise Espacial na seleção de áreas ótimas para a Aquacultura Marinha: O exemplo da Ilha da Madeira. Revista da Gestão Costeira Integrada, 10(3), 321-330. WWF. (2011). WWF call for EC leadership on Integrated Sea Use Management: A response to the Commission’s Impact Assessment on options for action on Maritime Spatial Planning and Integrated Coastal Zone Management. WWF.

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