A EMERGÊNCIA DO PROTAGONISMO JUVENIL: a crise do paradigma razão na faculdade salesiana de Lorena nas décadas de 1960 - 1970

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DILSON PASSOS JÚNIOR

A EMERGÊNCIA DO PROTAGONISMO JUVENIL: A Crise do Paradigma "Razão" na Faculdade Salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970

Universidade São Francisco Bragança Paulista 2004

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DILSON PASSOS JÚNIOR

A EMERGÊNCIA DO PROTAGONISMO JUVENIL: A Crise do Paradigma "Razão" na Faculdade Salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970 Dissertação de Mestrado nos Estudos Pós-Graduados em Educação, sob a orientação da Prof.a. Dra. Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho.

Universidade São Francisco Bragança Paulista 2004

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Aos meus pais Dilson e Laurete que me ensinaram a dignidade e a honestidade pelos testemunho de suas vidas. A minha irmã Isabel pelo seu apoio e amizade E ao meu sobrinho Marcelo na construção de sua vida profissional como universitário

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Ao Professor José Luíz Pasin Que como historiador e pesquisador da história do Vale do Paraíba e protagonista destes acontecimentos me deu certeza dos caminhos trilhados em minha pesquisa ajudando-me a reconstituir o passado e me indicando pistas a seguir.

Ao Padre Antônio da Silva Ferreira Que nos seus depoimentos ajudou-me a reconstituir os intrincados caminhos da história da década de 1960 e que compartilhou em declarações escritas e orais de experiências que se perderiam na bruma do passado e que me deram certeza da mudança do Paradigma Razão

Minha especial gratidão

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Toda idéia nasce quando se diz "não". É a negação que me faz pensar. Pedro Almada

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A História se faz pela vida. É a ação da direita, da esquerda, do centro, e mesmo dos alienados... A História se faz por homens que mudam a cultura e a sociedade. Nada permanece o mesmo quando se pensa. Tetuo Koga

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RESUMO

A Faculdade Salesiana de Lorena - SP - Brasil - foi fundada em 1951 apoiada nos princípios educacionais elaborados por João Bosco: Razão. Religião e Bondade. Na década de 1960, especificamente no ano de 1968, os movimentos estudantis desestabilizaram esta instituição de ensino com a inserção de ideais marxistas. Os seminaristas salesianos, ao participarem das assembléias estudantis acabaram por sofrer influências que alteraram sua concepção da Razão na forma como tinha sido elaborada por João Bosco, que via no jovem um receptor da verdade. Nesta nova mentalidade o jovem é concebido, não mais como receptor, mas como construtor da verdade. Apesar das fortes retaliações a esta nova concepção ela se impôs num conceito novo de Racionalidade no ambiente salesiano, concebida agora como Protagonismo Juvenil. Racionalidade - Crise da Racionalidade - Protagonismo Juvenil

ABSTRACT The Salesian College of Lorena – SP – Brazil – was founded in 1951 based on the educational principles created by John Bosco: Reason, Religion and Goodness. In the 60s, more accurately in 1968, the students’ movements changed our Institution introducing Marxist ideas. Salesian Seminarians, when taking part in Student Meetings, ended up under influences that altered their understanding of Reason in the way it had been established by John Bosco, who used to see the children as receivers of the Truth. In this new way of thinking, the children are conceived not as receivers but as architects of the Truth. In spite of the strong retaliation to this new concept, it imposed itself in a new definition of Rationality in the Salesian atmosphere, now understood as Youth Leadership. Rationality – Crises of Rationality – Youth Leadership

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ÍNDICE

Apresentação _________________________________________________________08 Introdução ___________________________________________________________10 1 - Princípios e Fundamentos metodológicos_______________________________18 2 - A Pedagogia Salesiana e sua Gênese ___________________________________45 2.1 - João Bosco, Fonte Primeira como Fundador ______________________48 2.2 - Vida de João Bosco___________________________________________49 2.3 - Os princípios fundantes: Razão, Religião e Amorevolezza __________53 2.4 - As bases filosóficas da Pedagogia Salesiana_______________________56 2.5 - Sua prática educacional ______________________________________57 3

- A Implantação e a Consolidação da Presença salesiana no Brasil_________61

4 - A Fundação da Faculdade Salesiana __________________________________78 5 - A Década de 1960 _________________________________________________100 6 - A Crise Institucional ______________________________________________116 7 - A Crise do Paradigma "Razão" _____________________________________142 8 - A Emergência da Racionalidade Ativa ________________________________161 Considerações Finais _________________________________________________177 Referencial Bibliográfico ______________________________________________185

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APRESENTAÇÃO

Os fatos que emergem no cotidiano da História são causados por processos complexos. Não basta à História apenas catalogá-los num certo período de tempo ou num determinado espaço geográfico, mas, sobretudo, interpretar os processos que os fazem irromper. O fato, enquanto fato, é episódio momentâneo e fugaz. Mas as forças profundas que o geram só são perceptíveis pelo processo de reflexão, de análise e de conjunção de fatores. A concentração de fatos semelhantes permite ao pesquisador supor que nascem de um mesmo substrato, seja político, social ou econômico. A estas "forças profundas" o Marxismo chamará de infra estrutura 1 e suas manifestações de superestruturas, sendo estas, nada mais que o resultado natural destas “forças subterrâneas”. Para melhor delinear estes fenômenos, realiza-se um recorte de tempo que permite aglutinar num mesmo “espaço histórico-temporal” fatos que emergem de um "substratum" comum.

O homem comum percebe os fatos sem conectá-los

logicamente. O observador superficial percebe a relação, de superfície, entre os fatos. Somente o pesquisador-cientista percebe os processos profundos que os geram e que os fazem emergir para a temporalidade do momento histórico.

Tais “recortes” e

delimitações temporais nos ajudam na posse do processo gerador dos fatos, organizando assim nosso conhecimento, sistematizando-o, caracterizando-o, tornando-o científico. Todo grande fato histórico é resultado de um processo, que, entendido nas forças que o organizam, nos faz compreender não só o fato histórico em si, mas o próprio processo

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- No conceito marxista o modo de produção é determinante para a formação da super estrutura, que são as diversas formas de Instituições sociais, que sempre se configuram, à infra estrutura econômica.

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que o gera. No estudo da História alguns episódios delimitados num determinado período, sinalizam forças que, não sendo visíveis, interferem no nível temporal do cotidiano. É importante perceber que tais fatos, aglutinados e percebidos por uma ótica profunda, nos sinalizam o tipo de forças que estão escondidas no substrato do cotidiano. Assim cabe à historiografia ao interpretar os fatos, perceber suas injunções com o substrato da História.

A superfície sobre qual "navegaremos" é a dos fatos, mas perseguimos as idéias mais profundas que criaram e configuraram uma instituição de ensino superior. Terminando esta pesquisa verificamos a imensa riqueza que se esconde por detrás dos arquivos pesquisados. Sentimos o desejo de continuar, de aprofundar, de esclarecer detalhes e de descobrir novos documentos. A frustração é um ótimo sentimento de quem mergulha na pesquisa, pois sentir que não abraçamos tudo, e que, existe um universo inexplorado, se nos desalenta de um lado, nos desafia de outro.

Mesmo depois da redação final

percebemos que muita coisa complementaria e enriqueceria o que já está escrito. Ter que finalizar um texto, se de um lado representa um alívio , de outro fica certa insatisfação: poderia ser melhor, poderia ser mais profundo...

Fica, porém, para nós evidentes, que, nesta pesquisa, tocamos em algo até agora não refletido. Não temos dúvidas em afirmar a dimensão inédita de nossa abordagem. Ela não deixa de ser provocativa, questionadora e desafiadora. As adesões às nossas proposições de protagonistas que viveram esses fatos nos dão certa tranqüilidade. Mas sabemos que nem sempre haverá essa unanimidade. E, é exatamente esta tensão dialética entre o afirmado e o contestado que fomenta a pesquisa. É na velha "disputatio" que se constrói a Ciência, que nunca será unânime, porque nunca terá dito a última palavra.

Dilson Passos Júnior

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INTRODUÇÃO

A Faculdade Salesiana de Lorena foi fundada na década de 1950. O seu cinqüentenário fomentou diversas produções sobre sua história. Uma, se assim podemos chamar, “préhistória” da faculdade, foi elaborada pelo historiador e professor José Geraldo Evangelista,2 que, indiretamente, ao descrever os primeiros 50 anos da presença salesiana em Lorena, apresentou os pressupostos humanos, sociais e materiais que dariam condições para a implantação da faculdade. O foco central de sua obra é o colégio São Joaquim, sendo porém que foi no entorno de sua história que se criaram as condições da fundação da faculdade. O cinqüentenário foi marcado por palestras, artigos e testemunhos, destacando-se de um lado o livro3 do professor Francisco Sodero, com farta e consistente base documental que reconstituiu os primeiros 50 anos da Instituição, e, de outro, o livro4 de Beatriz Borrego5 que enfocou o movimento estudantil na década de 1960, movimento este que se tornou símbolo e referencial do anseio de profundas mudanças sociais, políticas e econômicas do período.

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- José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo. Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. 3 - Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado e Sociedade e o Ensino Superior: A Faculdade Salesiana de Lorena. Taubaté. Cabral Editora e Livraria Universitária. 2003 4 - Beatriz BORREGO. Uma Lacuna na história: movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté. Papel Brasil. 2000 5 - Este livro não está ligado aos eventos do cinqüentenário, mas uma produção a partir de pesquisas realizadas na Universidade de Taubaté, UNITAU.

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Desde sua fundação a Faculdade Salesiana procurou preservar os princípios educacionais elaborados por João Bosco no século XIX, ciosamente guardados por seus seguidores como verdadeiro depósito intocável da tradição. Observando porém os princípios norteadores do Centro Unisal6 no final do século XX e início do XXI percebese, ainda que empiricamente, um visível contraste entre os elaborados na sua fundação e os praticados hoje. Essa mudança passa a ser uma hipótese-desafio para nós: ela de fato teria existido de forma consistente? Se o tivesse, tornava-se necessário identificar o conteúdo desta mudança, as condições que a ensejaram e o seu impacto sobre a Instituição.

Elaboramos a hipótese de que teria havido essa mudança e que ela se situaria entre os anos de 1960 a 1980. Nas primeiras entrevistas com o historiador e professor Luiz Pasin 7 verificamos de inicio não apenas a mudança em si, mas um processo de crise Institucional e de princípios8. As sinalizações estão captadas nas nossas primeiras pesquisas que nos fizeram perceber que esse processo, então intuído, tinha sua formação no inicio dos anos 60, com seu epicentro em 1968 e com um processo de posterior retaliação, iniciado no ano de 1969 e que se prolongará pela década de 1970.

Se existira uma crise ela representara a desestabilização de um sistema educativo existente. Foi necessário então recorrer ao pensamento pedagógico original de João Bosco, o transplante do seu sistema educacional para o Brasil, as motivações que fizeram os salesianos virem para aqui e o porquê aqui foram aceitos, num período de explicito anti clericalismo. Da parte de João Bosco existia um ímpeto missionário, resultado de uma piedade religiosa cultivada no catolicismo do Piemonte, de outro lado porém, existiam motivações locais que favoreciam o acolhimento dos missionários pelo

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- Atual nome da antiga Faculdade Salesiana. - O professor José Luíz Pasin é especialista na História do Valer do Paraíba, sendo membro do IEV Instituto de Estudos Valeparaibanos com sede no Centro Universitário de Lorena - UNISAL. 8 - Só mais tarde eu chegaria à conclusão que a crise seria não apenas de princípios mas de um verdadeiro paradigma. 7

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imperador. O Brasil, religiosamente decadente, necessitava de uma significativa reforma do catolicismo popular e iluminista, ambos bastante distantes da ortodoxia romana e da moral católica, como bem analisam Augustin Wernet ao estudar o catolicismo paulista no século XIX9. Pedro II, primeiro responsável pela igreja no Brasil, pelas obrigações e privilégios que lhe conferiam o padroado, acolhe congregações que garantissem um clero sério sem os desmandos disciplinares e morais do autóctone. Riolando Azzi, em suas diversas obras sobre o catolicismo no Brasil e sobre a presença dos salesianos aqui, permitiu-nos, não apenas um levantamento dos fatos desta época, mas sobretudo, da significativa importância da romanização do Brasil, movimento centralizador capitaneado pelo papa Pio IX que procurava restabelecer o controle da Igreja em diversas partes do mundo pela Santa sé.

A fundação da Faculdade foi um fato circunstancial visando atender a exigências legais do governo sobre a educação. Metodologicamente optamos por não adentrarmos na análise da política educacional brasileira do período, por considerá-la conhecida, e sua análise desfocaria nossa abordagem. Optamos por centrar nosso foco especificamente no mundo salesiano, tendo porém como pressuposto as políticas educacionais do período; optamos ainda por trabalhar a figura de Dom Bosco, pois ainda que conhecido no ambiente restrito da religião, podendo-se remeter nossos leitores para as fontes existentes, consideramos que, por ser um educador católico, seu conhecimento estaria restrito a um âmbito bem fechado, considerando assim necessário traçar dele um perfil mínimo que poupasse nossos leitores de ter que transitar até fontes especializadas, já que alguns aspectos pessoais de sua vida são relevantes para o entendimento de sua ação educativa.

Nossas pesquisas iniciais confirmaram a existência de uma crise. Um outro questionamento surgiu: essa crise atingira algum dos pilares fundamentais da pedagogia salesiana, ou, em outras palavras, fora uma crise conjuntural ou estrutural? Nossa hipótese inicial sinalizava para uma crise estrutural, hipótese esta que encontrou 9

_ Augustin WERNET. A Igreja Paulista no século XIX. São Paulo, Editora Ática, 1987.

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imediata aceitação como chave interpretativa de importantes protagonistas deste período, de modo especial professor José Luiz Pasin e posteriormente padre Antônio da Silva Ferreira10.

Era necessário agora identificar em que consistira essa crise. No inicio do século XXI os três pilares do Sistema Preventivo11 continuavam como enunciados fundamentais da ação educativa salesiana, com seu sistema educativo apoiado na Razão, Religião e Bondade, como pressupostos fundamentais dessa educação. Procuramos analisa-los individualmente. O conceito de Bondade permanecia o mesmo. A religião, ainda que não mais concebida numa visão estreita católica, continuava a configurar-se como elemento espiritual fundamental da educação. A Razão, ainda que afirmada como fundamental, no discurso moderno, possuía uma conotação diferente da enunciada no século XIX e, mesmo até a década de 60. Aliás, essa discrepância de interpretação era um significativo ponto de conflito entre os antigos e os modernos educadores salesianos para os quais a mesma palavra continha no seu bojo um entendimento diferenciado. Partimos então do pressuposto que o conceito "racionalidade" fora alterado em algum momento da história salesiana.

Essa verificação só seria possível confrontando a

racionalidade em dois momentos: no primeiro, como elaborada por João Bosco no século XIX e, no segundo, na forma como é concebida e praticada hoje. Mas para que conseguíssemos apreender o pensamento educacional de João Bosco era necessário conhecer a que corrente filosófica ele estaria ligado. Nos reportamos para o Concílio de Trento que, ao definir a formação do clero da Contra-reforma, punha sua base no 10

Padre Antônio da Silva Ferreira nasceu em São José do Rio Pardo, no dia 13 de junho de 1927. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia e Letras de São João del Rei, Teologia pelo Instituto Pio XI em São Paulo e Pedagogia pela Faculdade de ciências e Letras de Cruzeiro, SP. Doutorou-se em Pedagogia pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Professor e diretor das Faculdade Salesiana, foi assessor para o setor das Escolas da Pastoral Juvenil do Conselho Geral da Congregação salesiana em Roma. Psicólogo. Foi membro fundador do Instituto Histórico Salesiano de Roma, onde atou por 18 anos Atualmente é vice diretor e membro do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. É membro fundador da Associação Nacional de profissionais de administração e membro da Associação de Cultores da História Salesiana, com sede em Roma. Autor de muitos livros sobre educação e salesianidade no Brasil e na Itália. Autor de várias pesquisas com edições de documentos inéditos e artigos em revistas especializadas. Sua presença em Lorena foi marcante como pensador, dando à Faculdade Salesiana seriedade, sobretudo nas pesquisas. Atualmente atua como professor convidado. 11 - A expressão "Sistema Preventivo" sintetiza todo o sistema pedagógico-educacional salesiano.

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pensamento de Tomás de Aquino, de forte matriz aristotélica. Esse era portanto o embasamento filosófico de Bosco. A delimitação de nossa análise deveria portanto passar pelos fundamentos filosóficos da Pedagogia Salesiana, já que a elaborações do tridentino perduraram até o Vaticano II, quando só então, de uma forma forte, outras visões penetram na mentalidade da Igreja. O Vaticano II representa o divisor de águas, num momento em que o pensamento marxista também se apresentava como uma proposta de mudança social, com fortes reflexos sobre a visão cristã da sociedade que deveria ser transformada. A década de 60 conhece os embates e confrontos dos pensamentos aristotélico-tomista com as

propostas

pastorais do Vaticano II e o

pensamento marxista.

Na Faculdade salesiana esse confronto não acontece em mero nível acadêmico, mas em situações concretas, do cotidiano do seminário-faculdade, onde essas mentalidades se confrontavam no difícil tecido dos relacionamentos interpessoais e grupais, já que tais atitudes estão presentes nas posturas de formadores12, clérigos13 e lideres estudantis. Esse confronto acontece num período de instabilidade na história da faculdade salesiana enquanto a narração de fatos, longe de pretender ser uma crônica, representa em episódios concretos o embate dessas visões de mundo. O que emerge desses acontecimentos é uma nova mentalidade dos estudantes que, sob uma ótica de influência marxista, elaboram uma nova visão libertária da Razão, diferente da até então professada pelos formadores salesianos. Essas idéias, gestadas nestes anos, terão influência no 12

O termo "formador" refere-se àquele religioso responsável direto pela formação humana, religiosa e salesiana dos seminaristas. Sua atuação perpassa integralmente todas as atividades do seminarista e atua inclusive em foro intimo, cabendo-lhe, juntamente com o conselho dos formadores, definir a permanência o candidato na congregação, sua exclusão e mesmo expulsão. 13 Esse termo será utilizado no nosso trabalho referindo-se aos seminaristas em formação. Poderão ser ainda utilizados no mesmo sentidos os termos pós noviços, formandos e seminaristas. A Formação salesiana está dividida nas seguintes etapas Primeiro ano de Filosofia, pré-noviços; Os noviços interrompem os estudos filosóficos para aprofundar a espiritualidade e a história da Congregação por um ano; os pós noviços cursam o segundo e o terceiro ano de Filosofia. Os Tirocinantes são jovens já com título Universitário atuando em obras por dois anos. Os últimos quatro anos são dedicados a estudos específicos da Teologia ou em especialização para os salesianos não sacerdotes, denominados de salesianos leigos. Cf. Ratio Fundamentalis Institucionis et Studiorum. Roma: Editrice S.D.B. ,2000. O grupo de seminaristas a que nos referimos serão sempre os pós noviços, estudantes do segundo e terceiro ano de Filosofia, que em alguns casos na época ainda cursam uma segunda faculdade como História, Geografia, Pedagogia, Ciências e Matemática.

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ideário do Unisal do século XXI. Os fatos narrados devem ser lidos não no episódico, mas nas idéias subjacentes a eles. Nossa redação, colocadas essas premissas, segue um itinerário de reconstituição deste caminho da criação de uma nova mentalidade e de um novo paradigma educacional.

Iniciamos com a pontuação dos princípios e fundamentos metodológicos definindo o conceito de Razão, elaborada na Filosofia clássica de Platão e Aristóteles. O tomismo na Universidade de Paris, no século XIII, incorpora o pensamento aristotélico em detrimento do platônico. Essa concepção aristotélico-tomista, inicialmente rechaçada, ganhará cidadania na igreja após o Concílio de Trento até a década de 60. A seguir descreveremos, de forma mais detalhada, as implicações desses princípios com a realidade do educador João Bosco e das instituições que nasceram sob sua inspiração. Num segundo momento nos voltamos para a pessoa de João Bosco como educador, que incarna os valores filosóficos dos tomismo elaborando o seu sistema preventivo. Suas idéias educativas são definidas por ele como permanentes, quando se constrói a partir de seus seguidores um profundo senso de fidelidade aos princípios e práticas do fundador e, como tal, são transplantadas para o Brasil, que no final do século XIX e início do século XX se fecham em colégios e escolas profissionais. A Faculdade Salesiana ao ser fundada absorve a pratica tradicional haurida do passado e conservada com fidelidade, adquirindo credibilidade tanto junto aos defensores da romanização na igreja católica do Brasil, como na sociedade, por seu ensino moderno. Na década de 60 acontecimentos dentro e fora da Igreja desestabilizam os valores transplantados da Europa, quando novas visões de mundo e mentalidades se infiltram no tecido da faculdade, gerando a crise da Instituição em sua organização e nos seus valores fundacionais, então colocados em questionamento por alas mais radicais de estudantes. Os clérigos, ainda que defensores da Instituição não ficam incólumes das novas idéias e acabam por configurar uma nova mentalidade, ao conceber uma forma de racionalidade que se distancia dos estreitos conceitos aristotélico-tomista para uma visão mais participativa, com inequívoca influência marxista.

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A crise institucional favorece questionamentos e posturas que colocam em xeque o paradigma Razão, agora elaborado de forma nova. Esse é o núcleo de nossa pesquisa que se realiza num espaço temporal restrito, décadas e 60 e 70, pretendendo portanto apenas assinalar a crise na sua formação. Outros desdobramentos posteriores podem ser objeto de futuras pesquisas.

Alguns eixos norteiam esta pesquisa: O primeiro diz respeito ao pensamento tomista assumido por João Bosco que, respondendo às exigências do mundo industrial, elaborou uma forma de educar tradicional em sua concepção católica, preservando os valores do aristotelismo tomista e integrando-os com as dimensões modernas do mundo urbano, ágil e eficiente, que foram posteriormente transplantados para o Brasil. Um segundo o de uma faculdade que é colocada em crise num dos aspectos fundamentais de seus princípios, a Razão, re-elaborada numa dimensão de autonomia e auto-suficiência. E, finalmente a nova configuração dessa racionalidade que permitirá a emergência de uma universidade pluralista onde o conceito e o paradigma Razão, elaborado por João Bosco no século XIX, configura-se a uma nova forma de ser entendida, onde a individualidade do discípulo é valorizada como elemento fundamental de construção da verdade. Este processo mais do que um conceito, representa uma mentalidade diretora na formação das novas gerações de universitários. Nosso objetivo final não é gerar uma mera narração do “suceder histórico” com “as belíssimas reconstituições dos hábitos, dos gestos, dos saberes, dos amores, do cotidiano, da sensibilidade, enfim da mentalité, que) ficam pairando no espaço como se nada tivessem a ver com as outras esferas da existência, as formas de estruturação da sociedade e do Estado, os modos de organização da vida material etc. – temas da ‘velha’ história” 14, mas apreender os princípios e valores que configuram uma instituição de Ensino, demarcam seus destinos e sua ação na sociedade. A sua compreensão permite aos docentes e discentes configurarem os objetivos particulares e gerais de sua ação educadora. É esta compreensão que perseguimos nesta pesquisa. Entender a nova configuração do paradigma Razão nesta Instituição de Ensino, 14

Fernando NOVAIS, In Paolo NOSELLA e Ester BUFFA. Universidade de São Paulo, Escolas de Engenharia de São Carlos, os primeiros tempos 1948-1971. São Carlos, Editora Universitária, 2.000 p. 19

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representa hoje apropriarmo-nos de uma das fundamentais chaves dos objetivos do Unisal para o terceiro milênio. É esse objetivo que a partir de agora perseguimos...

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CAPÍTULO 1 PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS

Não existe neutralidade quando se trata de Educação: por trás de toda ação educativa existem concepções filosóficas e pedagógicas que se constituem em elementos iluminadores na condução dos educandos. Entender a cosmovisão filosófica de qualquer instituição representa apropriarmo-nos de uma mundividência que estará sempre condicionando a ação dos educadores e iluminando o destino dos educandos. Não são salas, laboratórios, auditórios ou ambientes que nos dão o perfil de uma Instituição de Ensino, mas os princípios que norteiam a trama do seu cotidiano na sua construção histórica. Tais princípios não são estáticos, pois sofrem as intempéries do tempo e dos ambientes nos quais estão inseridos. Nosso estudo volta-se portanto para um desses princípios, a "Razão", entendida como um dos pilares teóricos que sustentam a pedagogia salesiana. Torna-se portanto necessário um embasamento filosóficopedagógico deste princípio, objeto e enfoque de nossa pesquisa.

A Pedagogia salesiana tem suas bases mais profundas alicerçadas na racionalidade elaborada no período clássico da filosofia grega. O entendimento da estruturação do pensamento de João Bosco15, especialmente seu conceito de Razão, passa necessariamente pela lógica do pensamento grego. Inicialmente os primeiros filósofos

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João Bosco é mais conhecido com o epíteto de "Dom Bosco" , fórmula essa que utilizaremos com freqüência.

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procuraram romper com as explicações míticas da natureza, através do uso da razão como instrumento capaz de se apropriar da objetividade das coisas. Os pré socráticos fixam uma "essência" estável, necessária e imutável que permanecia sempre a mesma por baixo das diversas transformações. Mudava-se a forma, mas permanecia um "substractum" inalterado. Essa foi a grande ambição dos primeiros pensadores helenos: descobrir e definir o que era permanente por baixo das diversas mudanças. Platão, no lastro desses pensadores, estabeleceu, não uma, mas diversas essências, existentes um mundo supra-sensível onde "residiam" as idéias eternas e estáveis, matrizes de todas as coisas sensíveis que eram, no dizer de Fraile, uma "travessura" de um deus que imprimiu à matéria a aparência das Idéias Eternas.

"Las Ideas, y en especial a la de Bien, eran demasiado perfectas para cometer la torpeza de fabricar el mundo sensible, que seria una reduplicatión inútil del mundo ideal, una copia imperfecta y desvaída del mundo de las verdaderas realidades. Por esto introduce Platón ese ser "divino" pero de categoría inferior a las Ideas, para hacerle cargar con la culpa de la creación del mundo. Ese ser inferior habría cometido la travesura, por decirlo así, de organizar un Universo sensibile, introduciendo en la materia ( tambíen eterna ) um reflejo de los arquetipos ideales. Com esto quedaría explicada, por una parte, la existencia del Universo sensibile, con su relativo orden, belleza y armonia, en quanto que es copia del mundo ideal, pero a la vez com sus imperfecciones, sus defectos y sus males, procedentesde la imperfección de su "creador" cuya categoria es inferior a la de las Ideas16."

Para Platão na sua chave explicativa da realidade haviam duas realidades ontológicas essencialmente diferenciadas: o mundo das idéias, mundo do verdadeiro conhecimento e da ciência e o mundo da "doxa"Com isso cria uma radical polarização entre o mundo tocado pelos sentidos e o apreendido pela Inteligência. O primeiro é o mundo da sensibilidade, da incerteza e das opiniões. O segundo é o da certeza, da verdade e da ciência. O nosso mundo é cópia do mundo das idéias, que se coloca como modelo e matriz, ou no dizer de Platão, paradigma 18 do mundo sensível. Assim, para entender o mundo devemos anular nossa sensibilidade, para que, através da razão nos apropriemos 16

- Guillermo FRAILE, Historia de la Filosofia. Madrid. BAC, 1965, p. 360 "" = opinião 18 O termo "paradigma" ( do grego  será usado neste trabalho com o sentido de "modelo", "exemplo". Platão utilizou-o no sentido de "modelo" ligado ao mundo das Idéias ( cf. Timeu 29 b, 48 e ) enquanto considera como paradigma o mundo das Idéias eternas, do qual o mundo sensível é a imagem. 17

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pela reminiscência, do mundo das idéias19 onde nossa alma teria vivido em vida anterior. Portanto, o entendimento do mundo das sensações só seria possível ao contemplarmos as idéias paradigmáticas do mundo supra sensível. O Idealismo platônico foi rechaçado por seu discípulo Aristóteles com a negação da existência de um mundo ontologicamente distinto do nosso. Seu Realismo se constituiu numa das bases da ciência moderna, quando se vê em cada objeto sensível um ser apto de conhecimento e portador da verdade em si. Apesar de ter rejeitado a chave explicativa do mundo de seu mestre, Aristóteles manteve o conceito de "paradigma 20", agora concebido, não como uma realidade ontologicamente distinta da nossa, mas no sentido de "causa exemplar 21", que, também no conceito aristotélico, é ainda um modelo ou exemplo do qual provém uma ação ou um ser.

João Bosco, mentor da Pedagogia Salesiana, foi marcado por sólida formação filosófica clássica. Ainda que no século XIX a Igreja Católica continuasse a seguir as instruções do Concílio de Trento, onde o pensamento tomista havia sido eleito como Filosofia oficial da cristandade, o pensamento agostiniano, com marcante influência platônica, não deixava de ter grande simpatia pelo seu aspecto espiritual e intuitivo. Mística e racionalidade, agostianismo de matriz platônica e tomismo de matriz aristotélica22 eram objetos de estudos aprofundados dos clérigos do século XIX e se constituem no embasamento filosófico da pedagogia salesiana.

A mentalidade dogmática do tomismo teve portanto reflexos nos discípulos de João Bosco, para os quais, também no campo da Educação, existiam fundamentos estáveis e imutáveis, que negados ou modificados, desestruturariam toda a cosmovisão filosófica

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Platão concebe três etapas do conhecimento. A primeira forma é o conhecimento sensível que vem pelos nosso sentidos. Esse conhecimento só nos leva à opinião. O segundo é o conhecimento Racional discursivo, que versa sobre as idéias mas num processo meramente verbal. Finalmente o Conhecimento Racional intuitivo nos leva à contemplação das Idéias, ou no dizer de Platão, à reminiscência do mudo ideal. 20 Aristóteles utiliza o termo Paradigma no sentido de exemplo. ( cf. Anaxágoras e Protágoras II,24, 68 b, 38. 21 Aristóteles concebe em cada ser quarto causas: Material, formal, final e exemplar.

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salesiana de educação. Prevalece assim uma forte idéia de fidelidade aos princípios educacionais salesianos tidos como reflexo das verdades perenes que chegava, numa visão míope, a descer a detalhes do cotidiano. Esses elementos eram o fundamento e a razão de ser da própria filosofia educacional salesiana. No Brasil, apesar dos ventos modernizadores das décadas de 1940 e 1950, os salesianos, via de regra, ficaram alheios às turbulências, questionamentos e modificações ideológicas da época em que viviam, convictos de perenidade dos valores erigidos com "dogmas" educacionais pelo fundador e seus primeiros discípulos.

Aquilo que definimos como "A Crise da Faculdade Salesiana", pareceu de início ser uma situação meramente conjuntural que cedo ou tarde seria superada. O desenrolar dos fatos, porém, fez com que o controle do ideário educacional mantido pela tradição escapasse do controle dos formadores, e, os clérigos, envolvidos nesse processo, testemunhassem que uma crise conjuntural se tornara num problema que atingia a própria estrutura da Congregação, quando é abalado um de seus fundamentais pilares, a Razão. Até então se acreditava que a transmissão da verdade fosse um ato de certo modo "mecânico", entre educador e educando. O primeiro tinha uma ação ativa de mostrá-la ao jovem e este era o receptáculo de um conteúdo, neste caso a verdade, que se impunha à razão. Na nova mentalidade, acredita-se que essa "ação ativa" caberia ao educando, que possuindo um instrumental extraordinário, a Razão, é capaz por si próprio de chegar à verdade sem necessariamente existir a intermediação do educador. Essa idéia foi rejeitada por boa parte dos educadores da Faculdade Salesiana e pelos formadores do seminário. Ao se iniciar ano de 1969, impõe-se um vigoroso processo de retaliação aos agentes do conflito de 1968, que tinha por meta extirpar "o câncer ideológico" da autonomia que se havia implantado dentro da comunidade. Como numa "metátese intelectual," porém, tais idéias inovadoras iam aos poucos se apossando de boa parte do organismo da congregação e da própria faculdade. As atitudes tomadas pelos formadores dos anos 22

Quando tratarmos das "Bases Filosóficas da Pedagogia Salesiana", melhor poderemos aprofundar esse conceito filosófico. Essas bases filosóficas estão trabalhadas em P. BRAIDO ( org. ), Don Bosco Educatore: scritti e testimonianze. Roma, LAS, 1992.

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seguintes foram duras e pareceram surtir efeito, inicialmente. Essa nova mentalidade porém foi se alastrando nas mentes e corações, comprometendo um dos pilares da Congregação: A Razão, concebida até então como mero receptáculo da verdade pronta e elaborada. Com uma visão mais clara pela distância do tempo, podemos afirmar que a "Razão" continuou a ser um dos pilares da educação salesiana. O que ocorreu foi que "o modelo clássico" começou a ser substituído por uma nova forma de se entender a racionalidade. E, os defensores dessa nova forma de vê-la argumentam que essa mudança, longe de trair os ideais da fundação, representará fidelidade ao fundador, como veremos adiante.

Desde sua fundação, a Faculdade Salesiana de Lorena apoiou-se nos princípios filosófico-pedagógicos elaborados por João Bosco: Razão, Religião 23 e Amorevolezza24, que foram posteriormente utilizadas para os jovens, pois tinham até então sido elaboradas e aplicadas para adolescentes nas muitas obras fundadas 25 por João Bosco, no nascente mundo industrial da Itália do século XIX.

Os primeiros diretores da Faculdade Salesiana de Lorena, frente às transformações da sociedade na década de 60 não encontraram dificuldades em salvaguardar esses princípios educacionais intocados, pois a Faculdade Salesiana tinham sido criadas para, paradoxalmente, atender a seminaristas que viviam num ambiente restrito, sem grandes 23

- Ainda que não sendo objeto do nosso estudo, convém assinalar que na pedagogia salesiana a Religião representa a dimensão espiritual do homem, sendo elemento essencial de sua formação humana e a Amorevollezza é uma presença amiga do educador junto do jovem, que, sem deixar de ser educador, ama e se faz amar. Esses princípios são paradigmas iluminadores da educação salesiana. Cf. Dalcides Biscalquin ( org. ) Releitura do Sistema Preventivo a Partir da Ótica da Reciprocidade. Editora Salesiana, São Paulo, 2001. 24 Palavra italiana que na pedagogia salesiana, em geral, não é traduzida, para não perder seu sentido original. Os tradutores a definem como Bondade, Amor ou Amor Demonstrado. Cf. Ibidem p. 77 25 São algumas de suas fundações iniciais; oratório Festivo que reunia jovens para o lazer e para a formação humana e religiosa; os internatos que ofereciam acolhida aos jovens que necessitam de moradia nas cidades industriais; as Escolas noturnas que davam aos jovens aprendizes e operários a oportunidade de estudo. Dom Bosco foi um dos primeiros a implantar essa forma de educação; as Escolas Profissionais que preparavam mão-de-obra qualificada para as indústrias e que oferecia a João Bosco condições de impor aos patrões contratos de trabalho com previsão de salário, jornada de trabalho e descanso e as escolas regulares, em geral voltadas mais para os pobres, se bem que só poucos adolescentes de posses eram também aceitos e seus pagamentos ajudavam a manter as obras. Cf. Tarcísio SCARAMUSSA, O Sistema Preventivo de Dom Bosco. Belo Horizonte, CESAP, 1993.

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contatos com o mundo exterior. A crise na Faculdade Salesiana, nasce exatamente no momento em que surge a tensão entre o preservar e o atualizar os princípios filosófico-pedagógico-educacionais do fundador.

Nossas primeiras reflexões sobre essa crise foram despertadas por dois autores: Carlos Matheus26 no artigo27 sobre a crise da Universidade de Paris em 1277, onde mostrava o confronto entre os pensamentos platônico-agostiniano e o aristotélico, no século XIII, quando descrevia os embates de idéias, as retaliações e censuras existentes então. Carlos Josaphat28 havia também escrito sobre Tomás de Aquino mostrando sua luta pelas idéias aristotélicas, então revolucionárias, na Universidade de Paris.

"O papa perscruta os céus de Paris e aí vislumbra pesadas nuvens ameaçadoras. Em nossos tempos, se falaria de vagas de modernismo, que lá vem vindo, ameaçando a segurança da ortodoxia. Em um estilo florido ou pelo menos enfeitado, uma carta papal era enviada à "Universidade Parisiense" estigmatizando os "filósofos naturais". De há muito, a filosofia gozava do direito de cidadania nas escolas e mesmo nos mosteiros da cristandade. Já o próprio Aristóteles vinha sendo domesticado a serviço da ciência sagrada. Mas tratava-se sobretudo da lógica e da retórica, formas instrumentais, de pensar e de falar, as quais não competiam com os conteúdos da fé. Agora, lá vêm conhecimentos e filosofias da natureza, explicações dos seres inanimados, vivos e até humanos. As questões se radicalizam: em que consistem os viventes, como se formam, como surgem e desaparecem em processos de geração ou corrupção? Não mais se trata de melhor pensar e exprimir a tradição. É a mudança total do saber e do viver. Gregório IX sintetizava com força o interdito salvador: "nada de deslocar as bordas da tradição, bem fincadas por nossos pais29".

Ao refletir sobre o pensamento destes dois autores constatamos que essas tensões constituíam uma realidade atemporal, sendo o ambiente da universidade o lugar natural 26

Professor Carlos Mateus foi por muitos anos pesquisador do Centro Unisal na área de Filosofia Medieval. 27 Carlos Bento MATHEUS. A Grande Crise de 1277 na Universidade de Paris. In Revista da Ciência da Educação, Lorena, Editora Stiliano e Centro Unisal, v.01, n.01, p. 43, [ s.d. ] 1999. 28

Carlos Josaphat é dominicano e destacou-se defendendo entre 1960 a 1964 radical reforma de base nas estruturas sociais do Brasil. Fundou o semanário "Brasil Urgente" cujo lema era "A verdade, custe o que custar; a justiça, doa a quem doer". Antes do golpe de 64 é mandado para Suíça por seus superiores. Nos 30 anos fora do Brasil lecionou na Universidade Pública de Friburgo, na Suíça. Apesar de longe do Brasil, na efervescência do golpe militar, marcou sua posição como defensor dos princípios da Teologia da Libertação. 29

Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a nova era do Espírito. São Paulo: Loyola, 1998. p. 25

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de confrontos e embates intelectuais, e que elas nos sinalizavam algo semelhante também vivenciado na Faculdade Salesiana. Esses textos nos faziam intuir certa semelhança, não nos conflitos em si, mas no processo vivenciado pela Faculdade de Lorena.

Refletindo sobre nossa experiência no cotidiano da Faculdade, percebemos que na prática pedagógica desta unidade o conceito de Razão, explicitado pelas novas gerações de educadores, diferenciava-se do elaborado por João Bosco em seus escritos e na prática dos primeiros salesianos. No Sri-Lanka30, a guisa de exemplo, numa sociedade tradicional, a Razão é ainda hoje entendida entre os salesianos como uma obediência dócil ao proposto pelos educadores31. Se há muito da mentalidade oriental na prática destes salesianos, encontra-se aí também, cremos, um “congelamento” da mentalidade praticada sobre a obediência nos primeiros tempos da fundação, hoje, diferente da nossa aqui no Brasil. Mesmo entre alguns salesianos do Brasil prevalece ainda um conceito de uma autoridade portadora da verdade que não deve ser questionada. Na percepção deles cabe ao jovem acolher as "sábias orientações" dos seus mestres. Entre os educadores mais jovens, porém, sobretudo os formados nas duas décadas em estudo, o termo “Razão” é entendido como "espírito crítico", "discernimento" e, sobretudo, "protagonismo juvenil". Essa crença foi ganhando espaço em muitos seminários e escolas salesianas no Brasil, prova concreta da evolução no entendimento do conceito "Razão". No modelo tradicional da educação salesiana, os formadores deveriam mostrar 30

Essa avaliação foi feita pelo missionário brasileiro Robson Barros da Costa que realizou palestra em dezembro de 2002 para alunos do primeiro ano de Filosofia do Centro Unisal - Lorena, sobre Cultura e Carisma salesiano no Sri-Lanka. Procurando verificar se realmente no Sri-Lanka prevalece uma racionalidade tradicional ele enviou-me o seguinte testemunho de um seminarista autóctone; "Initially it is to stress that religion situation in Sri Lanka differs from that we have in South America, especially in Brazil. (... ) the sacerdotal formation must be serious, pure and on ritualistically way of observance of the tradition and ecclesiastic rules guided by a high sacerdotal leader...(...) Another point of view very interesting is that the young seminarians are educated to be a spiritual leader and not a political leader. Therefore - from the initial formation, the candidates for religious life or for priesthood understand that the future of his ministry depends on their capacity to maintain the traditions and picture of a leader. On this way there is not a worry in to renovate the philosophical or theological formation. (...) The formation is making by discipline and obedience". email enviado em 08/12/2003. Arquivado no CEDOC, Centro Unisal. Lorena. 31 Não há duvida que existe neste ponto uma lastro cultural que valoriza o idoso como portador da sabedoria.

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ao jovem, concebido como ente passivo, a racionalidade de suas normas, o porquê do que decidiam. Na nova visão, o jovem é considerado ator e agente desse processo.

O nosso ingresso na Faculdade Salesiana deu-se em 1989, quando experimentamos por parte dos alunos egressos do período da ditadura, sobretudo nos jovens salesianos universitários, resistência a decisões dos professores e da direção, pois tudo deveria ser discutido, partilhado e decidido em comum como prática normal do cotidiano da instituição, sendo mesmo os professores sistematicamente avaliados 32 por seus alunos. Confrontando com as práticas do passado percebemos que se passara da antiga obediência, para um processo dialogal, ou, em outras palavras, passara-se de uma “razão passiva” para uma “razão ativa”. Sobrevivia ainda a tensão entre educadores tomistas e um grupo com uma visão nova33. As duas mentalidades se opunham: de um lado uma tendência de autoridade e de racionalidade concebidas como nas origens e de outro um modelo libertário, autônomo, atuante e comprometido. Questionamo-nos então quando houvera essa passagem da visão fundacional para a atual. A vivência atual, quando confrontada com as práticas de décadas passadas, representa uma nova abordagem da Racionalidade. A partir desta percepção começamos a definir as linhas e as fontes desta pesquisa. Ela nasce portanto de interpelações da realidade do Centro Unisal34 de hoje.

Tentar entender e apreender o fato histórico representa não apenas um exercício de erudição, mas elemento iluminador do presente. A existência de duas mentalidades antagônicas numa instituição, em si nada representa de novo, afinal, mesmo um olhar superficial mostra-nos mudanças de mentalidade de uma época para outra. O que há de singular na análise que faremos é que o nascente ensino superior salesiano estava atrelado a uma congregação religiosa recente que, com apenas 150 anos de existência, já era a terceira maior da Igreja Católica, com cerca de 19.000 membros, somente no ramo masculino e presente em mais de 120 países. A mudança atinge um paradigma 32

Esta prática permanece até hoje. Deve-se notar que é uma mentalidade que possui influência de uma nova antropologia que possui influxos do Vaticano II, Teologia da libertação, do marxismo e do ideário mais autônomo da juventude destas últimas décadas. 34 Centro Universitário Salesiano. 33

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fundacional que configura a própria essência da Congregação e o seu carisma, que, se alterados, atingiria a própria identidade da Congregação, comprometendo o projeto inicial do fundador. Com essa hipótese eu pressentira que algo do próprio conteúdo das idéias do fundador havia sido alterado. Essa percepção nascia da observação dos salesianos mais antigos que acentuavam à exaustação os conceitos de “tradição” e “fidelidade”, como elementos fundamentais que “estariam sendo esquecidos”. Mais do que a acusação de “hábitos e práticas modernas”, em alguns momentos, insinuavam, e, em outros, afirmavam categoricamente, que as novas gerações traíam o que o fundador havia elaborado como princípio educacional carismático de sua congregação. Intuímos que, se algo mudará em nível estrutural, deveria ser aí. Logo de início percebemos que a Bondade estava fora deste questionamento, pois encontrava inclusive respaldo nas práticas da Psicologia que valoriza a afetividade como elemento de fundamental importância na formação do educando. A Religião continuava ser a católica como iluminadora da ação educativa, ainda que novas adequações tenham sido feitas em muitas escolas em favor de uma visão mais ecumênica e menos confessional. Excluindo essas duas vertentes, encontramos na "Razão" algo que deveria ser aprofundado como possível paradigma que tenha sofrido alterações. Estava elaborada uma hipótese que teria necessidade de uma investigação mais acurada em busca de comprovação.

Convém destacar que a historiografia salesiana até a década de 60 fora marcada pelo ufanismo e triunfalismo de muitos escritores. A história de Dom Bosco e da Congregação assumia em alguns casos ares de epopéia, onde a fina teia do cotidiano era empalidecida por ações extraordinárias. Não faltaram poetas. É bem verdade que João Bosco fora um daqueles homens de difícil canonização, pois sua vida fugira em muito do modelo clássico do místico e do contemplativo do século XIX.

Vivendo a

industrialização e o inicio da urbanização, o ativismo será seu estilo de vida. Alguns de seus biógrafos tentaram até “resgatar” sua imagem, procurando enquadrá-lo nos moldes de santidade do século XIX. Isso porém foi anulado pelos próprios historiadores do centro histórico salesiano de Roma, que a partir da década de 60 sobretudo, assumem posturas de desmistificação, priorizando a verdade histórica com significativas obras

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onde a crítica histórica é referencial metodológico, procurando-se fugir de uma visão idealizada e institucional. Essa postura da historiografia salesiana do Centro Histórico de Roma tem sinalizado para estudiosos do mundo inteiro um espaço de liberdade de pesquisa em busca da objetividade histórica, de acordo com as mais variadas tendências da historiografia moderna, permitindo maior autonomia de pesquisadores ligados à instituição. De posse de alguns indícios iniciais, elaboramos assim a hipótese de que o paradigma35 "Razão" havia sido alterado na forma como elaborado por João Bosco no século XIX.

Um primeiro elemento merece destaque. O Termo "Razão" não deve ser entendido neste trabalho no seu sentido amplo, como uma noção genérica que se aninha em diferentes escolas e mentalidades. Essa noção36 possui uma delimitação de contorno bem definido no mundo salesiano, devendo ser entendida como João Bosco a elaborara a partir dos conceitos tomistas. Para Aristóteles e Tomás de Aquino a Razão é capaz de apossar-se da verdade. E esse é um passo significativo, quando Tomás de Aquino, na universidade de Paris no século XIII, ao purificar o pensamento Aristotélico dos acréscimos falseadores de Averóis, afirmara a autonomia e a capacidade da Razão de possuir a verdade por suas próprias forças. Rompia-se aí o modelo platônico agostiniano que presidira toda a Idade Média. Platão, ao conceber o hiperurânio, acreditará que todo o conhecimento era reminiscência de um mundo ideal contemplado pela alma numa vida anterior junto das Idéias. Assim, o “aprendizado” seria apenas a recordação dessa vida passada junto das Idéias eternas e do Sumo Bem. Agostinho, no século IV realiza a primeira grande síntese da Filosofia feita no final do período patrístico, devendo porém conter-se dentro dos parâmetros do pensamento e do dogma cristão, então em processo 35

Cf. Nicola ABBAGNANO. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982, p. 712. Este será o sentido que utilizaremos neste nosso trabalho, sentido básico de "modelo e/ou matriz", no campo das ciências Humanas. Este sentido não deverá ser confundido com o sentido que na História da Ciência T. Kuhn utilizou na obra "A Estrutura das Revoluções Científicas" designando uma teoria ou um sistema aceites por uma comunidade Científica e que durante algum tempo orienta a sua atividade. Inclui, quer regras metodológicas, quer elementos axiológicos e científicos. Podemos considerar como exemplos de paradigma a mecânica de newtoniana e a teria da relatividade de Einstain. A Mudança do Paradigma corresponde a uma revolução científica e a uma nova maneira de ver o mundo tão diferente que Kuhn considera que paradigmas em competição são, em geral, incomensuráveis". Alfredo DINIS, In, Logos. Lisboa, Editorial Verbo, 1991, p. 1331.

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de construção e elaboração, não podendo assumir o mundo divino das idéias, de forte matriz pagã. Para Deus são transferidos os atributos do mundo das idéias, sendo que o conhecimento acontece pela “Iluminatio37” divina. Na ótica agostiniana, somente o místico, o orante e o “amigo de Deus” teriam a possibilidade do pleno conhecimento. Portanto, é fácil entender a "revolução copernicana” que representou a introdução do pensamento aristotélico na Universidade de Paris pelo grupo de jovens professores, entre eles Tomás de Aquino, ao proclamar a plena capacidade do homem – sem o auxilio divino – de chegar à verdade pela sua razão38. É esse modelo que João Bosco assume de racionalidade. Marcado por uma forte visão tomista, acreditando que a verdade é um dado objetivo explicitado pela “sã Filosofia” e pelos dogmas do catolicismo. A verdade, sendo um dado apreendido pela Fé e/ou pela Filosofia, cabe aos educandos simplesmente compreender e aderir. O educador deve levar seus educandos à contemplação intelectual dessas verdades objetivas. Para expressar essa realidade, cunhamos o termo “racionalidade passiva”, que consiste no uso da razão para, apenas, se apropriar de uma verdade já pronta, definitiva e inquestionável. A dimensão criadora da racionalidade inexiste neste processo. Essa abordagem pode causar espécime em muitos tomistas modernos, mas configura de fato um processo estático de conhecimento. A verdade está pronta, permitam-nos o uso de uma imagem, como um alimento congelado, cuja única função do “cozinheiro” e descongelar para obter um sabor pronto e definitivamente inalterado. A essa racionalidade que chamamos de passiva, opusemos a "racionalidade ativa", que, permitam-nos mais uma vez a imagem, é a do cozinheiro que agora confecciona os pratos, usando dos mais variados ingredientes e combinações. Objetivamente nas duas imagens utilizadas tem-se, no final, alimento, que, no primeiro caso é “feita” sem nenhum concurso especial do “pseudo cozinheiro” que apenas deve “descongelar” um saber “pronto e temperado” que se ativa com um leve toque do botão "ligar”. O Educador no modelo primeiro apenas deve despertar a mente do educando

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Irei trabalhar essa idéia nos capítulo 3.3. - As Bases Filosóficas da Pedagogia Salesiana. Iluminação. 38 A Universidade de Paris ainda conhecerá outro terremoto com a teses de Guilherme de Occam que no século XIV que ataca de uma só vez a origem divina do poder do papado e do Império, não deixando de ter acolhimento e simpatia nos precursores da reforma protestante John Hus e Wiclef. Após o movimento 37

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para uma verdade pronta e acaba. No segundo caso, o educando torna-se o agente do processo educacional, passando a usar a racionalidade ativa e criadora que, despertada, não possui um script, mas depende do processo reflexivo do agente do conhecimento. Uma dificuldade poderia surgir, sobretudo da parte dos tomistas ortodoxos39: com isso não se correria o risco de levar a um relativismo, onde o educando poderia “criar verdades” de acordo com o processo de sua reflexão? Aqui prevalece uma postura otimista do tomismo para o qual , “assim como a vontade busca naturalmente o bem , a Inteligência busca necessariamente a Verdade 40”. Neste segundo caso há uma profissão de fé na Razão humana que não precisaria necessariamente de ser conduzida à verdade, já que apta a encontrá-la sozinha. Na nossa hipótese acreditamos que esta passagem de mentalidade41 teria acontecido num momento histórico bem definido, sendo portanto necessária a sua comprovação.

No ano de 1968 na Faculdade Salesiana de Lorena muitos jovens possuem preocupações com a questão social, sendo que o pensamento de matriz marxista, parece ser uma das soluções para essa questão, sobretudo para estudantes engajados no DA e na UNE. Os clérigos formados numa visão aristotélico-tomista, nas Assembléias entram em contato com o pensamento marxista sem a tutela dos seus professores-formadores, tendo então uma visão desta doutrina a partir de seus defensores e não de seus opositores. Alguns seminaristas não deixam de ser tocados por ela e, egressos destes encontros estudantis, passarão a defender posturas de critica social, luta por direitos e autonomia impensados pelas estruturas não só do seminário, como da faculdade de então. O ideário marxista neste período já começara a influenciar o pensamento da Igreja. Na década de 1960 a da contra reforma com o Concílio de Trento, o pensamento tomista é erigido em pensamento filosófico e teológico da Igreja. 39 O termo “tomistas ortodoxos” possui neste contexto um sentido profundamente ambíguo. Tomás de Aquino foi um pensador de vanguarda para o seu tempo. Seu pensamento correu o risco de ser condenado pela Igreja. Seus seguidores posteriores traíram o seu espírito, tornando-o um “conservador”. Quando utilizo o termo “tomistas ortodoxos”, refiro-me a esse grupo que assumiu o tomismo como um movimento reacionário e conservador. Cf.. Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a Nova Era do Espírito. São Paulo, Loyola, 199. P. 16ss 40 Cf. Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia. Madrid, BAC, 1965, pp. 515ss 41 O "Estudo das Mentalidades" ganha status junto da Escola dos Annales, "naquilo que Peter Burke, chama de nascimento da História das mentalidades”. Cf. Peter Burke. A Escola do Annales - 1929-1989 A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo, Editora Unesp, 1997 p. 37.

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Teologia da Libertação42 ainda não possuía um conjunto orgânico de doutrinas e princípios, vivendo então um momento de formação e formulação de seus princípios, mas já existe uma mentalidade cada vez maior na Igreja com a preocupação social, que foge do assistencialismo e busca a promoção humana. E essa mentalidade não raras vezes encontra nos conceitos marxistas um instrumental de interpretação da História e de ação social. São idéias, que, ainda que combatidas por áreas conservadoras da Igreja, não deixam de ter seu atrativo sobre a juventude universitária. Este pano de fundo, ainda que não explicito, não pode deixar de ser levado em consideração em nossa pesquisa. O Marxismo não é assumido pelos clérigos do período, mas não deixa de ter certos reflexos sobre seus conceitos mentais e mesmo sobre suas vidas. Numa primeira pesquisa pudemos polarizar dois momentos das mentalidades: a década de 50 e a de 80. Entre esses períodos teria acontecido a mudança. Tratava-se então de estabelecer as fontes de pesquisa. Os estudos sobre os Annales43, Micro História, oralidade e arquivos foram fundamentais para detectarmos nossas possíveis fontes e perceber sua relevância nesta análise histórica agora em curso. A história de vida de Bosco e as experiências vividas por seus primeiros seguidores nos permitem reconstituir a trajetória de suas idéias assim como seu processo de adaptação às várias épocas e mentalidades 44. Além dos documentos escritos, a narração oral45 nesta pesquisa ganha especial significado no levantamento de dados.

De início três coisas eram certas: em primeiro lugar não encontraríamos nada a respeito de nossa hipótese, porque inédita46. Segundo, as fontes orais seriam de fundamental 42

- Neste momento nem Gutierez e nem Leonardo Boff haviam ainda despontado como referencias da Teologia da Libertação. 43 Cf. Peter Burke. A Escola do Annales - 1929-1989 - A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo, Editora Unesp, 1997 p. 37.. 44 cf. Eric HOBSBAWN. Sobre a História - Ensaios -. São Paulo, Cia das Letras, 1997, p.199s. 45 A oralidade ganha especial destaque no movimento da "nouvelle Histoire" onde se visualiza a "histoire totale". Muitos autores, como Jan Vanina admite que "é apenas razoável admitir que a sofisticação crítica das testemunhas orais ainda não atingiu a sofisticação crítica de um documento que os historiadores têm praticado durante séculos" Peter BURKE. A Escrita da História, Novas Perspectivas. São Paulo, Editora Unesp, 1992. P. 27 46 - O Tema "Faculdade Salesiana e a década de 1960" foi abordada por vários escritores e pesquisadores, entre eles, podemos citar os dois livros publicados pelos profesores Francisco Sodero Toledo e por Beatriz Borrego que trata da dimensão histórica. Nenhum deles, porém, discutiu a questão do Conceito da "Racionalidade" como elemento que sofreu mudança, e é neste viés que está a nossa abordagem inédita.

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importância para a comprovação ou não da hipótese e, em terceiro lugar, deveríamos realizar um processo de interpretação das entrelinhas dos documentos, de modo especial das crônicas da Casa e das Atas da Comunidade 47, procurando neles sinalizações da crise que então intuíamos. Inicialmente fizemos uma lista de arquivos onde poderíamos encontrar documentos que nos pudessem sinalizar o que procurávamos. A listagem, inicialmente ampla e ambiciosa, ficou posteriormente reduzida aos arquivos históricos da unidade de Lorena do Centro Unisal. Ainda que os arquivos do Centro Inspetorial48 Salesiano de São Paulo nos tenham sido franqueados, acreditamos, no percurso da pesquisa, que o material então coletado no Centro Unisal de Lorena já seria suficiente para consolidar nossa hipótese. A Bibliografia de apoio à nossa pesquisa está ligada à história e mentalidade dos salesianos. Apesar de produzida em boa parte por historiadores salesianos, acreditamos no esforço de imparcialidade deles, pois, apesar de ligados à Instituição, possuem reconhecidos trabalhos publicados no campo da História. Riolando Azzi, faz contraponto neste processo como historiador independente com reconhecidos trabalhos publicados sobre a história da Igreja no Brasil. Alguns livros merecem especial menção: Igreja, Estado e Sociedade do professor Francisco Sodero Toledo49 nos permite visualizar a história da Faculdade Salesiana nos seus primeiros 50 anos, apoiada em significativa e consistente base documental. O livro publicado por Beatriz Borrego da Unitau 50 de Taubaté, recupera o movimento estudantil de 1968 na Faculdade Salesiana, visto a partir do lugar dos estudantes. Neste trabalho, os testemunhos do ex. líder estudantil Ivo Malerba são consistentes e foram posteriormente confirmados, seja por palestras51 no período do cinqüentenário da fundação da faculdade, seja por entrevistas na imprensa da região do Vale do Paraíba. Especial 47

Nas casas salesianas todas as reuniões da direção da casa religiosa são registradas no livro “Atas da Comunidade”. Existe também um cronista que diariamente descreve os acontecimentos do dia, rotineiros ou não. 48 É o centro que administra a ação dos salesianos numa determinada Província religioso. 49 Professor Francisco Sodero Toledo é ex. aluno e professor antiga Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, atualmente Centro Unisal, onde vem se dedicando à docência, pesquisa e extensão universitária. É membro do IEV ( Instituto de Estudo Valeparaíbanos ) centro de excelência de documentação e pesquisa sobre o Vale do Paraíba. 50 Universidade de Taubaté 51 Especial destaque para a palestra proferida no dia 21 de março de 2003 no Auditório do Centro Unisal Unidade de Lorena - em promoção do Curso da História com a finalidade de Resgatar a História do cinqüentenário. Cf. fita K7 no CEDOC.

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destaque merece o livro "Itinerários de Libertação" do professor José Paulino da Silva52 que faz uma análise critica a partir da ótica dos egressos do seminário. Esta obra, em forma de biografia, pretende ser uma releitura de todo o processo educativo na vida do autor, narrando e avaliando inclusive sua formação no seminário e na faculdade salesiana, onde denuncia, sob sua ótica, a opressão pelo sistema com seu controle ideológico. Isto é bem capturado pelo historiador Hoornaert um especialista da história da Igreja na América Latina:

"Entendo a primeira parte, Fragmentos da própria Experiência, como uma bem elaborada construção (criança versus seminário) de uma oposição fundamental. O "paradigma" criança diante do paradigma "seminário". Você acerta na mosca, pois sua criança é realmente paradigmática, ou seja, tem consistência teórica. É compreendida como integrada na natureza e por isso mesmo inteligente, equilibrada e sadia. Vive o equilíbrio entre a razão e a emoção. Seu cérebro opera bem, tranqüilamente, aprende sempre com gozo. Essa criança faz parte da natureza, não se sente dona dela. Aparece no texto um forte sentido de natureza e a convicção que a boa educação consiste num processo natural, de maior sensibilidade (emoção) e compreensão (razão) de uma dinâmica que a natureza já indica espontaneamente. A harmonia entre emoção e razão não é algo artificial, mas decorre das leis da própria natureza. Do outro lado aparecem no seu discurso a igreja, o seminário e a escola como instituições desequilibradas e desequilibrantes, por optarem pela precedência de uma razão instrumental sobre o impulso emocionais. Você tinha que ser padre e tudo foi orientado para esse fim, em cima de sentimentos e de impulsos provenientes de seu ser natural. Uma violência contra a natureza em nome da razão. Que razão é essa que está acima da natureza? Só pode ser uma razão enlouquecida. Você trabalha, pois, dois registros fundamentais: razão (cálculo, operacionalidade, eficiência, competência) e emoção (sonho, desejo, sexualidade, arte). A pessoa funciona bem quando os dois registros estão interagindo de forma harmoniosa. No momento que se estabelece uma hierarquia da razão sobre a emoção ou vice versa, a doença entra e faz muitos estragos53".

Dois documentos merecem ainda especial destaque: as Atas e as Crônicas. No primeiro têm-se as reuniões realizadas pelo Conselho da Casa onde estão retratados “in natura” os 52

Nasceu em Cachoeira de Taépe, Surubim, Pernambuco aos 13 de outubro de 1942. Licenciado em Filosofia e Pedagogia, pela Faculdade Salesiana de Filosofia ciências e Letras de Lorena em 1965. Mestre em Educação pela Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Doutor em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Tem escritos sobre Educação, Cultura popular e História da experiência em Canudos. Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal de Sergipe, onde ocupou sucessivamente os cargos de Pró-Reitor de Assuntos Estudantis ( 1978-1980 ), Pró-Reitor de pós Graduação e Pesquisa ( 1998-1990 e vice Reitor ( 1992-1996 ). Cf. José Paulino da SILVA, Itinerário de Libertação, a educação na encruzilhada entre os discurso progressista e a prática conservadora. São Luís, Editoras sotaque Norte, 2002, terceira capa. 53 Ibidem. p.15.

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problemas da comunidade religiosa na sua história como fórum de decisões, estando aí verbalizadas as preocupações e tensões dos que possuem poder de decisão sobre os clérigos. O livro de crônicas tem sua importância porque registra o dia a dia da comunidade com seu previsível cotidiano e seus eventos. Ele nos permite, porém, com sua aparente singeleza, uma historiografia que captura os vários momentos críticos da história da comunidade com seu entorno religioso, político e social. Finalmente os testemunhos orais ganham importância maior porque são de protagonistas deste período. Uma limitação que nos foi imposta foi a profunda discrição, e, mesmo o silêncio, dos dois diretores dos anos de 1968 e 1969. Foram de capital importância as entrevistas realizadas com os professores Pasin e padre Ferreira. O primeiro apresentou sua visão de ex-aluno que esteve inserido nos embates ideológicos da Faculdade. Suas observações, percepções e intuições como leigo garantem neutralidade na análise dos eventos. O segundo é o padre Antônio da Silva Ferreira, uma das chaves interpretativas dos episódios da época. Em entrevistas realizadas com ele demonstrou profundo conhecimento e visão crítica dos fatos e de sua própria importância nos acontecimentos. Tendo lido parte dos manuscritos desse trabalho realizou a seguinte afirmação:

"(...) no trabalho acentua-se demasiadamente a figura e a atuação do padre Ferreira na crise por que passou a Faculdade de Lorena, como se fosse um dos únicos protagonistas da história. Isso cria dificuldades à credibilidade do relato, sem falar de outros problemas que poderão surgir depois. Seria bom realçar o papel de outros protagonistas, como por exemplo, o Diretor da Faculdade, os membros do Conselho Departamental Administrativo etc (...)” 54

Essa observação de início deixou-nos preocupados com os rumos a dar ao conteúdo até então produzido. Voltando, porém, aos diversos protagonistas do período e aos escritos que estudam a época pudemos constatar uma profunda unanimidade em colocá-lo com o grande referencial do momento, sendo citado com respeito por todas as alas em conflito.

"As propostas dos estudantes contavam com o apoio de algumas autoridades religiosas da cidade, tais como um dos diretores da instituição, padre Antônio da Silva Ferreira.

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Padre Antônio da Silva FERREIRA. Depoimento por escrito concedido pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena, 05 de outubro de 2003.

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Ele se recusava a ter um envolvimento direto com os movimentos estudantis e era totalmente contra a violência, mas achava necessária a luta pela democracia. Era uma pessoa intelectualmente muito forte. Quando o convidávamos para assistir a uma palestra ele dizia "não, não me convidem para isso. Montem tudo e o que faltar vocês me chamem que eu faço". (...) O sacerdote agia como um pai que não quer que a filha namore, mas facilita a situação55".

Alguns consideraram sua postura um ato de humildade, ao procurar diminuir sua importância histórica. Iluminados e fundamentados pelas pesquisas que realizamos, optamos por mantê-lo com o destaque que lhe foi dado, tendo o respaldado das publicações sobre o período assim como o testemunho de todos os entrevistados que em suas narrações colocam-no sempre com destaque singular no desenrolar de todo o processo histórico em estudo. Tetuo Koga também foi um dos entrevistados porque, juntamente com Luís Gonzaga Piccolli, fez parte do grupo de alunos que atuaram ativamente nas Assembléias em defesa os interesses dos salesianos. Finalmente optamos pelo testemunho de alunos leigos da época, então envolvidos intensamente no movimento estudantil: Paulo de Tarso Almada, José Luiz Pasin, Ivo Malerba e outros.

A hipótese elaborada foi apresentada para diversos protagonistas destes fatos que concordaram integralmente com minha interpretação. Pudemos ainda conferir que cruzando as Atas, Crônicas, entrevistas e textos, as informações não só não se contradiziam, mas se complementavam. Nas entrevistas, num primeiro momento, estimulamos a narração dos episódios 56 de 68 sem nenhuma condução deixando que as narrações fluíssem normalmente. Posteriormente, com perguntas fomos solicitando aos nossos interlocutores uma interpretação pessoal dos fatos, fazendo questionamentos sobre os personagens então envolvidos.

As diversas narrações expontâneas e

estimuladas confirmavam nossa hipótese. No final da conversa ou num segundo encontro, questionava-se se os pressupostos de nossa hipótese possuíam fundamentos estando relacionados com as experiências vividas por eles. Todos, unanimemente, acolheram e confirmaram nossa proposição: tinha de fato existido uma mudança do

55

Ivo MALERBA, In. Beatriz BORREGO, Uma Lacuna na História -movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida - Taubaté, Papel Brasil, 2000. P. 59

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paradigma "Razão". Posteriormente passamos à hipótese elaborada para outros protagonistas deste período que não tinham sido entrevistados e que também confirmaram essa percepção. Este processo permitiu-nos o cruzamento das fontes orais e escritas, chegando à conclusão que havíamos capturado uma chave explicativa da história da Faculdade Salesiana. A pesquisa mostrou-nos a possibilidade de posteriores aprofundamentos. O presente trabalho, longe de ser uma palavra final sobre o assunto, pretende antes ser uma provocação de uma abordagem até agora inédita, sobre aquilo que definimos como a "mudança do paradigma Razão", alterado pelo momento histórico em estudo. Nossa pesquisa possui ainda uma delimitação temporal: décadas de 1960 e 1970. Os mais fortes impactos desses episódios só viriam a se manifestar plenamente na década de 90. Apesar de parecer que os novos ideais dos clérigos universitários tenham sido sufocados no ano de 1969, de fato essas idéias permaneceram latentes entre estudantes e professores, e, o silêncio imposto, acabou sendo só externo, já que muitas dessas idéias continuaram a ser cultivadas em foro íntimo ou em grupos restritos. Ela ressurgirá no período após ditadura, agora porém sem a visão romântica e idealizada da década de 60, mas repleta de ressentimentos, e portanto agressiva. Esse "ressurgimento," porém, está fora do período de nossa pesquisa e poderá ser objeto de estudos posteriores. Um último ponto merece ser ainda relembrado. O nascimento da Faculdade Salesiana teve por finalidade atender à necessidade dos clérigos de se tornarem professores com diploma reconhecido, sendo portanto consideradas como um apêndice no projeto carismático57 de Dom Bosco, entendido como educador dos adolescentes. Seu desenvolvimento foi um ato de alguns poucos salesianos 58 que acreditaram na importância do Ensino Superior. Somente no final dos anos 1990 é que a antiga Faculdade Salesiana passa ter o reconhecimento mundial com a formação das IUS 56

Padre Ferreira fez muitas de suas declarações por escrito, assim como posteriores intervenções. Todo esse material encontra-se agora arquivado no CEDOC do Centro Unisal, Unidade de Lorena. 57 Até o final da década de 90 alguns ainda viam o Ensino superior como uma forma de traição ao projeto de João Bosco, voltado para as classes populares. Essa radicalização esteve presente num movimento dentro da própria Igreja quando a Teologia da Libertação teve seu auge e muito religiosos abandonavam obras tradicionais para se inserirem em meios às populações das periferias. Hoje restam poucos contestadores da presença dos salesianos no Ensino Superior. 58 Existia na congregação alguns salesianos com formação européia, mestres e doutores, que acreditavam ser necessário implantar o Ensino Superior na congregação. Entre eles pode-se citar, padre Antônio da Silva Ferreira , padre Carlos Leôncio da Silva e outros.

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(Instituições Universitárias Salesianas) que passam a integrar de modo explícito o projeto carismático da educação salesiana, só então tendo um lugar reconhecido nos estatutos da Congregação. Nas duas décadas em questão o que preocupa a todos os formadores59 é a configuração entre o seminário e o ensino superior com suas exigências legais impostas pelo governo.

Definidos os princípios filosóficos, a metodologia de pesquisa e a eleição das fontes, podemos agora nos voltar especificamente para o momento histórico em estudo que tem como objeto a Faculdade Salesiana de Lorena marcada com a mudança de um de seus paradigmas60. Com a distância do tempo, percebemos que essa crise foi benéfica, enquanto permitiu que nas décadas seguintes se configurasse uma clara identidade dos educadores salesianos para os novos tempos, tornando-os aptos a se realinharem com as novas gerações de educandos61. A sucessão de fatos na época, porém, não permitiu aos seus protagonistas clareza de visão quanto à importância das mudanças que então aconteciam e que atingiam o âmago do ideário educacional salesiano. Os embates políticos, ideológicos e religiosos aconteceriam no ardor de duas décadas de contestações, questionamentos e radicalizações. Tanto que já na década de 70, parecia que as novas idéias tinham sido sufocadas, como aconteceu no Congresso de Viena em 1815, quando, os ideais da Revolução Francesa pareciam estar mortos, sendo que apenas dormitavam, para emergir anos à frente, mostrando que a Revolução Francesa formara uma nova mentalidade.

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Os formadores são também diretores e professores da faculdade. Este processo não é novo. Já no século XIII a introdução do Pensamento Aristótelico na Universidade de Paris representou a desestruturação não só da Universidade, mas dos grandes paradigmas platônicoagostiniano que configuravam a sociedade e a cristandade de então. A expulsão dos "mestres aristotélicos" e a condenação imposta a eles pelo Bispo de Paris Étienne Tempier, em 1277, não impediu que o aristotelismo se implantasse como nova formatação do pensamento católico ocidental. Cf. Carlos Bento MATHEUS, A Grande Crise de 1277 na Universidade de Paris. In Revista de Ciência da Educação do Centro Unisal. Lorena: Editora Stliano e Centro Unisal, v.01, n.01, [ s.d. ] 1999. pp. 43-79 61 A antiga Faculdade Salesiana de Lorena atualmente está integradas com as unidades de Americana, Campinas e São Paulo, constituindo hoje o Centro Universitário Salesiana, Unisal. 60

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A Igreja sempre foi ciosa de seus princípios, isso desde que as universidades surgem na Idade Média, e, ainda que tenha sofrido na Idade Moderna significativas contestações62, manteve-se como estrutura monolítica. E, mesmo quando estabelece diálogo com a Renascença, sua postura foi a de preservar sua autoridade impondo sua visão de mundo. Nem a Revolução Industrial e a crescente urbanização o demoveram de preservar sua organização baseada no modelo imperial romano e sua mentalidade medieval, mas, ao contrário, a Contra Reforma consolidou posturas que adentraram o século XX, ignorando mudanças estruturais da sociedade e do mundo. E, se algum diálogo foi estabelecido,63 o foi a partir do lugar da autoridade religiosa, resistente a novas concepções e mentalidades. As duas Grandes Guerras não só redesenharam o mapa político do mundo, mas serviram para repontuar valores e concepções. O mundo que emerge do pós-guerra se diferencia por novos valores e, ainda que medrem na Igreja novas visões e concepções, elas esbarram, porém, na hegemonia tradicionalista da hierarquia e não conseguem se impor ao rígido crivo dogmático do poder eclesiástico 64. O catolicismo passa porém por inevitáveis releituras, pois as inquietações que perpassam a sociedade ocidental se infiltram nos tecidos da Igreja, levando, sobretudo as universidades católicas, a momentos de crise de identidade. Apesar de permanecer o conceito de uma Igreja una, os novos tempos e as novas mentalidades dos homens de Igreja trazem idéias que desestabilizavam as estruturas tradicionais, seja ao questionar as idéias conservadoras como de um Pio X, condenando o modernismo, seja acolhendo Concílio Vaticano II com seu projeto de "aggiornamento" ao mundo moderno.

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Especial destaque para a reforma protestante, já no início da Idade Moderna, que possui um discurso alternativo e uma chave explicativa da realidade diferente da Igreja Católica. 63 Um exemplo típico deste processo foi a paulatina organização da chamada Doutrina Social da Igreja, iniciado por Leão XIII com a Rerum Novarum. Ainda que, abordando as questões sociais candentes ao final do século XIX, a Igreja o faz a partir do lugar religioso ao qual se deveria adequar à sua mundividência. 64 Neste momento ainda prevalecem o "Index" dos livros proibidos de ler e a necessidade do " Nihil Obstat" para as publicações de católicos. Esse controle minucioso não só atinge às idéias, mas a mais simples práticas do cotidiano dos religiosos, que possuem descrito em mínimos detalhes suas ações e atitudes; a liturgia prende-se ao mais rígido rubricismo. Num mundo em profundo processo de mudanças, a Igreja mantém estruturas monolíticas e intocáveis.

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Nas universidades católicas vive-se uma crise de referenciais65 frente a um mundo em mudança acelerada; enquanto que alguns buscam segurança e estabilidade no passado, outros procuram se adaptar a um mundo com novos princípios educacionais. Essas tensões não são novas. Santo Agostinho, no século IV já vivera essa crise ao contrapor a cidade Deus com a cidade dos homens:

A Gloriosíssima cidade de Deus, que no presente decurso do tempo, vivendo da fé, faz sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciência até o dia em que será julgada com justiça, e que graças a sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória a paz perfeita. (...) É desta cidade da terra é que surgem os inimigos dos quais tem que ser defendida a cidade de Deus. Muitos deles se afastando de seus erros de impiedade tornaram-se cidadãos bastante idôneos da Cidade de Deus. Mas muitos outros ardem em tamanho ódio conta ela e são ingratos aos manifestos benefícios do Redentor, que hoje não se moveriam contra ele a sua língua, senão porque encontram nos seus lugares sagrados, ao fugirem das armadas inimigas, a salvação da vida que agora tanto se orgulham66.

Essa experiência parece ser repetida no século XX ao inverso, quando se visualiza a crescente vitória da cidade dos homens sobre a cidade de Deus, com a laicização e ateísmo67. Nestes novos tempos a Igreja não consegue manter a unidade em suas fileiras. Muitos querem uma Igreja que corresponda aos anseios do homem do século XX. A congregação salesiana percebe essa realidade e sente-se tocada a dar resposta aos novos tempos:

"O fato educativo (...) coloca-se no processo 'próprio de uma história em aceleração' isto representa aos formadores graves problemas. Alguns CIE da América do Sul mostram-se particularmente sensíveis : 'Estamos a viver um irreversível processo revolucionário" que atinge igualmente toda a humanidade, a Igreja, a Congregação , às pessoas' . Este processo, se reproduz com uma rapidez extraordinária, mas até chega a 65

As Universidades na Idade Média nasceram católicas e sempre se debateram na luta contra as idéias que, ou colocavam em risco os princípios doutrinais, ou que de certo modo "arranhassem" as concepções do catolicismo. Assim esse conflito não é novidade, sendo que neste período as idéia de cunho marxista passam a ter significativo espaço dentro de muitas universidades católicas, não só entre alunos mas também entre mestres. 66 Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 2ed. Lisboa: Edição da Fundação Caloustre Goulbrnkian, 1987. v1. pp. 97-99. 67 No século XXI essa tensão não é um dado terminado. Muitos grupos neo-medievais procuram estabelecer a permanência do passado como forma de salvar as estruturas da tradição. Entre os grupos mais radicais estão a TFP ( Tradição Família e Propriedade ), o movimento do Bispo Marcel Lefébre, a Comunhão e Liberação e a Opus Dei.

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tocar e trabalhar todos os níveis do homem. 'As instituições, os sistemas, as pessoas poderão responder ao problema e prolongar sua própria existência nesta nova era da história, apenas na medida em que demonstrarem capacidade de renovação' "68.

É neste contexto que o nosso estudo volta-se para uma universidade católica e salesiana que tem o catolicismo como matriz espiritual e cosmovisão de mundo e ao mesmo tempo assume o pensamento de João Bosco com angulações pedagógicas específicas que se somam às bases da educação católica clássica. Tudo tem seu início com o trabalho de João Bosco que foi realizado entre meninos pobres de Turim necessitados de acolhimento, educação e profissionalização. Suas fundações se constituíram em respostas concretas às necessidades que emergiam da neo-industrialização da Itália, com reflexos na situação social e religiosa dos adolescentes e jovens das classes populares. A experiência universitária não estava cogitada no projeto do fundador. Ela surgiu no Brasil para cumprir exigências legais, tendo em vista a necessidade das escolas salesianas de primeiro e segundo grau que deviam contar no seu corpo docente professores com diploma reconhecido pelo governo. Elas se implantaram então pelo empenho de alguns poucos salesianos, sendo vistas porém, pela maioria dos sócios salesianos, como um elemento estranho ao projeto do fundador. Somente no final década de 90, como já afirmamos, é que a universidade salesianas no mundo serão reconhecidas como expressão do carisma da Congregação com a fundação da IUS 69, que, congregando as universidades salesianas do mundo, dá-lhes um lugar reconhecido dentro da Congregação nos seus estatutos. Estando entre as primeiras70 instituições salesianas de Ensino Superior do Mundo 71, elas nasceram atreladas a uma mentalidade de Cristandade 72, na qual as pontuações 68

SALESIANOS, O que Pensam os Salesianos Sobre a Congregação Hoje: Radiografia das Conclusões dos Capítulos Inspetoriais Especiais, Escolas Profissionais Salesianas. São Paulo: 1969, v.3. p. 10 69 Instituições Universitárias Salesianas. 70 Uma primeira experiência foi realizada em São Paulo com a fundação da Faculdade de Estudos Econômicos, já autorizadas a funcionar desde 1931 (Decreto 20.158 de 30/06.1931). Cf. Manoel ISAÚ. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985. p.348 , que veio a ser Instalada no Liceu Coração de Jesus em 1938 quando é implantada. Os salesianos, porém, não se adequaram bem a esta nova realidade de Ensino Superior, e quando foi reconhecida pelo Decreto 25.225 de 15 de julho de 1948, neste mesmo ano, no dia 03 de agosto era passada para PUC de São Paulo.

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hierárquicas e dogmáticas eram resultados do esforço de romanização iniciado no século XIX contra o clero iluminista, que aspirava uma igreja nacional, liberta do controle de Roma. Os salesianos, vindos para o Brasil no final do século XIX, faziam parte de uma leva de religiosos 73 que tinham por escopo, na ótica dos bispos brasileiros, garantir o "capital religioso" nas mãos da hierarquia católica fiel ao papado e que tinha nos seminários de Botucatu, Ipiranga e Caraça os grandes centros de irradiação da romanização74, com a formação de um clero culto, moralmente sadio e fiel ao papado. Os salesianos permanecem inicialmente fiéis às expectativas que motivaram o episcopado brasileiro a trazê-los para o Brasil: o processo de romanização e o atendimento das crianças e adolescentes pobres. Contra a vontade porém dos salesianos, a faculdade desestabilizará este objetivo inicial de alinhamento com a Igreja e com os poderes constituídos. Se a década de 50 foi marcada pela euforia com a fundação da faculdade, quando nomes representativos da intelectualidade católica freqüentam seus ambientes, o mesmo não acontece com as duas décadas seguintes. As convulsões sociais, políticas, econômicas e religiosas das décadas de 60 e 70 adentram na faculdade que se vê - como todas as instituições da época - envolvida no torvelinho dos questionamentos e das crises que, se de um lado comprometeu os ideais dos fundadores de uma instituição de ensino superior dento do espírito da Restauração do catolicismo ultramontano, de outro acaba sendo fundamental para a maioridade da Instituição, como elemento definidor do seu destino no século XXI. A crise, como já falamos anteriormente, compromete um dos pilares fundamentais da educação salesiana, a

( Ibdem. p.356 ) Atribui-se à Índia a primeira Instituição de Ensino Superior salesiana. 72 O conceito de cristandade é contraposto ao de cristianismo. Dentro de uma ótica da Teologia da Libertação há uma radical oposição entre os dois conceitos. O cristianismo é aquele movimento carismático que tem no Sermão da Montanha a grande matriz da vivência dos ensinamentos do cristianismo, um movimento de pobres, marginalizados e oprimidos. A Cristandade surge quando o carisma inicial é substituído pelo poder, no reconhecimento do cristianismo como religião oficial do então decadente Império Romano no século IV. A partir daí, cada vez mais o movimento cristão é envolvido por diversas formas de poder, autoridade e posse territorial. As grandes construções, o cerimonial episcopal ligado aos moldes de uma corte, o clero distante do povo, "detentor do poder" jurídico e religioso, seriam formas explícitas de cristandade, que em resumo seria a negação do movimento carismático daqueles rudes pescadores da Galiléia. 73 Os salesianos fazem parte da segunda leva de religiosos a virem ao Brasil. Isso mostra a importância deles no processo de romanização. 71

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Razão, até então apoiada nos fundamentos do tomismo. O trabalho com os adolescentes, nos seminários e com a própria universidade, esteve apoiado até então numa dimensão tomista, na qual se acreditava que a Verdade se impunha à Razão75, que, retamente guiada, a absorvia. Esse conceito se materializava nas relações e na bipolarização entre mestre e discípulo, sábio e ignorante. Nesta ótica existe um "detentor da verdade" que se volta para o ignorante. Essa era a lógica que presidia o ensino. Na contra mão desse pensamento, populariza-se nessas duas décadas a idéia da participação das classes populares, do operariado 76, dos marginalizados e do popular como possuidor de um saber e de uma verdade que não vinham das classes superiores, mas que nascia de um processo que passava pela educação77 popular. Essa nova mentalidade, sob a luz de autores libertários, buscava a valorização do popular, do pobre e do humilde, como capazes de apreender, construir e transmitir a verdade. Paulo Freire é uma das muitas vozes que sinalizam essa nova mentalidade:

(...) o que ele propusera com o seu método no início dos anos 60, afirma Freire em 1965, fora uma educação "crítica e criticizadora" que tentasse a passagem da transitividade ingênua" (...) Não podia ser uma educação qualquer, mas uma "educação para a decisão, para a responsabilidade social e política", uma educação reformadora. (...) Não se tratava de uma educação para a rebelião (... mas para a inserção na realidade. Uma educação para o” saber democrático" , para a mudança de atitude, para análise e o debate, para a troca de idéias e experiências: em suma, para e através da "comunicação de consciências.78

74

Cf. Augustin WERNET. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1987. pp. 96144. 75 Essa visão otimista do poder da Verdade de se impor à Razão é professada pelo tomismo-aristotélico, mas tem suas raízes primeiras no pensamento socrático, que punha na Verdade o poder de se impor à Vontade. "La identificación socrática entre virtud y ciencia tiene como corolario um rígido determinismo moral. (...) Sócrates, aunque se limita al campo moral, conserva el fondo racionalista de los presocráticos y los sofistas. Em el realismo griego prevalece el objeto sobre el sojeto. (...) Por lo tanto, los pecados no son voluntarios, pues proceden siempre de uma deficiencia de conocimiento. Al que peca no se le debe castigar, sino intruirle". Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia. v.1. Madrid: BAC, 1965. p.262. 76 O Pensamento socialista ( assim como o anarquista ) nesse momento possui espaço de desenvolvimento nas classes urbanas de industriários. Esse conjunto de idéias tem essencialmente sua base no popular. 77 Essas idéias libertárias e de promoção do povo já estavam presentes no Brasil desde a década de 30, com os Pioneiros, eram, porém, idéias fechadas ao restrito grupo da intelectualidade. A década de 60 permite uma ampliação dessa idéias junto às camadas médias da população e mesmo entre os grupos urbanos do operariado. 78 Cf. Vanilda Pereira PAIVA. Paulo Freire e o Nacionalismo Desenvolvimentista. São Paulo: Civilização Brasileira, [s.d ].

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As classes marginalizadas cada vez mais lutam por seus direitos políticos e sociais, unidos a líderes estudantis, rejeitando a chamada moral burguesa 79. Essas teses ganhavam corpo assumindo para alguns uma postura de "contracultura" que pretende a ruptura com elementos opressores da sociedade. Configurava-se um novo homem com nova mentalidade questionadora da realidade. Assim se organizava a mente das novas gerações. E, se a crise das décadas de 60 e 70 é global atingindo governos, economia, educação e religião, em nossa abordagem damos ênfase a ela no seu aspecto educacional, sobretudo naquilo que atinge a própria identidade da educação salesiana no seu aspecto de racionalidade. O mundo então fechado do seminário, com a fundação da faculdade, abria-se timidamente, mesmo contra a vontade de seus diretores, para as questões políticas e de ideologias alheias aos valores filosóficos do cristianismo e do mundo salesiano.Com o governo de João Goulart o país inclinava-se para uma política social e econômica com a chamada "reforma de base 80", em nível interno e com uma política independente, em nível externo, com abertura a países do bloco comunista, contrariando as sinalizações dos Estados Unidos e assustando a burguesia nacional.

"A base desta política externa independente continha alguns elementos mais destacados , tais como: a formulação de planos estratégicos de desenvolvimento econômico amparados soberanamente por decisões de interesse nacional, coexistência pacífica, emancipação dos territórios ainda submetidos aos sistemas colonialistas, ampliação do mercado externo com redução tarifária e intensificação de relações com todas as nações, e, finalmente, a não interferência nos assuntos internos dos outros países, consagrando com isso, a autodeterminação dos povos e o acatamento do direito internacional. Essa política foi objeto de variadas interpretações quanto ao sentido e alcance político e diplomático, porém não há quem discuta o fato de que seu conteúdo se insere no contexto de contenção da hegemonia norte-americana no continente, assim com reflete o momento no qual o Brasil assume uma postura de parceiro interessadas nos novos espaços que se abriam às relações, tanto diplomáticas, como comerciais Provavelmente, com ou sem o rumo dado pelo governo de João Goulart nas políticas internas e externas, essa tendência seria inevitável” 81.

79

Cf. Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA, Uma Lacuna na História - movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté, Papel Brasil, 2000. pp.51ss. 80 "Essa radicalização desse debate em torno das reformas de base não dividiu, em conseqüência, apenas a direita e a esquerda, ou que combateriam por considerá-las demagógicas ou "comunizantes", e os que as defendiam por julgá-las inadiáveis e justas". Lincoln de Abreu PENNA. República Brasileira. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999, p. 253. 81 Ibidem. p. 251.

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O golpe de 64 representa um momento de tensão porque, se de um lado afasta "o perigo de esquerda82", de outro acirra as posições reacionárias. Essas polarizações adentram as universidades, com freqüentes radicalizações orquestradas pelo DA e pela UNE. Essa crise externa deixa perplexos os educadores salesianos, pois o conceito de um "mestre", que tem algo a ensinar, passa a ser questionado pelos jovens, não raras vezes ácidos nas avaliações e turbulentos nas reivindicações 83. A juventude passa a se posicionar entendendo-se como possuidora de uma verdade a ser ouvida, e, até imposta. É nesse momento que a crise atinge o núcleo do ideário educacional salesiano: como fica a Razão? Qual o lugar dos mestres? Como entender a figura do educador? Como educar jovens que mal querem ouvir? Como agir diante dessas novas realidades? Alguns salesianos, incapazes de se abrirem ao diálogo se apegam ao modelo tradicional de Racionalidade como tinha sido entendida até então, enquanto outros procuram estabelecer diálogo com essas novas posturas.

É necessário que tenhamos uma visão ampla da gênese e dos valores do mundo salesiano para contextualizarmos a crise então vivida. Inicialmente faremos breve apresentação da vida do fundador e como seu estilo de vida influenciou uma cosmovisão e uma mentalidade de educação. Mais que uma biografia, sua vida no seu cotidiano, sintetiza os ideais que depois foram elaborados como teoria. Não se pode entender os princípios educacionais de Dom Bosco se não se conhece com profundidade em sua história pessoal, pois sua experiência existencial representou uma forma de educar, iluminada com os princípios do tomismo. Procuramos, a seguir, demonstrar, ainda que brevemente, como seus princípios educacionais foram assumidos por seus discípulos, que buscaram ser fiéis às suas idéias e práticas. Esse estilo assumido por seus primeiros discípulos foi integralmente transplantado da Itália para os colégios no Brasil.

82

Cf. Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA, Uma Lacuna na História - movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté, Papel Brasil, 2000. p 36. 83 Cf. Ibidem.p.52.

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É dentro desta mentalidade que acontece a fundação da Faculdade Salesiana, cuja finalidade primeira era atender às necessidades dos colégios salesianos do Brasil, com padres-professores com diplomas reconhecidos pelo governo. A primeira década da fundação é tranqüila enquanto a faculdade se confunde com o seminário, equivalente, no dizer do padre Ferreira a um "segundo grau melhorado”

84

. Na década de 60, por

situações conjunturais da época o modelo de racionalidade elaborado por Dom Bosco que vê no jovem o receptor da verdade, é abalado. Neste contexto os antigos salesianos continuam a acreditar que qualquer alteração na forma de se entender a Razão diferente da elaborada por Bosco representa infidelidade ao seu projeto. Um novo grupo porém, acredita na evolução do conceito, pois adequar-se às novas realidades é um ato de fidelidade ao fundador que foi acima de tudo um homem de vanguarda. Acreditavam que os novos tempos exigem a passagem de uma racionalidade passiva, que apenas recebe e acolhe o quer lhe foi apresentado, para uma racionalidade ativa que participa ativamente da conquista da verdade.

Esse será o itinerário que seguiremos ao discutirmos a evolução dos princípios que representam hoje o ideário do Unisal, pois a dinamicidade do ensino superior estará sempre no limiar entre o conquistado e o novo. As duas décadas trazem no seu bojo o sentido de contradição. É um tempo em que o mundo e os valores parecem desconectados; será porém dentro deste processo que se configurará o conceito de protagonismo juvenil, onde a racionalidade é vista como algo a ser construído pelo próprio jovem, entendido como agente primeiro no processo de sua própria educação. Tudo isso porém supõe antes uma análise de como se configurou a Pedagogia Salesiana no seu início.

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Padre Antônio da Silva FERREIRA. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 17 jul. 2002.

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CAPÍTULO 2 A PEDAGOGIA SALESIANA - SUA GÊNESE

A História clássica sempre se voltou para os grandes homens e seus feitos. O cotidiano e o popular não são, ordinariamente, objetos da história. A Nova história85, sobretudo com o movimento dos Annales, volta-se para o homem comum e seu cotidiano. É objeto de estudo, não como fator exótico ou de curiosidade, mas entendendo-se que ele faz parte integrante da História e que seu dia a dia, reproduz com nitidez o todo histórico86 de uma época. A História clássica, escrita pelos poderosos e vencedores, não colocou o popular como objeto central de sua narrativa. A historiografia moderna tenta, senão resgatar um passado perdido, porque basicamente não fundamentado, ao menos hoje reconstituir o que é possível e elaborar uma história onde os homens comuns sejam entendidos como protagonistas do fato histórico. João Bosco nasceu popular87, teve uma vida comum de lavrador do Piemonte 88. O seu pensamento e suas atitudes foram aprendidos e cultivados no meio de gente simples 89. 85

Cf. Peter BURKE. A Escrita da História, Novas Perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. São bastante pertinentes, neste contexto, os conceitos de micro e macro história. 87 A dimensão popular de João Bosco pode ser apreendia, sobretudo, no livro "Memórias do Oratório São Francisco de Sales", que foi fruto de anotações feitas num caderno por determinação do papa Pio IX. João Bosco não pretendeu criar um material para publicação, mas apenas anotações de sua experiência com a educação bem sucedida. Acredito que esse texto, por sua dimensão íntima e doméstica, com uma narrativa singela, em muito se aproxima daquilo que é definido como "micro história". Posteriormente João Bosco torna-se objeto de uma historiografia oficial e Institucional, que em muito o afasta desta visão da história do homem simples do povo. Creio, porém, que esse livro, pela sua dimensão familiar de "anotações num caderno" e a proibição de sua publicação, nos retrata um João Bosco muito próximo de suas raízes 86

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Sua concepção de educação nasce da sabedoria popular. Como camponês, ainda adolescente, viu passarem pelos campos, camponeses e tropas rumo às cidades90, refletindo ao mesmo tempo as crises sociais91 geradas pela industrialização, com aumento das cidades, e as convulsões políticas, no processo de unificação da Itália 92; esses fatos são o pano de fundo de sua vida. Sua atividade educadora foi no seu início intuitiva e não fruto de projetos e teorias. Narrou nas "Memórias do Oratório de São Francisco de Sales93", sua experiência de vida para seus seguidores, com a recomendação porém que não fossem publicadas 94.Compôs ainda alguns pequenos

populares. " ( ... ) por tanto, me decido a relatar em este escrito pequeñas noticias confidenciales que pueden iluminar o ser de alguna utilidad (...) ante todo, debo dejar sentado que scribo para mis querídisimos hijos salesianos, com prohibición de dar publicidad a estas cosas, tanto antes como después de mi muerte" . Juan BOSCO. Memorias del Oratorio. Madrid, Editorial CCS, 2003, p. 3 e 5 88 Norte da Itália. 89 Essa origem simples e popular é fundamental para o entendimento de Bosco. Sua prática educativa esteve apoiada no bom senso dos camponeses do Piemonte. Sua posterior elaboração foi apenas a materialização de valores cultivados pelos lavradores. Posteriormente ele se tornou “um grande homem objeto da história clássica”. É importante porém capturar a figura de Bosco na sua intuição inicial como homem rude do campo. É neste “primeiro João Bosco” que está a fonte de seu pensamento e de sua proposta educativa. 90 "No início do século, a Itália possuía uma economia pré industrial e essencialmente agrícola e não acompanhava o mesmo ritmo da Europa. Só em 1870, evoluiu para outro tipo claramente industrial, trazendo efeitos sociais. O primeiro reflexo das mudanças mais profundas de caráter estrutural , considerando o Piemonte e Turim, foi um incremento populacional, que se deu principalmente movimento migratório". Maria José Urioste ROSSO. Cultura Organizacional; uma proposta metodológica. Lorena: Editora Stiliano - Unisal, 2000. p. 63. 91 "As condições em que viviam os trabalhadores tinham como características a miséria, horários excessivos de trabalho, ausência de segurança, salários de fome, falta de relações contratuais garantidas por uma legislação trabalhista e ainda a exploração da mão de obra feminina e infantil." Ibdem. pg. 63 92 "Di enorme portata storica è la rivoluzione industriale, la più drammatica dopo la rivoluzione neolitica con imprevedibili ripercussione a tutti i livelli della vita umana: tecnico-scintifico, economico, sociale, culturale, politico. La rivoluzione industriale a base capitalistica ebbe la sua patria in Inghilterra nella seconda metà del secolo XVIII; alla metà dell’Ottocento si affermerà in diverse misure in Belgio, in Francia, in Germania, in Svizzera, negli Stati Uniti d’America; per l’Italia si dovrà attenderne gli inizi durante l’ultimo ventennio del secolo: in relazione ai decenni precedenti si può parlare al massino di fenomeni di pre-industrializzazione di portata locale, per esempio a Torino. Gradualmente più chiara, estesa e intensa si farà l’aspirazione all’unità politica della nazione, promossa soprattutto dalle forze liberali e democratiche, contrastata dal conservatorismo politico, dai regionalismi, da visioni particolaristiche: tra l’altro, in Italia, dalla speciale condizione dello Stato pontificio." Pietro BRAIDO. Prevenire, non Reprimemere: il sistema educativo di Don Bosco. Roma: LAS, 1999. pp.11-12. 93 Cf. João BOSCO. Memórias do Oratório São Francisco de Sales. São Paulo: Editora Salesiana, 1999. pp.8-10 94 Tendo sua obra se espalhado pelo mundo, essa ordem foi desconsiderada por seus seguidores.

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escritos tentando teorizar princípios que tinham iluminado sua ação pedagógica95. Sua prática educacional nasce da compreensão da alma dos jovens, o que permitiu que fosse amado por eles, e para os quais deixava explicito o seu bem querer. Estórias, casos, episódios do cotidiano e "sonhos" foram ferramentas eficientes na sua prática educativa96.

Os princípios pedagógicos de João Bosco brotam de sua intuição iluminada pelo bom senso, sentido de família, piedade popular e tradições da igreja. Capitaliza, aglutina e dá formato a essas influências como práticas educativas que respondem às necessidades do cotidiano dos jovens. Sua pedagogia só pode ser entendida enquanto encarnada no seu cotidiano, sendo difícil apreender, e, mesmo entender, sua posterior elaboração teórica 97, sem se passar pela sua vida, que, mais que uma biografia, é a materialização de suas práticas e crenças educacionais. Seu modo de educar nasce como resposta concreta e efetiva às situações vivenciadas pela da juventude de sua época. Sua prática educativa teria sido uma mera experiência popular não "historiável", caso não tivesse obtido a repercussão que assumiu no correr de poucos anos.

Os primeiros Cursos Superiores salesianos nascem no lastro da vida e da obra de João Bosco sendo que seus princípios educacionais vão ganhando forma acadêmica a partir

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Existem muitos escritos que não sendo manuais de pedagogia, retratam porém seus princípios. São vidas de alunos, teatros e uma imensa quantidade de cartas para pessoas da nobreza, governantes, exalunos, salesianos e missionários. Em todos esses escritos há sempre a preocupação com a educação e o bem dos seus jovens. Criou ainda duas publicações mensais, como livro e revista. A primeira chama-se " Leituras Católicas" com teatros, contos juvenis, histórias de aventura etc... a segundo, editada até hoje em Italiano, Inglês, Francês, alemão, polonês e português, chamado de "Boletim Salesiano" e tem por público alvo educadores e líderes do mundo salesiano. 96 A carta de Roma é uma demonstração desse modo popular de falar. Cf. João BOSCO. Carta de Roma. In Constituições e Regulamentos. São Paulo: Editora Salesiana, 1985. pp.238-249. 97 A elaboração teórica de seus princípios podem ser organizados em quatro momentos bem definidos: o primeiro são os textos elaborados pelo próprio Bosco. O segundo está sob o encardo de seus primeiros discípulos que, tornam-se interpretes do seu pensamento, buscando acima de tudo a fidelidade. O terceiro grupo representa aqueles pensadores que tentam realizar algumas adaptações, sem perder porém o compromisso com a tradição. E finalmente os escritores pós Vaticano Segundo que procuram, acima de tudo captar o “espírito do fundador”, mais do que sua letra presa a uma época, a uma cultura e a uma mentalidade. Para esses a verdadeira fidelidade a João Bosco está em " capturar" o seu espírito.

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da Pontifícia Universidade Salesiana de Roma, e, na América Latina, na Faculdade Salesiana de Lorena.

Apesar da dimensão erudita do ensino superior, sua base

pedagógica está apoiada na vida pessoal de João Bosco.

2.1 - João Bosco fonte primeira como fundador

João Bosco procurou dar respostas aos problemas da juventude italiana do século XIX do Piemonte, não tendo inicialmente nenhum projeto articulado de Educação. Seu modo de agir porém, aglutinou em torno de si muitos dos jovens acolhidos que "quiseram ficar com Dom Bosco", porque acreditavam no seu projeto e sentiam-se cativados por seu magnetismo pessoal. A Península Itálica vive, por volta de 1850, um profundo anticlericalismo98. Há retaliações à Igreja99, sobretudo pelo problema criado pelos Estados Pontifícios, então um significativo obstáculo para a unificação da península. João Bosco, sob a orientação do ministro anti-clerical Rattazzi100, de quem tinha obtido respeito pelo seu trabalho junto aos jovens carentes, entende que a fundação de uma Congregação Religiosa nesse momento seria inviável, frente a uma sociedade e governo hostis aos "frades". Não titubeia então em criar uma Sociedade Civil com toda uma terminologia leiga; surge então a "Sociedade de São Francisco de Sales", com os seus "sócios" no lugar de frades ou religiosos, e "diretores" no lugar de superiores 101. Ainda em vida

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Cf. Pietro STELLA. Don Bosco nella Storia Economica e Sociale; 1815-1870. Roma: Libreria Ateneo Salesiano, 1980. p.76 99 Anche nella vita religiosa è chiaro il passaggio da un primo periodo di accentuata alleanza di “trono e altare” a una crescente separazione, imposta in parte da misure politiche ritenute vessatorie, provocata in larga misura dall’incapacità di rispettare operativamente le necessarie distinzioni tra la sfera del religioso e quella del politico, consumata infine dall’autoemarginazione politica del non expedit. È, tuttavia, notevole la presenza della Chiesa e dei cattolici nel campo religioso e nel "sociale". Pietro BRAIDO. Prevenire, non Reprimemere: il sistema educativo di Don Bosco. Roma: LAS, 1999. pp.15-16. 100 Respira a Itália da época profundo anti clericalismo e profunda rejeição a ordens religiosas. O ministro Rattazzi era um dos que defendiam essa linha de ação contra a Igreja, mas pessoalmente nutre especial admiração por João Bosco. Num encontro em 1857 aconselha a Dom Bosco a fundação de uma sociedade civil que como tal não poderia ser atingida pelas leis do Estado, já que a perseguição volta-se contra as ordens religiosas e não contra as sociedades civis. João Bosco dá assim à sua "nova ordem" um estrutura civil, onde os sócios preservavam diante do Estado todos os seus deveres e direitos pessoais, inclusive com a obrigação de pagamento de impostos e conservação de um patrimônio pessoal. Cf. Terésio BOSCO. Dom Bosco. São Paulo: Editora Salesiana , 2002. pp.339-340. 101 Essa terminologia e organização é preservada até hoje.

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funda as Filhas de Maria Auxiliadora102 e os Cooperadores salesianos103. Após sua morte são realizadas muitas fundações 104 que seguem os seus princípios educacionais e que são reconhecidas como entidades independentes, mas denominadas "Família Salesiana".

2.2 - Vida de João Bosco

"Acredito que o programa, para a História das mentalidades, não seja tanto uma descoberta, como uma análise. O que eu gostaria de fazer não é simplesmente, como Edward Thompson, salvar o meeiro e o camponês, mas também o nobre e o rei do passado, da condescendência dos historiadores modernos, que pensam estar mais bem informados, que pensam saber o que é um argumento lógico e teórico. O que eu gostaria de fazer e o que acho que devemos fazer é encarar a mentalidade não como um problema de empatia histórica ou de arqueologia, ou, se preferirem, de psicologia social, mas da descoberta da coesão lógica interna dos sistemas de pensamento e comportamento que se adequam ao modo pelo quais as pessoas vivem em sociedade, em sua classe particular e em sua situação particular de luta de classe, contra aqueles de cima, ou se preferirem, de baixo. Gostaria de restituir aos homens do passado, e principalmente aos pobres do passado, o dom da teoria. Como o herói de Molière, esteve falando trivialidades o tempo todo. Apenas com a diferença que, enquanto o homem em Molière não sabia, acho que eles sempre souberam, mas nós não. E acho que deveríamos saber". 105

João Bosco nasceu aos 16 de agosto de 1815, num pequeno aglomerado de casas, próximo a Turim, no norte da Itália, chamada Becchi. Seus pais eram camponeses humildes. Perdeu seu pai, Francisco Bosco, quando tinha dois anos, no dia 18 de maio de 1817. Sua mãe, Margarida Occhiena, assume a educação dos três filhos, sendo João o menor. Em 1835 entra para o seminário. No dia 05 de junho de 1841 é ordenado sacerdote, e, no dia 08 de dezembro do mesmo ano, funda o primeiro Oratório Festivo106 que atende jovens e crianças, na maioria, de famílias desestruturadas ou de 102

Fundadas em 1872. Fundados em 1876 104 Hoje há aproximadamente 25 Instituições religiosas reconhecidas como da "Família Salesiana" e mais de 30 aguardando reconhecimento. 105 Eric HOBSBAWN. Sobre a História, Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1977. p.74 106 O Oratório Festivo era um local onde se reuniam jovens para educação religiosa e humana. Uma das estratégias utilizadas era a existência de muitos jogos e brincadeiras. Os jovens passavam aí boa parte do dia. O ambiente era de muita alegria e a presença dos formadores era chave fundamental para que os 103

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migrantes para Turim, onde se iniciava a industrialização 107. No ano de 1853 iniciam-se suas primeiras oficinas de ensino profissional.

Em 1859 funda a Sociedade São

Francisco de Sales, cuja finalidade é promover a Educação da juventude pobre e desamparada. Em 1883 chegam ao Brasil os primeiros salesianos, que se estabelecem inicialmente em Niterói, a seguir São Paulo e posteriormente em Lorena, terceira casa do Brasil. Aos 31 de janeiro de 1888 morre em Turim. A ação de João Bosco

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como

educador foi resultado, em parte, de seus dotes humanos. A perda do seu pai aos 2 anos fez com que experimentasse em nível psicológico a angústia da orfandade. Sua infância e adolescência foram marcadas pelo trabalho e luta pela sobrevivência exercendo várias funções como aprendiz. Jovem, manifesta grande capacidade de liderança, organizando diversas associações com seus colegas, tornando-se um líder entre os estudantes de Chieri109. Fundou por este período a "Sociedade da Alegria", um movimento juvenil que visava criar um ambiente sadio para seus colegas. Já como sacerdote é marcante seu

jovens se sentissem acolhidos. A presença não era de vigilância mas de interação com os destinatários. Essas obras hoje se localizam em geral nas periferias das cidades, atendendo as classes pobres. 107 "Parziali fenomeni di ripresa sono segnalati specialmente intorno al 1850; e uno dei centri più interessati è, precisamente, il Piemote e in particolare Torino. Nel secolo XIX la capitale sabauda registra uma notevole espansione demográfica, econômica, edilizia. La popolazione della città diventa cinque volte maggiore, passando dai 65.000 abitanti del 1808 ai 320.000 del 1891, con un ritmo di crescita particolarmente rapido nel trentennio 1835 – 1864 (da 117.000 a 218.000) e specialmente dal 1848 al 1864 (da 137.000 a 218.000). Nel período più fervido degli inizi dell’Oratorio la città vede aumentare i suoi abitanti di 80.000 unità, di cui 25.000 nel qüinqüênio 1858 – 1862. Non intervengono solo cause sóciopolitiche, ma anche economiche: carestia nella montagna; aumento delle officine in città: tessitura, arsenale, mulini, alimetari, fabbriche d’armi, carrozzerie, manifattura tabacchi; dilatazione della burocrazia e degli impieghi; espansione edilizia (con altri posti di lavoro); miglioramento delle comunicazioni: nel 1858 il Piemonte possedeva 935 chilometri di ferrovie contro i 100 del regno di Napoli e i 17 dello Stato Pontifício; provvedimenti legislativi straordinari; iniziative dell’amministrazione civiva, anche per prevenire uma possibile crisi in seguito al trasferimento della capitale a Firenze (1865). Si spiega il típico fenomeni delle migrazioni interne, Che interessò esplicitamente il primo apostolato oratoriano di don Bosco; e che in scala più vasta, in Italia e in Francia, motivò il sorgere di diverse opere dopo il 1870." Pietro BRAIDO. Prevenire, non Reprimemere: il sistema educativo di Don Bosco. Roma: LAS, 1999. pp.20-21. 108 A história pessoal de João Bosco está intimamente ligada à sua posição no seu estrato social, aos movimentos políticos e sociais na Itália do século XIX. Sua história pessoal está repleta de aspectos que dizem respeito à época em que viveu. A valorização da história pessoal é defendida por Eric Hobsbawn e Edward Thompson, entre outros, enquanto transcende do próprio círculo pessoal para o ambiente onde ela sucede. Toda história pessoal acontece "num lugar histórico" e é explicitadora do mesmo. Cf. Lawrence STONE. O Ressurgimento da Narrativa. Reflexões sobre uma nova Velha História, In Revista de História, [ s.n.t ] p. 30 109 Pequeno povoado do Norte da Itália, próxima a Turim.

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encontro com o adolescente Bartolomeu Garelli 110, uma das muitas vítimas desamparadas pela falta de trabalho e colocado às margens da sociedade. Através dele consegue atrair muitos jovens que passa a acolher, educar e oferecer profissionalização. Busca que jovens que atende em suas obras não sejam explorados, redigindo então contratos de trabalhos111, coisa inédita então, onde, ao oferecer mão-de-obra especializada para as empresas, exige dos patrões garantias mínimas de segurança, horas máximas de trabalho e salário justo. Tais atitudes criavam predisposições nos jovens para acolherem suas orientações: "Consagrava o domingo inteiro à assistência112 dos meus meninos; durante a semana ia visitá-los em seus trabalhos nas oficinas e fábricas. Isso muito consolava os rapazes, que viam um amigo interessarem-se por eles; e agradava aos patrões , que ficavam satisfeitos por terem sob sua dependência rapazes assistidos durante a semana e sobretudo nos domingos, os dias mais perigosos. Todos os sábados ia às prisões com os bolsos cheios, ou de fumo, ou de frutas, ou de pãezinhos, sempre com o fito de atender rapazes que tinham a desgraça de serem encarcerados, de assisti-los, torná-los amigos e conseguir que viessem ao Oratório ao deixarem o lugar de castigo".113

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Este encontro deu-se no dia 08 de dezembro de 1841 e é definido formalmente por João Bosco como o dia do início de sua obra com a juventude pobre: órfão, analfabeto, migrante, sem profissão, sem religião e desempregado esse adolescente representava todo os ingredientes que o levaria provavelmente à cadeia ou ao menos a uma vida marginal. Agredido inicialmente pelo sacristão da igreja é acolhido com carinho (" amorevollezza") por João Bosco que o trata bem e o faz amigo. Este jovem atrairá para junto de João Bosco colegas de rua que formarão, daí a alguns meses, um contingente de mais de 600 jovens em condições semelhantes. Cf. Idem. Memórias. 2ed. São Paulo: Salesianas, 1999. pp.110-112. 111 "Questi cooperatori di don Bosco si dànno da fare per trovare un posto di lavoro ai ragazzi ormai capaci di guadagnarsi un pezzo di pane. Erano tempi in cui nessuna legge proteggeva i diritti dei giovani apprendisti, e spesso i datòri di lavoro ne approfittavano imponndo condizioni avvilenti. I collaboratori di don Bosco, d’accordo con lui, stio veri e propri contratti su carta bollata. Si rendono garanti al datore sulla serietà e buena volontà Del ragazzo, ma esigono Che il datore si impegni verso l’apprendista su diversi punti Che i sindacati impiegheranno ancora decenni prima di riuscire a rivendicare. Alcuni di questi contratti si conservano ancora. Uno reca la firma dell’orefice Vittorio Ritner, che garantisce per parte del ragazzo. Il datore si impegna a insegnare in tre anni all’apprendista l’arte del vetraio, a sorvegliare la sua buona condotta, a correggerlo "con parole e non altrimenti", a occuparlo in lavori "relativi all’arte sua e non estranei ad essa". Inoltre lo lascerà libero nei giorni festivi e gli concederà ogni anno quindici giorni di ferie. Nel primo anno l’apprendista percepirà una lira allá settimana, nel secondo anno percepirà una lira e mezza, e nel terzo anno due lire. L’orefice Ritner da quel giorno prende sotto la sua tutela l’apprendista, lo segue, lo va a trovare sul lavoro, si interessa di lui come un fratello maggiore". Enzo BIANCO, e Carlo de AMBROGIO, Don Bosco.Torino: SEI, 1965. p.99. 112 O conceito de "assistência" é um dos pilares da prática pedagógica de Dom Bosco. O assistente é aquele educador que fica no meio dos alunos, impedindo pela sua presença que errem. Ao mesmo tempo sua inserção com os educandos deve ser tal que ele se torne amado e, portanto, capaz de ter uma presença qualificada na vida dos seus educandos. 113 João BOSCO. Memórias. 2ed. São Paulo: Salesianas, 1999. p.112.

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Não é nosso escopo detalharmos a vida de João Bosco, ainda que se deva considerar que ela possui aspectos que marcaram aqueles que com ele conviveram e acreditaram nos seus ideais de educador. Com relação a ela existe entre muitos historiadores o temor de que sua verdadeira imagem seja ofuscada pela idealização. Devemos reconhecer que todas as pessoas que saem do lugar comum para uma posição de destaque na história passam por esse processo inevitável de idealização. Esta é uma realidade da qual não podemos nos furtar, sobretudo quando a biografia é realizada por seus discípulos que afetiva e efetivamente aderiram ao seu projeto, seja de vida, seja de educação. Devemos porém assinalar que todo líder se torna tal, exatamente por possuir dotes diferenciados de outros homens os que o torna capazes de levar grandes projetos adiante e de aglutinar ao seu redor pessoas que se comprometem a viver o mesmo ideal de vida e de projetos. A Idealização é levar ao grau superlativo qualidades (ou defeitos) reconhecidamente existentes e que foram capazes de atrair seguidores. É obvio que existe também o outro lado da moeda: tais líderes, exatamente pelo lugar que ocupam, granjeiam também inimigos que radicalizam defeitos e limitações. É difícil o julgamento dos personagens que marcaram a história, porque o enfoque de suas personalidades e mesmo de suas pessoas, sempre experimentarão a dificuldade de uma imagem nitidamente focada. Devemos, porém, reconhecer que essas pessoas marcaram época na história com seus feitos, ideais e mentalidade. A sobrevivência de seus ideais para além de suas vidas, a materialização de seus projetos e o número de seguidores que se aglutinam em torno de seus projetos, representa que foram capazes – para além de toda idealização – de criar um projeto consistente. João Bosco não escapará deste destino dos homens que se destacaram na história. Ao historiador cabe a busca de capturar tais atores da história de forma mais próxima possível da realidade, tentando chegar o mais próximo possível da verdade objetiva do personagem em estudo. Mas deve-se também verificar um contraponto: se de um lado Bosco granjeou admiradores, de outro teve inimigos consistentes em nível de igreja, política e sociedade, que procuraram não só atingi-lo pessoalmente, mas também sua obra. Teve dificuldades reais com a hierarquia da Igreja, tanto em Turim como no Vaticano. No âmbito político sua obra em muitos momentos foi considerada perigosa e subversiva. Em nível de sociedade sua ação foi considerada

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inoportuna. De outro lado muitos estudos foram e estão sendo realizados que procuram delinear sua personalidade, seja por estudos grafológicos, seja por seus escritos e confrontos das fontes favoráveis e contrárias a ele. Descortina-se nele um temperamento forte aliado a uma grande inteligência que o poderia levar facilmente a auto-suficiência. Sobre este aspecto de personalidade consegue certo domínio por sua formação familiar e cristã, que abraça com empenho. De outro lado mostra grande sagacidade e capacidade de driblar situações difíceis, com argúcia pouco típica dos modelos de santidade do século XIX. Suas obras, se tiveram um lastro de um idealista sonhador, tiveram e outro lado no mesmo homem empreendedor e grande administrador, capaz de levantar imensos recursos com doações, bingos, rifas e trabalho.

Sua

personalidade tem sido objeto de muitos estudos. O que nos importa é entender como se organizou o pensamento de João Bosco como educador.

2.3 - Os princípios fundantes114: Razão, Religião e Bondade

João Bosco preocupou-se em atender e educar a juventude que vinha para as cidades em busca de emprego, quando o campo não mais oferecia plenas condições de sobrevivência e as indústrias assentavam suas bases no norte da Itália. Muitos desses jovens vivendo sem família, passando fome, morando em condições subumanas, ficavam sem referências morais e religiosas, o que favorecia seu ingresso nos vícios e em atitudes anti-sociais e até criminosas, que muitas vezes faziam com que um grande contingente deles acabasse superlotando as cadeias.

"Até aí Dom Bosco conhece apenas a pobreza dos campos. O P. Cafasso lhe diz:” ande por aí e veja!”Desde os primeiros domingos - testemunhará padre Miguel Rua - andou pela cidade para ter idéia das condições morais dos jovens. Voltou aturdido: os subúrbios eram zonas de fermentação e revolta, cinturão de desolação. Adolescentes zanzavam pelas ruas desocupados e tristes, prontos para o pior. Encontrou grande 114

O termo "fundante" assume neste contexto um sentido bem específico. Não uso o termo "fundação" porque dá uma idéia estática. O termo "fundante" aqui deve ser entendido como um processo contínuo, inacabado, em construção permanente. É algo que ainda hoje é novo, emerge das intuições iniciais. É um processo inacabado no hoje e no porvir.

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número de jovens (...) que andavam vagueando pelas ruas e pelas praças, especialmente nos arredores da cidade, jogando, brigando, blasfemando e coisas piores.” 115.

O crescimento de sua obra passa por grandes dificuldades: faltam espaço físico e condições econômicas, além da incompreensão da Igreja e do próprio governo:

"Impossível descrever o entusiasmo que os passeios despertavam nos rapazes. Contentes com essa mistura de devoção, brinquedos e passeios, afeiçoavam-se tanto a mim, que não só obedeciam fielmente às minhas ordens, mas desejam que lhes desse alguma incumbência. Um dia ao ver que com um simples gesto da mão eu impunha silêncio a cerca de 400 jovens que pulavam e faziam algazarra no prado, um guarda pôs a exclamar: Se esse padre fosse um general, poderia combater contra o mais poderoso exército do mundo. De fato, a obediência e o afeto dos meus alunos raiava pela loucura. Isso por outro lado, concorreu para renovar o diz-que-diz-que de que dom Bosco podia qualquer momento desencadear uma revolução com os meus rapazes. Essa afirmação ridícula novamente mereceu crédito das autoridades locais e especialmente do marquês de Cavour (...). Mandou-me chamar ao palácio Municipal e depois de muito discorrer sobre as intrigas que circulavam ao meu respeito concluiu: "Meu bom padre, aceite o meu conselho, não se meta com esses canalhas. Eles só causarão aborrecimento ao senhor e às autoridades públicas. Garantiram-me que as reuniões são perigosas e não posso tolerá-las".116.

Sua obra porém vai se consolidando e ganhando aos poucos respeito social e da própria Igreja. Até o final de sua vida se reduzirão significativamente seus opositores. Muitos desejam saber qual o "segredo" pedagógico de dom Bosco. Avesso a escrever, salvo cartas, onde animava, dava instruções e mantinha contatos com pessoas da alta sociedade em busca de recursos ou de apoio político, acaba "colocando no papel" alguns de seus princípios fundamentais de educação. Escritos em momentos roubados de sua ação, esses textos117, se curtos, são porém objetivos e claros na descrição do que até então realizava como prática e que passa agora a ser materializado em textos. Não são teorias que deverão sofrer confronto da realidade para provarem sua eficiência, mas é a descrição da prática, tornada teoria para os que desejam entendê-la e praticá-la:

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Terésio BOSCO. Dom Bosco uma Biografia Nova. São Paulo: Salesianas, 2002, p.132 Bosco, João. Memórias. São Paulo, 1999, 2ª ed. Pg. 133 e 134. 117 São textos significativos de sua pedagogia: "Aos Sócios Salesianos", "O Sistema Preventivo na Educação dos Jovens", " Carta de Roma", Lembranças aos Primeiros Missionários" e Circular sobre os Castigos". Idem. Constituições e Regulamentos. São Paulo: Editora Salesiana, 1985. pp.208-255 116

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"São dois os sistemas até hoje usados na educação da juventude: o Preventivo e o Repressivo. O Sistema Repressivo consiste em fazer que os súbditos conheçam a lei, e depois vigiar para saber os seus transgressores e infligir-lhes, quando necessário, o merecido castigo. Nesse sistema, as palavras e o semblante do superior devem constantemente ser severos e até ameaçadores, e ele próprio deve evitar toda a familiaridade com os dependentes. O diretor, para dar mais prestígio à sua autoridade, raro deverá achar-se entre os dependentes e quase unicamente quando se trata de ameaçar ou punir. Esse sistema é fácil, menos trabalhoso. Serve especialmente para soldados e, em geral, para pessoas adultas e sensatas, que devem, por si mesmas, estar em condições de saber e lembrar o que é conforme as leis e outras prescrições. Diferente e, eu diria, oposto é o Sistema Preventivo. Consiste em tornar conhecidas as prescrições e as regras de uma instituição, e depois vigiar de modo que os alunos estejam sempre sob os olhares atentos do diretor ou dos assistentes. Estes, como pais carinhosos118, falem, sirvam de guia em todas as circunstâncias, dêem conselhos e corrijam com bondade. Consiste, pois, em colocar os alunos na impossibilidade de cometerem faltas. O sistema apoia-se todo inteiro na razão, na religião e na bondade. Exclui, por isso, todo o castigo violento, e procura evitar até as punições leves. Parece preferível pelas seguintes razões: 1. O aluno previamente avisado, não fica abatido pelas faltas cometidas, como sucede quando são levadas ao conhecimento do superior. Não se irrita pela correção feita nem pelo castigo ameaçado, ou mesmo infligido, pois a punição contém em si um aviso amigável e preventivo que o leva a refletir e, as mais das vezes, consegue granjear-lhe o coração. Assim o aluno reconhece a necessidade do castigo e quase o deseja. 2. A razão mais essencial é a volubilidade do menino, que num instante esquece as regras disciplinares e o castigo que ameaçam. Por isso é que, amiúde, se torna um menino culpado e merecedor de uma pena em que nunca pensou, e de que absolutamente não se lembrava no momento da falta cometida, e que teria por certo evitado, se uma voz amiga o tivesse advertido. 3. O Sistema Repressivo pode impedir uma desordem, mas dificilmente melhorará os culpados. Diz a experiência que os jovens não esquecem os castigos recebidos, e geralmente conservam ressentimento acompanhado do desejo de sacudir o jugo e até de tirar vingança. Podem, às vezes, parecer indiferentes; mas quem lhes segue os passos sabe quão terrível são as reminiscências da juventude. Esquecem facilmente os castigos que recebem dos pais; muito dificilmente, porém, os dos educadores. Há casos de alguns que na velhice se vingaram com brutalidade de castigos justos que receberam nos anos de sua educação. O Sistema Preventivo, pelo contrário, granjeia a amizade do menino, que vê no assistente um benfeitor que o adverte, quer fazê-lo bom, livrá-lo de dissabores, castigos e desonra. 4. O Sistema Preventivo predispõe e persuade de tal maneira o aluno que o educador poderá em qualquer lance falar-lhe com a linguagem do coração, quer no 118

O Sentido de paternidade é um dos "leitmotiv" da educação salesiana. Ela defende em profundidade o relacionamento do educador com os jovens e, deve não só ser visualizada como projeto pelo educador, mas, concretamente sentida pelo educando.

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tempo da educação, quer depois. Conquistado o ânimo do discípulo, poderá o educador exercer sobre ele grande influência, avisá-lo, aconselhá-lo, e também corrigi-lo, mesmo quando já colocado em qualquer trabalho, emprego público ou no comércio. Por essas e muitas outras razões, parece que o Sistema Preventivo deve preferir-se ao Repressivo."119

O Sistema Preventivo baseia-se em três elementos fundamentais para a formação do educando: religião, carinho e razão. Quando lhe ofereceram a direção de uma prisão disse: “Pois eu tenho para mim que sem religião não se pode fazer nada de bom entre os jovens” Ela é tida como elemento fundamental no seu conceito de educação. Não deveria ser rotineira, mecânica ou sentimental, mas ser a celebração da vida e dos acontecimentos presentes, sendo um hábito120 e não uma prática circunstancial. A razão é iluminadora da vida, explicando e fazendo o jovem entender o seu processo educativo. O educando é um ser racional e nenhuma norma ou ação educativa pode ser imposta sem que tenha sido compreendida, com sua lógica, não apenas a partir do educador, mas também percebida como tal pelo educando. A razão deve penetrar e informar o terceiro elemento do seu sistema educacional, o carinho conhecido como “amorevolezza”. Esse "amor demonstrado" faz da ação educativa uma relação filial e fraterna. “Não com pancadas, mas com mansidão e com a caridade é que deverás ganhar esses teus amigos”.121A vivência pedagógica de Dom Bosco constituiu-se em estar junto aos educandos, fazer-se um deles, gostar do que gostam e deixar que percebam que são amados.

2.4 - As Bases Filosóficas da Pedagogia Salesiana A Pedagogia e a Filosofia da Educação 122 de dom Bosco têm como matriz filosófica o pensamento aristotélico-tomista que concebe o ser humano como imperfeito nas

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João BOSCO. Constituições e Regulamentos. São Paulo: Editora Salesiana, 1985. p.230. "Hay hábitos buenos e malos. La virtud es um hábito bueno, que hace bueno al hombre y buenas sus acciones" Cf. Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia. v.1. Madrid: BAC, 1965. p.523 121 Cf. João MODESTI. Uma Pedagogia Perene. São Paulo: Editora Dom Bosco, 1975. p.79. 122 A meta da educação é levar o homem à sua perfeição que representa a plenitude do seu próprio ser. A educação envolve, quatro causas, numa ótica tomista: a causa material (homem imperfeito), causa final (perfeição), causa eficiente (agente) e causa formal ( perfeição adquirida). 120

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dimensões física, psíquica e moral123, mas capaz de alcançar a perfeição 124. O educador age como causa eficiente, responsável pelo processo formativo que garante a passagem da imperfeição para a perfeição. O pensamento aritotélico-tomista é a matiz filosófica125 da Igreja Católica para a formação do clero após o Concílio de Trento, sendo a ferramenta filosófica de interpretação do mundo, dando com isso uma profunda unidade de mentalidade do clero enquanto matriz comum de interpretação da realidade.126

2.5 -

Sua prática educacional

Dom Bosco127 inspirando-se no princípio de que a criatura humana não é perfeita, mas possuidora da capacidade de alcançar a perfeição, entende que essa imperfeição envolve a natureza física, psíquica e moral, num explícito acolhimento do pensamento tomista. O educador128 é o responsável por essa passagem da imperfeição para a perfeição, exigindo que cada educador conheça a capacidade de seu educando em responder aos estímulos formativos. O próprio Dom Bosco procurava conhecer seus educandos para conquistálos como amigos. É necessário conhecer o homem naquilo que é e o que deve ser, para poder trabalhar eficazmente com o menino, que deve tornar-se um homem integral.

"Um outro modo que podemos considerar como novo, de participação, era a insistência sobre o protagonismo juvenil, bem como o investimento nos próprios jovens, como 123

Cf. João MODESTI. Uma Pedagogia Perene. São Paulo: Editora Dom Bosco, 1975. p.33. - Numa visão aristotélica a perfeição do homem está no pleno uso de sua Razão. O ser humano será tão mais perfeito quanto mais foi conduzido pela Razão. Portanto quanto mais guiado pela razão for o ser humano, mas estará próximo da perfeição. 125 Apesar da grande influência de muitos pensadores modernos sobre o pensamento eclesial, o pensamento aristotélico, continua a ser o grande referencial ideológico em nível de Filosofia. Isso foi profundamente consolidado no documento do papa João Paulo II intitulado " Fides et Ratio" onde se reafirmam de forma inequívoca os referencias aristotélicos tomista do pensamento filosófico da Igreja. Cf. JOÃO PAULO II. Fides et Ratio. São Paulo: Loyola, 1999. 126 Os Cursos de Filosofia dos seminários, pré - Vaticano II, formavam todos no mesmo modelo mental. Portanto não é de se estranhar que toda a metodologia pedagógica de João Bosco esteja eivada por essa mentalidade. E o conceito das causas material, formal, eficiente e final estejam implícitas em toda sua forma da raciocinar a educação. 127 Apresento aqui a base filosófica do seu pensamento apoiada numa visão aristotélica-tomista. Seu conceito de educação física possui uma influência claramente platônica, sobretudo do livro "A República". Uma visão otimista cristã é o grande eixo em torno da qual gravitam as diversas concepções filosóficas. 128 Cf. João MODESTI. Uma Pedagogia Perene. São Paulo: Editora Dom Bosco, 1975. p.33 124

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agentes educadores dos colegas e futuros colaboradores da obra educativa. O próprio clima familiar aponta para um estilo de comunidade educativa com traços democráticos, de co-gestão e distribuição de tarefas. Novamente é enfatizada esta Instituição como "família" e a organização do processo de trabalho e respectivos papéis, estão intimamente ligados a esta concepção. Scaramussa (1993) faz a seguinte colocação: na família educativa de João Bosco, todos os educadores são assistentes e irmãos maiores. Na pessoa do Diretor está o núcleo da Pedagogia prática de João Bosco. Ele é o ponto de coesão e de dinamismo de toda ação educativa. Seu papel é prevalentemente educativo, mais que administrativo ou diretivo. Deve conquistar a afeição confidente e filial do educando com a "amorevolezza" (...) o assistente deve ser presença ativa na vida do jovem. Deve dar o primeiro passo em direção a ele e estar ao seu lado como amigo, colocando-se no seu nível como irmão". 129

A educação é a arte de formar o homem, arte esta entendida como ciência. O importante nesta educação era a chamada formação130, um trabalho cuja finalidade era aperfeiçoar o menino, até fazê-lo homem, tornando-o "bom cristão e honesto cidadão". acreditava em uma formação apenas do corpo e nem somente da alma natureza total do ser, soma e psique

Não

131

, mas da

132

.No campo físico-fisiológico, Dom Bosco vê no

esporte meio para o desenvolvimento físico, dando maior capacidade de assimilação da inteligência, alegria de viver e meio de descontração para aquele que o pratica. No campo psíquico-moral, o trabalho educativo auxilia na percepção dos valores e uso da vontade. A escola deve trabalhar a afetividade e a vontade livre, que dirigem a ação e a vida do educando. É preciso habituar o jovem a perceber, refletir, julgar e raciocinar retamente. Além da inteligência, aqui trabalhada por D. Bosco, outro elemento que ele também indica na formação do educando, é à vontade e o coração. Cumprir todos os deveres exige uma vontade firme e decidida, e, para isso, muitas vezes, torna-se necessário amar. O resumo de toda a educação consiste em que o menino conheça o bem 129

Maria José Urioste ROSSO. Cultura Organizacional; uma proposta metodológica. Lorena: Editora Stiliano- Unisal, 2000. pp.113. 130 João BOSCO, O Sistema Preventivo na educação do Jovem. In Constituições e Regulamentos. São Paulo: Editora Salesiana, 1985. pp. 230-237 131 Ainda que o aristotelismo-tomista tenha prevalecido na Igreja, muito das idéias de fundo platônico e sobretudo neo platônico, prevaleciam na espiritualidade da Igreja com um significativo menosprezo pela dimensão somática do ser humano. Essa idéia perpassava por diversas espiritualidades que tinha certo desprezo e mesmo negação pela dimensão corpórea do ser humano. João Bosco, ainda que acentue veementemente o fim escatológico do ser humano, valoriza de outro lado a sua corporeidade e a integração global do homem. O ser humano é totalidade de corpo e de alma. Essa concepção dá sentido à dimensão social, lúdica e festiva de sua educação. 132 Visão Aristotélica. Cf. Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia. v.1. Madrid: BAC, 1965. pp.487504.

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e que o queira fazer. Esta é uma pedagogia coordenada pela razão, pelo bom senso e pelos valores da religião. O educador deve se fazer presente em todos os momentos de seus educandos, não se ocupando com outros afazeres; os mestres tenham também uma presença notória133 entre os alunos. Entre os elementos presentes no método educativo de D. Bosco está o ambiente ao qual dá absoluta importância. Todo o ambiente é educativo, quando impregnado de espírito cristão, onde o jovem encontra espaço de liberdade e responsabilidade, que favorecem a construção de sua personalidade.

Finalmente o educador, para D. Bosco, não pode considerar-se uma fonte autônoma de educação, mas um delegado e um transmissor de valores. É um “indivíduo consagrado ao bem de seus alunos, e, por isso deve estar pronto a enfrentar qualquer incômodo e canseira para conseguir o fim que tem em vista: a formação cívica e científica dos seus alunos”.134 Ele é, no sistema de D. Bosco, pai, e por isso deve possuir toda a bondade e prudência do mesmo, dirigindo os alunos, aconselhando, corrigido e acompanhando seus educandos. Uma forte característica do educador, já observada no próprio comportamento de D. Bosco, é o acolhimento, ele não só sabia acolher, mas "prender" e "amarrar", afetivamente135.

Na gênese da pedagogia salesiana se entrelaçam a vida e a intuição de um homem, que sob a influência do tomismo teve uma visão otimista do homem e da juventude. Seus conceitos, se de um lado estavam solidamente apoiados nos princípios da Igreja, souberam, porém, realizar uma releitura para seu tempo dos valores que perpassam a Educação. Suas intuições e pensamentos foram transmitidos por seus seguidores para as gerações futuras. 133

Esta "presença notória" entre os alunos é entendida por João Bosco sobretudo nos momentos de recreios e recreações, onde o contato é descontraído e o mestre é visto "não como mestre, mas como amigo". Aqui está uma das chaves da pedagogia salesiana: a presença do educador no meio dos jovens. 134 Cf. nota 78, pág. 67 João MODESTI. Uma Pedagogia Perene. São Paulo: Editora Dom Bosco, 1975. p.67 135 Aqui torna-se necessário citar o episódio que marca a origem do Oratório Festivo, em 1841, aos 08 de dezembro, quando o jovem Bartolomeu Garelli chega na sacristia da Igreja onde D. Bosco iria celebrar a missa e é expulso pelo sacristão, o que deixa Bosco muito irritado. Pede para chamar o adolescente, que havia fugido, e num diálogo muito paterno o acolhe e promete ensinar-lhe o catecismo, nascendo aí a mais famosa obra de Dom Bosco. Cf. Ibdem. pp. 69 e 70.

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CAPÍTULO 3

A IMPLANTAÇÃO E A CONSOLIDAÇÃO DA PRESENÇA SALESIANA NO BRASIL

Ao morrer em 1888, João Bosco tem sua obra consolidada em muitos países do mundo136. Centenas de cartas solicitavam a presença dos salesianos, vistos como educadores eficientes na sociedade industrial, preparando mão-de-obra qualificada com boa formação humana e religiosa.

Seus colégios se destacavam por criarem um

ambiente alegre e de integração dos jovens com seus educadores, fugindo das estreitas exigências da educação do passado, ao valorizar o recreio 137 como espaço educativo e de convivência dos formadores com seus educandos, num clima de alegria, representando então, na ótica de uma educação tradicional, um significativo avanço. Na dimensão da catolicidade esses "padres modernos" tinham uma fidelidade absoluta ao papado, numa época em que o Iluminismo e o Liberalismo, sobretudo na Europa, com reflexos na América, assumiam definida posição contra a religiosidade em geral, e contra as

136

Espanha, França, Inglaterra, Argentina, Uruguai, Brasil. Cf. Pietro BRAIDO. Prevenire, non Reprimere: il sistema educativo di Don Bosco. Roma: LAS, 1999. p.130. 137 "O pátio é Dom Bosco entre os meninos: uma idéia, uma imagem que não tem necessidade de mais comentários", escreveu o P. Alberto Caviglia, sem dúvida alguma o intérprete mais arguto do Oratório. Talvez não haja uma definição mais completa da assistência salesiana. Porque assistência salesiana e pátio de recreio constituem uma unidade na mentalidade de Dom Bosco. É no pátio que o menino vive, exprime e fabrica seu mundo juvenil. O Pátio é propriedade dos meninos, o lugar de sua juventude. E é o pátio o lugar onde o educador começa a ser companheiro, amigo, confidente. Só assim pode surgir amizade juvenil-adulta. O ponto de partida não pode ser outro senão o juvenil. O Pátio é o lugar do jovem... e também do educador.” Jaime RODRIGUEZ. Sabedoria do Coração; a assistência salesiana. São Paulo: Editora Salesiana, 2003. p. 215

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estruturas eclesiais, de modo específico, incluindo aí o papado

138

e as diversas

formas de poder na Igreja, representadas pelos episcopados e obras religiosas. Essa obediência voltava-se também para os bispos vistos como extensão do próprio papado. Esses ingredientes faziam dos salesianos conservadores no campo doutrinal, mas modernos em âmbito social e pastoral; sem romper os liames com a Igreja, encetam porém diálogo com o mundo moderno.

"Il tratto di don Bosco che ha spesso colpito gli osservatori, anche se, probabilmente, non è da ritenersi il principale, è la modernità. Essa, comunque, è inseparabile da un fermissimo attaccamento al passato nei suoi valore fondamentali: le tradizioni morali e religiose assimilate nella famiglia e nella comunità cristiana, che l’ avevano spiritualmente nutrito; le abitudini di onestà, di laboriosotà, di sacrificio che l’ avevano costantemente accompagnato; in sintesi, la fedeltà alla concezione e allo stile di vita proposto dal cristianesimo, custodito e predicato nella Chiesa cattolica dai papi, dai vescovi e dai sacerdoti, assecondati dai battezzati sinceramente praticanti. Modernità e tradizione determinano una dualità di atteggiamenti, che per quanto distinti, e distintivi nei confronti di altri sacerdoti e cattolici del tempo, generalmente si fondono in don Bosco con estrema naturalezza. Effettivamente, in lui la dipendenza dall’ambiente spirituale da cui proviene, a volte fortemente conservatore, si cocilia quasi sempre con un realismo, che lo fa aderire alle nuove situazione ed esigenze con moderato ardimento: tradizionale senza essere reazionario, moderno senza allinearsi con nessuma forma di liberalismo cattolico"139.

Na implantação de sua obra João Bosco vivera um dilema. Seu modelo de educação mostrava-se difícil de ser absorvido por quem fora educado em outros moldes culturais. Não foram poucos os que, após terem começado a trabalhar com ele, o deixaram, por

138

"Le droite constitutionnelle gouverne l`Italie jusqu`em 1876; puis la gauche reçoit le pouvoir. Les relations entre ces gouvernements e la paupaté sont difficiles. Faut d`um accord, l`Italie règle seule la situation de la papauté dans les régime nouveau. Pie IX refuse de reconnaître la "loi des garanties" qui définit cette situation. La question romaine demeuren pendent. Elle entraîne de graves problèmes pour les catholiques italiens. Ils sont invités ( "non expedit" ) à ne pas participer à la vie politique d`um etat coupable evers le pape. Cette directive, promulguée par Pie IX, est maintenue par Léon XIII. Celui-ci doir faire face à diverses mesures de spoliation de biens ecclésiastitiques, surtout dirigées contre les congregations religieuses, et de laicisation de la vie publique ( enseignement ), décrétées par le ministère Crispi". Francis DESRAMAUT, Précis d`Histoire Salésienne 1815-1860. Lyon, Ateliers de l`ecole Salésienne d`arts Graphiques, 1961, p. 20. 139 Pietro BRAIDO. Prevenire, non Reprimemere: il sistema educativo di Don Bosco. Roma: LAS, 1999. p. 166

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encontrar uma profunda incompatibilidade de visão de mundo e de métodos e, portanto, de Filosofia Educacional. Opta então por fazer "de seus meninos mais velhos" educadores dos mais novos, sendo seus princípios e sua prática educacional passados dos mais velhos para estes. Quebrava-se a visão tradicional do mestre-educador, repleto de experiência.

Esse "confiar nos jovens" era algo de novo, pois, mal saídos da

adolescência, assumiam responsabilidades crescentes em sua obra 140. Padres, recém ordenados eram diretores de escolas e de obras. A Sociedade de São Francisco de Sales141 possuía um rosto profundamente juvenil142, o que permitia abertura em se assumir novos estilos de educar, sem se prender aos modelos da educação tradicional. Acreditava-se no jovem como transformador da realidade. Esse novo estilo atraiu um grande número de jovens, o que fomentou uma rápida expansão da obra. A maior parte dos educadores de Bosco tinham sido seus alunos e discípulos, votando-lhe uma verdadeira veneração. Essa idealização traduzia-se num conceito profundamente forte de fidelidade pessoal a ele e às suas idéias.

Sua palavra, acatada com respeito, era

imediatamente colocada em prática. Após sua morte, permanecem nos cargos-chave da congregação seus antigos discípulos. Perpetua-se o conceito de fidelidade ao fundador143. Cria-se dentro da Sociedade uma "tradição" que desce ao menores detalhes perpassando inclusive o cotidiano da obra. Ainda que com incidência no mundo urbano, as escolas possuem uma vida pouco acessível às novas mentalidades e costumes da sociedade.

140

"Ma giá il 2 febbraio 1860 avvenne l`accettazione del primo socio laico. (...) il giovanne Rossi Giuseppe di Matteo ( ... ) aveva 24 anni; ( ...) Il giá citato Rossi, guardarobieri, capolaboratorio ed provveditore generale, professerà due anni dopo". Egídio VIGANÓ, Il Salesiano Coadiutore. Roma. LAS. 1999 p. 31 141 Salesianos. 142 A congregação contava sempre à frente das obras pessoal muito jovem. Na primeira casa do Brasil, em Niterói, recebe os primeiros salesianos em 14 de julho de 1883. O diretor Padre Miguel Borghino tinha 28 anos e o vice diretor padre Carlos Peretto 23 anos. Outros membros da nova comunidade possuíam as seguintes idades: Miguel Foligno, 25 anos; Bernardino Monti, 19 anos; Domingos Delpiano, 39 anos ( o mais velho ); José Daneri 34 anos e João Batista Cornélio, 31anos A idade média do grupo é de 28,4 anos. Esse grupo era responsável pela implantação de um projeto novo numa terra nova. Cf. Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. p.219. 143 As primeiras experiências de Valdocco, as palavras, cristalizadas em alguns chavões e sua práticas conservadas pela tradição, são modelos a ser repetidos e absorvidos.

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"Os Salesianos, por sua vez, o consideraram (o internato) como o modelo mais completo de educação por mais de 100 anos. Era um regime em que os alunos ficavam reclusos, separados dos pais, para receber instrução e educação da parte de pessoas que a eles se dedicavam em tempo integral, dia e noite, num espaço exclusivamente reservado. Formava uma comunidade com vida própria de grande significatividade. Caracterizava-se esta comunidade por ser: a) Isolada do mundo porque o ambiente externo em nada, ou dificilmente, influía, o que se conseguia pelo controle das saídas, do tempo de férias, entrada de jornais, correspondências, controle de livros e revistas, do cinema (censurado) e da intervenção de pessoas estranhas. b) Significativa porque os regulamentos só a ela se referiam e porque a Congregação Salesiana nela empenhou a maior parte de seu pessoal religioso. O pessoal externo (professores, funcionários e auxiliares) entrou apenas para suprir a sua carência, mas era considerado uma anomalia, uma excrescência que deveria ser eliminada, porquanto a educação salesiana, assim se pensava, só poderia ser ministrada por religiosos salesianos. O externato era apenas um anexo. c) Dedicada à formação integral dos alunos pela utilização de: 1) uma organização temporal: horário, calendário escolar, férias e tempos especiais de formação (companhias religiosas) e 2) organização espacial: todo o ambiente espacial era de uso exclusivo seu. Os externos não tinham acesso a ele. Os alunos internos eram separados em grupos, chamados Divisões, por idade, tamanho, seriação, etc. Cada divisão ou turma possuía espaços próprios exclusivos. Os ambientes de uso comum eram a igreja, o refeitório e as salas de aulas. d) Pelas suas práticas próprias, como desportos, festas, desfiles, passeios, coral, teatro, cinema, etc144.

Os colégios em todo o mundo assumem o mesmo formato e estilo das escolas italianas, não existindo inculturação. A nacionalidade italiana é condição para se ocupar os postos chaves na obra em todo o mundo, prevalecendo a mentalidade da superioridade da cultura européia. A fidelidade ao ideário educacional se estende aos costumes, hábitos e até horários da própria Itália.

"Uma das dificuldades da instalação do modelo de internato foi o horário, o 'controle de atividade', segundo FOUCAULD, uma velha herança dos monges, 'especialistas do tempo, grandes mestres do ritmo e das atividades regulares'. Os Salesianos

144

Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. pp. 206-207.

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consideravam o modelo da escola de Valdocco (Turim – Piemonte – Itália), criado pelo próprio Dom Bosco, como o protótipo educativo a ser utilizado em qualquer parte e no todo. Logo de início, o horário tornou-se um tema de discussão: não podiam conceber outro. As cartas dos primeiros Salesianos dele falavam com emoção e saudades. Dom João Cagliero, ao visitar os três colégios salesianos do Brasil (Niterói, Lorena e São Paulo), verificou que adotaram o brasileiro e determinou que utilizassem o italiano, seguido pela Casa Geral de Turim (Valdocco). No Brasil, devido ao calor excessivo, à prostração das condições físicas dos Salesianos, fazia-se, além do café da manhã cedinho, uma refeição às 9h30 (dejeuné) e o jantar às 16h30. As oficinas dos jovens funcionavam das 10h às 16h30. Pe. Luís Lasagna achava, de fato, pouco, porque o resto do tempo era dedicado aos estudos e às aulas. Niterói havia adotado o horário italiano e as doenças atingiram os membros desta instituição. Para resolver o problema, recomendou Pe. Luís Lasagna que se retornasse ao horário antigo se esta disposição fosse aprovada pelos médicos. Consultados os médicos, houve unanimidade em concluir que as grandes doenças do Colégio derivavam da vigência do horário italiano. Triunfou, pois, o horário brasileiro"145.

Arquitetos italianos146 constróem colégios e Igrejas marcados por sua beleza e suntuosidade147, no mais puro estilo italiano. E, se isso está presente na arquitetura, muito mais está na mentalidade, no transplante em nível mundial 148

fechado 145

cuja organização mantém o modelo europeu. Os internatos

149

de um modelo por sua própria

Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. p.208. Essa arquitetos são membros da própria congregação como o padre Ernesto Vespignari cedido pelos salesianos da Argentina e o Irmão Domingos Delpiano (1844 - 1920 )com bastante conhecimentos em arquitetura, deixou fama pelos belos projetos arquitetônicos executados no Brasil e no Uruguai (...). seria o dirigente técnico da maior escola profissional salesiana, a do Liceu Coração de Jesus. Ibidem. p.219 147 O Liceu Coração de Jesus é um dos modelos mais significativos dessa influência Italiana com sua igreja em estilo florentino. Seus prédios mostram grandeza, como previa a carta de Dom Lino de 18 de abril de 1883: " com o óbolo do rico e do pobre podemos levantar edifícios majestosos que atestem às gerações vindouras a vitalidade inexaurível da Igreja Católica, e sua constante solicitude pela educação da mocidade" Cf. Idem. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985. p.28. 148 Inicialmente os salesianos voltavam-se prioritariamente para as comunidades de migrantes italianos, que, estando em terra tão diferente, procuravam manter os próprios costumes como forma de resistência cultural. Isso favorecia também aos salesianos, na sua maioria de origem italiana, a terem a mesma atitude, inclusive nas práticas educacionais. 149 O prof. Manoel Isaú, no seu livro, "Luz e Sombras, internatos no Brasil", a partir de três internatos salesianos no Brasil, apoiado em farta documentação e testemunhos, procura recuperar e preservar essa experiência educacional dos séculos passados. Sua obra se caracteriza mais pela compilação documental, pela descrição do cotidiano e de fatos, que por uma avaliação crítica, enquanto procura recuperar a rotina do ano, dos meses e do dia a dia dos educandos. Aquilo que pode ser uma limitação, oferece porém uma vantagem. O não posicionar-se com um critério de avaliação, permite o desdobramento de avaliações ético-pedagógico-educacionais para estudiosos posteriores. Esse livro, sendo o resgate do cotidiano e da prática educacional nos internatos salesianos do Estado de São Paulo, retrata de forma modelar, a mesma prática em todo o Brasil e no mundo, já que transplantada de modelos europeus das escolas salesianas lá existentes. O autor procura contextualizar a prática dos internatos realizada no Brasil, sobretudo quando retratada na literatura nacional149, onde de forma sistemática, se acentua a dimensão da vida livre versus a austeridade e exigências do cotidiano dos internos com seus intermináveis horários de estudo, aulas, silêncio, orações , castigos físicos e morais. 146

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natureza ignoram a vida "lá fora', criando um "ecossistema social" que não é "contaminado" com o mundo externo. A própria arquitetura favorece isso com seus altos sobrados e pátios internos, voltados para si próprios, fazendo toda vida no seu cotidiano, convergir para dentro e nunca para fora. É um processo de encastelamento onde o mundo exterior nem sequer é visto.

O rígido modelo dos internatos preservam

costumes, horários, práticas e formas de vida autônomos, com rígida filtragem do que acontece no exterior. O controle chega a tal ponto que é prática se abrirem

as

correspondências pelos superiores para analisarem o conteúdo do que entra e do que sai150. Não existem jornais, textos externos e, livros da biblioteca, 151que não passem por aprovação prévia antes de serem disponibilizados. Os estudantes são controlados nos seus próprios pensamentos. Com o passar dos anos, os grandes colégios adquirem respeito e consideração social, não existindo da parte dos seus diretores e coordenadores espaço para questionamentos ou contestações 152 de seus métodos. Esse tradicionalismo não impede porém, a formação de colégios vivos, com grande avanço de tecnologia, com laboratórios e ambientes de alto nível.

"Na realidade os salesianos se mostravam modernos, não apenas em assumir novas frentes da atividade religiosa, mas seu próprio modo de viver o ideal monástico assumia formas modernas, que despertavam atenção, mesmo aos indiferentes em matéria de religião. Entre essas características dos salesianos de Dom Bosco destacava-se a jovialidade. Destinados a serem educadores da juventude, o fundador não queria que seus discípulos se identificassem com o clero tradicional, em geral tido como sério e circunspecto, mas que ao invés cultivassem uma expansiva cordialidade no trato com as pessoas. (...) a modernidade dos salesianos foi certamente uma chave que lhes abre a porta da sociedade brasileira, em vias de abandonar o padrão arcaico, patriarcal e 150

Essa prática é comum nos internatos, oriunda da prática dos seminário, como podemos verificar no prospecto do seminário episcopal de São Paulo , inspirado no pensamento tridentino de D. Antônio Joaquim de Melo, no século XIX, onde se lê no número 12 que "nenhum discípulo poderá receber ou mandar cartas , senão por intermédio do Reitor. As que se escreverem ser-lhe-ão entregues abertas". Cf. Augustin WERNET. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1987. p.191. 151 João Bosco era tão preocupado com a qualidade das leituras realizadas por seus educandos, que criou na Itália as "Leituras Católicas". Aqui no Brasil, seguindo a experiência italiana, editava-se mensalmente um livro infanto juvenil. Eram romances, teatros, conteúdos de formação cristã e humana, aventuras, vida de santos, de alunos e oratorianos. Tais leituras divulgavam explicita e implicitamente os valores educacionais salesianos, com destaque para jovens que serviam de modelo de vida para os seus coetâneos. 152 Isso não é realizada numa ótica de repressão, mas numa espécie de tranqüilo fatalismo que o conservadorismo preserva as mais altas tradições.

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escravocrata, rumo a uma concepção social mais burguesa, progressista e democrática. (...) confrontados com as antigas ordens religiosas atuantes no Brasil, os salesianos emergiam como educadores modernos, enfatizando o valor do trabalho, da recreação, da ginástica, do teatro e da música". 153

A vinda dos salesianos para o Brasil pode ser entendia em duas vertentes básicas. Numa primeira linha estão ligados ao ideal de assistência aos pobres 154 contando com isso com grande ajuda da população nas três primeiras escolas aqui implantadas, Niterói, São Paulo e Lorena. Numa outra vertente o acolhimento dos salesiano no Brasil teve como pano de fundo a crise vivida pela Igreja local, com clero imbuído de idéias iluministas, que tinham criado bases propícias para a ruptura com Roma. "Lumières" e "éclaircissement", "Aufklarung" e "iluminismo" revelam menos um caráter de crise do que a sua origem de "Lichtmetaphysik" de Augustinus. Mas a "iluminatio divina" de Augustinus foi agora substituída e compreendida por uma auto iluminação da razão emancipada e autônoma. Distanciando-se da tradição e da autoridade, os seguidores dos "séculos das luzes" aceitaram apenas o que a própria inteligência e a experiência descobrissem como sendo a verdade. Implicava uma nova apreciação da realidade terrestre e um respeito mais forte pelas capacidades naturais do homem. A pesquisa das forças que governam o mundo material tornou-se uma atividade universal, atividade dos racionalistas e empiristas. A convicção de que os homens poderiam aspirar a liberdade e à realização da sua felicidade na terra deu um vigoroso impulso ao estudo das ciências, as quais, na opinião de muito iluministas, seriam capazes de edificar o paraíso celeste neste mundo. ( ... ) Não se atribuiu outro papel a Deus senão o de ter dado o impulso que certo dia pôs o Universo em movimento. Deus era considerado o grande relojoeiro, construtor do relógio maravilhoso da vida terrestre, que depois se retirou para a inatividade, para dar às suas criaturas o usufruto da livre vontade que Ele, na sua sabedoria infinita, lhes deu. A religião deveria ficar dentro dos limites da razão. Além do cumprimento dos seus deveres naturais, o homem nada poderia fazer para agradar a Deus. A Igreja não deveria ser mais que um instituto de educação moral. Os seus sacerdotes seriam moralizadores, educadores e professores do povo. O próprio sermão deveria perder seu caráter dogmático e reduzir-se a uma espécie de magistério. O " pregador" iluminista seria sobretudo um instrutor. Esta interpretação relativisa os limites entre o natural e sobrenatural e minimiza o específico religioso; vê o mundo de maneira positiva e 153

Riolando AZZI. Os Salesianos no Brasil à Luz da História. São Paulo: Editora Salesiana, 1983. pp.74-75 154 Deu-lhe grande impulso a presença da Sociedade são Vicente de Paulo, voltada para o atendimento dos pobres e desvalidos. Aliás em quase todo o mundo a sociedade são Vicente de Paulo abriu a portas para salesianos oferecendo-lhes apoio e estruturas para iniciarem o seu trabalho. Fugindo de um processo de mero assistencialismo, os salesianos com suas oficinas e escolas profissionais de artes e ofício criavam uma visão de assistência social com a profissionalização que dava-lhes oportunidade de ascender socialmente. Cf. Manoel ISAÚ. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985. p.23

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valoriza a tarefa terrestre, seja ela no setor econômico, político ou científico; leva a uma laicização da cultura religiosa e clerical, fazendo que o clero quase não se distinguisse nas atitudes e na vida dos seus concidadãos leigos. Buscou-se uma religião afirmativa o mundo, reconhecendo o selo divino nas realidades terrestres155".

O século XIX é marcado pelo abalo das relações da Igreja com o Império brasileiro nas questões do Padroado e Beneplácito. Formam-se duas vertentes. De um lado um clero com visão bastante independente, aliado ao imperador 156 e marcado pelos ideais da revolução francesa e do iluminismo 157, de outro, o movimento de reforma intitulado de restauração158 visando que Roma retomasse o controle do clero, combalido então pela ignorância, imoralidade159 e dependência política e econômica do Império. Esse longo processo envolveu de um lado, a formação de um clero brasileiro educado em Roma, com matizes de profunda fidelidade ao papado, procurando neutralizar na igreja 155

Augustin WERNET. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1987. pp.27-29. O próprio imperador Dom Pedro II mostrava certa ambigüidade nesta relação. De um lado, pelo padroado detinha o poder de jurisdição sobre a Igreja, enquanto nomeava párocos e bispos e criava paróquias. O Império tinha nessa ala do clero um grupo de funcionários públicos. De outro lado porém, angustiava-lhe a situação de desregramento do clero e pretendia implantar a reforma preconizada pelo Concílio de Trento. Esse concílio, porém, tinha como meta prioritária fortalecer o poder dos bispos e da própria Igreja. 157 Esses problemas com os iluministas eram apenas um reflexo dos movimentos existentes na Europa, como nos atesta Braido: "Nella Storia ecclesiastica del 1845 egli individuava specialmente in ter focolai: Le società segrete, alcuni fanatici chiamati illuminati, uniti ai filosofi colla pretesione di voler riformar il mondo, producendo in tutti l´eguaglianza e la libertà" . Pietro BRAIDO. Don Bosco dei Giovani nel Secolo delle Libertà. v1. Roma: LAS, 2003. p.22. 158 Esse termo posteriormente é conhecido no meio acadêmico como "romanização", tendo seus princípios, estilo de vida e práticas inspiradas pelo papado, que procurava impor sua efetiva hegemonia eclesial, enfraquecida por passadas concessões aos reinos ibéricos através do padroado e beneplácito. 159 Uma das grandes metas perseguidas pelo movimento dos bispos reformadores era justamente a reforma do clero. De fato, tanto no período colonial como durante o período imperial, grande parte do clero secular não observava o celibato eclesiástico. Essa situação era tão generalizada que, ao assumir a regência do império, em 1835, Diogo Feijó, sacerdote de rígidos costumes morais, havia decidido pressionar a Santa sé para que dispensasse o clero de uma lei que praticamente não era observada, gerando apenas uma situação irregular. Eis como o padre Silvério Gomes Pimenta traça, em poucas pinceladas, a situação do clero, por ocasião da tomada de posse de D. Viçoso na diocese de Mariana, em 1848: "Contavam-se, é verdade, bons e muitos bons sacerdotes, mas, à volta destes, muitos outros, esquecidos de suas obrigações e dos seus votos, cujos procedimentos autorizavam os vícios, não só desculpavam os viciosos. A maior lástima era a incontinência, porque muito grande parte vivia como se foram casados e, pelas muita freqüência e continuação destes exemplos, já o povo quase não fazia reparo em tais procedimentos, e menos estranhava em viver tão encontrado com a profissão, com os votos e com a dignidade sacerdotal. Por maior desgraça, o mal partia do alto, pois onde mais os sacerdotes deviam achar modelos em que se espelhassem, achavam tristes exemplos de manifesta desordem. Porquanto o cabido da catedral, primeira autoridade na vacância da diocese, era, com poucas, mas honrosas exceções, composto por padres publicamente amasiados". Riolando AZZI. Os Salesianos no Rio de Janeiro, 1875-1884; os primórdios da obra salesiana. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1982. v1. pp.149-150. 156

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brasileira, não só o clero iluminista, como também o catolicismo popular, com suas devoções, irmandades e confrarias160, então muito independentes da Igreja.

Para uma análise mais profunda do catolicismo popular, necessitamos ter presente uma visão global do quadro em que se desenvolveu o catolicismo no Brasil. Na história religiosa do Brasil estão presentes duas formas básicas de catolicismo: o catolicismo tradicional e o catolicismo renovado. Entre as principais características do catolicismo tradicional podemos indicar as seguintes: é luso, leigo, medieval, social e familiar. O catolicismo renovado, por sua vez, apresenta as seguintes características: é romano, clerical, tridentino, individual e sacramental161.

Procurou-se assim se trazer para o Brasil irmandades e associações que estivessem sob o controle do clero romanizado162 assim como congregações que fossem fiéis ao papado. Deveriam ter uma forte tônica popular para superar a fragilidade das

velhas

congregações que perdiam a popularidade e eram hostilizadas pelo governo 163. Os salesianos tiveram do episcopado reformador164 significativo acolhimento, porque viam na congregação a resposta às necessidades da crescente urbanização e ao mesmo tempo

160

No Brasil organizou-se como que uma Igreja Marginal com sua estrutura própria popular. As irmandades e confrarias com suas hierarquias, beatos e líderes populares, sem se opor à Igreja Institucional, vivia porém vida própria como tão bem se pode observar no período do barroco mineiro. 161 Riolando AZZI. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978. p.9. 162 Apostolado da oração, Liga católica, filhas de Maria, ordens terceiras, etc... 163 "outro aspecto que constituía obstáculo à consolidação da reforma católica era a crise das antigas ordens religiosas, crise aguçada nas últimas décadas do império por uma decadência sempre maior da própria vida conventual. A qualquer estudioso da vida católica no século XIX salta logo aos olhos a progressiva decadência das tradicionais ordens religiosas, algumas das quais instaladas no Brasil desde os inícios da era colonial. Como marco inicial dessa crise pode ser indicado o ano de 1759, quando foram expulsos os religiosos da Companhia de Jesus por ordem de Pombal. A partir de então, em repetidas ocasiões, o governo da metrópole passa a restringir a expansão das outras ordens religiosas. Essas restrições tinham três finalidades primordiais: visavam em primeiro lugar diminuir o poderio econômico das ordens religiosas, cujos bens intitulados de mão morta começavam a despertar o interesse do governo. Em segundo lugar a metrópole cada vez mais temia a participação dos religiosos nos movimentos políticos, participação esta que se tornou mais freqüente nos levantes precursores da independência. Em terceiro lugar, existia também uma razão de ordem religiosa, visando realizar uma reforma nas próprias ordens, para pôr termo a numerosos abusos com freqüência denunciados. Esta meta, apresentada como a razão principal das restrições do governo, foi, no entanto, a última a ser levada em consideração". Riolando AZZI. Os Salesianos no Rio de Janeiro, 1875-1884; os primórdios da obra salesiana. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1982. v1. p.153 164 "A reforma era encarada através de duas perspectivas distintas e complementares: em primeiro lugar, atuação sobre o clero já existente, levando-os na medida do possível a uma vida mais exemplar; a mesmo tempo, iniciar sobre novos moldes a formação sacerdotal do clero, o que exigia por sua vez uma profunda reforma nos seminários diocesanos". Idem. Os Salesianos em Minas Gerais; o decênio inicial da obra salesiana 1895-1904. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1986. p.22.

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de absoluta fidelidade ao papado 165. Os vicentinos166 vêm neles parceiros no cuidado dos pobres. Os industriais aliados na formação de mão de obra qualificada167; e a Igreja encontra neles novos arautos de um novo modelo de igreja moderna, mas fiel a Roma. A Igreja do Brasil vivia significativa crise com um clero mal formado. Pedro II 168 desejava um clero digno, que formasse o povo na linha dos valores do Tridentino169, 165

"A segunda meta do movimento reformador devia visar o povo. Para a renovação da vida cristã, diversos meios eram indicados: freqüentes visitas pastorais à diocese, promoção das sagradas missões entre o povo, ensino da catecismo e divulgação das novas devoções piedosas. Em todas essas áreas atuou o bispo de Mariana com empenho e constância. Uma das preocupações iniciais de D. Viçoso foi o problema da reforma do clero. Na medida em que o modelo eclesial tridentino reforçava o poder clerical, urgia também que os sacerdotes correspondessem às expectativas da Santa sé. Já na pastoral de saudação, publicada a 5 de maio de 1844, o prelado apresentava de modo bem claro aos sacerdotes da diocese suas metas reformadoras. Além da mudança dos costumes morais, um dos pontos sobre os quais insistia era que o padres deviam cumprir exatamente o dever da instrução catequética do povo. A pregação dominical e o ensino do catecismo eram obrigações graves do ministério sacerdotal, que por motivo algum podiam ser descuidadas". Ibidem. pp. 22 e 23. 166 São Vicente de Paula foi o inspirador de um vasto movimento de atendimento aos pobres, tendo um cunho, definido modernamente de assistencialista. Representam o braço leigo deste trabalho social e religioso voltado para o pobres, com alimentos, orfanatos, asilos de idosos e hospitais. O mesmo tipo de obra é assumido pelas Filhas da Caridade e pelos padres Lazaristas. Estes últimos foram significativo braço da romanização com o seminário do Caraça em Minas Gerais. Cf. Augustin WERNET. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1987. p.49-53. 167 "A importância do ensino profissional, a absoluta necessidade que temos dele, pareceram e preferencia indicar a anexação de um Liceu de comércio artes e ofício. (... ) fim da Instituição - preocupava legitimamente o coração de todo patriota ver que, enquanto nossas cidades e capitais crescem em importância e opulência, na mesma proporção, se abate o brasileiro, por sua ignorância profissional. Ainda agora os esforços do patrióticos Sr. Conselheiro Leôncio de Carvalho, vieram confirmar a necessidade de se levar a efeito a criação do Liceu de Comércio, Artes e Ofício". ( ... ) Esperanças - Inapreciáveis resultados tem alcançado a Sociedade Salesiana não só às artes e ofício, como relativamente ao ensino do comércio e das indústrias, fabricando nas oficinas de seus estabelecimentos o papel, fundido tipos, imprimindo obras importantes, encadernado-as etc. A marcenaria e a sapataria, a pintura, a música, enfim, todas as artes e ofícios vivem nesses estabelecimentos em companhia da literatura e da ciência". Manoel ISAÚ. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985. pp. 27-28. 168 "Grande era o desejo do imperador e dos bispos de melhorar a situação religiosa e moral do Brasil. Cetro e Báculo procuram atrair novas congregações religiosas para o país. Entre elas os salesianos. Dentre as muitas solicitações que recebeu, dom Lasagna fez a opção de dedicar-se à educação da juventude, especialmente daqueles jovens para os quais ninguém ligava: os ingênuos, isto é, os filhos de escravos que a lei declarara livres, e os órfãos dos imigrados italianos, vítimas das febre amarela. Niterói dedicou-se prevalentemente ao primeiro tipo de meninos e São Paulo ao segundo, mas se exclusividade. A Casa de Lorena, cidade que com seu três mil habitantes não comportava uma escola profissional, logo enveredou para o campo dos estudos secundários, com alunos pertencentes à classe média. O cuidado das vocações, a pregação popular, a freqüência aos sacramentos e a boa imprensa completaram o quadro ( Epistolário II, pp. 73-74 )". Antônio da Silva FERREIRA. De Olho na Cidade; o sistema preventivo de Dom Bosco e o novo contexto urbano. São Paulo, Editora Salesiana, 2000. p. 56 169 "Não se pode compreender perfeitamente a instalação da obra salesiana no Brasil sem enfatizar a relação direta com episcopado e sua orientação pastoral. Sua implantação esteve vinculada ao movimento

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voltado para as atividades religiosas e não políticas. Com isso abria-se a possibilidade da vinda de "padres estrangeiros" que dessem sustentação para a formação de um clero brasileiro digno170. Dom Lasagna171 deixará, segundo sua ótica, uma boa impressão no imperador ao visitá-lo em Petrópolis e por mais de uma hora apresentando o método educativo dos salesianos.

"Fiz uma excursão a Petrópolis. Consegui ser apresentado ao Imperador, com o qual falei mais de uma hora sobre as nossas coisas. Assim também com as Imperatriz e, depois à parte, com o sucessor, o conde D`Eu. (... ) O Próprio Imperador D. Pedro II, monarca sábio e ativíssimo como nenhum, dignou-se admitir-me em audiência particular em seu palácio em Petrópolis, no dia de Pentecostes, e se entreteve comigo em familiar conversação, a informar-se minuciosamente sobre a origem dos salesianos, sobre o objetivo de sua missão na Igreja de Deus, sobre o método de ensino e educação da juventude, sobre os meios com que conseguem se sustentar as suas obras de beneficência, sobre os resultados obtidos e ainda muitas outras coisas. Depois de bem informado acerca dos nossos oratórios, colégios e escolas profissionais, colônias agrícolas, missões na Patagônia e nos Pampas, sumamente satisfeito, exprimiu vivo desejo de ver brevemente transplantada a nossa instituição para o seu vasto Império, prometendo-nos a sua augusta proteção e despedindo-se com a maior benevolência e cortesia". 172

dos bispos reformadores, cujo projeto efetivo, conduzido pela Santa Sé, era a consolidação do modelo eclesial tridentino, reforçada pela mentalidade ultramontana. Em termos concretos, os prelados pretendiam desvincular a instituição eclesiástica do poder político, afim de colocá-la sob a dependência da Cúria Romana; desejavam criar uma nova imagem do clero, dedicado exclusivamente à dimensão espiritual de salvação das almas; queriam substituir o catolicismo luso - brasileiro, marcadamente leigo e devocional, pelo catolicismo romanizado, com ênfase sacramental e doutrinária; visavam promover a escola católica como forma de se contrapor à escola protestante e ao ensino leigo". Riolando AZZI. Implantação e Desenvolvimento Inicial da Obra Salesiana no Brasil ( 1883 - 1908 ). In Francesco MOTTO ( Org ) Insediamenti e Iniziative Salesiane dopo Don Bosco; saggi di storiografia. Roma, LAS, 1995. pp. 505506 170 "Dom Pedro II tinha um profundo senso prático e realista. Empenhado como estava na reforma do clero do Brasil, julgava que sem a colaboração dos clérigos estrangeiros essa tarefa dificilmente poderia ser levada a termo. Por isso aceitava a colaboração desses padres, enquanto se preparava o clero nacional. (...) " Não sou contrário à instrução religiosa e missão dos padres estrangeiros, sob a vigilante inspeção dos bispos e do governo, enquanto não se habilitem os padre nacionais' ( D. Pedro II, Diário de 1862, Petrópolis, 1956. P. 20 ) Idem. Os Salesianos no Rio de Janeiro, 1875-1884; os primórdios da obra salesiana. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1982. v1. pp.182-183. 171 Dom Lasanha será o braço de João Bosco no Uruguai e no Brasil. Profundamente articulado na igreja e no mundo político, é o responsável pela implantação de muitas casas, sendo sua atividade drasticamente interrompida num acidente ferroviário em Juiz de Fora. Cf. Idem. Os salesianos em Minas Gerais. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1986. pp.72-81.

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A vinda dos salesianos para o Brasil se deveu a uma significativa atuação do papa Pio IX, que apoiava fortemente o processo da Restauração da Igreja, também no Brasil. Ele próprio protegera de modo especial a João Bosco, apoiando o reconhecimento de sua congregação e sua expansão pelo mundo. Foi, portanto, natural convocar essa nova congregação para sua atuação nas regiões do sul do continente americano. A chegada ao Brasil foi marcada por tensões com os liberais, que repudiavam os jesuítas, capuchinhos e lazaristas vendo nos salesianos mais um grupo de "frades", que passam a receber sucessivos ataques pela imprensa 173, o que gera um natural sentimento de fechamento ao diálogo com grupos que tanto radicalizam suas visões.

"As grandes instituições não morrem num dia. Não morrem mesmo, porque se transformam. O cristianismo obedece essa lei. Os que hoje, de boa fé ou por interesse, pretendem operar uma restauração medieval, ou são ingênuos os cegos sonhadores, ou então entes perigosos sobre os quais deviam cair com todo rigor as leis que punem abuso de confiança. Eles chegam às nossas casas, de onde os baniram por crimes de lesa-sociedade, apoderam-se das nossas crianças e pretendem sujeitá-las ao mesmo regime com que durante dois séculos bestificaram os índios do Paraguai. O molde das missões de então é o ideal da moderna sociedade para o clericalismo. Como exemplo do emprego desses meios, já se distribuiu a mancheias entre a infância, por intermédio ou com o consentimento de muito professores, a bugiganga supersticiosa dos salesianos, jesuítas e outros sob vários nomes expulsos da Europa e que no fundo são uma e a mesma coisa: acólitos do Vaticano".174

Os primeiros momentos no Brasil para os salesianos foram assim contraditórios: de um lado aclamados e apoiados pelo governo imperial e por significativas parcelas da sociedade e por outro atacados pela imprensa anti-clerical, estendendo a eles todo o ranço contra jesuítas e outros religiosos. O anticlericalismo de origem francesa está presente em muitos jornais, transferido para esses religiosos antigos preconceitos, sobretudo quando se lhes atribui conluios com o bispo de Niterói para garantir a supremacia do catolicismo. Os primeiros tempos em Niterói foram difíceis para os primeiros salesianos que encontram toda a forma de oposição e perseguição por alas do

172

LASAGNA, Bolletino Salesiano, ano VII, fev. 1882. pp.27ss. In Riolando AZZI. Os Salesianos no Rio de Janeiro, 1875-1884; os primórdios da obra salesiana. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1982. v1. p.185. 173 Cf. Ibidem. pp. 258 a 274

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pensamento liberal. A fundação do Liceu Coração de Jesus em São Paulo, ocorrida no ano de 1885, foi mais tranqüila em comparação com a de Niterói. O recebimento dos salesianos pelo governo e pelo povo vinha ser um dos destaques da obra. A fundação do Colégio São Joaquim em Lorena foi marcada por significativa receptividade. O conde Moreira Lima175, rico cafeicultor da região, deu completo apoio à instalação dos salesianos na região, permitindo que o colégio gozasse não só do respeito da sociedade local, mas também estivesse cotado entre os melhores do Brasil equiparado ao Pedro II176. Também em Lorena os paradigmas fundacionais eram transplantados sem significativas alterações, sendo a realidade vista a partir do lugar do europeu, convencido então de sua superioridade social, política e cultural. O transplante de idéias era entendido como uma forma de promover o povo para uma cultura entendida como superior na ótica européia. Os salesianos mantinham-se fechados ao estilo de vida e valores da sociedade local, pois não eram padres de paróquias que iam ao povo, mas seus destinatários vinham nas escolas para receber o aprendizado, o conhecimento e a educação. Polarizavam-se os "lugares" de dador do conhecimento e receptor, sábio e ignorante. O assistido "ia à escola" para se promover cultural, moral e religiosamente, vista como fonte permanente por onde emanava o saber. Essa concepção materializava174

Gazeta de Notícias, Ano IX, n. 237, 25 de agosto de 1883. p.1. Riolando AZZI. Os Salesianos no Rio de Janeiro, 1875-1884; os primórdios da obra salesiana. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1982. v1. pp. 307-308. 175 Joaquim José de Moreira Lima - Nasceu em Lorena, no dia 11 de junho de 1842, filho do negociante e capitalista Joaquim José Moreira Lima, natural de Portugal e de Carlota Leopoldina de Castro Lima, filha do capitão-mor de Lorena, Manoel Pereira de Castro e Ana Maria de São José. Foi comerciante, agente dos correios, fazendeiro, político, titular do Império, mecenas e capitalista. Na Guarda Nacional de Lorena, obteve as patentes de Alferes Secretário e Major Ajudante de Ordens. Fundador da Santa Casa de Misericórdia de Lorena e seu provedor por mais de cinqüenta anos. Um dos fundadores e diretor do Engenho Central de Lorena, inaugurado em 1884. Fazendeiro, foi um dos maiores senhores de terras e escravos, proprietário de 52 fazendas de café na região valeparaibana. Suas propriedades agrícolas espalhavam-se pelos municípios de Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba, Campos do Jordão, Lorena, Cachoeira Paulista, Lavrinhas, Cruzeiro, Silveiras, Areias, São José do Barreiro, Itajubá, Resende. Benemérito lorenense, contribuiu com avultadas quantias para a reforma da Igreja Matriz e para a construção do Santuário de São Benedito, das Igrejas do Rosário e de São Miguel das Almas, do Asilo e da Casa de Pobres de São José. Para as obras de reforma a ampliação da velha Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, contratou os serviços do célebre arquiteto e engenheiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo, contribuindo com mais de trinta contos de réis, além de superintender as obras e adiantar todo o dinheiro necessário para a sua continuidade. Trouxe os salesianos para Lorena, auxiliando-os na construção do Colégio São Joaquim. Presidiu a Conferência de São Vicente de Paulo de 1912 até a sua morte. José Luiz PASIN. Os Barões do Café. Aparecida: Vale Livros, 2001. p.70 176 José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. p.160.

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se na própria arquitetura e no próprio sentido do "cortile"

onde o jovem era

educado. Fixava-se a idéia de que o educando era um receptor do saber e da educação. Se isso de um lado transformava suas vidas, não se pedia em contrapartida, porém, especial integração dos educadores com os hábitos e vida da sociedade atendida. A arquitetura fechada dos pórticos debruçava-se sobre os educandos, "protegendo-os do mal". Adentrar no espaço de educação era adentrar no templo do saber, do conhecimento, da verdade e da religião, diferente do mundo “lá fora”. As hostilidades externas, a certeza da posse da verdade religiosa e educacional, os êxitos obtidos na educação, a fidelidade à tradição deixada pelo fundador e a convicção de se estar num caminho certo , consolidavam a autonomia dos salesianos, seja em nível de Igreja, seja em nível escolar com o seu método educacional. O caminho feito até então era um caminho acabado, sem necessidade de mudanças. Considerando-se

que o

desenvolvimento da congregação estava sendo meteórico, dava-lhes então a certeza de não serem necessárias

adaptações às novas terras. Entende-se, portanto, que a

congregação possuísse vida própria no seu pensamento e na sua mentalidade não existindo nem espaço e nem necessidade para mudanças. Entendiam-se, portanto, completos, acabados, satisfeitos com a realidade que possuíam. Assim, o fechar-se, garantia a preservação de um padrão de ação que era bem aceito através de seus internatos, crescendo em importância e reconhecimento. Esse é o entorno que fez com que a fundação de Lorena se realizasse num contexto totalmente diferente da implantação da obra em Niterói e São Paulo. Na primeira cidade as hostilidades contra os " novos jesuítas" foi muito rígida da parte dos liberais. Os ataque públicos se manifestavam por parte da imprensa contra todas as formas de " obscurantismo" religioso. São Paulo, ainda que tenha vivido essa experiência de uma forma menos intensa, é marcado por uma maior aceitação. Em Lorena, o apoio do Conde Moreira Lima será inquestionável. E isto fará toda diferença para Lorena e para os salesianos. A Filosofia e a prática educacional dos salesianos foram integralmente transplantadas para o Brasil. Enquanto ideário educacional estavam já integralmente consolidadas na Itália, daí o sentido de um mero transplante. A consolidação dessa pedagogia no Brasil

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tem muito mais o sentido de seu reconhecimento e aceitação. Este processo de consolidação pode ser pontuado em três momentos. O primeiro, o de Niterói, foi de certo modo traumático. As hostilidades recebidas não permitiam sequer um espaço para expor a própria prática pedagógica, pois a imprensa local com sistemática hostilização, impedia isso. As vitórias aí conseguidas foram realizadas com grande desgaste desses religiosos. O segundo momento foi o de São Paulo, com a fundação do Liceu de Artes e Ofício, que, por seu trabalho social e preparação de mão de obra para uma cidade em processo de industrialização, granjeou as simpatias tanto do governo como da população, mormente a católica rica. A rápida construção do Liceu Coração de Jesus com sua magnifica Igreja, ocupando todo um quarteirão do bairro Campos Elísios, área nobre então, próxima do palácio do governo, demonstra um apoio financeiro significativo, sinal de simpatia com o trabalho realizado. Em Lorena, terceiro momento , recebem o apoio das classes cafeicultoras e leiteiras de região que colocam seus filhos no Colégio São Joaquim, onde se formam as elites agrárias e políticas da republica velha. Rapidamente as três escolas se tornam referenciais para a Igreja e para o poder político. Em apenas três décadas os salesianos são reconhecidos como educadores eficientes e modernos. A qualidade de ensino, a disciplina, a prática esportiva, as atividades culturais como o teatro e a música e a composição do seu corpo docente, com alguns professores de projeção como o autor da Gramática Expositiva, Eduardo Carlos Pereira, o Padre Ravizza, autor da Gramática Latina e padre Srtringari, autor do primeiro Dicionário de Regência Verbal do Brasil, davam destaque aos seus colégios e obras sociais.177 O Colégio São Joaquim, ainda no seu inicio passa a ser considerado um dos melhores internatos do Brasil: “O Colégio São Joaquim conseguiu formar-se como sólida escola da segunda década do novo século, terceiro de sua existência, equiparado ao Pedro II, o que garantia aos seus alunos a prestação de todos os “Exames de Conjunto” como eram chamados, na própria casa, embora diante de bancas de professores

177

José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890-1940. São Paulo Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. P. 290.

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nomeados pelo governo federal, com ótimas instalações e orientação de ponta do padre Mourão, o colégio tinha que conquistar renome e boa fama (...)178” Na década de 1920 os salesianos já se espalham por muitas regiões do Brasil, sendo solicitados não só pela Igreja, como também por autoridades civis.

Havia o

reconhecimento da qualidade do ensino: “Naquele tempo não havia muitos colégio no Brasil. E o São Joaquim era um dos melhores, procurado por todas as famílias. Tínhamos colegas de todo o Brasil, desde do Amazonas até o Rio Grande do Sul. Muitos do Rio e de São Paulo, muitíssimos do sul de Minas, sem falar – é claro – da cidade de Lorena e das cidades do interior do Estado(... ) Segundo aspecto do nosso colégio era a seriedade dos estudos. O São Joaquim tinha professores excelentes. Tantos os mestres da congregação, como amigos externos que eram convidados e contratados para colaborar com o ensino (...). 179 A expansão dos salesianos no Brasil é muito rápida, porque seu método de ensino, a seriedade com que assumiam a educação, o estilo de seus colégios e suas obras sociais tinham, no sistema preventivo, um referencial que respondia aos anseios do século que começava, diferentes dos que tinham configurado os internatos tradicionais, marcados então por rígida disciplina, nem sempre acompanhada de certa doçura 180 com os alunos. Há, portanto, um conjunto de fatores que garantem a consolidação da pedagogia salesiana no Brasil. São elementos externos e internos. Nos externos são necessidades prementes de uma sociedade que se moderniza e, no âmbito interno, a preocupação de formar e educar os jovens num ambiente ao mesmo tempo exigente e alegre: “Progressos tão rápidos ( de expansão ) explicam-se de diversas maneiras. Os convites insistentes da hierarquia local, preocupada com a miséria religiosa do povo e principalmente dos jovens, e os governantes, desejosos de favorecer pela formação das novas gerações o desenvolvimento industrial e agrícola dos seus países não deixavam os salesianos respirar e os compeliam a se multiplicar a mais que pudessem, sobretudo nos grandes centros urbanos. Mas o convite 178

José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890-1940. São Paulo Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. P. 160 179 - João Resende COSTA. In, José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 18901940. São Paulo Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. P.247 180 - amorevollezza

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surgia também no interior da famílias religiosa. Achava-se possuídas nesses anos de entusiasmo apostólico (... ). Outra prioridade: as escolas profissionais e agrícolas. Vinham de encontro de uma necessidade intensamente sentida . As `Escolas de Artes e Ofício’ era muitas vezes insistentemente solicitadas pelos próprios governos. Aproveitando-se da generosidade publica e privada, os salesianos criaram uma vasta zona de cultura (... ) mil e oitocentos hectares em Cachoeira do Campo no Brasil..181.” Por esses motivos aduzidos acima se pode entender a rápida expansão desses religiosos não só no Brasil mas em todo cone sul. Antes de 1900 já estavam presentes em muitas cidades como São Paulo ( 1883 ), Campo Grande ( 1896 ) e um pouco depois Recife ( 1902 )182, Cachoeira do Campo, Campinas , Salvador, Jaboatão, Rio Grande e Bagé183. A consolidação da presença e da pedagogia dos salesianos no Brasil, salvo os primeiros momentos de Niterói, foi imediata porque davam ao país e à Igreja respostas para os problemas religiosos e sociais de um país que se modernizava. Da parte da Igreja viam neles religiosos integrados com os pobres e com a juventude, com grande capacidade de atraí-los, longe do estilo carrancudo e fechado de muitos clérigos, mas ao mesmo tempo, garantindo sua fidelidade incondicional a Roma. Da parte do poder civil traziam tecnologia e modernidade para as cidades e os campos.

Assim, terminada a terceira década da presença salesiana no Brasil, já ocupavam um lugar de respeito como educadores. Os livros de crônicas e atas deste período registram inúmeras visitas de autoridades religiosas e civis que mantinham bom relacionamento com esses religiosos. Esse imediato acolhimento em muito facilitará - eclesial e politicamente - a implantação da Faculdade Salesiana de Lorena.

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Morand WIRTH. Dom Bosco e os salesianos. São Paulo. Editorial Dom Bosco. 1971. P. 278 - Direzione Generale Opere Don Bosco. Don Bosco nel Mondo. Torino. Elle di Ci. 1956, p. 216. 183 - Morand WIRTH. Dom Bosco e os Salesianos. São Paulo. Editorial Dom Bosco. 1971. P. 277 182

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CAPÍTULO 4 A FUNDAÇÃO DA FACULDADE SALESIANA

A origem da Faculdade Salesiana está organicamente interligada com a história da cidade de Lorena, quando são fundados, sucessivamente, o Colégio São Joaquim, o Instituto de Filosofia e Pedagogia e a Escola Agrícola 184. Lorena torna-se um centro irradiador da presença salesiana no Brasil e na América do Sul, saindo dela educadores que aplicarão a pedagogia salesiana por todo o continente. Inovações, crises e dificuldades transcenderão os territórios da cidade, tendo reflexos em muitas das frentes educativas assumidas pelos salesianos. Reconstituir a história dos salesianos em Lorena e de seu Instituto de Filosofia e Pedagogia inicialmente, e posteriormente, faculdade reconhecida pelo governo, é reconstituir a história da presença dos salesianos no Brasil e na América, como educadores. O século XIX marca a cidade com um lento processo de decadência. A produção do café, carro chefe da economia nacional, entra em crise, com a paulatina libertação dos escravos pelas sucessivas leis abolicionistas, aliadas a inúmeras fugas e queda do preço no mercado internacional, que aos poucos vão deteriorando as cidades do Vale do Paraíba paulista e fluminense 185”. A década de

184

Colégio São Joaquim, 1890; Instituto Filosofia e Pedagogia, 1895; Escola Agrícola, 1902. “De outro lado, essa lavoura, marcada fatalmente, era sustentada pelos escravos que restavam nas fazendas, pois boa parte tinha fugido , dentro das agitações das campanhas pré-abolicionista. A lei Áurea simplesmente abreviou a dolorosa agonia, que ecoava na seções da Câmara Municipal, quando se falava na aflitiva e medonha crise, que cada vez mais tenta assobervá-la ( a lavoura )" José Geraldo 185

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1880 é marcada pela lenta agonia deste, até então, promissor produto de exportação, levando consigo as sociedades por ele mantidas. “É claro que a “medonha crise” atingiu também a cidade. Basta lembrar o fechamento de cinco casas de comércio e até a Casa Bancária de Castro Lima & Cia, em 1889, apesar das numerosas tentativas dos comerciantes de manter o mesmo movimento, ampliando o horário de abertura do comércio, naturalmente sob os protestos da “classe caixeral". Tudo em vão, porque não havia dinheiro na zona rural, nos subúrbios e na cidade, pouco adiantando o horário de abertura e fechamento. Esta crise pode melhor ser entendida quando se compara a situação do setor terciário da cidade com o das outras do Vale Paraíba Lorena, em 1805 – 1806, só era suplantada por Taubaté, mas atingiu a primeira posição, isto é, o de maior centro comercial do Vale, com quase 40 casas comerciais, em 1828-1830, enquanto Taubaté tinha pouco mais de 20. Decaiu, todavia, brutalmente, no final do século, ficando abaixo da média regional 186”.

Lorena mantivera no período colonial e imperial importante posição geográfica, que lhe permitirá um natural enriquecimento e formação de uma classe de nobres, com seus casarões e grandes propriedades. No período do ouro era a última cidade paulista antes de se subir a Serra Mantiqueira pela região do Embaú, tendo no porto da Piedade187 o último entreposto entre o Vale e as vertentes que levavam às Minas Gerais. No século XIX os poderosos "barões do café", com suas grandes fazendas, consolidam sua influência política, nascida no império e que se prolonga na República Velha. Esse poder só será definitivamente abalado com o colapso do café deflagrado pela quebra da bolsa de Nova York em 1929 e pela tomada do poder por outras elites na revolução de 30. E, se antes Lorena se configurara por ser significativo entreposto comercial entre São Paulo, Rio de Janeiro, Sul de Minas e Litoral Fluminense, a estrada de ferro Rio São Paulo fará da cidade apenas “estação de passagem” de riquezas entre as duas grandes cidades, deslocando para a cidade de Cruzeiro 188 o ponto de conexão com o sul de Minas189. EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. pp.26. 186 Ibdem. p. 26. 187 O porto da Piedade encontrava-se em frente à Igreja de Nossa Senhora da Piedade, hoje catedral. O desvio do rio Paraíba fez sumir esse porto. 188 O nome “Cruzeiro” não se refere, como pode parecer em primeiro momento, ao símbolo religioso, mas é uma referência ao cruzamento de vias férreas na localidade. 189 Foi feita uma tentativa com a Cana de Açúcar com a vinda de colonos italianos, mas em apenas 10 anos essa tentativa fracassa por faltar à região boas terras, matéria prima e madeiras para os fornos. Cf.

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“É certo, contudo, que a queda não foi somente pela crise cafeeira, porque acresceu a chegada da Estrado de Ferro, quando Lorena perdeu o caráter de encruzilhada, dos caminhos que subiam a Serra da Mantiqueira, para Minas Gerais, dos que desciam a Serra do Mar, para os portos de Paraty e Mambucaba, dos que seguiam para São Paulo e dos que se dirigiam para o Rio de Janeiro, palmilhados por milhares de tropas de muares. Isto, sim, é que dava movimento ao seu comércio e às suas “casas noturnas”. Passando a ser simples estação ferroviária, como tantas outras, o movimento tinha que decair190”.

A chegada dos salesianos em 1889 será bem diferente da recepção de Niterói191 quando foram ostensivamente rejeitados e não raras vezes agredidos verbalmente. A cidade é marcada por forte misticismo com origem no catolicismo barroco mineiro, onde o controle social é exercido por ricos comerciantes e proprietários de grandes fazendas. O conde Moreira Lima usando de seu prestígio favorece o acolhimento dos salesianos enquanto destina parte de sua fortuna para obras sociais e religiosas 192 da cidade, já que não possui herdeiros. A chegada dos salesianos para Lorena inicia-se sem obstáculos, pois, o apoio do conde representava um aval incontestável em nível de Igreja193 e sociedade. Lorena é aceita pelos superiores de Turim por apresentar elementos favoráveis: a religiosidade popular, a proteção financeira do conde 194 que não media recursos para acolher os novos religiosos, a posição estratégica no meio caminho entre o Rio e São Paulo, além da ferrovia que integrava as duas cidades. Com condições tão

José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. p.28. 190 Ibdem. p. 27. 191 “Assim os primeiros tempos do Santa Rosa ( Niterói ) não foram fáceis. Basta dizer que o Oratório Festivo não se manteve, o diretor recebeu um forte soco na cabeça, quando num bonde em grupo de moleques chegou a gritar para Pereto: “Mata jesuíta”. Até no carnaval o padre diretor foi ridicularizado num boneco, como conta o padre Marcigaglia: “Era a representação fiel do Pe. Borghino: baixo, gordo, aquela fisionomia, aquele jeito dele! E o povo gritava: Olha o padre Miguel! Dê nele seu moço! Mata!” . O Bispo Dom Lacerda chegou a desanimar: “Vejo que não mereço ter os salesianos na minha diocese. Não tenho ânimo para ver-vos sofrer assim. Podeis retirar-vos...” Ibdem. p. 52. 192 Algumas obras doadas ou construídas pelo conde: Santa Casa de Misericórdia, Asilo Casa dos pobres de São José, Santuário São Benedito com seu acervo de prata e mármore de Carrara, Catedral de Nossa Senhora da Piedade, palacete da obra salesiana e ambiente para as irmãs salesianas, etc... Cf. Ibidem. pp. 35-38. 193 A Influência do Conde Moreira Lima é tão significativa junto da Igreja, que consegue que seja atribuída à Igreja de São Benedito, em parte construída por ele, o título de Basílica Menor agregada à Santa Sé. E a única Basílica do mundo dedicada a este santo.

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favoráveis o “Colégio São Joaquim” começa suas atividades em 1889. Como primeiro diretor vem o padre Carlos Pereto, 195 com 30 anos, de Niterói. Vota a Dom Bosco absoluta fidelidade, expressa em sua própria narrativa 196 e é um dos grandes mantenedores do projeto salesiano vivido em Valdocco 197. Transplanta, juntamente com os outros salesianos vindos ao Brasil, o modelo que ele próprio vivera em Valdoco com Dom Bosco. “ Moço de 23 anos, era o padre perfeito, o vice diretor do colégio. (...) dele ( de Dom Bosco ) herdara toda imensa operosidade e energia, que permitiam o crescimento da congregação. Organizando eficientemente a administração da escola, Pereto, mais do que ninguém, percebia suas necessidades. Como as esmolas seriam poucas, se esperasse que os doadores fossem até o colégio, não teve dúvidas: passou a visitar os que podiam contribuir”.198

Em 1886 dom Lasagna199 já pretendia enviar Pereto para São Paulo, o que de fato só acontece em 1890 quando abre o Colégio São Joaquim de Lorena, funcionando então no “chalé Mágico”, no dizer do Conde Moreira Lima 200. No transcorrer dos anos a obra vai se firmando como colégio para meninos pobres, e, posteriormente, como internato para filhos de fazendeiros e de profissionais liberais. Em 1892 o São Joaquim serviu de base 194

O conde Moreira Lima possuía 52 fazenda nas regiões de são Paulo, Minas Gerais e Estado do Rio de Janeiro. Sobre a cidade de Lorena no seu período áureo: cf. Alves Sobrinho MOTTA. A civilização do Café. São Paulo, Brasiliense. 1973 195 Italiano nascido a 3 de março 1860 em Carignano, próximo de Turim. Em 1876 tem o seu primeiro encontro com Dom Bosco. Entusiasma-se com as missões e parte mais tarde para Montevidéu. Manifestase grande líder assumindo inicialmente a fundação de Niterói e indo posteriormente aos estados do Rio, São Paulo e minas Gerais angariando recursos para a implantação do Colégio São Joaquim. 196 Cf. José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. pp. 49-51. 197 Pequena localidade do Norte da Itália onde tinha nascido o primeiro oratório, tido na tradição salesiana como modelar. 198 José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. p. 53. 199 Dom Luigi Lasagna nasceu em Montemagno (Asti ) em Monteferrato, Itália, no dia 04 de março de 1850. Foi aluno de Dom Bosco no Oratório São Francisco de Sales. Torna-se salesiano e missionário no Uruguai. Firme nas suas posições, fidelíssimo a dom Bosco, homem de visão ampla possui presença destacada no Uruguai onde consolida a presença salesiana. Atua com grande eficiência no Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. Feito bispo é homem de ampla visão para o futuro dos salesianos no Brasil No dia 6 de novembro de 1895 sua vida é ceifada em acidente ferroviário próximo da Estação Ferroviária de Mariano Procópio, Juiz de Fora. Sua morte possui eco nos principais jornais do Brasil e da Europa, representando um rude golpe na organização dos salesianos no Brasil. Cf. Antônio da Silva FERREIRA. Epistolário; Mons. Luigi Lasagna. Roma: LAS, 1995. pp.5-41. 200 Cf. Antônio da Silva FERREIRA. Epistolário; Mons. Luigi Lasagna. Roma: LAS, 1995. P. 67

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para a recepção das irmãs salesianas no Brasil, quando se instalaram na vizinha cidade de Guaratinguetá. Ente 1894 e 1895 o colégio São Joaquim transformava-se de fato, e não juridicamente, como a casa central do Brasil 201. A trágica morte de Dom Lasanha em acidente ferroviário em Juiz de Fora no dia 06 de novembro de 1895 precipitou o desligamento do Brasil da Jurisdição do Uruguai, criando-se uma nova Inspetoria202, a do Brasil, e retendo como primeiro Inspetor o padre Pereto e a sede em Lorena, que desde 1892 abrigava o noviciado. Pereto trazia para Lorena toda as etapas de formação da Inspetoria do Brasil, realizando um velho desejo de Dom Lasanha, de quem fora confidente, afim de fortalecer uma sólida formação cultural e religiosa, dentro da mais significativa tradição salesiana. Lorena passava assim a ser um grande referencial salesiano dentro da América. Lasanha e Pereto garantiram que o transplante da obra fosse o mais fiel possível à velha tradição italiana, tornando-se Lorena modelo de fidelidade ao projeto educativo do fundador.

Nas décadas seguintes a obra se

consolidará como o centro de formação salesiana no Brasil e na América.

O

crescimento da obra é tal que já em 1900 estava construído o prédio central, obra do arquiteto Delpiano203. Os salesianos encontram nesta cidade suporte econômico e de transporte para suas atividades, pensadas já em nível de todo o Brasil. O café garantirá ao Vale do Paraíba no século XIX e início do século XX supremacia econômica e política204. Passagem natural entre Rio de Janeiro e São Paulo, o Vale mostrava vocação de "ser caminho", estreitado entre as serras do Mar e Mantiqueira, sua " vocação" topográfica se manifesta desde as primeira trilhas de índios e mais tarde ferrovia. Se a libertação dos escravos representou um rude golpe sobre a economia regional, ela foi porém atenuada pela presença da ferrovia que fez com que a cidade encontrasse novas formas de sobrevivência. Em meio à crise regional Lorena apresenta então perspectivas animadoras para o futuro da região. É a cidade que mais cresce em

201

Cf. Ibdem. p. 76 A Inspetoria é equivalente a uma Província religiosa que possui um superior geral, entre os salesianos com o nome de Inspetor. 203 José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 - 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. p.85. 204 Vale recordar Rodrigues Alves natural de Guaratinguetá que se elegeu presidente por duas vezes e Arnolfo de Azevedo, natural de Lorena, deputado federal por várias gestões. 202

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população e em comércio205. Isso é facilitado pela sua posição geográfica 206 que a torna numa região de encruzilhada entre Rio, São Paulo Sul de Minas e litoral, passando a ser ponto de conexão e comercial207, o que lhe confere um futuro promissor. A queda do Império favorece mais a atuação dos salesianos no Brasil, já que a Igreja pretende se tornar mais ágil na sua atuação na sociedade. Com a separação entre Igreja e Estado na República um fenômeno se manifesta. O Império, por motivos econômicos, não incrementara a organização da igreja, seja na constituição de novas dioceses, seja na nomeação de párocos. Essa organização da Igreja representaria ônus econômico para o Estado. No crepúsculo do Império, o Brasil contava com apenas 7 dioceses e algumas poucas paróquias, tendo à sua frente sacerdotes velhos e incapazes de dinamizar uma efetiva vida religiosa. A separação do Estado da Igreja acaba por ter reflexos benéficos sobre a Igreja, que entende que é necessário fortalecer-se com a criação de novas dioceses, ao mesmo tempo em que busca melhorar a moral do seu clero. O processo de restauração ganha força e brilho e os religiosos reformadores passam a ter significativa importância neste processo de reforma e reformulação. Os salesianos, apesar de estarem no interior, fazem com que Lorena assuma sua vocação estratégica para a Congregação com reflexos positivos para a Igreja do Brasil. Já em 1895208 é implantado o Instituto Salesiano de Filosofia e Pedagogia . “O colégio de Lorena obedece às prescrições higiênicas e tem todas as aulas do Liceu até a Universidade e demais cursos superiores. (...) a citação da existência de curso superior se deve ao fato que, junto ao São Joaquim, preocupado em formar pessoal para os colégios salesianos do Brasil , fundou-se o Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia em Lorena, no ano de 1895. (...) O Instituto formou , com ótimos resultados, 205

Sobre a urbanização do Vale do Paraíba cf. Nice Lecoq MULLER. O Fato Urbano na Bacia do Rio Paraíba - SP. Rio de Janeiro, IBGE, 1960. 206 Esses benefícios são extensivos às cidade de Cruzeiro a 32 km de Lorena e localizada no sopé da serra da Mantiqueira, e Guaratinguetá localizada a 15 km e que fora já ponto de conexão até Paraty. 207 “Encontra-se no centro, entre três províncias: São Paulo, Minas e Rio. A casa, dando para a praça principal, com 15 hectares de pomar, dista duzentos metros da estação da estrada de ferro. Tem condução na porta... que lhe parece? Comunique-o ao Capítulo e responda-me. Chamar-se-ia São Joaquim; tal é o nome do doador Conde Moreira Lima e do pontífice Leão XIII... é provável que o doador ceda também a igreja de São Benedito e uma casa contígua para as Irmãs”. Trecho de carta do Padre Lasagna ao superior geral dos salesianos Padre Rua. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p. 32. 208 O Instituto será transferido para Lavrinhas a 35 km de Lorena, permanecendo aí de 1913 a 1943, quando volta para Lorena.

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numerosas turmas de professores, entre os quais se acham inúmeras personagens da vida civil, e sobretudo eclesiástica209”

Esse Instituto de Ensino superior será o responsável pela formação de clérigos e professores “verdadeira faculdade católica, sem contar, contudo, com o reconhecimento oficial210”, que nem sequer se fazia necessário, pois, aceitava-se pacificamente que os seminários eram naturalmente formadores das novas gerações de educadores. A reforma da educação pombaliana com as escolas régias não conseguira atingir seu objetivo em nível de eficiência ao pretender substituir os jesuítas. Os egressos dos seminários possuíam então reconhecida cultura211, tendo, portanto, garantindo seu espaço como docentes. Com instituições educacionais fragilizadas, tanto no império como na nascente república, era a igreja a detentora do maior parte do capital do saber, sendo que boa parte da intelectualidade do Brasil havia passado pelos seminários.

Frente a uma igreja fragilizada por desmandos morais e crise de governabilidade, onde os bispos restauradores tentam impor sua autoridade, 212 os salesianos encontram poucos motivos e necessidade de integração, seja com a Igreja, seja com o mundo laico, ignorante de um lado ou ligado ao pensamento iluminista de outro. Isso favorece uma profunda autonomia tanto diante da Igreja como da sociedade.

209

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.33 210 Ibidem. p.34. 211 Ainda hoje no imaginário popular prevalece a idéia que os estudantes dos seminários possuem uma cultura ampla e abrangente. 212 "Por reforma interna entendemos a necessidade de melhor preparo dos bispos e do clero no sentido de defenderem a instituição e todos os seus dogmas, deveriam ainda estar qualificados para a ação pastoral. A preocupação de melhor formar o clero em seminários adequados à doutrina da Igreja, e mesmo de fortalecer o poder e as decisões do papa, era condição indispensável para a reforma interna. (...) As intenções das propostas da reforma tridentina foram retomadas no século XIX, com uma intensidade significativa no Brasil, pelos bispos envolvidos com a romanização: a preocupação com o papel dos seminários na formação de um clero qualificado para a conversão dos homens em verdadeiros católicos, cumpridores de seus deveres religiosos,. Com a defesa da Igreja e de seus princípios contra os ataques dos inimigos, com o ensino religioso em todas as escolas, com a moral católica na medida em que propunha e esperava dos católicos um determinado tipo de comportamento, com as atitudes do clero, personagens essenciais para o sucesso da romanização. (...) Tratava-se de reagir à perda do poder e da influência da Igreja na sociedade. Fábio José Garcia dos REIS. Os Redentoristas, o Cônego Antônio Marques Henriques e a Romanização da Igreja Paulista. São Paulo:, Biblioteca da USP, 1993. pp. 1516 (Dissertação de Mestrado). Faculdade de História da USP.

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" Essas resoluções constituem uma espécie de regulamento disciplinar, a ser aplicado sem necessidade de muita reflexão.. outra limitação muito grande dessas deliberações é a falta de referência à realidade brasileira. As normas são elencadas como se a instituição salesiana constituísse uma entidade à parte e voltada sobre si própria, movendo-se à parte da sociedade. Não há nenhuma análise, nenhuma referência sequer às questões socio-políticas (...). Por último, não se visualiza nenhuma perspectiva de inserção da atividade salesiana dentro dos quadros da Igreja do Brasil, e nem sequer da Igreja em geral. Também aqui tem-se a impressão que a obra salesiana constitui um mundo à parte, desvinculado da vida da própria Igreja do Brasil...Todavia, não se deve imaginar que essa postura fosse exclusiva dos salesianos. Refletia a mentalidade de diversas congregações implantadas no Brasil nesse período, cuja preocupação predominante era a manutenção dos vínculos com suas sedes de origem213".

Adventícios no Brasil organizam-se quase como uma sociedade autônoma na sua organização e disciplina. Seu reconhecimento como educadores é imediato 214 acabando por atrair crianças e adolescentes das classes dos ricos fazendeiros e comerciantes, sobretudo da região sudeste.215 A clientela atingida não deixa de ser vulnerável às crises que abalam a economia do Brasil, e por conseqüência, às suas elites. A quebra da bolsa de Nova York representa um duro golpe econômico para o Vale, porque atinge a combalida economia cafeeira, que se sustentava mais pelo controle do poder central dos cafeicultores, do que por sua real potencialidade econômica, como nos mostra, por exemplo, o iníquo Tratado da Taubaté. A esse golpe econômico advém o golpe político

213

Riolando AZZI. A Consolidação da Obra Salesiana. São Paulo: Editora Salesiana, 1984. v4. pp.343 . Euclides da Cunha sendo engenheiro de temperamento difícil, colocara no Colégio São Joaquim seus filhos e manifestava respeito pela educação dada por eles. Em gratidão aos salesianos parte de seu acervo foi doado ao São Joaquim, inclusive a mesa onde revisará seu livro “Os Sertões” cf. José Luís PASIN. O outro Euclides. Lorena: Unisal, 2002, p.22. 215 Eis uma pequena amostragem da origem dos alunos para o colégio São Joaquim: Informações sobre os alunos internos da década de 1910 no Colégio São Joaquim, então como internato, comparado na qualidade de ensino ao Dom Pedro II do Rio de Janeiro: "Dos 1.508 alunos internos, com residência declarada, mais da metade morava no Vale. Os meninos vinham de Pindamonhangaba (132 ), de Guaratinguetá (127 ) de Taubaté ( 83 ), de Cruzeiro ( 62 ), de Caçapava ( 48 ), de Queluz ( 43 ) de Cachoeira ( 16 ), e São Luís do Paraitinga (11 ), de São José do Barreiro ( 10 ) além de outras cidades do Vale. (...) Outro alimentador das matrículas da década foi o Estado do Rio de Janeiro (...) A maior parte vinha então da capital federal ( 130 ), seguido pelos municípios do Vale Paraíba fluminense: Resende ( 65 ), Barra Mansa ( 22), Dores do Piraí ( 13 ), Petrópolis ( 9 ) Parati ( 9 ), Niterói, Cordeiro, Barra do Piraí, Valença, Angra dos Reis, Serra, Mendes e Engenheiro Passos. A terceira área de afluência era Minas Gerais, especialmente o sul. (...) Campanha ( 44 ), Santa Isabel do Rio Preto ( 35 ), Paraguaçu ( 32), Itajubá ( 26 ), Santana do Garabéu ( 13 ), Baependi ( 18 ), Caxambú ( 11 ) Silveira Ferraz ( 11 ) e mais 46 cidades, incluindo-se Belo Horizonte. Do restante do Estado de São Paulo ( ...) Capital (81 ), Itapira ( 7 ), Torrinha ( 7 ), Batatais ( 12 ), Bocaina ( 9 ), Campinas ( 7 ), e ainda Amparo, Araraquara, Bauru, Bebedouro, Brotas, Piracicaba, Itatiba, Santos, Taquaritinga e mais seis cidades. De outros Estados, o Paraná concorreu com 16 alunos, o Ceará com 10, Mato Grosso com 2, Rio Grande do Sul com 2, Espirito 214

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de 30, quando o poder político escapa das mãos da elite cafeeira para as elites do sul, personificadas em Getúlio Vargas, que implementa de imediato uma forte centralização econômica e política. A Revolução de 32 é a ultima tentativa do retorno das elites paulistas ao controle político do país. A política de Vargas, de

cunho

desenvolvimentista, amplia a demanda de escolas, quando o aumento da produção industrial em 60% exige a preparação de uma população mais instruída e apta a responder aos novos tempos, como forma de ruptura com o Brasil arcaico e caboclo. É uma nova mentalidade que dirige os empreendimentos do governo. Ainda em 30 é criado o Ministério da Educação e da Saúde pública onde se destaca o decreto de Reforma de Francisco Campos216 que em 31 busca uma “política educacional de âmbito nacional217" com um sistema educacional centralizado. A primeira diretriz geral de Ensino Superior é emanada no decreto 19851 de 11 de abril de 1931

"Alterou-se o cenário brasileiro. A modernização em marcha no país atingiu o setor educacional, provocando medidas que visavam a concretizar o princípio de se ver traçada 'uma política educacional de âmbito nacional'. Pela primeira vez uma reforma atingia profundamente a estrutura de ensino, e, que é importante, também pela primeira vez organizava-se um sistema escolar centralizado, abrangendo todo território nacional. "Era, pois, o início de uma ação mais objetiva do Estado em relação à educação218".

Com a regulamentação do ensino no Brasil com um sistema escolar integrado faz com que a igreja se agilize para que o processo do movimento de Restauração se faça presente também nas universidades, o que acontece já em 1940 com a criação das Universidades Católicas sob a influência do Cardeal D. Leme.

Santo com 2, e Paraíba com 1. José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890 1940. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1991. p. 125. 216 Na convocação a ABE feita a 10 de julho de 1931, Francisco Campos já manifestava o desejo de imprimir "as grandes diretrizes da educação popular (...) visando traduzir em imediata realidade a padronização e a eficiente elaboração e publicação das estatísticas escolares brasileiras". Cf. Marta Maria Chagas CARVALHO. Molde Nacional e Fôrma Cívica. Bragança Paulista: EDUSF, 1998. pp.377-379. 217 Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.40. 218 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.40.

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"A partir da capital da república, a Igreja, alijada pelo Estado, projetou sua entrada na sociedade brasileira através de um movimento surpreendentemente sistemático, organizado, bem articulado e aparelhado em âmbito nacional. É no bojo desse movimento explícito de restauração da Igreja no Brasil que se elabora o projeto, e, finalmente, se funda a Universidade Católica Brasileira219".

É neste contexto que os salesianos percebem a necessidade de uma Escola de Ensino Superior reconhecida, pois caso não se adequassem à nova legislação, formando seus futuros sacerdotes com diploma reconhecido, seriam obrigados a colocar no lugar dos professores-padres, leigos220 que nem sempre estariam afinados com os princípios educacionais salesianos, e, nem tão pouco, com os ideais da restauração. O padre Carlos Leôncio da Silva221, já havia acalentado o desejo de introduzir os salesianos no Ensino Superior. Aliás, esse desejo não era novo. Em 1931 existira uma primeira tentativa junto do Liceu Coração de Jesus222 onde se chegou a fundar uma faculdade de Estudos Econômicos223 que não se consolidou como obra salesiana, tendo sido integrada, posteriormente, à Universidade Católica de São Paulo. 219

Alípio CASALI. In Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.44. 220 Na mentalidade da época era praticamente inconcebível a presença de leigos num "colégio de padres", que tinha por característica essencial ter por docentes esses religiosos. A presença de leigos era considerada como " um mal necessário" e acidental, que só em último caso era aceita e era vista como transitória. 221 Padre Leôncio nasceu no Recife a 6 de dezembro de 1887, filho de tradicional família pernambucana, descendente de senhores de engenho. Em 1902 estudou no colégio salesiano do Recife. Tornou-se salesiano em 1910 indo em 1913 para Turim onde concluiu seus estudos teológicos. De 1917 a 1937 atuou no nordeste como professor e diretor de colégios salesianos, sendo que em 32 fundou o Centro de Cultura Religiosa e Pedagógico-didática. Em 37 foi transferido para o Instituto teológico Pio XI em São Paulo onde se tornou professor. Neste ano trabalha em sua primeira obra pedagógica: Manual teóricoprático para uso dos educadores. Em 1939 vai para a Itália a fim de dirigir e organizar as fundação do Instituto de Pedagogia do Pontifício Ateneu, sendo a primeira faculdade de Pedagogia reconhecida pela Igreja. Na Itália dedica-se a escrever sobre o Sistema Educativo de dom Bosco. Na Universidade católica de Friburgo doutora-se em Pedagogia. Em 1952 retorna para o Brasil por problemas de saúde e assume a direção da recém fundada Faculdade Salesiana onde permanece como diretor até 1965, quando se afastou da direção por problemas de saúde. Por duas vezes participou a convite do governo brasileiro de reuniões da UNESCO: em 52, em Paris, como delegado do Brasil na 7ª Conferência daquele órgão e em 53 em uma reunião de educadores, como representante das escolas particulares. Deste período ficaram amizades com Lourenço Filho, Carneiro Leão, Tristão de Atayde e outros. Faleceu no dia 21 de julho de 1969 na cidade de Lorena. Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. pp.116-119. 222 O Liceu Coração de Jesus foi a segunda obra salesiana o Brasil e localiza-se no bairro de Campos Elísios em São Paulo, onde hoje funciona, além de colégio, uma Unidade do Centro Unisal. 223 A autorização do Liceu Coração de Jesus fundar o curso superior de Administração e Finanças foi dado pelo Decreto 20.158 de 30 de junho de 1931. A Instalação oficial da faculdade se deu no dia 18 de março de 1939. Em 1941 formava-se a primeira turma. O Decreto Lei 7.988 de 22 de setembro de 1945

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A Constituição da República de 1946 precipita os acontecimentos ao exigir o concurso de títulos para os cargos de Magistério224. Isso representa um problema para a Congregação, pois não bastava mais só o reconhecimento moral “do estudo dos padres”, mas também legal de sua competência como educadores e pedagogos. Essa normatização atinge em cheio o Instituto Salesiano de Filosofia e Pedagogia que não tinha competência legal para formar seus professores, não bastando mais o reconhecimento em âmbito da Igreja. Padre Stringari irá recorrer ao ministro Pedro Calmon para que se reconheçam as competências dos cursos internos dos salesianos, ao menos para as próprias escolas salesianas.

"Queria provar ao governo que os jovens membros da congregação Salesiana do Brasil, após terem feito oficialmente o ginásio e o colégio, e particularmente o curso de Filosofia, Pedagogia e Didática, estavam idôneos para lecionar no curso secundário, e a favor deles pleiteava um certificado de habilitação para o magistério, válido pelo menos nos estabelecimentos salesianos de Ensino225".

O ministro mostra a inviabilidade legal desta "solução doméstica", e propõe em contrapartida o assumir o projeto da criação de uma faculdade reconhecida.

" O ministro recebeu-me e demonstrou ao longo da conversa interesse e incentivo ao projeto. A 22 de novembro do mesmo ano, o padre Stringari teve o primeiro encontro com o diretor de Ensino Superior, o comendador Dr. Juandir Lodi. Do professor Lodi recebeu a seguinte resposta: 'Largue isso e venha amanhã às 9 horas, fora do expediente, e conversaremos'. No dia seguinte, após discussão do assunto, Pe. Stringari percebeu que 'estava tudo contra a lei o que eu pretendia'. O que o padre Stringari não

extinguia o curso superior de Administração e Finanças, substituindo-o pelo curso de Ciências econômicas, o que acarretou uma reformulação total do curso então existente. Entre os salesianos surgem vários debates sobre a viabilidade ou não do projeto de ensino superior. A Faculdade é reconhecida pelo Decreto 25.225 de 15 de julho de 1948, mas os salesianos não se sentindo preparados para leva-la adianta, consumam o processo de agregação deste curso à Universidade Católica de São Paulo, já em 3 de agosto do mesmo ano. Cf. Manoel ISAÚ. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, 1985. pp.348-356. 224 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.50. 225 Magalhães. In Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.51.

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contava era com a contra proposta do Dr. Jurandir Lodi: 'Por que não resolve o caso dos seus seminaristas fundando uma Faculdade de Filosofia?' 226"

Lorena estava fora dos projetos do governo federal que visava a criação de universidades somente nas grandes capitais. Assim o padre Stringari retorna com perspectivas reais de poder qualificar o pessoal salesiano dentro das normas governamentais. Em 14 de fevereiro de 1952 por decreto do presidente Vargas 227 é criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena. Um conjunto de arrazoados fizeram parte do processo de reconhecimento onde se destacava o mercado existente228 assim como a área que seria atingida pelo novo curso superior. As negociações políticas apoiaram-se no prestigio da Igreja, da Congregação e da classe média regional, representada, sobretudo, pelos comerciantes, pois numa época em que o desenvolvimentismo era o carro chefe do governo numa busca de modernização do Brasil, a fundação de uma faculdade no interior para atender basicamente seminaristas, fugia às perspectivas da Educação para os novos tempos. Deve-se ainda lembrar que neste momento faziam ainda eco as propostas de um ensino laico, quando as primeiras rusgas entre o Ensino religioso e laico se faziam visíveis. De fato, porém, reconhecia-se como oficial o Instituto de Filosofia e Pedagogia já existente, ampliando suas ofertas para línguas. Ainda que tenha sido feitas as adequações necessárias às exigências governamentais, o que prevalecia de fato, era o seminário com sua forte marca de catolicidade no modelo de uma igreja tradicional, romanizada, dentro dos valores da

restauração. Ainda que legalmente aberta para o

público externo, a faculdade continuava de fato seminário católico e salesiano. O Ingresso de externos é pífio no seu início e os valores da educação continuavam ser os 226

Magalhães. In Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.51. 227 Decreto no. 30.552, de 14 de fevereiro de 1952 - "Concede autorização para o funcionamento dos cursos de Filosofia, Pedagogia, Geografia e História, Letras Clássicas, letras neolatinas e Letras Anglogermânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras". O presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo 87, item I, da Constituição, e nos termos do artigo 23 do decreto-lei no. 421, de 11 de maio de 1938, decreta: Art. 1 - É concedida autorização para o funcionamento dos Cursos de Filosofias, Pedagogia, Geografia, e História, Letras Clássicas, letras neolatinas e Letras Anglogermânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mantida pela Inspetoria Salesiana do Sul do Brasil e com sede em Lorena, Estado de São Paulo. (...) Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1952, 131 º da Independência e 64º da República. Getúlio Vargas. E. Simões Filho. CEDOC-UNISAL - Unidade Lorena. 228 Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.54.

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do seminário. No dizer do padre Ferreira, “era um segundo grau melhorado229”. Esse era o rosto inicial da Faculdade, definida pelo professor Sodero como uma “Instituição Singular”230 porque fugia ao conceito clássico da universidade. Era um Instituto de Filosofia com explícita matriz aristotélico-tomista, composta inicialmente só por professores religiosos,231 sendo o corpo discente composto por candidatos à vida religiosa232. Pode-se definir esse início como sendo um “Instituto de Nível Superior Católico e Privado” Com uma marcante linha conservadora.

"Para os dirigentes educacionais, a criação de mais uma faculdade de Filosofia significava ampliar o atendimento da demanda por mais vagas no ensino superior, com vistas a habilitar candidatos ao exercício do magistério secundário e superior em expansão. Além de, naquele momento, atender ao desejo particular do então ministro da Educação de interiorizar o ensino e a cultura. (...) Para a Igreja católica, reorganizada no período republicano, no bojo dos processo de romanização e restauração, a criação de mais uma instituição de ensino superior católica representava a possibilidade de erigir um novo espaço próprio para elaboração e divulgação do pensamento católico. Um novo centro privilegiado de formação de lideranças intelectuais católicas, voltado preferencialmente para as camadas médias urbanas em formação e ascensão. Uma igreja que pretendia, por este intermédio, formar uma elite capaz de conduzir as massas dentro dos princípios católicos, com uma postura de autonomia e auto-suficiência , funcionando paralelamente ao Estado. (...) Os filhos de Dom Bosco (...) além de continuar mantendo o colégio São Joaquim, O Instituto e o Seminário Maior, ampliavam suas funções e responsabilidades, com a missão de formar clérigos e leigos para o exercício do magistério"233 .

Inicialmente todos os professores são religiosos,234 leigos só entrarão posteriormente quando sacerdotes não possuírem a qualificação exigida, devendo porém estes docentes

229

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 17 jul. 2002. 230 Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.61. 231 Cf. Ibidem. p.61. 232 Ibidem. p.61. 233 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.62 234

Diretor Vice-diretor

1952 Padre Dr. João Resende Costa Padre José Fernandes Stringari

1953 Padre Dr. Carlos Leôncio da Silva Padre Pedro Prade

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estarem alinhados de forma inequívoca com o pensamento conservador católico. O acesso de estudantes leigos não é incentivado, sendo portanto seu ingresso um processo lento235. Quando ingressam as primeiras mulheres, mantém-se a estrutura existente então para o colégios de primeiros e segundo grau de meninos e meninas. 236

A Faculdade

237

e a masculina,

Salesiana, assim, no seu início é dividida em duas seções: a feminina

essa última subdividida na seção dos leigos e dos seminaristas. Os externos 238 eram submetidos ao modelo de seminário nos moldes tridentinos, sendo os seminaristas segregados do contato com os leigos. Este modelo mantinha também afastados os jovens leigos das jovens, em prédios distantes. Essa organização espacial não incomodava a sociedade conservadora do Vale, que via nela até uma forma de preservar a moralidade de suas jovens. A criação da Faculdade Salesiana de fato, salvo o aspecto legal, não representa nenhuma alteração na vida dos religiosos salesianos em formação. A vida intra muros continua a mesma com suas práticas religiosas, regulamentos, o soar dos sinos marcando o tempo de Deus239, diferente do tempo dos homens, a batina preta a

Membros do CTA

Padre José Fernandes Stringari Padre Dr. Carlos Leôncio da Silva Padre João Renaudin de Ranville Padre Antônio Lages Guimarães Padre Emílio Pedro Sacco Padre Hugo Gaurnieri Padre Hugo Guarnieri

Padre Pedro Prade Padre José Fernandes Stringari Padre João Renaudin de Ranville Padre Antônio Lages Guimarães Padre Emílio Pedro Sacco Padre Irineu L. de Souza Padre Walter Bini

Secretário Ibidem. p.69 235 Em 1952 só existe um leigo, contra 50 religiosos. Há uma forte tendência de só manter " alunos internos", o que eqüivale a definir a faculdade como masculina e como seminário. Será a pressão da sociedade que imporá o ingresso de "alunos externos". Somente em 1954 terá início a primeira turma feminina com 25 moças. 236 Na educação da época os sexos eram mantidos separados. Assim os salesianos dedicavam-se à educação masculina e as irmãs salesianas à feminina. Essa estrutura na forma de educar é mantida quando enfim entram as primeiras meninas na universidade. A educação delas é entregue às irmãs salesianas 237 A seção feminina transformou-se posteriormente no Instituto Santa Teresa que desmembrou-se da Faculdade Salesiana por ruptura ideológica entre as irmãs e os padres, ambos ligados à pedagogia salesiana. 238 São assim denominados os que não eram seminaristas e assim não residiam na obra. 239 "Le temps de la Bible et du christianisme primitif est avant tout um temps théologique. Il "commence avec Dieu" et il est "dominé par Lui". Par conséquent l`action divine, dans sa totalité, est si nuturellement liée au temps que cellui-ci ne saurait donner lieu à une problème; il est, au contraire, la condition nécessaire et naturelle de tout acte divin"., Jacques le GOFF. in Annales, Economies, Sociétés, Civilisations. France: 1960, mai-juin n.3. p.419.

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lembrar a dimensão transcendente da vida religiosa. Os alunos externos da faculdade são incluídos nessa visão de catolicidade240 comum nos internatos salesianos.

A Década de 50 é um período de implantação do novo modelo, até chegar aos anos 60, caracterizado então por de contestações e questionamentos. Esta cidade interiorana começa a sofrer novos influxos de idéias que passam a ser veiculadas no mundo pósguerra em transformação. Se a família, as instituições e a igreja são espaços conservadores, o Clube Comercial241 é o espaço de ventilação das novas idéias, que não poderiam ser discutidas com liberdade em outros ambientes de uma

sociedade

conservadora, com marcante influência do catolicismo tradicional mineiro. Este passa a ser então o espaço de discussão da elite lorenense. Questionam-se conceitos morais sobre família, virgindade, homossexualismo e questões políticas como “participação” e “discussão da Realidade”.

"A cidade de Lorena começou a sentir os reflexos desses novos tempos. Em recente estudo sobre a História do Clube Comercial da cidade, o professor Olavo Ferreira destacou os problemas e as novidades da época. 'Vivia-se um tempo em que a sociedade lorenense, provinciana, familiar e comunitária, presa a preconceitos, a tabus sociais e a certa rigidez nos usos e costumes começa a mudar' . Entrou no rol das discussões o problema surgido com a freqüência ao clube das desquitadas e dos homossexuais; debatia-se a manutenção do traje, e o uso da gravata no clube e principalmente nos bailes; inaugurou-se a piscina, permitindo que grande parte dos associados pudesse participar das competições e entretenimentos ali organizados; e, a grande novidade, a compra de uma televisão no ano de 1958. No interior do Clube Comercial , começou a surgir, por parte dos jovens, a "aspiração por uma maior participação na vida administrativa e por eleições "democráticas" resultando em conflito de gerações. Os costumes foram se alterando; desfez-se o uso da gravata; o rigor absoluto nos bailes começa a desaparecer. As mudanças sociais atingiram a sociedade lorenense, trazendo consigo novas tendências. A idéia de participação nas questões sociais passou a contagiar as novas gerações. A Faculdade Salesiana passaria também a sofrer seus efeitos".242

240

Cf. Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. pp. 285-289. Foi fundado em 11 de janeiro de 1937 tendo sua primeira sede na praça Doutor Arnolfo de Azevedo. 242 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. pp. 99-100. 241

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O mundo do pós-guerra sinaliza muitas mudanças e novas concepções morais, religiosas, sociais e econômicos. Na diocese de Lorena o bispo Dom Cândido Padin 243, com clara preocupação com os problemas sociais, pede aos salesianos que abram cursos que correspondam às necessidades dos tempos, com ênfase para os de caráter profissional, que ajudassem efetivamente os estudantes a se colocarem no mercado de trabalho.244 A Educação nacional passa a ser objeto de significativos debates na construção da LDB 4.024 que tem seu início em 1948 e conclusão e promulgação em dezembro de 1961. A ABESC passa a ter uma participação significativa neste processo. O documento final com sensível tendência privatista em contraposição ao movimento iniciado em 32, com os pioneiros, em defesa da escola pública. Esses embates externos fazem eco no mundo da educação.

" A Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, embora tenha assinalado um avanço em termos de concepção universitária, 'em essência nada mudou' ( Romaneli, 1982, p. 181 ). Manteve o caráter da universidade como a justaposição de escolas, com um conceito pouco diferente da legislação anterior, estabelecendo a fixação de currículos mínimos dos cursos superiores pelo CEF, o papel desse colegiado na autorização e reconhecimento das instituições de ensino superior, e a representação discente nos órgãos colegiados da instituição. Continha porém 'acentuadas tendências privatistas, garantindo subsídios públicos para os estabelecimentos privados de ensino, bem como a presença dos seus dirigentes nos Conselho de Educação' " ( Cunha, 1989, p. 38 ). 245

Entram em pauta dos debates a discussão sobre “A realidade Brasileira” e as “mudanças sociais” necessárias.

Nos anos 50 e 60 nasceu a SUDENE, influenciado pelo trabalho desenvolvido por dom Helder Câmara e dos bispos do Nordeste, que tratavam seriamente dos problemas da região. Os membros da Igreja Católica participaram dos debates sobre os problemas 243

Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro, RJ e Assistente Nacional da Ação Católica Brasileira (1962-1965); Bispo de Lorena, SP (1966-1970); Bispo de Bauru, SP (1970-1990); Responsável pelo Secretariado de Educação da CNBB (1962-1968); Presidente do Departamento de Educação do CELAM (1967-1972); Consultor da Sagrada Congregação para a Educação Católica (1968-1973); Coordenador das "Jornadas Internacionais por uma Sociedade superando as Dominações", da CNBB (1975-1978); Delegado da CNBB junto ao CELAM (1972-1979); Membro da CEP da CNBB (1991-1995). 244 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.100. 245 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.102

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do país, junto do movimento; chamemo-lo, assim, de 'Realidade Brasileira', que dominou o panorama cultural do país nessa ocasião. Como afirma padre Antônio de S. Ferreira, 'arrancando-os da contemplação dos modelos europeus para levá-los a buscar uma identidade própria'( Ferreira, 1998 ) Em termos nacionais, parte do clero, denominado de 'esquerda' , engajava-se no movimento do início dos anos 60 em torno da promoção da cultura e da educação popular, da alfabetização e da conscientização sobre a realidade dos problemas nacionais. Vinculado à CNBB e mantido economicamente pelo governo federal, nasceu o MEB ( Movimento de Educação de Base ), que iniciou seu trabalho de alfabetização em 1961 e acabou se transformando num amplo movimento visando às mudanças sociais efetivadas pelo povo246".

A criação da Faculdade Salesiana ensejava uma nova realidade, talvez não suficientemente avaliada pelos formadores da época. O isolamento que os salesianos tinham até então mantido nos seus colégios, com pórticos internos e com sua formação em Institutos fechados, começava a ser comprometida pela fundação da Faculdade. Os alunos externos eram portadores de uma visão de vida diferentes dos seminaristas. As pressões nasciam discretas e aparentemente insignificantes. Mas as discussões sobre o mundo externo, até então censuradas, aos poucos iam adentrando no ambiente monástico247, nos encontros que inevitavelmente tinham com os externos. Os temas debatidos de uma era em crise adentravam no seminário pela portas da academia. Os problemas do mundo moderno sempre tinham sido debatidos dentro dos seminários, a partir porém de uma ótica unilateral, a da Igreja. Tomás de Aquino, já no século XIII, "permitira" ardilosamente que seus opositores "falassem" pela sua Suma Teológica no início de cada questão, essas argumentações apareciam, porém, para serem de imediato contestadas e rebatidas. O contato com os externos permitia acesso a visões divergentes, sem, porém, os antídotos contra elas. A universidade favorecia o encontro de dois mundos: o monástico, com suas práticas medievais e o laico, definido como mundano, representado, simbolicamente, pelas elites do Clube Comercial. As pressões da “cidade dos homens” se abatem sobre a “cidade de Deus”. Na mente dos seminaristas esse encontro é conflitivo, pois era o confronto de dois mundos que se tinham mantido 246

Ibidem. p.103. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.102 247 Usarei muitas as vezes os termos "monástico" e "conventual" num sentido largo, para indicar a vida regular da comunidade religiosa salesiana. Esses termos, porém, de fato não são próprios para o estilo da congregação que possui um estilo juvenil e festivo. O modo de vida dos salesianos foge deste modelo no seu sentido estrito.

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isolados até então, e não raras vezes dicotomizados como o bem e mal, o material e o espiritual, o essencial e o acidental. Essa visão é bem elaborada pelo testemunho de um ex. seminarista salesiano, quando numa releitura do passado, exorciza a experiência então vivida:

"O início da década de 60, até 64, foi um período de intensa movimentação da sociedade brasileira, sobretudo no que se referia à educação e à cultura popular. (...) fui para São Paulo enfrentar vestibular na Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena. Dada a minha situação de recém professo em uma ordem religiosa que iria "cuidar" da minha subsistência, sem que eu precisasse trabalhar para mim, eu podia dedicar-me ao estudo em tempo integral e fazer dois cursos: as licenciaturas em Filosofia e Pedagogia. ( ... )Da mesma forma como o conhecimento da Filosofia e as teorias da Educação sofriam uma seleção, os acontecimentos sócio-políticos e culturais do momento eram interditados, passando por um " filtro" dos mais rigorosos. Era necessário - assim percebo hoje - que a instituição se preservasse com seus dogmas, sua estrutura hierárquica, seu olhar atemporal dirigido para o núcleo central do Além, onde estava um deus desencarnado. Era necessário que nada perturbasse a afirmação de nossas subjetividades, quer deveriam estar, sobretudo absorvidas pela busca da Piedade. Uma Piedade - mais do que nunca com letra maiúscula - a ser cultivada sobre a renúncia dos prazeres 'mundanos', às pulsações da vida. Um amor a Deus alicerçado na renúncia e no desprezo pela natureza. Havia toda uma preocupação para nos isolar, como se o mundo fosse imundo, podendo portanto, contaminar nosso caminho, nosso ideal. Ali valia a expressão: "longe dos olhos, longe do coração". Estavam longe de nossa cogitação a efervescência de toda sociedade brasileira e os ideais de lutas que buscavam colocar o povo como protagonista de sua história, suscitando nele sua consciência e sua capacidade de reação, para que rompesse com a situação de dominação sócio-econômica, política, cultural e religiosa em que se achava mergulhado248"

O seminário pretendia afastar os religiosos dos leigos a fim de não os contaminar buscando assim preservar os valores religiosos intactos. Ainda que não freqüentando os mesmos ambientes, algumas formas de aproximação aconteciam gerando o intercâmbio entre as diversas realidades, fazendo com que conceitos elaborados dogmaticamente fossem postos em cheque, como nos testemunha padre Ferreira:

"Já antes da crise de 1968, o mundo que os superiores se esforçavam para manter longe do ambiente formativo penetrava no mesmo através da participação ativa dos seminaristas nos diversos Oratórios de Lorena e cidades vizinhas, das aulas - onde se seguia a tendência da época de salientar a realidade brasileira -, das conferências, dos 248

José Paulino da SILVA. Itinerário de Libertação. A educação na encruzilhada entre o discurso progressista e a prática conservadora. São Luís: Editora Sotaque Norte, 2002. pp.61-62.

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encontros regionais dos seminaristas religiosos do Vale do Paraíba e outras ocasiões mais. Além disso o Centro de Estudos Geográficos 'Alberto De Agostini' estava praticamente nas mãos dos alunos salesianos, tendo sido o início da carreira de liderança de Ismar Soares. Quanto à participação no Diretório Acadêmico, se no início este era constituído pelos seminaristas ( dado o fato que eram quase a totalidade da Faculdade ), passou depois, quando foi possível para os alunos externos. Porém os seminaristas continuaram a pertencer ao Diretório, tomavam parte nas Assembléias e eleições. Durante a gestão do Paulo Almada acentuou-se a participação dos seminaristas na vida e na política acadêmica, especialmente por ocasião de eleições. As Atas das visitas inspetoriais traduzem a preocupação criada por essa evolução. Não sei se a documentação existente permitirá realçar a grande influência sobre a formação da presença do P. Walter Bini, que insistia na articulação com a Igreja Local, no adequarse às grandes propostas de Buga e da Igreja latino-americana em geral, e na formação do espirito crítico dos alunos249".

Dentro da própria igreja, a JUC vai assumindo posturas de compromisso social. No final da década de 50 a composição dos alunos da faculdade vai aos poucos se alterando, aumentando a porcentagem de leigos. O movimento estudantil vai se organizando e tomando corpo.

"Aumentou a presença de estudantes brasileiros em congressos internacionais, proporcionando-lhes a oportunidade de conhecer o movimento pela reforma universitária, originário da cidade de Córdoba, até então pouco conhecido no país. ( ...) o entusiasmo brasileiro foi tanto que a União Nacional dos Estudantes promoveu o primeiro seminário Latino Americano de Reforma e Democratização do Ensino ( Salvador 1960 ) e três seminários, significativamente, produziram cartas respectivamente da Bahia e do Paraná, Estados em cujas capitais se realizaram250"

E é dentro dele que muitos contatos são feitos entre seminaristas e leigos quando são partilhados ideais de uma nova sociedade e o lugar de um novo estilo de jovem na sociedade. O padre diretor percebe o perigo revolucionário dessas novas idéias e procura afastar os estudantes seminaristas desse ambiente. Na vida do seminário o controle das idéias acontece, pois não se permite a entrada de jornais e revistas leigas. Os artigos aprovados são recortados e fixados nos murais com severo controle de seus conteúdos, para que não atentem contra a moral, os bons costumes e a fé católica 251. Nos 249

- Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunho escrito pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 05 de outubro de 2003. 250 CUNHA. In, Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.108. 251 Ainda que se esteja vivendo na década de 60, os regulamentos trazem a marca e o pensamento do Concílio de Trento e mesmo do Vaticano. I. Manoel Isaú no seu livro "Luz e Sombras, Internatos no Brasil" transcreve o regulamento do seminário de Mariana em 1845, onde se mantinha a total exclusão em que são mantidos os seminaristas e as rígidas normas que regem seu cotidiano. Os regulamentos eram os mesmo para crianças de 9 a 10 anos até jovens com mais de 20 anos. Cf. Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. p.521-523.

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encontros com alunos externos discute-se a realidade brasileira e toma-se contato com visões diferentes das apresentadas pelos formadores. O diretor preocupa-se em restringir a participação dos seminaristas dos movimentos estudantis, vendo neles um perigo de acesso a idéias contrárias à formação: "Examinada a participação dos alunos internos na vida social do Centro Acadêmico, resolvendo-se limitar tal participação no que condiz com sua condição de seminaristas252".

Ainda que a Faculdade vá se tornando cada vez mais leiga, permanece porém no imaginário de seus diretores o conceito de faculdade-seminário que preserva os valores do Tridentino, onde os clérigos devem estar afastados das influências do mundo. As primeiras pressões nascem dos leigos externos que desejam maior aproximação com a ala feminina, tendo inclusive aulas juntos. Muitos pais resistem à idéia, consideram ótimo ser o estudo de suas filhas distantes dos rapazes. Alguns diretores até acham viável essa solução por considerar que o mundo se moderniza e porque o estudo em salas comuns baratearia os custos. Esse tema chega a ser levado ao CTA 253 que opta por manter a estrutura do seminário com seu claustro inacessível ao elemento feminino. Segundo a Ata da Cg 1960, pg. 18. V. 1, se lê: "Depois de ampla discussão, embora a proposta fosse julgada tecnicamente viável, os membros da congregação, tendo presentes as determinações da entidade mantenedora da faculdade, baseadas principalmente no fato de que a seção masculina funciona no prédio de um seminário, conclui-se pela não aceitação da proposta. A estrutura fundamental da Faculdade Salesiana, como foi concebida por seus fundadores, tendo em vista as finalidades a quer se destinam, é a de uma só faculdade, com duas seções distintas e separadas: masculina e feminina. Unidade de Direção, administração, corpo docente principal, orientação doutrinal e pedagógica, dualidade de edifícios, corpo docente, auxiliares, ensino, horário". 254

Em 1960, oito anos após a fundação, adentrando numa época de grandes contestações, a congregação da faculdade mantém claramente sua finalidade de atender a um seminário, elaborado nos padrões tridentinos. São muito claras as afirmações de que a " seção 252

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.110. 235 – CTA - Conselho Técnico Administrativo. 254 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.122.

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masculina funciona no prédio de um seminário" e que a " estrutura fundamental da Faculdade Salesiana como foi concebida por seus fundadores" supõe "duas seções distinta e separadas: masculina e feminina (...) com dualidade de prédio". Os termos utilizados nesta decisão são bem claros: antes de tudo, a Faculdade Salesiana é um seminário e os formandos devem ficar alijados do contato com o mundo exterior, de modo especial com o elemento feminino. Apesar disto, no ano seguinte, o colegiado não consegue suportar as pressões e permite "ad experimentum" a presença feminina junto aos rapazes, mas sem contato com os seminaristas que continuam isolados como nos testemunha a ex. aluna Marília Nunes: "Fizemos Didática Especial à noite, na Faculdade masculina, numa sala do andar de baixo, sem qualquer contato com os seminaristas. Éramos aproximadamente seis moças cursando junto com os rapazes". 255

Não se deve porém pensar que prevalecesse uma postura retrógrada. A faculdade buscava, até com eficiência, "adequar-se aos novos tempos"

256

de mudanças, não só na

sociedade, mas também dentro da própria Igreja, onde o Vaticano II traçava novas linhas de relacionamento da Igreja com o mundo. "A Sociedade ia se tornando cada vez mais exigente quanto a participação e às transformações sociais"257 e existia da parte dos salesianos o esforço de adequação aos novos tempos, sem porém abrir mão daquilo que se considerava essencial como valores educacionais católicos e salesianos.

"A proposta educacional salesiana foi mantida, e, com ela, as características que marcaram a identidade de uma faculdade católica salesiana: trabalho da congregação com a educação e com os jovens, tendo como fundamento os ensinamentos de Dom Bosco e seu Sistema Preventivo, a orientação da Igreja para a educação; a busca de habilitação para o magistério; na formação de bons cristão e honestos cidadãos; na opção pela visão aristotélico-tomista. Continuava, também, do ponto de vista pedagógico, a preocupação com a formação integral de seus alunos. Essa tendência pedagógica foi muito bem demonstrada nas teorias e na prática pedagógica do padre Leôncio. Neste período um novo objetivo educacional foi acrescido: o da promoção humana, tão bem espelhado nos ensinamentos do padre Antônio da Silva Ferreira 258". 255

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.122. 256 Ibidem. p.146. 257 Ibidem. p.146. 258 Ibidem. p.148.

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A primeira década pode ser entendida como um período no qual se preservam intactos os valores da tradição salesiana, numa ótica aristotélico-tomista e uma visão romanizada da Igreja. A Década seguinte, a de 60, representará uma visível subversão dos valores religiosos e sociais até então elaborados como perenes e imutáveis. A legislação brasileira a respeito das universidades vai exigindo cada vez mais a participação da comunidade acadêmica como um todo. Em 1962 259 a faculdade procura adaptar-se à lei 4.024. Este primeiro processo é realizado por uma comissão de professores indicada pela diretoria, com a participação Pasin, presidente do DA. Já no processo de Reestruturação iniciado em 1967260, por exigência do MEC, com o fim de adaptar a universidade às novas realidades sócio-político e econômicas, existe uma participação geral de todos os segmentos. Pelo processo de Reestruturação, com a participação do corpo docente e discente pretende-se um efetivo envolvimento de todos na articulação de uma universidade mais democrática. Este projeto, porém, esbarra numa nova visão de mundo, de sociedade, de moral e de Igreja. Aquilo que parecia ser um projeto participativo, torna-se, por fatores conjunturais, um momento de crise de identidade da própria instituição nos seus projetos iniciais. Os paradigmas que até então sustentaram a civilização ocidental são postos na berlinda. A Restruturação desemboca numa crise de identidade não só da Faculdade, mas dos próprios paradigmas que sustentam a identidade salesiana no Brasil e na América.

259

Cf. Ibidem. p.112. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.122. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.122. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.159 260 Cf. Ibidem. p.159.

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CAPÍTULO 5 A DÉCADA DE 1960

Algumas datas emergem na historiografia como datas-símbolo de uma época ou período. Pretender que elas possam conter em si todo um processo é ingênuo. Eventos que eclodem nela de forma significativa são erupções, que ainda que parecendo tópicas, são de fato apenas a parte visível de altas pressões curtidas sob o “magma” da história. Assim como os vulcões em suas erupções manifestam as forças tectônicas no substrato terrestre, assim, eventos históricos, ainda que parecendo especiais e como divisores de águas, são apenas a visualização de todo um processo amadurecido e elaborado por muito tempo. A década de 60 somou um conjunto de fatos e episódios que lhe deram o rótulo de uma década de transformações estruturais da sociedade e do mundo. O Brasil, viveu essa época com suas conquistas e contradições.

A crise da Faculdade Salesiana tem por pano de fundo os episódios que marcaram os anos 60. Após a segunda guerra mundial o mundo polariza-se em duas vertentes: o capitalismo capitaneado pelos Estados Unidos e o socialismo pela URSS. A polarização ente socialismo e capitalismo é marcada por grandes tensões. Riqueza e pobreza se acentuam em nível planetário com países com um padrão de vida alto, enquanto outros vivem na miséria. No bloco capitalista, sobretudo em meio às classes operária e camponesa cresce a convicção que as riquezas geradas pelo sistema não serão acessíveis para os pobres, sendo que a má distribuição de renda faz crescer uma consciência de

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classe que se manifesta na eclosão de movimentos de cunho socialista em todo o mundo,

acreditando-se que a transformação da “realidade” não acontecerá sem a

revolução das classes oprimidas. Em contraponto a essas idéias cresce a repressão sobre todos os movimentos sociais de matizes marxistas. Os Estados Unidos elaboram uma política agressiva contra o socialismo, tanto no cerco de Cuba como na Guerra Fria. Com a campanha "Aliança para o Progresso" se distribui alimentos para os famintos, procurando-se amenizar, não tanto a fome, mas o perigo das classes oprimidas bandearem para ideologias de tendência socialista, comprometendo-se a hegemonia do capitalismo. Muitos jovens sentem-se atraídos para movimentos alternativos com rejeição do modelo econômico e social do ocidente, nutrindo simpatia ou mesmo engajando-se em movimentos ou mesmo na guerrilha contra o sistema capitalista e a sociedade burguesa. O marxismo não deixa de ser para a juventude uma proposta sedutora, enquanto pretende sanar as injustiças sociais e as formas de opressão dos detentores do capital. Assim, no campo político crescem os movimentos de esquerda e, com eles, a repressão, com a implantação de regimes totalitários que violam direitos humanos e ignoram princípios constitucionais, alinhados com os interesses do capitalismo internacional.

Outros jovens partem para movimentos de contracultura

como os hippies, que, desprezando o sistema vigente, assumem na sociedade uma vida marginal com o desprezo dos valores e dos objetos de consumo da sociedade, fazendo-se apologia das drogas e do amor livre. No campo moral rejeitam-se as tradições e costumes do passado, buscando-se autenticidade na defesa de liberdade sem regras. Woodstock, amor livre, uso da maconha, “paz e amor” são alguns dos ícones da rejeição dos modelos então existentes. No âmbito religioso cresce a simpatia pelas espiritualidades exóticas do oriente, afirmando-se a insuficiência do cristianismo em dar respostas existenciais aos novos tempos, seja por suas frias liturgias, seja por um código moral inadequado ao mundo moderno. De outro lado, a espiritualidade intimista das décadas anteriores, sobretudo capitaneadas pelo processo de romanização, vão dando lugar a visões mais inseridas dentro da realidade. Passa-se a criar uma mística do ação e

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da transformação social. A Teologia da Libertação 261, iniciada na América Latina, passa a ter forte impacto sobre a juventude. A Igreja passa a ser nicho que acolhe revoltados contra o sistema que, num período de repressão, aderem a ela, não tanto pela sua dimensão espiritual, mas por ser ela um dos poucos espaços onde existe alguma liberdade de expressão. Este fundo de cena nos mostra que esses eventos acabam por fazer algum eco no Vale do Paraíba, numa sociedade que ainda preserva um estilo de vida provinciano. A região de Lorena sofre também significativas transformações no seu modo de produção, que vai passando do agrícola para o industrial, com alterações significativas no modo de vida de parte de suas populações. Após 1930 o Vale conhece

261

A expressão “teologia da libertação”, já mostra o sentido norteador deste discurso teológico. O genitivo que aparece na expressão citada – DA LIBERTAÇÃO -, mostra-nos que a libertação é o horizonte regulador do discurso acerca de Deus, e, ao mesmo tempo, mostra-nos que o Deus do discurso é fonte de libertação. Esta se manifesta concretamente nos diversos momentos do processo histórico de um povo. Consequentemente, a teologia da libertação torna-se força geradora de ações que viabilizam uma práxis libertadora, segundo as necessidades advindas das diversas circunstâncias sob as quais um povo está submetido. “A teologia da libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que a fé deve ser vivida numa práxis libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta práxis mais autenticamente libertadora” (MONDIN, 1980, p.25). Neste sentido, o cristão é impelido a viver a práxis libertadora nas diversas épocas da história. O termo libertação foi cunhado a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina, a partir das décadas de 60/70 do último século. Os teólogos deste período, católicos e protestantes, assumiram a libertação como paradigma de todo fazer teológico. Vejamos o quadro social da América Latina no período originário da teologia da libertação: “O ambiente político é geralmente caracterizado pela presença de governos que administram o poder arbitrariamente em vantagem dos ricos e dos poderosos, fazendo amplo uso da força e da violência. (...) O ambiente econômico e social está marcado pela miséria e pela Marginalização da maior parte da população. Os recursos econômicos são controlados por um pequeno grupo de privilegiados. (...) No ambiente cultural se verifica ainda uma notável dependência da Europa e dos Estados Unidos. Na ciência como na filosofia, na arte como na literatura, quase nada é concedido à originalidade das populações latino-americanas” (MONDIN, 1980, p.25-26). O quadro de degradação apresentado na América Latina é o fundamento gerador do conceito de libertação. A libertação, então, é toda “ação que visa criar espaço para a liberdade” (BOFF, 1980, p.87). Ser livre, neste sentido, é não estar sob o jugo da lei alheia; é poder construir-se autonomamente. O processo histórico da América Latina foi e é dominado por diversas leis estranhas a ela. A América do Norte, em especial os EUA, e os países europeus, sempre impuseram aos latino–americanos seus valores, suas políticas, sua cultura, etc. Neste sentido, a libertação no seio da América Latina, é a luta pela liberdade da cultura, dos valores, da economia, da política latino-americanos, frente às diversas opressões advindas de um modelo imperialista que rege a práxis do hemisfério norte em suas relações com o hemisfério sul, especialmente como o povo latino–americano. Tal relação impõe ao hemisfério sul a cultura do hemisfério norte. Devido à pobreza e à nefasta degradação do povo latino-americano, a libertação deve ser entendida como superação de um processo de exclusão; já que esta é a conseqüência direta da relação norte–sul, onde milhões de homens e mulheres empobrecem e se deterioram porque ficam à margem (excluídos) do processo econômico e político norteado pelo capitalismo imposto pelos EUA e Europa. Alexandre

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um período de depressão, fruto da extinção da cultura cafeeira e perda do controle da presidência do país, até então dividida entre São Paulo e Minas Gerais, para as oligarquias do Sul. O Estado Novo com seu centralismo sufoca politicamente as elites locais. Sendo passagem entre as duas maiores cidades do país, o Vale fora fortalecido pelas políticas industralizantes e desenvolvimentistas dos governos da década de 50. Implantam-se numerosas indústrias às margens da Rodovia Dutra gerando significativo crescimento das cidades.

A industrialização muda a paisagem socio-econômica

regional, que, sem deixar de ser uma bacia leiteira, passa ter o aumento de circulação de riquezas, e a formação consistente da classes patronal e operária. O poder aquisitivo das cidades do alto Paraíba se consolida ao lado de estruturas arcaicas do campo, com cada vez menos pessoas para sustentá-las. As cidades sofrem influências significativas desta reestruturação, coabitando no mesmo ambiente o tradicional e o moderno, o artesanal e o industrial, o provinciano e o urbano que se mesclam numa simbiose exótica 262. Dentro do Vale continuam a existir também grupos humanos que preservam a cultura popular 263 que nem sempre com intercâmbios significativos com as populações urbanas, influenciadas pelo processo de industrialização 264. As classes médias urbanas são mais abertas em acolher o crescimento do mundo secular, ainda que não deixe de ter suas raízes culturais na religiosidade da região. Aliando-se à índole conservadora e tradicionalista do povo valeparaibano e à postura fechada dos salesianos, o impacto da industrialização e urbanização não interferem significativamente nas práticas Marques CABRAL. A Teologia da Libertação: O Cristianismo a Favor dos Excluídos. 2003 In. www.achegas.net/numero/dois/_acabral.htm 262 Hoje a cidade de Lorena apresenta ainda significavas contradições. Preserva-se um catolicismo tradicional mesclado com práticas da religiosidade popular mineira, com grande fluxo de povo nas folias de reis, reisados e procissões. As casas das periferias mantém, ainda, a forma de construção popular e com as paredes repletas de santos e fotos antigas, no típico molde mineiro. Ao mesmo tempo é uma cidade com imenso tráfico de drogas, mortes de jovens em atos violentos, prostituição às margens da Dutra. Os mesmos bairros que possuem as mais tradicionais práticas religiosas, conhecem no seu cotidiano tiroteios, áreas interditadas por gangs. Há pessoas vivendo em casas modestas como a 100 anos atrás. Moram na cidade professores universitários e analfabetos. Cientistas do INPE e agricultores. Três entidades de Ensino Superior ( Faenquil, Fatea e Unisal ) não distam de escolas rurais sem a menor infra-estrutura de funcionamento. 263 Apenas 25 km. Da Dutra, seja em direção da Serras do Mar ou da Mantiqueira, podem-se encontrar comunidades vivendo o modo arcaico de 150 anos atrás. 264 - Mereceria um estudo a questão da resistência cultural ao estilo de vida urbano-industrial de muitos segmentos da população valeparaibana. Mesmo operários de indústrias de ponta preservam tradições familiares na alimentação, nas práticas religiosas de seus antepassados.

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educacionais que continuam conservadoras. O maior abalo virá, paradoxalmente de dentro da própria Igreja, que com o Vaticano II apresenta uma nova eclesiologia e uma nova visão de relacionamento da Igreja com o mundo. Será, portanto, o concílio um dos significativos elementos desestabilizadores que justificará a busca de modernização da Faculdade Salesiana.

Passados quarenta anos do Concílio nossa visibilidade crítica é mais nítida, permitindonos ver os contornos e nuanças deste processo. O impacto de suas reformas, se desejadas e preconizadas por muitos segmentos da Igreja, não deixaram, porém, de dar sustentação qualificada a muitos reformadores. Suas idéias novas e inovadoras geram perplexidade e confusão, pois tudo o que é “novo” é interpretado como sendo fruto e sinalização do Vaticano II. O que muitas vezes agride praticas da religiosidade popular, que, marcada pelo tradicional, configura-se não tanto como uma mera crença, mas como uma verdadeira visão cultural do mundo e da vida 265. A aplicação prática do Vaticano II apresenta uma profunda ambigüidade266, porque é difícil na época aquilatar até onde os cardeais queriam realmente chegar com suas afirmações. Apesar dos documentos

265

Um exemplo desta não aceitação do novo modelo de Igreja pode ser sinalizado na cidade de Campos no Estado do Rio de Janeiro. Sob a liderança de Dom Castro Mayer, então bispo daquela diocese, houve a não aceitação das reformas conciliares com ruptura com a Igreja Católica Romana, unido-se esse grupo ao bispo francês Marcel Lefévre. Nestas regiões também foram fortes os movimento da TFP ( Tradição Família e Propriedade ). No Vale, a prudência de alguns bispos e o tradicionalismo de outros permitiu que formas tradicionais da piedade popular subsistissem em seu estado puro ao lado das reformas Aliás posso dizer que em algumas dioceses o espírito do Vaticano II sequer chegou a ser implantado. Houve concessões nas dimensões externas da liturgia, não porém na mentalidade tradicional. Existe uma certa influência barroca mineira na religiosidade do Vale do Paraíba. 266

Existe toda uma literatura sobre as mudanças doutrinais introduzidas ou promovidas pelo Vaticano II, pouco conhecida do grande público, mas que não é menos válida; uma antecipação, se assim podemos dizer, das tomadas de posição de muitos entre os Padres do Concílio, da minoria fiel ao dogma. Basta pensar no intelectual católico Romano Amerio, morto há alguns anos, ilustre especialista de Campanella e do pensamento ético de Manzoni, autor de uma magistral análise – traduzida em francês, inglês e espanhol – sobre os múltiplos desvios do pós-concílio, provocados na raiz (é a tese muito documentada de Amerio) pelas “novidades” ambíguas introduzidas pelo Concílio, algumas das quais com odor de heresia (1). Amerio e outros pesquisadores acentuaram as ambigüidades e duplo sentidos presentes nos documentos conciliares, que misturam as proposições fiéis ao dogma com outras que o alteram e algumas vezes o contradizem. E essa ambigüidade, já presente no ensinamento de João XXIII, ficou agarrada como uma película venenosa ao magistério pós-conciliar até hoje. Paolo PASQUALUCCI, [ s.l.d ]. http://www.capela.org.br/crise/anti.htm

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emanados267, sua aplicação prática permitiu as mais várias interpretações, e, por conseguinte, práticas. Foi um processo que escapou em algumas situações do controle da Igreja até então monolítica, dogmática e centralizadora, abrindo flancos que escaparam ao controle do papado e do próprio episcopado.

O impacto do Vaticano II deu

legitimidade aos reformadores para partirem para experiências religiosas, pastorais e sociais até então não pensadas. É preciso entender historicamente esta passagem da antiga para a nova mentalidade e para isso torna-se necessário um olhar para o passado, pois a Igreja com sua trama histórica oferece o espaço mental para compreender o impacto do concílio. A Igreja durante séculos havia configurado sua doutrina iluminada por uma visão platônico-agostiniana, até a consolidação do pensamento aristotélicotomista como matriz de formação do clero e das elites católicas. O Vaticano II teve uma conotação eminentemente pastoral268, isto, porém, não impediu que as tradições filosóficas e teológicas fossem abaladas por uma nova ótica que procurava o "aggiornamento" da Igreja frente ao mundo contemporâneo. Existiu, é verdade, leituras 267

Constituições: A Lumen Gentiun (LG) ilustra a estrutura da Igreja, enuncia a doutrina da sacramentalidade e colegialidade do episcopado, concede verdadeira igualdade a todos os fiéis; A Dei Verbum (DV) é dedicada à revelação divina e define o valor da Escritura e da Tradição; A Sacrosanctum Concilium (SC) estabelece os princípios gerais da reforma litúrgica, inovando profundamente a disciplina vigente; A Gaudium et Spes (GS) fala das relações entre a igreja e as comunidades políticas e ao instituto matrimonial: Decretos: O Inter Mirifica (IM) ocupa-se dos MCS, ressaltando a sua incidência na vida moderna e mostrando direitos e deveres dos fiéis e pastores de almas; Unitatis redintregatio (UR) trata da questão ecumênica, o restabelecimento da unidade dos cristãos com mais abertura e disponibilidade; O Orientalium ecclesiarum (OE) dirige-se às Igrejas orientais; O Ad Gentes (AG) está voltado às missões como atividade essencial da Igreja, obrigando a responsabilidade dos bispos; Christus Dominus (CD) trata do ofício dos bispos com relação à Igreja e formula a 1ª disciplina de direito comum das conferências episcopais, às quais é reconhecido verdadeiro e próprio poder legislativo; O Optatam Totius (OT) estabelece critérios para a formação dos sacerdotes e organização dos seminários; O Presbyterorum Ordinis (PO) trata da natureza e funções do ministério sacerdotal, trazendo como problemas concretos a distribuição do clero, assistência, previdência e instituição do conselho presbiteral; Perfectae Caritatis (PC) dá as linhas para a renovação da vida religiosa; O Apostolicam Actuositatem (AA) trata do apostolado dos leigos na sociedade contemporânea. Declarações: Gravissimum Educationis (AE) trata dos princípios fundamentais sobre a educação cristã, insistindo sobre escolas, faculdades e universidades católicas; Nostra Aetate (NA) fala da relação com as Igrejas não cristãs, mostrando a necessidade do diálogo e condenando as perseguições; Dignitatis humanae (DH) dedicada à liberdade religiosa, dizendo que todos devem ser livres na busca da verdade. Cf. SACRO CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II, Costituzioni, Decreti, Dichiarazoni. Milano: Editrice Àncora, 1966. passim. 268 "Illuminata dalla luce di questo Concilio, la Chiesa, com`è nostra ferma fiducia, si ingrandirà di spirituali ricchezze e, attingendovi forza di nuove energie, garderà intrepida al futuro. Infatti, com opportuni aggiornamenti e con la saggia organizzazione di mutua collaborazione, la Chiesa farà sì che gli uomini, le famiglie, i popoli volgano realmente l`animo alle cose celesti". GIOVANNI XXIII, Allocuzione per la Solenne Inaugurazione del Concílio. in Ibidem. p.1227.

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ambíguas do Vaticano II que permitiram várias interpretações e acasalamentos exógenos em níveis de idéias. Assim, por exemplo, a Teologia da Libertação pode encontrar no marxismo uma fonte de leitura histórica e religiosa da realidade e propor uma pastoral libertadora, ignorando que a matriz do pensamento cristão e marxista são inconciliáveis, pois, este parte do pressuposto materialista enquanto aquele do teísta. Essas interpretações ambíguas colocaram em crise toda a longa elaboração do pensamento cristão. Entender esse processo nos habilita a perceber como na década de 60 a Igreja fez uma guinada que abalou seus alicerces e conceitos elaborados até então. Construções filosóficas e teológicas edificadas e consolidadas durante séculos vão sendo demolidas. Já a partir do século IV, ao consolidar sua liderança no ocidente, a Igreja cada vez mais se fecha ao diálogo com a sociedade, ao configurar o pensamento do mundo feudal. No século XIII quando a visão platônica-agostiniana é questionada, na crise da Universidade de Paris, ela não dialoga com essa nova visão. A atitude do bispo de Paris, Étienne Tempier e do próprio papa é o de reprimir a nova visão aristotélica, vendo-a como herética e anti-eclesial. Já no século XV a reforma protestante se firma como uma contestação religiosa e política. O movimento da contra reforma ganha suas forma definitiva no Concílio de Trento, quando a Igreja procura recuperar o seu controle sobre o capital religioso e assegurar o seu prestigio político e espiritual, procurando qualificar melhor os seus membros e estabelecendo princípios e linhas férreas de conduta e de moralização de seus quadros. A fundação dos seminários, a regulamentação da vida religiosa, a romanização da liturgia e o fortalecimento do poder do papa e dos bispos são aspectos visíveis de sua busca de purificação. Muitos reformadores surgem, seja no campo da mística, seja no campo de ação como a Companhia de Jesus, braço espiritual ao lado do braço civil da Inquisição. A Igreja não abre mão de suas posições frente a um mundo em constante mudança. O humanismo, o iluminismo, o racionalismo serão correntes que irão organizar um novo pensamento da sociedade, às margens da Igreja que vai aos poucos se enfraquecendo como liderança e referência na sociedade, quando um mundo mais secularizado e laicizado vai aos poucos invadindo os espaços até então ocupados pela Igreja. A Revolução Industrial é uma ruptura definitiva com as antigas formas de organização da sociedade. Neste contexto, a

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Igreja cada vez menos consegue interferir na organização da sociedade, cada vez mais laicizada e com valores que nem sempre emanam dos princípios cristãos. É sintomático que somente em 1889 a Igreja posiciona-se, ainda mais uma vez tardiamente, com relação à questão social no documento Rerum Novarum de Leão XIII, quando Karl Marx e Engels já haviam elaborado teorias econômicas socialistas e o próprio liberalismo encontrara respostas para as relações do capital e trabalho. A Igreja entra paulatinamente em descompasso com o mundo que a rodeia não conseguindo acompanhar a crescente evolução de uma sociedade menos espiritualizada e

mais

tecnificada.

Se o século XIX assiste à corrida néo-colonialista sobre a Ásia e a África o século XX assistirá uma Alemanha industrializada, buscar através do expansionismo, e posteriormente, da guerra, mercados para atender sua necessidade de conquistar novas áreas para colocar sua produção. A Igreja, ainda que reconhecida como uma entidade respeitável, vai perdendo sua capacidade de diálogo ao preservar as estruturas herméticas da reforma tridentina, como uma forma de proteger-se e de sobrevivência. Mostra-se incapaz de adequar-se a um mundo com mudanças profundas. O século XX assiste o surgimento de regimes totalitários, a duas guerras mundiais, guerra fria com a polarização de dois blocos políticos, de um lado o marxismo ateu, e de outro o capitalismo sem compromissos com os valores espirituais. A Igreja sobrevive nesse contexto com a petrificação de atitudes tradicionalistas. Se suas estruturas herméticas lhe dão uma identidade, frente a um mundo em mudanças, o diálogo com a cultura moderna torna-se cada vez mais difícil. A liturgia triunfalista, a manutenção de cortes imperiais nas dioceses, o latim como idioma incompreendido, a distância do clero do povo faz com que a Igreja aparentemente se preserve das convulsões da época, mas fique cada vez mais distante das novas gerações, isto agravado com o crescimento dos meios de comunicação social com cada vez mais distantes do cristianismo. A uniformidade da Igreja porém é apenas aparente. Muitos contestam seu triunfalismo, existindo preocupação de sua adequação com as novas realidades. Os movimentos

bíblico,

litúrgico e catequético, a partir da década de 1930, buscam uma nova oxigenação,

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enquanto reconhecem as insuficiências das práticas tradicionais. O movimento bíblico destaca que os livros sagrados do cristianismo como elemento iluminador da vida cristã, em discreto detrimento da tradição. Busca-se que a catequese não seja uma formalidade de conhecimento da doutrina, mas uma inserção vital na comunidade eclesial. A liturgia é percebida como ritualística gerando entraves à vida cristã por seu rubricismo e falta de espontaneidade. Muitos teólogos e pensadores cristãos buscam uma igreja mais pastoral e menos institucional. Já na década de 50 muitos religiosos procuravam realizar um diálogo com o mundo, apesar da postura do papa Pio X contra o modernismo que tinham sido então uma sinalização de não diálogo com o mundo laico. A Igreja preservava no início dos anos 60 rituais, formas de autoridade, princípios e práticas pastorais oriundas do concílio de Trento. Se de um lado, um significativo grupo de pessoas continuavam fiéis à prática e à tradição, outros se sentiam distanciados dessas formas de autoritarismo e triunfalismo.Após a morte de Pio XII é eleito João XXIII que convoca o Concílio Ecumênico Vaticano II, que começa a ser preparado por comissões que trabalham em segredo e sem contato umas com as outras. Três tendências se manifestam: um primeiro grupo pretende a manutenção da Igreja como sua atual estrutura, apenas definindo respostas às necessidades do mundo moderno. Um segundo pretende algumas reformas conjunturais e, enfim, um terceiro, reformas estruturais da Igreja. Prevalecem afinal documentos que buscam realinhamento da Igreja frente ao mundo moderno. Alguns conceitos são implementados como uma nova visão de Igreja. Busca-se a simplificação da liturgia, procurando retirar sinais de triunfalismo. Para os bispos abandona-se o conceito de “príncipes da Igreja”, para o de pastor. A Lumem Gentium visualiza os cristãos como agentes da História, como povo de Deus, com a valorização dos leigos. Formata-se o conceito de ecumenismo que reconhece que Deus se manifesta através de outras religiões, não apenas cristãs 269 mas também pagãs, 269

"Per 'movimento ecumenico' si intendono le attività e le iniziative che, a seconda delle varie necessità della chiesa e oportunità dei tempi, sono sucitate e ordinate a promuovere l`unittà dei Cristiani, come sono: in primo luogo, tutti gli sforzi per eliminare parole, giudizi e opere che non rispecchiano secondo equità e verità la condizione dei fratelli separati e perciò rendono più difficile le mutue relazioni com essi; poi, in congressi che si tengono com spirito religioso tra i Cristiani di dverse Chiese o Comunità, il "dialogo" avviato tra esponenti debitamente preparati, nel quale ognuno espone più a fondo la dottrina della propra Comunione e ne presenta com chiarezza le caratteristiche. Infatti per mezzo di questo dialogo tutti acquistano uma cognizione più vera e uma più equa estimazione della dottrina e della vita di

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possuidoras de “lampejos do verbo270”. A Igreja volta-se para o mundo contemporâneo não para rejeitá-lo, mas para integrar-se com ele, reconhecendo que também as realidades terrestres fazem parte do projeto de Deus 271. O conjunto de idéias que emerge do Vaticano II representou uma revolução dentro da Igreja e nas suas relações com o mundo, devendo-se considerar isso não apenas nos documentos escritos, mas também de como foram entendidos, não importando, neste caso, se este entendimento foi ou não fiel a eles. Uma nova mentalidade eclode dentro da Igreja com a perda do referencial antigo e nem sempre com a posse de um novo. O impacto é tremendo. Grupos radicais atribuem ao Concílio a desagregação da Igreja.

"Não obstante a condenação, a heresia modernista se manteve escondida na espera de “tempos melhores”, que já começaram a aparecer nos anos vinte e trinta do século passado, com a Nova Teologia, sobretudo na Alemanha e na França. Essa Nova Teologia retomou e desenvolveu os erros do modernismo, conseguindo em seguida penetrar amplamente nos textos do Concílio, não obstante as censuras e as condenações (aliás moderadas) de Pio XII, evidentemente partilhadas por alguns setores, tanto do alto quanto do baixo clero (porém mais do alto clero). Isso pôde acontecer porque o Vaticano II quis se declarar como um simples concilio pastoral, que não pretendia pois definir nem dogmas, nem erros. (Nota lida “In aula” dia 16 de novembro de 1964), renunciando assim de modo inusitado ao carisma da infalibilidade, intrínseca ao magistério extraordinário de um autêntico concílio ecumênico. (A natureza jurídica do Vaticano II ficou então indeterminada). Essa singular “capitis deminutio – redução da autoridade” de sua parte tem por conseqüência que a crítica das novidades introduzidas por esse Concilio não contradiz o dogma da infalibilidade que o Concilio não requerei nem proclamou. O castigo não se fez esperar. As igrejas, os conventos, os seminários se esvaziaram. Os padres e as freiras parecem uma espécie em via de entrambe le Comunioni, e inoltre quelle Comunioni conseguono uma più ampia collaborazione in qualsiani dovere richiesto da ogni coscienza cristiana per il bene comune e, talora si può, convengono a pregare insieme. Infine, tutti esaminano la loro fedeltà alla volontà di Cristo circa la Chiesa e, com`è dovere, intraprendono com vigore l`opera di rinnovamento e di riforma." PAOLO VI, Unitatis Redintegratio, in. SACRO CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II, Costituzioni, Decreti, Dichiarazoni. Milano: Editrice Àncora, 1966. p.361. 270 "Daí tempi più antichi fino ad oggi, si trova presso i vari populi uma certa sensibilità a quella forza arcana che è presente al corso delle cose e agli avvenimenti della vita umana, ed anzi talvolta um riconoscimento della Divinità Suprema o anche del Padre. Sensibilità e conoscenza che compenetrano la loro vita di um profondo senso religioso. (...) La Chiesa Cattolica nulla rigetta di ciò che è vero e santo in queste religioni. Essa considera com sincero rispetto quei modi di agire e vivere, quei precetti e quelle dottrine che, quantunque in molti punti differiscano da quanto essa stessa crede e propone, tuttavia non raramente riflettono um raggio della verità che ilumina tutti gli uomini. PAOLO VI. Nostra Aetate, in. Ibidem. p.587. 271 "Le gioie e le speranze, le tristezze e le angosce degli uomini d`oggi, dei poveri soprattutto e di coloro che soffrono, sono anche le gioie e le speranze, le tristezze e le angosce dei discepoli di Cristo, e nulla vi è di genuinamente umano che non trovi eco nel loro cuore. (...) Perciò essa si sente realmente e intimamente solidale com il genere umano e com la sua storia". PAOLO VI, Gaudium et Spes, in Ibidem p.969.

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extinção e aqueles que ainda há parecem, em grande número, possuídos por uma mentalidade de protesto, inclinados à rebelião e às reivindicações sociais, mais à política do que ao cuidado das almas. A unidade católica foi – de fato - dissolvida em “igrejas” nacionais e continentais, governadas por suas Conferências episcopais respectivas. O mundo católico vegeta em um clima de anarquia substancial, contra o qual a Santa Sé se mostra sempre impotente. (E não poderá começar a remediá-lo, segundo nós, enquanto não forem retirados os obstáculos que a própria Santa Sé colocou ilegitimamente contra a livre celebração da verdadeira Missa de Rito Romano antigo, da verdadeira Missa católica, declarada perpetuamente válida por são Pio V e nunca ab-rogada por quem quer que seja, e que portanto não cessou jamais de ser legitimamente celebrada, mesmo que seja por uma pequena minoria, a partir de 1969, ano da introdução do Novus Ordo). O Catolicismo não atrai mais ninguém, seu prestígio nunca esteve tão baixo enquanto que os católicos apostasiam em número cada vez maior. As nações católicas estão tomadas pelo indiferentismo religioso o mais avançado e por uma espantosa dissolução moral e civil, cujos germes preexistiam em virtude do materialismo e do ateísmo difundidos de maneiras diferentes, mas complementares, pelos dois modelos dominantes, o americanismo e o comunismo. Em seguida, nas duas últimas décadas, uma migração assassina de povos, principalmente muçulmanos, começou a se abater sobre as nações católicas, assim como sobre todo o resto do “Ocidente”. (...) Ousemos esperar que as nações católicas voltem reconhecer como suas a obrigação de “tudo instaurar em Cristo”: a restauração do catolicismo como doutrina e forma devida, para a nossa salvação e para a salvação do mundo, de modo a poder um dia reconhecer-se inteiramente num Papa que ouse, finalmente, elevar bem alto o estandarte da Fé272.

A Igreja, porém, acentua a valorização do homem como pessoa livre e que deve ter respeitada sua autodeterminação. Sua liberdade 273, individualidade e pessoalidade estão acima das instituições, inclusive convidando os cristãos ao diálogo, à compreensão e à abertura. Rompe-se com a visão monolítica de uma Igreja-Instituição. No lugar do conceito de " rebanho de Cristo", imagem mais passiva, torna-se mais usual o conceito de "Povo de Deus", protagonista da história. Na Eclesiologia abandona-se uma visão de Igreja piramidal para se dar lugar a um conceito de comunhão e participação. A visão de um poder centralizado é atenuada por uma visão de colegialidade. A Bíblia é destacada como fonte da vida e da verdade, deixando-se em segundo plano, ainda que não negada,

272 273

Paolo Pasqualucci. [ s.l.d ] In . http://www.capela.org.br/Crise/anti.htm

"Nell`età contemporânea gli uomini diventano sempre più consapevoli della dignità della persona umana e cresce il numero de coloro, i quali esigno che gli uomini possano agire di propria iniziativa et in virtù della propria responsabile libertà, mossi dalla coscienza del dovere e non pressati da misure coercitive". PAOLO VI, Dignitatis Humanae, in SACRO CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II, Costituzioni, Decreti, Dichiarazoni. Milano: Editrice Àncora, 1966. p.729.

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a intermediação da hierarquia. A Igreja deve inserir-se nas realidades terrestres, entendidas, não como opostas ao sagrado, mas obra de Deus. Os leigos são valorizados, como protagonistas da Igreja e povo de Deus em marcha.

"L`apostolato dei laici, infatti, derivando dalla loro stessa vocazione cristiana, non può mai venir meno nella chiesa. (...) I nostri tempi poi non richiedono minore zelo da parte dei laici, anzi le circostanze odierne richiedono assolutamente che il loro apostolato sai più intenso e più esteso Infatti l`aumento costante della popolazione, il progresso scientifico e tecnico, le relazione umane che si fanno sempre più strette, non solo hanno allargato straordinariamente lo spazio dell`apostolato dei laici, in gran parte accessibile solo ad essi, ma hanno anche suscitato nuovi problemi, che richiedono il loro sollecito impegno e zelo274"

Respeita-se a busca de Deus realizada por outras religiões, seja no documento “Unitatis Redintegratio” quando prevê que a Igreja de Cristo fragmentada, pela separação do oriente e da reforma protestante, possui elementos de unidade. E no “Nostra Aetate” no qual valoriza as religiões não cristãs como portadoras de "semente do verbo". Essas poucas idéias elencadas representam umas subversão radical das leituras eclesiológicas e dogmáticas feitas até então. Tais idéias não foram fruto de consenso tão simples, mas fruto de forte ativismo articulados entre os grupos275 no Vaticano II, como o grupo

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PAOLO VI, Apostolicam Actuositatem, in SACRO CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II, Costituzioni, Decreti, Dichiarazoni. Milano: Editrice Àncora, 1966. p.647. "Uma composição internacional e eclética. Mas o resultado a que chegaram – totalmente assíncrono, comparado com o andamento indicado por João – constituiu a primeira prova evidente de que uma representatividade assaz universal geograficamente, não era critério suficiente para a renovação a que o Concílio houvera devido tender. Os textos resultantes permitiam ajuizar que o Concílio seria uma reafirmação do todo o dogma e de toda a moral..." Prossegue Zizola, citando Antoine Wenger (à época do Concílio, diretor do jornal La Croix, e o único jornalista admito na basílica de S. Pedro. Autor do livro "Vatican II, Chronique de la première session", Centurion, Paris 1963):"O Concílio, nos moldes que o Papa deixara entrever, era coisa bem diversa daquilo que os trabalhos preparatórios deixavam prever. Todos os que tinham conhecimento deste trabalho ficavam impressionados pelo caráter dogmático, acanhado, escolástico dos textos. Muito ao invés de representarem um progresso, algumas formulações referentes à Revelação, à ordem moral, aos problemas do matrimônio, acabavam sendo um retrocesso, quando comparadas à teologia formulada pelo Magistério, e especialmente pelo Papa Pio XII." Porém, continua Zizola, "Se é verdade que, de fato, por baixo da casca do organismo eclesiástico, uma surda germinação evocava um Concílio renovador, e secretamente lhe preparava o terreno, por outro lado também é verdade que o anúncio do Concílio apanhara o mundo católico despreparado. Poucos eram os espíritos que tinham consciência da vastidão da crise religiosa em curso; correntes* reformadoras pulsavam no corpo do catolicismo, mas de forma erradia, clandestina, farejadas por rastreamentos intelectuais mais ou menos declarados: o anúncio do Concílio foi a primeira oportunidade para essas correntes* encontrarem um centro de condensação e manifestação, de reabilitação e expressão pública a 275

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progressista, entre os quais faziam parte Dom Helder e teólogo Congar 276, entendendo a necessidade de uma Igreja que realmente interagisse com um mundo em profundas transformações. O realinhamento da Igreja com o “mundo” é acolhido com muita prudência e estudo, mas possui um impacto forte sobre a Instituição. Sob a luz dos documentos conciliares muitas atitudes são tomadas, não raras vezes radicais por parte de membros do clero. A falta de processualidade na implantação da mentalidade dos documentos ocasionou a realização de experiências nem sempre bem sucedidas: muitos padres abandonam os símbolos religiosos, quebram normas litúrgicas, realizam novas experiências pastorais acreditando que a Igreja agora atualizada possui serviço oficial de toda a Igreja”. (Cf. G. AZIZILA. A Utopia do Papa João. São Paulo: Loyola, 1983. pp.307-309). 276

Outro feito decisivo de D. Hélder Câmara no Concílio foi conseguir que os melhores teólogos e peritos ali presentes começassem a trabalhar em conjunto e em estreita colaboração com os bispos reunidos no "Ecumênico" e na "Igreja dos Pobres". Esse mesmo grupo de teólogos prestou inestimável serviço aos bispos do Brasil, por meio das conferências da Domus Mariae, que na soma das três últimas sessões alcançaram o respeitável número de 80, às quais devem ser acrescentadas outras dez da primeira sessão. A essa força tarefa, já esboçada entre Dom Hélder, Larrain e o Pe. Houtart de Lovaina na Bélgica que desempenhou o papel de seu secretário, foi dado o nome de "OPUS ANGELI", a Obra do Anjo. Esta trabalhou durante as sessões mas também nas inter-sessões, no sentido de oferecer textos alternativos aos esquemas provindos da etapa preparatória do Concílio, de preparar intervenções para serem lidas na aula conciliar, de assessorar os bispos nas questões mais complexas, de elaborar "modos" substitutivos para determinadas passagens dos esquemas submetidos a votação. Um dos teólogos mais importantes deste século, o Pe. Yves Congar e que colaborou estreitamente com Dom Hélder e com os grupos por ele animados, tornando-se um pouco o coordenador do "Opus Angeli", percebeu logo no primeiro encontro entre ambos, a importância de Dom Hélder e de sua liderança que aportava ao Concílio algo mais que faltava aos outros: uma "visão", no sentido do visionário, daquele que enxerga longe e com largueza de vistas. Congar anota no seu diário a 21 de outubro de 1962: "Puis arrive Hélder Câmara, secretaire du CELAM. C’est extraordinaire: aujourd’hui même, à midi, ils ont parlé de moi et ont dit qu’il faudrait me faire venir. Après avoir bavardé un bon moment, nous allons dans une salle, où se réunissent avec nous une douzaine de jeunes évêques. Ils m’interrogent. Mgr. Helder même: un homme non seulement très ouvert, mas plein d’idées, d’imagination et d’enthousiasme. Il a ce qui manque à Rome: la ‘vision’ . Dias depois, em circular à sua "família" de colaboradores no Rio de Janeiro, Dom Hélder comentando sobre as pessoas que mais o haviam impressionado como homens de Deus em Roma, chega ao teólogo dominicano: "- o Pe. Yves Congar, cuja visão da Igreja, cujo ecumenismo, cuja caridade e cuja cultura extraordinária, brilham ainda mais pela humildade que ele encarna." Dom Hélder, finalmente, alcançara um agudo senso de que mais do que as palavras e documentos, o que realmente chegava às pessoas e as tocava, eram determinados gestos e símbolos e que era pelas imagens que se fixava no povo o sentido do Concílio. Estava sempre em busca destes gestos que pudessem causar impacto. Ao Papa João XXIII, havia proposto uma celebração final que abandonasse o fasto barroco da Roma pontifícia e primasse pela simplicidade e profundidade dos gestos. Repete a mesma proposta ao Papa Paulo VI e exulta quando alguns destes sinais são por ele incorporados à celebração de encerramento do Concílio. Cf Zildo. Hélder ROCHA. O Dom; uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999.

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instrumental eficaz de diálogo com o mundo. Em poucos anos porém milhares de sacerdotes abandonam a igreja, considerando-a insuficiente para seus questionamentos espirituais e afetivos. Alguns seminários levam seus seminaristas a integrarem-se nas periferias em busca de inserção no meio do povo. Grupos denominados progressistas integram-se em lutas sociais, em atividades horizontais, perdendo-se ou menosprezando certas tradições do próprio povo, que não raro se sente ferido por atitudes contrárias às suas práticas tradicionais. O impacto sobre a igreja é tremendo, porque gerador de perplexidade. Existe dificuldade das pessoas se situarem, de se entenderem dentro do novo contexto de igreja. Alguns grupos optam por uma radicalização de retorno a praticas tradicionais, outros rompem com toda a manifestação do sagrado, buscando um comprometimento religioso mais no âmbito social. Muitas congregações religiosas perdem o referencial de suas regras, diante das mudanças. É bem verdade que tais interpretações não nascem de Roma, mas são desdobramentos e interpretações do que seria o “espírito do concílio” Numa década de desestabilizações o edifício monolítico da Igreja quebra-se com releituras que comprometiam sua auto compreensão. A busca de uma identidade eclesial é um problema pelo qual passam todas as instituições católicas com intensidade diferenciada em lugares diferentes. Muitos cristãos e religiosos postos em crise pelas mudanças acabam por não encontrar na Igreja o referencial e respostas para suas vidas, já que ela mesma estaria num processo de perda de identidade. Em meio a esta crise de valores da sociedade e de mudanças no seio da igreja, muitos perdem os referenciais. Assim posturas diferenciadas e até antagônicas, seja numa linha de conservadorismo, seja na linha da modernidade, podiam se auto justificar com critérios dos documentos conciliares.

A Faculdade Salesiana viverá, como a maioria das instituições católicas, no epicentro dessas mudanças, agravadas na década de 60 pelos movimentos estudantis, greves, regime autoritário e mudança de valores morais. Talvez se nesta década os diretores possuíssem normas arcaicas, mais estáveis, poderiam com maior tranqüilidade ter tomado posições. Mas não foi o que aconteceu. Como ambiente de ensino superior, Lorena viveu os embates políticos, econômicos, socais e eclesiais desta época. O

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resguardado mundo do seminário é invadido por um novo conceito de Igreja, diferente daquele proposto pelo projeto da Romanização no final do século XIX e inicio do XX. As "verdades" definidas como absolutas passam a ser questionadas. A falta de estabilidade aprofunda crises. A Igreja apresenta propostas de uma nova forma de se ler a realidade. A distância do tempo nos dá uma visão global do processo. Os que viveram, porém, neste momento sentem-se atordoados e desnorteados por tantas mudanças de referenciais, estando os próprios formadores divididos e atônitos diante de tão diversas realidades. Este é o entorno histórico dentro do qual explodira a crise da racionalidade.

Talvez até hoje não se tenha chegado à conclusão do que realmente o Vaticano II quis dizer. Seus documentos recém publicados na década de 60, ainda não bem interpretados e entendidos, abriam espaço para avanços na prática religiosa pastoral sacramentando novas atitudes e modelos de Igreja, gerando tensões entre progressistas e conservadores. Se dentro da Igreja existem mudanças de referenciais, também o Vale do Paraíba, no lastro das mudanças da sociedade na década de 60, se ressente com uma nova configuração. Vale leiteiro, sofre a influência desevolvimentismo proposto por JK, com indústrias que se implantam e vão formando uma classe operária bem definida. O prestígio dado até então aos antigos fazendeiros, vai sendo transferido para uma nova classe industrial e comercial. A Rodovia Dutra consolida-se como artéria comercial entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Uma mentalidade urbana industrial começa a se implantar com novos valores e novas visões de vida e novas formas de viver. Em nível de Igreja, ainda que conservando vigorosamente manifestações do catolicismo tradicional e popular, coabitam também novas tendências aliadas à Teologia da Libertação e aproximação com a Igreja progressista. Lorena está meio caminho entre o alto Paraíba277, região mais desenvolvida e o fundo do Vale278, área econômica e culturalmente estagnada, representando, portanto geográfica e culturalmente o meio caminho entre o passado e o presente, entre a modernidade e tradição. A sociedade local vive de tradições e a universidade representa o progresso. No nível eclesial a diocese de Lorena neste período se mantém ligada ao catolicismo tradicional, mas possui como 277

Cidade de São José dos Campos, Taubaté, Jacareí, Caçapava.

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bispo a Dom Cândido Padin, alinhado com as forças progressistas da Igreja, com visível simpatia com os movimentos sociais. Lorena é, pois um lugar de tensões na década de 60. Ao congregar numa faculdade do interior jovem oriundos de diversas regiões do Brasil, possibilita que aí a mentalidade provinciana local seja oxigenada com idéias e visões de pessoas e grupos que possuem contato e experiência com regiões de maior progresso econômico e cultural. Como a faculdade de Lorena prepara professores e diretores salesianos para todo o Brasil, as idéias aí ventiladas e veiculadas terão eco em todos os colégios salesianos do Brasil. Lorena possui, para os locais onde os salesianos implantam suas escola e obras sociais, importância especial, enquanto local irradiador de idéias e formador de uma mentalidade. Entre os salesianos educadores da faculdade existirão os que procurarão preservar o modo e os valores do passado e os que estarão mais alinhados com as novas mentalidades do presente. Nesta década a evolução dos acontecimentos irá problematizar uma das colunas fundamentais da Filosofia educacional salesiana, como elaborada por Dom Bosco no século XIX: a Razão. O entendimento da racionalidade com um enfoque diferente do dado pelo fundador parecerá comprometer a própria identidade da congregação e da pedagogia salesiana na sua elaboração primeira. Será uma crise que atingirá esse paradigma educacional, como uma base do que até então foi professado como referencial educacional pelos salesianos.

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Cidades de Cruzeiro, Lavrinhas, Queluz, S. José do Barreiro, Areais, Silveiras, Bananal.

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CAPÍTULO 6 A CRISE INSTITUCIONAL

A morfologia do Vale do Paraíba imprime-lhe uma profunda vocação de "ser caminho". Foi local de passagem de indígenas, bandeirantes, aventureiros em busca de ouro e de tropeiros, serpenteando a Serra do Mar, utilizando o rio para transporte e pesca e subindo as vertentes da serra da Mantiqueira. O rio perdeu sua importância como via de transporte, com a implantação da ferrovia e posteriormente da Via Dutra, interligando Rio e São Paulo. Às margens dela cresceram cidades impulsionadas pelas políticas econômicas de industrialização, assumidas pelos governos de Vargas e Juscelino. Nas vertentes das serras, em inumeráveis pequenos vales, persistiram comunidades que não adentraram na modernidade, fazendo desta área uma região de contrastes.

O progresso às margens da Dutra atraiu populações do interior do Vale e do sul de Minas Gerais em busca de emprego, estudo e melhores condições de vida. E, por ser caminho entre o Rio de Janeiro e São Paulo, a região é espaço natural de circulação de novas idéias e percepções da realidade. No Vale do Paraíba, paradoxalmente, coabitam o moderno e o antigo, o tradicional e contemporâneo, o misticismo e o materialismo marcando essa região por profundos contrastes. Por sua localização estratégica, a região mostrou-se especialmente sensível aos eventos históricos da década 60. São mudanças significativas nos campos, econômico, político e cultural.

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A década de 60 é marcada por eventos que se refletem sobre a região. O governo de Juscelino Kubitschek é marcado pela euforia no futuro e na modernização do Brasil. Se Getúlio fizera emergir uma indústria de base que dava sustentação a uma crescente industrialização, os anos de Juscelino foram marcados pelo maior acesso a bens de consumo e pela empregabilidade na indústria e na construção civil. No imaginário nacional, a construção de Brasília transmite a idéia de força e de capacidade criativa. Mais do que uma cidade moderna, sinaliza um novo tempo e uma nova mentalidade. Suas linhas arrojadas e modernas, o uso e abuso das formas, que dão plasticidade ao concreto, suas colunas e vigas “pouco fincadas no chão, flutuando no ar" dão a visão de um novo tempo. Brasília é, no imaginário nacional, a superação do Brasil arcaico, simbolizando o poder criativo, o novo, o moderno, o atual. Acredita-se num novo tempo:

"A auto estima do brasileiro esteve refletida na Música Popular Brasileira, nos textos dos teatros de conteúdo político e engajado como os que derivam da produção do Centro Popular de Cultura da UNE, e nas telas do Cinema Novo, a propor uma interpretação que espelhasse a perspectiva popular sobre a história e os problemas brasileiros, além da conquista da Copa do Mundo de futebol de 1958 na Suécia exemplo da introdução das camadas populares no cenário nacional. (...) o Programa de Metas procurou sistematizar essas contribuições dotando-as de operacionalidade (...) reuniu-as em seis grupos: energia, transporte, alimentação, indústria de base, educação e a construção de Brasília, meta-símbolo do entusiasmo de que se valeu o governo para conseguir a adesão da sociedade” 279.

Mas se de um lado deslumbra, de outro denuncia também um Brasil de desigualdades com suas contradições sociais280. O Cinema Novo, saindo das chanchadas, começa a ter o povo e sua realidade social como tema de suas produções 281, mostrando que os bens da 279

Lincoln de Abreu PENNA. República Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. pp.230-235. 280 "O impulso modernizador empreendido ao longo do governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira fez aflorar de maneira mais acentuada os contrastes sociais". Ibidem. p.248. 281 "Sucesso de público, as chanchadas era vistas com certo menosprezo pela crítica especializada, voltada ora para os lançamentos grandiosos dos estúdios MGM norte americana, ora para o realismo italiano do pós guerra. Mas quando Nelson Pereira dos Santos organizou a equipe de produção, Rio 40 Graus, em 1955, com grande Otelo, e dois anos depois lançou seu longa metragem, Rio Zona Norte, focalizando o cotidiano do subúrbio carioca, estava fundado o Cinema Novo. Otelo, consagrado pelas grandes comédias da Atlântida, agora vivia um personagem do universo social brasileiro, com suas dificuldades e sua maneira hábil de conviver com as sucessivas adversidades que costumam se abater sobre a sofrida população dos bairros proletarizados da cidade. (...) Ao abrir essa senda, o principal criador do Cinema Novo, integrava a sétima arte ao contexto socio político e cultural de um país em busca da afirmação

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industrialização não são divididos de forma igualitária. A crescente urbanização, ao aglutinar populações, mostra mais visível os desníveis sociais, favorecendo a manifestação de descontentamentos. O início da década de 60 é, pois marcado por greves e paralisações nos meios urbanos 282, com visível insatisfação social. A classe operária quer melhores condições de vida283 enquanto que a classe média sente-se ameaçada pela instabilidade do país. Com a urbanização a consciência crítica tende a se ampliar com a valorização do subjetivo, que assume uma forma de resistência, contra as injustiças. Os movimentos operários do início da década, as lutas campesinas e a Teologia da Libertação levantam a bandeira da conscientização das massas e das lutas pelos direitos sociais, procurando-se discutir e entender a “realidade Brasileira”. Na Faculdade Salesiana os jovens integram-se na luta para superar as injustiças do país.

"Nossos alunos iam para esses bairros menos favorecidos, próximos da faculdade, dar aulas à noite, e, às vezes, durante o dia, para ensinar a comunidade a ler e escrever", conta irmã Iracema. Ela esclarece que o método Paulo Freire parte da necessidade do pobre, do injustiçado e do oprimido, despertando-o para uma visão mais abrangente e politizada da realidade. "As palavras brotam dessa necessidade e têm uma carga de conscientização muito grande. Então em poucas horas, eles aprendem a ler e a abrir os olhos para tornarem-se mais ativos no meio onde vivem", diz284".

nacional e de desenvolvimento de suas potencialidades. Seguiram-se obras de discípulos seus como Glauber Rocha e Cacá Diegues, todos investindo no rico manancial da problemática social de um país que parecia acordar do seu berço esplendido". Lincoln de Abreu PENNA. República Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. pp.232-234. 282 Neste período também começam a se organizar as Ligas Camponesas, que se apoiam em princípios marxistas para a reforma agrária. 283 "( ... ) predomina uma consciência singular, no proletariado urbano e industrial. A composição heterogênea e a formação recente, associadas às exigências da política de massas conduzidas por outros grupos sociais, favorecem a criação e a persistência de uma consciência de mobilidade. Isto é, favorecem a formação de um comportamento individual e grupal voltado principalmente para a conquista e consolidação de posições na escala social Durante esse período e nessas condições, a atividade política do proletariado - como coletividade- está muito mais organizado em termos de consciência de massa". O. IANNI. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [ s. d ] p. 61. 284 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.57

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Muitos jovens engajam-se na luta pela reforma da sociedade, cultivando uma mística285 revolucionária acreditando na mudança da Sociedade286. Este período apresenta uma tendência de ruptura com a visão européia, buscando-se mais referencias Nacionais.

No Vale do Paraíba, região eminentemente católica, o Concílio revoluciona as relações dos cristãos com a realidade, enquanto assume uma nova visão com um otimismo antropocêntrico, onde o respeito pela subjetividade é um dos pontos marcantes dos seus documentos.

"Há uma mudança de perspectiva a partir do Vaticano II, expresso no Documento Gaudium et Spes, "espelho do Vaticano II: Nele a vocação é voltada para o homem, para sua cultura integral, para a humanidade inteira, tornando-se o homem o centro do mundo, gerando um novo humanismo. A educação católica após o Vaticano II passou a ter as seguintes linhas orientadoras: o alargamento do campo da educação, prevendo a educação ao invés da escola, torna-se cristã em vez de católica, "esta escolha determina o plano inteiro e o espírito do que se segue"; o segundo princípio é orientá-la à participação e à solidariedade, com o fim de preservar a dignidade humana; a terceira linha de orientação está na integração harmoniosa na cultura da técnica a serviço da educação; é a preocupação de fazer da pessoa humana o dentro do mundo, como afirma o papa Paulo VI na "Populorum Progretio:” o que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegara humanidade inteira. (...) a escola católica procura criar uma atmosfera de comunidade escolar animada pelo espírito evangélico. Os valores propostos pela Igreja pós concílio, tais com diálogo, bem comum, solidariedade, dignidade da pessoa humana, foram incorporados ao projeto salesiano287".

Essa explícita "teologia das realidades terrestres" ganha maior visibilidade nos mentores da Teologia da Libertação, sobretudo nos documentos de Medelin e Puebla. A Teologia da Libertação realiza a aproximação, quando não fusão, com elementos marxistas. A

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Esta "mística" não está apenas nos ativistas políticos. Ela torna-se uma mentalidade de uma geração, mesmo que não seja engajada num processo mais comprometido. A simpatia com esse ideário cria a mentalidade de uma época e/ou de uma geração. . 286 "Luta interna, quando feita longe do movimento social, acaba sempre dando em cisão. (...) Às vezes o vencido se põe em retirada, rediscute seus métodos e acaba achando um conforto para sua própria incapacidade de explicar as coisas. Fernando GABEIRA. O Que é Isso, Companheiro. Rio de Janeiro: Codecri, 1980. p.29. 287 Padre José de Vasconcelos, presidente do Conselho Federal de Educação, em palestra proferida na Semana comemorativa do Jubileu de Palestra da Faculdade Salesiana, com o tema, Perspectivas da

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luta pelo oprimido, apoia-se não mais em modelos assistencialistas, mas libertários. Na Faculdade Salesiana os formadores dos seminaristas dividem-se, lutando uns para manter os formandos longe dessas influências politizadas, com o controle rigoroso sobre as informações do mundo exterior, com censura de jornais e revistas, enquanto outros, como o padre Nelo Trisotto288 apresentam simpatias por vertentes socialistas. Padre Nelo mostrava-se favorável à revolução e sistema político cubano, utilizando-se dos murais do seminário para fixar recortes de jornais de linha de esquerda, favoráveis a Cuba e à URSS, e contrários ao Imperialismo americano 289. Os contatos dos clérigos com o Diretório Acadêmico e UNE faz com que os seminaristas obtenham informações das idéias veiculadas na sociedade e nos meios estudantis.

"A formação de movimentos como (...) Juventude Universitária Católica (JUC) desencadeou uma comunicação mais intensa e uma maior integração entre os jovens ligados à Igreja. A troca de informações sobre problemas vivenciados nas mais diferentes regiões do país despertava em seus integrantes o desejo de criar uma sociedade mais justa. Durante esses encontros, era inevitável a aproximação dos jovens do Vale do Paraíba com os do restante do Brasil, principalmente com os das capitais onde na maioria das vezes, acontecia esse tipo de evento. Os jovens, assim como toda a sociedade, sentiam o desejo de fazer efetivamente alguma coisa pelo país. Os contatos com os integrantes da UNE e das UEES serviu para despertar em muitos estudantes valeparaibanos o interesse por transformações sociais. Em Lorena, essa troca de experiências foi vital para desencadear os movimentos de luta ideológica, nascidos na faculdade290."

Alguns seminaristas conseguem burlar a vigilância dos padres e obter clandestinamente jornais e revistas, sedentos de informações sobre as questões candentes do período. No Educação à Luz do Concílio, em outubro de 1977. In Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. pp.162-163. 288 Professor de Geografia Econômica. 289 "P. Nelo usava em suas aulas uma série de documentos pouco favoráveis aos Estados Unidos, o que incomodava a diversos e o tornava pouco simpático ao Diretor. Havia até dúvidas sobre a autenticidade dos documentos. No entanto, quando estes completaram 25 anos de existência, o Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos da América os publicou na íntegra eliminando para sempre essa dúvida. P. Nelo afirmava sempre em suas aulas que o objetivo não era denegrir os Estados Unidos, mas tornar os alunos conscientes da realidade das multinacionais e de como funcionava o comércio exterior". Padre Antônio da Silva FERREIRA. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 290 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. pp.49-50.

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nível das idéias, Tomás de Aquino291 continuava a ser o "doutor angélico" a ensinar o "reto filosofar". Para alguns alunos externos, porém, a "Realidade Brasileira" parece encontrar melhores respostas para suas necessidades nas teses de Karl Marx.

"Influenciados por alguns professores e também por freqüentes leituras das obras de Karl Marx, os alunos tinham o desejo de mostrar à sociedade que a doutrina marxista não era exatamente o que os governantes e a maior parte da Igreja Católica transmitiam. “Esse período foi de grandes brigas, mas na área ideológica”. O comunismo era tido como um regime de pessoas que eram carrascos, que comiam criancinhas. Era a pior coisa do mundo. Nós líamos muito, conhecíamos e tínhamos com que argumentar. Queríamos provar que o marxismo era uma coisa boa e a grande maioria queria provar o contrário", explica o ex. diretor sociocultural do DA faculdade de Lorena, Fausto Padilha292".

. Essa simpatia pelo socialismo existe também em membros do corpo docente e sacerdotes salesianos que se manifestam, ora numa silenciosa complacência, ora em explícita militância. Tais posições colocavam-se, porém num entorno tradicional. Os palestrantes que na década de 50 estiveram na Faculdade, na maioria, representavam a intelectualidade católica293. Sem professores leigos e com raros alunos externos a nova

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Tomás de Aquino tem sido representado pela direita católica como o Pai do conservadorismo. Essa proposição tem sido rechaçada por muitos estudiosos, que vem nele um progressista para o seu tempo como nos afirma Josaphat: "Viu-se ( Tomás de Aquino ) agarrado pelo sufocante amplexo da ortodoxia, que transformou em campeão da tradição o audacioso abridor de caminhos do espírito. ( ... ) Em veneráveis regiões da cristandade, não é raro se poder admirar colunas de velhos templos, submetidas a um curioso destino. São arrancadas e utilizadas, no volver dos séculos, por construtores, pouco escrupulosos em matérias de arte, em que só intentam sustentar estábulos ou escorar algum paredão. Buscam materiais sólidos e resistentes, sem qualquer escrúpulo no que tange a valores estéticos. Nenhuma razão nos leva a manter prevenção contra paredões e estábulos. Mas não é preciso desperdiçar tempo a analisar longamente essas construções híbridas, se queremos é apreciar as belezas do templo, pilhado pelos tais engenheiros utilitaristas. ( ... ) Jacques Maritain já o assinalava, com algum humor: a desgraça dos grandes da Filosofia é cair nas mãos dos professores. O gênio que vira manual ou objeto curricular do ensino oficial está condenado a um processo, quase infalível, de enfadonha banalização". Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a Nova era do Espírito. São Paulo: Loyola, 1998. p.17 292 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.58. 293 "Por ocasião do cinqüentenário do lançamento do lançamento do livro "Os Sertões" de Euclides da Cunha em 1952, a Faculdade sediou o ciclo de conferências e inaugurou solenemente a sala "Euclides da Cunha", sob a direção do médico historiador Antônio da Gama Rodrigues e com o apoio entusiástico do padre Carlos Leôncio (... ) Em seu auditório a faculdade teve o privilégio de ouvir e aplaudir os grandes nomes da intelectualidade brasileira: Austragésilo de Atayde, Alceu Amoroso Lima, Alves Motta Sobrinho, Aroldo de Azevedo, Arthur Cezar Ferreira Reis, Aureliano Leite, Barbosa Lima Sobrinho, Cassiano Ricardo, Cecília de Lara, Francisco de Assis Barbosa, João Scamtimburgo, Mário Graciotti, Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Sebastião Pagano, Tito Lívio Ferreira e outros... José Luíz PASIN.

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faculdade mantém a estrutura de seminário onde os clérigos dedicam-se ao estudo, trabalho e orações, afastados do mundo exterior, tendo dele informações controladas e unilaterais. O pensamento aristotélico-tomista294, sob o controle da Igreja, direciona o pensamento dos estudantes, ignorando as mudanças da sociedade que possam interferir na formação e mentalidade dos mesmos. No início da década de 60 ampliam-se as preocupações com as questões sociais, sendo a JUC promotora de maior conscientização nos meios universitários. A Instabilidade política e econômica nos governos Jânio Quadros e de João Goulart parece levar o Brasil ao caos com o aumento das convulsões sociais. O Golpe de 64, se de um lado garante o controle do Estado por grupos conservadores, de outro acirra os movimentos oposicionistas. As reformas sociais pretendidas pelos alunos de Lorena, sob a influência da JUC estão dentro de uma visão de um socialismo cristão:

Adotávamos uma linha não voltada ao comunismo russo, e nem à ditadura militar. Queríamos que as pessoas tivessem a mesma oportunidade, que não houvesse miséria. A gente não lutava... O comunismo lutava pela ausência de classes sociais. Mas nós não queríamos isso, pois tínhamos a consciência de que eles existem e sempre vão existir. Queríamos que todos os cidadãos, desde os de classe menos favorecida, tivessem condições básicas de moradia, educação, saúde e transporte295".

Mais tarde, com maiores contatos com grupos das UNE de São Paulo e Rio de Janeiro, o movimento estudantil em Lorena será fortalecido, se bem que apenas um pequeno grupo liderado por Ivo Malerba296, chegue a uma proposta explicitamente marxista. Contando Faculdade Salesiana: um marco na História da Educação Universitária Brasileira. In. Jornal do Centro Unisal. Campinas: Arte Brasil Publicidade, 2002. p.2. 294 Um dos grandes esquivos foi pensar em Tomás de Aquino como conservador e baluarte do conservadorismo. Ele foi um homem de vanguarda, sendo um dos líderes do pensamento renovador aristotélico na crise da Universidade de Paris em 1277, quando o pensamento platônico-agostiniano é substituído pela nova proposta do pensamento Aristotélico. Professores simpatizantes do Aristotelismo são ameaçados de excomunhão pelo bispo Étienne Tempier e são afastados da cátedra. Cf. Carlos Bento MATHEUS. A Grande Crise de 1277 na Universidade de Paris. Revista da Ciência da Educação, Lorena, Editora Stiliano e Centro Unisal, v01, n.01, p. 43, mês?. 1999.p. 43. 295 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.59. 296 Ivo Malerba foi o principal líder do movimento estudantil no período do Golpe Militar. Teve significativa militância na política universitária. Iniciou suas atividades na JUC e posteriormente participou das diretorias do DA até chegar à sua presidência em 1968. Foi o principal articulador da Assembléia dos Estudantes, tendo sido preso no Congresso da UNE em Ibiúna. Solto viveu em muitos momentos fugitivo da polícia. Em 1974 esteve na região do Araguaia por duas semanas tentando integrar-

Excluído: ó Excluído: e

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com alunos oriundos do Batalhão de Infantaria de Lorena e da Aeronáutica de Guaratinguetá, o ambiente da faculdade ficará tenso, pois com a presença deles os alunos se sentem ameaçados, pois é sabido que alguns alunos-militares realizavam espionagem ideológica297.

O golpe de 64 acirra posições. Grupos de direita e de esquerda procuram obter apoio dos alunos. A questão social continua a ser a preocupação dos estudantes. O processo de inserção mais politizada tinha tido sua maior visibilidade com a lei de Diretrizes e Base 4.024 de dezembro de 61, quando, a faculdade, procurando adequar-se às novas diretrizes governamentais para educação, envolvia mais e mais alunos na discussão do perfil que deveria ser dado à faculdade. Já o processo de Reestruturação, atendendo as exigências do MEC em 1967, inicia-se em 1968. 298 Busca-se a reformulação do Ensino Superior.

O processo de reestruturação procura adequar a Faculdade às novas

exigências sociais, políticas e econômicas. Este processo, que se pretendia tranqüilo, é, porém atropelado por alguns elementos desestabilizadores: a crescente incidência dos movimentos estudantis, agora mais distantes da JUC e mais próximos do pensamento marxista; o Vaticano II e o documento de Buga, quando é feita a releitura das relações da universidade católica com a sociedade.

"A proposta do CELAM, expressa no documento de Buga tinha como meta para as Universidades da América Latina: gerar a conscientização da realidade histórica; realizar a promoção social que conduza ao desenvolvimento; criticar a mentira social e política; resgatar a autenticidade da cultura; promover a integração do continente; ter uma participação ativa e crítica na sociedade; tornar-se, enfim, uma esfera privilegiada de encontro entre a Igreja e o mundo. O Documento de Buga sintetizava o projeto de Universidade Católica para a América Latina. Uma verdadeira universidade católica, crítica, libertadora, dialogal, politizada, denunciadora da mentira social, conscientizadora, cientificamente competente, inserida no processo de mudança social, inovadora, enfim revolucionária, procurando uma efetiva participação no processo de libertação da América Latina. Buga busca assegurar o diálogo entre as Ciências, as se no movimento guerrilheiro. Atualmente está ligado a atividades política e é comerciante. Cf. Ibidem. p.69-70. 297 "Tudo bem, até 1968, ano da maior repressão; foi aí que o negócio ficou feio. Na faculdade devido à nossa condição de militares, éramos considerados "dedos duros", enquanto que, na aeronáutica, consideravam-nos subversivos". Ivan MAIA. In. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.153. 298 Ibidem. p.159.

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Técnicas e as Artes, de um lado, e de outro, a Filosofia e a Teologia. Uma universidade que não pode querer se reduzir a formar profissionais, mas, sobretudo, deve cuidar da promoção humana299."

O golpe compromete o itinerário humanista da faculdade com sua visão tecnicista, sobretudo a partir de 1969, com o acordo MEC-USAID. Tomando posse do DA em 1968, Ivo Malerba defenderá a gestão autônoma da Faculdade. O questionamento sobre a “realidade brasileira”, que segundo Malerba tem seus reflexos na própria faculdade, pede soluções radicais, e o instrumental teórico marxista parece ser, para os alunos mais radicais, o mais eficiente para interpretar e interferir na história, gerando, essa leitura, divergências entre os professores da faculdade. A seção feminina, gerenciada pelas irmãs salesianas, começa a se configurar como a ala progressista da faculdade. Irmã Iracema300 capitaneia um movimento significativamente progressista.

"Irmã Iracema teve atuação marcante na formação dos alunos, mesmo antes do golpe militar (...) Ela tinha uma cabeça incrível, muito aberta. Formou uma geração de discernimento, de saber o que era bom e o que não era. (...) A professora fazia de sua aula um instrumento esclarecedor e conscientizador da realidade brasileira, com o objetivo de formar cidadãos justos e com desejo de transformação. (...) Foram anos áureos de conscientização e de ação, porque nós acabávamos tendo uma missão junto aos jovens. Mesmo antes da implantação da ditadura militar, pela própria característica da disciplina de Sociologia, irmã Iracema discutia questões relativas às injustiças sociais, como a pobreza, a falta de moradia e o trabalho mal remunerado301".

O cine fórum302, mais conhecido como “cinema das irmãs”, traz para a faculdade filmes desafiadores, que são postos em debates. Muitos padres que participam dele 299

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.164. 300 Um terrorista preso em São Paulo tinha em seu poder um caderno com nomes, estando nele incluído o nome da Irmã Iracema. Por esse motivo ela foi detida do quartel militar. Pela intervenção do Padre Anderson Paes, então diretor da faculdade, conseguiu que a prisão se tornasse domiciliar, já que pela sua argumentação junto ao comandante “uma freira não podia dormir fora do convento”, e que se ela fosse mantida aí poderia existir problemas diplomáticos com o Estado do Vaticano. Com esse argumento conseguiu a liberação dela para ficar retida na casa religiosa da ala feminina. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 301 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. pp.52-53. 302 Elas eram progressistas e sempre estavam à frente em todos os sentidos - desde o espaço físico da faculdade -, lá havia um campus universitário, uma liberdade de idéias e filmes no Cine-clube fundado pela irmã Iracema. Hoje a FATEA tem uma ótima videoteca e lá você encontra todos os filmes, inclusive

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passam a ser qualificados como progressistas, sofrendo advertência por parte dos diretores. Muitos alunos vão se identificando com as posições mais progressistas com o engajamento na luta social. O quartel do exército realiza vigilância ideológica, mas, por ser uma cidade interiorana, não possui a truculência das cidades maiores, pois todos se conhecem, o que ameniza as tensões entre o exército e a sociedade. O mesmo não acontece com a aeronáutica, a 15 km de Lorena na cidade de Guaratinguetá.

A primeira Reforma universitária em 1961 fora uma experiência muito positiva enquanto representava a adequação das universidades à LDB 1024. O Brasil ia consolidando o Ensino numa nova concepção de Universidade. Os salesianos entenderam a importância destas leis enquanto sinalizavam elementos claros que iriam dar uma identidade às Instituições de ensino superior. A Faculdade Salesiana, após a promulgação desta LDB, entende-se como uma entidade além do próprio seminário como até então fora de fato.

"Je Vous Salue Marie" proibido pela CNBB. Se você quiser assistir ou projetar o filme vai lá e retire a cópia seja aluno, professor ou consulente... Isto significa que, embora elas sendo religiosas têm uma visão moderna e científica do que seja uma universidade e fazem uma leitura correta dos filmes. O Cine Clube funciona a mais de 25 anos e todas as sextas feiras à noite projetando um filme de um bom diretor com temas polêmicos e, depois da projeção, é feito um debate com a participação de todos os cinéfilos presentes. Você vai à biblioteca Conde Moreira Lima e consulta todos os livros, jornais e revistas. Nunca houve nada censurado ou interditado. Isso explica o choque ocorrido na década de 70, entre padre e as freiras. Elas estavam sempre à frente, com uma mentalidade aberta e progressista para época. Eu participei, como representante dos professores, da reunião que resultou no rompimento das duas seções da faculdade. Nesta reunião presidida pelo padre Anderson Paes da Silva, estavam presentes entre outros, o padre Antônio Lages de Magalhães e o padre José Pereira Neto, que assistiam às sessões do Cine Clube e professor Francisco Sodero Toledo, como representante dos alunos. No calor das discussões padre Anderson, referindo-se ao Cine Clube disse às irmãs: "As senhoras com o Cine clube comprometem a moral da faculdade porque para mim filme de arte é pornografia". Eu saí em defesa das irmãs e apelei para o padre Pereira pedindo que ele desse sua opinião, e ele respondeu: "arte para mim é algo subjetivo e não disse mais nada. O motivo fundamental da ruptura foi, entre outros, o Cine clube. Os padres achavam que as irmãs estavam fora do espírito das faculdade. Elas eram modernas e progressistas e modernas demais para os padrões e conceitos da época. Em 1970 houve a prisão de vários professores e alunos da faculdade pelo quinto Batalhão de Infantaria Leve de Lorena. Eu, o Ivo Malerba, o João Bastos, o Carlos Chagas, o Nelson Pesciota, irmã Iracema e penso que Irmã Olga, também. Este fato, na época abalou toda a sociedade lorenense e vale paraibana e repercutiu de maneira chocante dentro da faculdade, contribuindo do desdobramento da crise que resultou na ruptura entre as duas secções. Acredito, que naquele momento o padre Anderson estivesse tentando deter a onda revolucionária que tomara conta da faculdade salesiana. José Luís PASIN. Entrevista em maio de 2002 - Fita gravada – CEDOC – UNISAL – Unidade de Lorena.

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"Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases, impunha-se reformar o Regimento da Faculdade. Olhando as coisas, depois de acontecidas, parece-me que a nova Reforma foi feita: colocando de lado definitivamente o projeto inicial de uma Faculdade para atender predominantemente à formação dos pós-noviços salesianos; organizando a vida universitária em forma comunitária, em base aos princípios do Sistema Educativo de Dom Bosco303".

A Assembléia então convocada em 1961 trouxera reflexos positivos do ambiente de familiaridade que tinha marcado a primeira década da fundação, com um clima de entusiasmo e crença na Faculdade Salesiana que marca todos os processos. Nela ainda prevalece aquele espírito que presidira até então a faculdade-seminário: “Inicialmente convocou-se toda a comunidade universitária para debater o assunto em assembléia e traçar as grandes linhas da reforma da Faculdade. Presidente do centro Acadêmico era José Luís Pasin. Ex-aluno do Colégio São Joaquim, como universitário demonstra ser um moço de grandes ideais e de bom tino administrativo. Gozava da confiança de todos. Coube a ele dirigir esta fase da Reforma. O Trabalho de análise da situação e da busca de pistas novas desenvolveu-se num clima de grande liberdade e amizade. Os resultados foram encaminhados ao padre Carlos Leôncio da Silva, diretor304.

O tempo em que se vive está marcado já pelos questionamentos da década de 60. Na Academia porém prevalece um clima de maturidade intelectual, onde a busca objetiva do melhor e verdadeiro caminho está marcando a mente de todos. Existe, em nível intelectual, respeito e busca de acertar-se.

O Regimento interno nasce de ativa

participação da comunidade universitária.

Padre Carlos nomeou uma comissão composta por professores salesianos e leigos e com a participação do Pasin, na qualidade de representante dos alunos. A comissão trabalhou durante quase um ano e redigiu o projeto do novo Regimento Interno. Dado o clima de entendimento existente, o documento era uma síntese bastante harmônica de tradição e renovação. Foi encaminhado ao Conselho Técnico Administrativo da Faculdade que reviu e o enviou ao Conselho Nacional de Educação, que o aprovou sem dificuldade305.

303

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 304 Idem. 17 jul. 2002.

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O resultado deste trabalho gerou um impacto muito positivo sobre a própria faculdade, consolidando uma significativa autoconfiança. A qualidade do material produzido passa não apenas a servir aos destinos da faculdade, mas é um referencial para outras faculdades em processo de organização do próprio Regimento:

"A Reforma deu novo entusiasmo a faculdade. Para se ter uma idéia de como se vivia nesses tempos, leia-se a tese do306 Sodero. Lorena tornou-se uma espécie de Meca, para onde os membros do Conselho Federal de Educação endereçavam as pessoas que solicitavam orientação sobre como aplicar a LDB ao ensino superior307"

Quando surge a necessidade da nova Reforma universitária em 1967, os diretores salesianos da faculdade acreditam que seria possível reeditar a experiência de 1961, com um processo participativo e tranqüilo da comunidade acadêmica 308. Deve-se porém observar que em apenas sete anos havia existido modificações radicais na sociedade: A revolução de 64 iniciava o período da ditadura, com a paulatina diminuição dos direitos dos cidadãos. Movimentos de contracultura ganhavam corpo; a Igreja revia seus conceitos e estabelecia novos critérios de respeito à individualidade. Há um desejo de participação, conscientização, envolvimento das pessoas nas decisões da sociedade, acirrada mais pela crescente falta de liberdade política.

Os jovens universitários

mostram desejo de participação, de se integrarem nos eventos históricos de forma mais comprometida. A UNE capitaliza em muitos momentos estas aspirações, com não raras radicalizações, fruto do contexto político que vive. A UNE apoiava-se então numa

305

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 306 Essa "tese do Sodero", será posteriormente transformada em livro que está sendo usado como consulta neste trabalho e que será publicada em 2003 com o título: Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior: a Faculdade de Lorena - professor Francisco Sodero Toledo. A Referência a esse material, na época ainda em processo de pesquisa, mostra a confiabilidade e seriedade que o padre Ferreira confere a essas pesquisas. 307 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.1 308 Com a promulgação da Lei 7440/68 impunha-se nova Reforma da Faculdade. Os que tínhamos vivido o clima de 1961, iludimo-nos ao pensar que se poderia tentar repetir a experiência realizada naquela ocasião. Não se tratava de uma entidade de grande simplicidade organizava e de vida, como naqueles tempos. Houvera uma grande evolução na estrutura da mesma faculdade e politicamente havia o embate entre os ideais da contestação juvenil de 1976 e a repressão do governo militar". Ibidem. p. 2

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experiência bem sucedida, para reivindicar para si também em Lorena o direito de elaborar a reforma. “Aconteceu que numa faculdade situada na Paulista (não me recordo se Araraquara ou Rio Claro) a direção se encontrara incapacitada de Promover a Reforma da instituição e o trabalho tinha sido assumido e levado a termo pelo Diretório Acadêmico, sob a presidência de Antônio Ferreira da Silva309 , dinâmico jovem que conseguira chegar a bons resultados e fazer aceitar o projeto por eles elaborado. (...) Para a Une fora um grande trunfo310".

Esta experiência bem sucedida oferecia um parâmetro de ação para diversos centros de Estudo Superior, como Lorena. Era um modelo de ação no processo de Reestruturação. O Diretório Acadêmico se coloca então frontalmente contra a Direção da Faculdade, apresentando um outro projeto diferente do proposto pela Direção. O Presidente do Diretório acreditava que a Reforma Universitária deveria nascer das bases estudantis cujos membros seriam os agentes principais da Reforma Universitária:

"Em Lorena, o presidente do Diretório, Ivo Malerba, iludiu-se que poderia realizar o feito. Com isso criou-se uma oposição entre o projeto do Diretório Acadêmico, que era o de fazer a Reforma Universitária independentemente da Direção da Faculdade, o da Direção da Faculdade, que era o de fazer a Reforma Universitária com o trabalho conjunto de toda a comunidade acadêmica. A UNE desejava que em cada Faculdade fosse eleita uma comissão parietária de Alunos e Professores para realizar o trabalho e Reforma” 311.

A proposta do Malerba era que os alunos realizassem a Reforma, que posteriormente seria apresentada à direção da faculdade que deveria assumir a decisão da assembléia dos alunos312. A proposta da Faculdade era diferente, onde, contando com a presença de alunos, garantia-se porém que não fossem majoritários no processo e que, portanto, não

309

"O feito fez com que o regime militar colocasse Antônio Ferreira da Silva na lista dos "procurados". Num determinado dia todos os Antônio Ferreira da Silva" ou Antônio da Silva Ferreira ligados à vida universitária dentro do Estado de São Paulo fomos detidos e interrogados pela polícia federal, no esforço de localizar o Presidente daquele Diretório Acadêmico" . Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p. 2 310 Ibidem. p.2 311 Ibidem. p.2

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pudessem definir de forma absoluta o Regimento. Os salesianos entendiam que a proposta do DA faria escapar do seu controle os princípios ideológicos que sustentavam a instituição. A proposta da Direção da faculdade era realizar sim a reforma, porém a partir da direção e se preservando o controle da situação.

A Direção da Faculdade desejava sim a Comissão parietária, mas constituída pelos Coordenadores de Departamento, pelos respectivos Presidentes de Centros de Estudo (Cada Departamento tinha o seu), pelo Presidente do Diretório e por um representante da mantenedora, sob a presidência do Diretor da Faculdade. A Proposta da Direção da Faculdade deixava a UNE em minoria, pois podia contar apenas com o Centro de Estudos Históricos e com o Centro de Letras, contra os demais oito presidentes de Centro que tinham posição oposta313".

Com essa proposta da Direção esvaziava-se o poder de controle do processo pelo Diretório Acadêmico.

Malerba reage convocando uma assembléia. As posições se

radicalizam. De um lado e de outro, direção e DA procuram se utilizar de mecanismos para manter o controle da situação, impondo sua própria proposta.

"Foi convocada pelo Presidente do Diretório uma assembléia para decidir o início de uma greve, durante a qual os acadêmicos tratariam da Reforma da Faculdade. Informada disso, a Direção da Faculdade convocou para o mesmo dia, hora e lugar a Assembléia Universitária, para tratar do mesmo assunto. Além disso a Direção determinou que a presença na Assembléia era obrigatória e que substituiria a presença às aulas que ficavam suspensas314".

A situação se dramatiza porque a Direção escolhe o confronto em campo aberto. Ela acreditava que um confronto público, com "presença obrigatória e substituição da presença às aulas", enfraqueceria o movimento estudantil na sua ala mais radical. Na reunião frente aos alunos perplexos por dupla convocação no mesmo dia, lugar e hora,

312

Um dos lemas muito usados no período é "A Universidade é de todos". Cf. Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.35. 313 Ibidem. p.2 314 Ibidem. pp.2-3

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os alunos apresentaram-se nesta "única Assembléia” 315. Malerba tenta desautorizar a direção.

"Ivo Malerba, no entusiasmo próprio de 1968 e dos ideais da UNE fez um inflamado discurso declarando que a partir de então, não se devia mais levar em consideração nem as decisões da Direção da Faculdade, nem dos Departamentos, nem dos Centros de Estudo, nem mesmo do Diretório Acadêmico316. Esta manobra mostra-se desastrada porque desautorizava numa só tacada, não só a autoridade da Direção, mas de todos os setores, inclusive aqueles dirigidos por estudantes. Sabendo-se que só os Centros de Estudos de História e Letras estão alinhados com sua posição, a reação parte dos estudantes, que se sentem feridos na autoridade que gozam junto de seus cursos.

"Um aluno de Filosofia perguntou-lhe com que autoridade estava dirigindo a Assembléia. A resposta foi que ele era presidente do DA. Diante de tal resposta o aluno fez ver que não existia mais DA nem presidente do DA. E propôs que se fizesse a eleição de uma Comissão que dirigisse a Assembléia dos alunos. A proposta foi aceita sem delongas pela maioria dos alunos. Feita a eleição o pessoal da UNE ficou excluído da Comissão. Presidiu a Assembléia um frade franciscano do curso de Psicologia317". O controle da situação escapava ao Diretório Acadêmico e à própria UNE. Percebia-se que as posições dos alunos não estavam unificadas e alinhadas numa visão. Apesar de tudo, uma vitória se consolidara. Seria realizada uma Assembléia somente por alunos, contrariando o projeto da direção da faculdade. A direção julgou porém que tal resultado, se não estava de acordo com suas pretensões, ao menos estava descartada a liderança da UNE no processo, que necessariamente representaria radicalizações. A Estratégia, portanto, da direção foi de anuir à continuidade da Assembléia, enfraquecida no seu projeto inicial, não estando capitaneado por seus mentores. A direção estabelece 315

Cf. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.3. 316 Ibidem. p.3. 317 Ibidem. p.3.

130

então uma nova estratégia318: impedir que se realizasse ao mesmo tempo a Assembléia dos professores, pois poderia ser ocasião de confronto, e, nomear o padre Ferreira, como elemento de ligação entre os alunos e a direção. Padre Ferreira era profundamente respeitado pelos alunos e portanto sua autoridade moral dava-lhe respaldo para esse trânsito. A UNE retirada da coordenação torna-se, porém, ativa nas assembléias. Uma de suas primeiras decisões foi a de não aceitar a oferta do padre Ferreira de "subsídios de ordem legal e administrativa319".

Os líderes ligados a UNE resolvem interferir com eficiência no processo da Assembléia, pretendo que ela assuma os rumos pretendidos por eles. Percebem que os seminaristas salesianos são um grande obstáculo e que certamente estarão alinhados com a direção da faculdade. Sabendo das rígidas formas de isolamento dos seminaristas, conhecendo a estrutura fechada do seminário, utiliza-se de uma estratégia. Marcam todas as reuniões na seção feminina, certos de que os clérigos não seriam autorizados a irem320, enfraquecendo-se assim a representatividade salesiana. Mas os seminaristas, não só conseguem autorização, mas participam das assembléias sem batinas, como estratégia de não serem visualizados como um grupo.

318

"A direção reagiu com as seguintes medidas: deixar que a Assembléia continuasse seus trabalhos sem ser perturbada; impedir uma Assembléia de professores paralela à dos estudantes para evitar que surgisse uma situação de confronto que prejudicaria a chegada a algum resultado; encarregar padre Antônio da Silva Ferreira de ser o elemento de ligação entre a direção e a Assembléia dos alunos. Embora a contragosto, os professores se resignaram a só realizar a própria Assembléia quando estivesse terminada a dos alunos. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 319 Uma tentativa do padre Ferreira de fornecer aos alunos subsídios de ordem legal e administrativa para que pudessem dar base ao próprio trabalho, foi barrado pelo pessoal da UNE. A solução foi dar à Assembléia um caráter não diretivo".Ibidem. p.3. 320 "O pessoal da UNE não desejava a presença dos pós noviços salesianos na Assembléia. Por esse motivo tinham convocado no Instituto Santa Teresa pois, pensavam, o padre Júlio Comba, que além de diretor da Faculdade era também diretor dos pós-noviços, não deixaria que eles viessem e se misturem com as moças. Os pós-noviços souberam isso, foram autorizados a participar maciçamente. Pela manhã tinha missa e meditação, aulas até o almoço. À tarde iam para o Santa Teresa e lá ficavam até às 10 da noite, quando termina a Assembléia. Cf. Ibidem p.3

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O Confronto realiza-se de modo claro entre clérigos321 e os representantes da UNE. É aluno contra aluno sem a interferência nem de salesianos e nem de professores. Cada grupo tenta capitalizar para suas idéias o maior número possível de colegas, para dar força às suas propostas. Os clérigos, utilizando-se dos princípios estudados em Hegel, estabelecem sua estratégia:

Poucos dias antes do início da Assembléia, os do terceiro ano tinham estudado Hegel e a dialética. Haviam feito algum exercício sobre o assunto e aprendido que o importante não é falar em primeiro lugar (tese), mas sim encontrar a antítese justa que levasse à síntese para onde se desejava. E resolveram fazer da Assembléia um exercício de aplicação dessa dialética. Assim, deixavam que o pessoal da UNE falassem em primeiro lugar - o que eles faziam de boa vontade, pensando que influenciariam o auditório - e depois aplicavam uma antítese que levava a Assembléia bem longe do que os primeiros desejavam. O único ponto que os pós-noviços deviam assegurar a todo custo é que a Faculdade continuasse sob a responsabilidade dos salesianos. No mais a Assembléia seguia o curso normal322." O principal temor da direção era que a Assembléia partisse para uma proposta de exclusão da autoridade dos salesianos sobre a mesma. Neste período histórico existe desconforto com o regime militar vigente e portanto natural repúdio às diversas formas de autoridade. Neste momento a importância dos clérigos é imensa. Numa assembléia de alunos devem defender opiniões não apenas em tom apaixonado, mas sobretudo trabalharem o convencimento. Qualquer postura que possa ter o formato de defesa de interesses teria um efeito contrário. As estratégias portanto são medidas passo a passo. "Todos os dias, terminada a Assembléia, os representantes dos pós-noviços se reuniam com padre Ferreira para fazer uma análise da situação. Depois, buscava-se a antítese para o dia seguinte. Chegada a uma conclusão, não se decidia mais nada. O resultado da reunião era levado ao diretor da faculdade. Este, durante a noite consultava algum dos salesianos da comunidade. No dia seguinte, cedinho, dava a resposta. Se fosse positiva, os pós-noviços já sabiam onde bater naquele dia. Se fosse negativa, aí era necessário agir com calma e prudência323. 321

"Queremos salientar a liderança de dois pós noviços: Tetuo Koga, mais intelectual e bom analista, e Luíz Gonzaga Piccolli, muito simpático e aglutinador de pessoas. 322 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.3. 323 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.3.

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Padre Ferreira procurava ser prudente também com os salesianos da comunidade. Era uma situação muito singular e poderia acontecer que algum menos prudente comprometesse as articulações. Chegou-se portanto a afirmar que o "padre Ferreira agisse da própria cabeça". Sendo um processo muito delicado, a figura do padre Ferreira ficava comprometida frente a muitos salesianos. A "química" do processo era complexa e envolvia tantas nuanças nem sempre compreendidas pelos superiores da Congregação que visualizavam de longe apenas uma rebelião de universitários e uma casa de formação desorganizada e desarticulada. Padre Ferreira e os clérigos na direção do processo guardavam segredo das estratégias a serem adotadas, porque nem todos os salesianos, mesmo os da comunidade, estavam aptos a entender o processo e qualquer imprudência poderia desarticular as estratégias adotadas. Foram três meses da paralisação com a presença maciça dos alunos 324. Essas assembléias discutiam sobre toda a realidade brasileira e portanto eram também tema a situação política do Brasil.

"Era um momento muito rico intelectualmente. O pessoal era muito preparado e possuíam bons argumentos. Nós, os clérigos, devíamos nos preparar muito. Tínhamos que ler, nos atualizarmos, ter conteúdos fundamentados para defendermos nossas idéias. Destacaram-se nestes debates o Tetuo e o Pícolli325".

Algumas vezes o exército chegou a sitiar o prédio da faculdade como forma de intimidação. Após três meses de Assembléia os alunos já se mostravam ansiosos e preocupados com sua vida escolar, temerosos de perder o ano. Afinal a Assembléia vai chegando a algumas conclusões: Nos cursos de História e Letras venceu a proposição da UNE326. Nos demais cursos prevaleceram as proposições que se opunham a UNE. Em outubro as aulas recomeçaram e passou a ser realizada a Assembléia dos professores. 324

Um dia veio do Rio um verificador para analisar as condições da criação do curso de Ciências. Já antes de partir do Rio foi advertido que a faculdade estava em greve, como as demais universidades e faculdades do Brasil. Chegando em Lorena, quis ver como estava a greve. Ao ver alunos reunidos por grupos nas diversas salas a estudar seriamente os problemas quer lhes eram propostos, maravilhou-se. Ibidem. p.4. 325 Nivaldo Luís PESSINATTI. Depoimento concedido pelo Inspetor da Inspetoria Salesiana Nossa Senhora Auxiliadora de SãoPaulo. Pindamonhangaba, 01 ago. 2003. 326 "O pessoal da UNE chegou a concretizar uma proposta de reforma global da faculdade. Era o plano aplicado na Católica de São Paulo. A proposta caiu ao primeiro exame: Lorena não tinha capacidade física para ser sede de uma tal instituição. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em

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"Abriu-se então o período de reunião dos professores, para discutir a Reforma Universitária. Padre Ferreira e os que pensavam como ele, salesianos e leigos, ficaram logo em minoria absoluta. No corpo docente havia um bom grupo de militares, que falavam pouco, mas cuja posição era evidente. Havia uns poucos salesianos e leigos que eram frontalmente favoráveis às propostas que davam aos alunos maior representatividade dentro da instituição. O clima das reuniões era muito colorido pela emoção e não se conseguia discutir com serenidade as questões mais candentes e fundamentais327".

A demora, tanto da assembléia dos alunos como a dos professores, atrasaram-se mais que o planejado e já em dezembro venceria o prazo para a entrega do Regimento. O diretor solicitou ao padre Ferreira que fizesse uma síntese entre os resultados das Assembléias dos alunos e dos professores, abrindo-se mão de uma comissão que conciliasse os pontos de vista. De início, padre Ferreira aceitou a Missão, mas após verificar as conclusões das duas Assembléias percebeu que eram muito antagônicas e que ao elaborar um texto deveria sacrificar uma delas naquilo que defendia. O processo com tantas discussões acabava assim por impedir um processo realmente prático naquilo que se refere à ação. O prazo de entrega do Regimento no Conselho Nacional de Educação urgia e não haveria mais tempo para comissões confrontarem as posições de alunos e professores. Padre Júlio Comba, diretor da faculdade, atribuiu ao padre Ferreira a missão de redigir o texto final, realizando uma síntese das propostas de alunos e professores.

Padre Ferreira ao constatar posições tão antagônicas, considera mais

honesto não posicionar-se, porque tal decisão, fosse qual fosse, não seria honesta com as partes, pois não seria fruto do discernimento comum. Prepara assim um regimento que trata apenas da estrutura da faculdade que é enviado ao MEC. Era uma estratégia em ganhar tempo para que o documento caísse em diligência e fosse possível a uma comissão então realizar o texto que fosse comum às partes.

"Preparou-se um Regimento que tratava somente da estrutura da faculdade, deixando em descoberto os outros itens. Tal regimento, entregue em tempo, satisfaria a exigência de prazo de CNE e cairia em diligência. No satisfazer a diligência, já com um ambiente Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.4. 327 Ibidem. p.4.

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mais calmo, seria possível a uma comissão estudar o Regimento Definitivo. E foi o que fez, preparou um regimento parcial e protocolou-o no MEC328".

A Estratégia era perfeita e mantinha-se fidelidade ao processo das duas Assembléias. Era justo que uma comissão e não uma pessoa desse o rosto da Instituição. A Única preocupação dos salesianos neste momento fora o de preservar os princípios ideológicos da Congregação. Mas algo de inesperado acontece.

"A diligência não veio. Tratava-se da aprovação de um curso novo na faculdade e era necessário um Regimento de acordo com a lei. Dona Nair Fortes Abu-Mehry, relatora do processo, fazendo notar as incoerências e falhas do Regimento aprovado, preparou ela mesmo um Regimento Novo, que foi aprovado e enviado para Lorena. Evidentemente os grandes debates sobre a aplicação do Sistema Educativo de Dom Bosco na faculdade e demais preocupações da Assembléia Universitárias não figuravam nesse Regimento329.

Em 1969 a Faculdade Salesiana iniciava com um Regimento apócrifo naquilo que fora elaborado. O regime militar fecha-se cada vez mais. Uma reação a esse Regimento não era mais possível. Terminada a Assembléia de alunos no início de outubro, logo se fica sabendo que o Malerba fora preso no dia 13 de outubro no congresso da UNE em Ibiúna330. Os militares, mesmo em Lorena, já haviam atemorizado muito a alunos e professores. Portanto, havia um refluxo nas atuações políticas. E mais um passo ainda havia sido dado pelo CNE desestabilizando mais as Faculdade Salesiana.

"Ao mesmo tempo, A Escola Superior de Ciências Domésticas e Educação Rural das FMA331, que era uma instituição ligada à Faculdade Salesiana, foi reconhecida como faculdade independente. Estava sem Regimento Próprio, pois obedecia em quase tudo ao Regimento da Faculdade. Os salesianos de então não atentaram para isso. As irmãs perderam a representação que tinham nos órgãos de direção da faculdade, o que é pior, ficaram sem Regimento Interno332. 328

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.3. 329 Ibidem. p.5. 330 Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.64 331 Filhas de Maria Auxiliadora, ramo feminino surgido na Itália por irmã Maria Domingas Mazzarello, co-fundadora das salesianas, especializadas então na educação da juventude salesiana feminina. 332 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.5.

135

No final do processo da Reestruturação duas realidades se colocam. Volta um Regimento não aprovado e ainda a Faculdade salesiana é dividida em duas, com o surgimento do atual Instituto Santa Teresa. O recrudescimento do autoritarismo no Brasil com o AI5 e as rupturas ideológicas entre as salesianos e salesianas, estas mais progressistas, não favoreceram uma reunificação. Sem nenhuma opção de seus diretores, a Faculdade Salesiana era dividida em duas. No seu depoimento padre Ferreira conclui:

"Foi necessário fazer um Regimento novo. Morria o ideal de 1961 de construir em Lorena uma instituição universitária da família333 salesiana334".

O ambiente da década de 60, mais que o simples suceder de fatos históricos, representa uma reviravolta na mentalidade da própria faculdade, dos externos e dos clérigos. As estratégias utilizadas pelo diretor de envolver os clérigos, até então protegidos, é a chave para entender o momento histórico que se configura então. As contestações do DA aos diretores desestabilizam a Instituição. Não tendo acesso às assembléias estudantis, percebem que os clérigos podem, como alunos, delas participar, pois são salesianos habilitados a intervir qualificadamente nestes eventos, sendo assim incentivados a se integrarem nos embates estudantis, com a finalidade de defender e preservar a Congregação. O momento é tenso. Os clérigos, até então preservados das influências do mundo leigo e da própria faculdade, devem agora participar das assembléias defendendo a congregação335. Integram-se no meio dos leigos, à paisana, sem a batina que os identificaria facilmente nas assembléias 336. A vida do seminário, então preservada nos moldes conventuais com rígidos horários, desarticula-se. O tempo de Deus deve ser substituído pelo tempo dos homens. O ritmo sagrado do cotidiano é trocado pelas 333

O termo "família Salesiana" é aplicado a 21 fundações que seguem os princípios educacionais e a pedagogia criada por Dom Bosco, conhecida como pedagogia salesiana, sendo que 32 aguardam reconhecimento. Morand WIRTH. Da Don Bosco ai Nostri Giorni; tra la storia e nuove sfide. Roma: LAS, 2000. pp.544-547. 334 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. p.5. 335 Esta defesa não é nem artificial e nem a pedido dos formadores. Eles possuem o sentido de pertença e sentem que a situação coloca em risco o itinerário educativo da própria Congregação. 336 É lógico que pelo pequeno número de alunos na faculdade, eles eram facilmente identificados, inclusive pelas posturas clericais.

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apaixonadas e calorosas assembléias estudantis. Os momentos de oração são substituídos pelas articulações políticas As assembléias prolongam-se pelas madrugadas adentro. O padre Ferreira se reúne com os líderes clérigos para estudar as estratégias. Os líderes do DA percebem o envolvimento e articulação dos clérigos e armam estratégias:

"Outros aspectos das reuniões, como os artifícios para conseguir os importantes votos dos clérigos, são lembrados pelos ex-alunos: 'as moças tinham orientação de atacar os clérigos, usando mini saia e outros artifícios. Pois havia pressão dos padres para que os clérigos votassem contra o AGIR337. Era pressão contra pressão' (Ivo Malerba 2001) 'as Colegas da Feminina compareceram em massa. Só que na época estava em moda a minissaia. Resultado de Integração: diversos clérigos abandonaram a batina' (Ivan Maia)” 338

Os seminaristas adentram nos candentes assuntos que são veiculados no período e aos quais só tinha sido dado acesso sob o controle de "tiras de jornais fixados nos murais". As assembléias possuem um tom muito mais amplo que o próprio limite da faculdade: discute-se a sociedade e a "realidade brasileira", onde o instrumental marxista é amplamente utilizado. O ambiente até então protegido do seminário era agora um espaço de debates nacionais e internacionais, com acesso aos autores e a idéias até então controlados. A discussão extrapolava não só o âmbito da academia, mas tinha eco na própria cidade, pois o discutir questões nacionais justificava os constantes sítios que o exército fazia aos prédios da faculdade, pois se questiona a um só tempo, a autoridade da faculdade e do país. Alguns seminaristas, neste ambiente politizado, mostravam-se simpatizantes com o marxismo, pois, fazer ouvir a própria voz, expressar os sentimentos e pensamentos eram elementos novos para eles, cerceados pelas normas religiosas do cotidiano, onde a obediência e a submissão eram virtudes apreciadas pelos formadores. E, se essas assembléias eram de estudantes, aí se sentiam membros da instituição atacada, em pé de igualdade com seus colegas, percebiam que a força de convencimento e argumentação eram fundamentais para o processo em curso. Os diretores do seminário viam-se enredados num processo complicado. Favoráveis a uma formação isolada, eram 337

Aliança do Grupo de Integração e Renovação. Chapa vitoriosa do D.A. em 1968 sob a liderança do Ivo Malerba. 338 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.176.

137

obrigados a consentir na participação dos seminaristas nos eventos da faculdade, eventos esses não só repletos de politização mas também de espaço de livre reflexão, de pensamento não domesticado, de situações novas para o claustro.

Defendia-se a

faculdade, mas ao mesmo tempo, transitava-se num processo de livre pensar. No presente momento os alunos conduziam a sua argumentação a partir de um novo processo onde as bases dogmáticas do aristotelismo e do tomismo não eram únicas. Alguns chegam a entrar em crise, ao confrontar linhas de argumentações e de inserções diferentes das suas. Era o confronto com novos paradigmas, diferentes dos que tinham sido até então as bases de suas vidas. Nas longas reflexões e discussões dos alunos, os clérigos podem perceber abordagens diferenciadas das utilizadas por seus professores e mestres. Eram abordagens de temas da atualidade, mas com tênue e quase imperceptíveis instrumentais filosóficos marxistas. Para eles até então o grande referencial de educador era João Bosco, que no século XIX articulara um novo modo de educar a partir de uma metodologia moderna para a época, que, preservando os valores de sua realidade do Piemonte, utilizava-se da religiosidade e do conceito de uma racionalidade entendida nos moldes aristotélico-tomistas. Como havíamos afirmado antes, o pensamento aristotélico-tomista se baseia na certeza que existe uma realidade objetiva que deve ser apreendida pelo homem, mas que não dependia dele, porque objetiva, cabendo-lhe apenas aprendê-la com seus mestres e aderir com sua razão a ela. Percebe-se agora porém que determinadas abordagens não eram feitas a partir do lugar aristotélico-tomista, mas o eram a partir de outras concepções de mundo, como por exemplo a marxista e que possuía também um poder de convencimento.

Some-se a isso o Vaticano II que ainda não tinha sido integrado na prática da vida da Igreja, sendo ainda um processo incipiente, prevalece portanto a formação recebida sob a luz dos concílios de Trento e Vaticano I. Recapitulando verificamos que no século XIX, Dom Bosco e seus discípulos tinham sido ardorosos defensores do papado, numa época em que a unificação da Península Itálica colocava em perigo os Estados Pontifícios. Pio IX ao levar em frente o projeto de fortalecimento do papado em nível mundial encontrou em D. Bosco um fiel aliado. Aprova a nova congregação, defende-a

138

dos seus desafetos e encontra nos salesianos colaboradores no processo de romanização no Brasil, como educadores dos filhos da modernidade, possuindo suas obras ambientes alegres e festivos, ainda que fechados ao mundo exterior. Ainda que tenha

assumido

materialmente

essa

modernização

com laboratórios,

escolas

profissionais, parque gráfico e escolas, não abrem porém mão das tradições da Igreja e da Congregação. Por exigências governamentais tinham tido necessidade de qualificar seus seminaristas com um estudo reconhecido num Curso Superior cofessionalmente católico, atrelado e identificado com o seminário salesiano nos moldes e valores europeus. Não se dão conta inicialmente do paulatino crescimento para fora de muros dessa instituição e não percebem, por certa falta de perspectiva, que ela não ficaria sob o controle como os colégios. Na década de 60 adentram nos seus muros as crises e os questionamentos de uma sociedade em mudança. Assim a mentalidade que mapea a formação dos princípios e convicções dos salesianos jovens é tradicional, hermética e não aberta ao diálogo. Portanto o acesso a experiências e informações novas acaba por seduzir intelectualmente muitos clérigos que experimentam uma visão e experiência do mundo e da faculdade que não lhes era facultado até então. Ainda que defendendo a faculdade com envolvimento pessoal, porque salesianos, perpassa-lhes pelas almas uma auto confiança e uma percepção de novas formas de abordar a realidade e interpreta-la que lhes calará fundo na alma.

Em todo o processo discutido anteriormente, verificamos que o ano de 1968 configurase como singular porque nele eclodem fatos que sinalizam de maneira mais visível uma crise no mundo. O “maio parisiense” deflagra um movimento estudantil que se estende por vários países do mundo, como modelo de contestação. No Brasil os militares ampliam seus métodos de repressão a tudo quanto possa parecer de esquerda. O encontro de estudantes de Ibiúna mostra, de um lado, a articulação da UNE e, de outro, a repressão aos que procuram contestar o regime totalitário. É um ano de acirramento das radicalizações. Em 1968 ao assumir o DA, Ivo Malerba, representa radicalização com proposta de democratização da Faculdade Salesiana.

139

Verificamos anteriormente que as correntes de contestação que se formam entre os alunos neste período esbarram-se contra o modelo existente na educação dos futuros salesianos, que sempre procurou preservar os seus educandos do meio externo no “cortile”

339

criando-se um ambiente favorável, asséptico, fora dos pecados e desvalores

do mundo externo. Dom Bosco até definira “um bom porteiro” como elemento fundamental de suas casas, enquanto filtro entre o mundo externo e o interno. Essa proteção tinha um sentido profundamente educativo pois se buscava um ambiente favorável onde se pudesse absorver valores humanos e cristãos numa das fases mais perigosas da vida, quando a volubilidade da vontade e a instabilidade emocional colocavam em risco o jovem. No seminário esse "ecossistema educativo" transplantado dos internatos pretendia preparar o clérigo para que no amanhã fosse um bom educador. A vida reclusa tinha na formação humana e religiosa o elemento fundamental da educação, entendida como um ato de recepção de valores para uma futura vida social e religiosa. A educação salesiana se configurou ao longo dos tempos por um modelo voltado profundamente para o internato e reclusão dos seus alunos, entendendo-se que somente aí se poderia realizar uma efetiva educação, afastados dos perigos do mundo exterior. E se tal se aplicava para os internatos, muito mais ainda para os candidatos à vida salesiana.

A descrição desta configuração da Educação salesiana nos permite aquilatar o impacto dos episódios de 1968. Os clérigos vivem intensamente tudo quilo que não era previsto em sua formação: quebra da rotina monástica do seminário com suspensão das orações, participação em debates políticos, uso de roupas civis, contato com moças, leitura de livros até então proibidos, experiência de liberdade e auto confiança nas suas capacidades pelas vitórias obtidas nos embates das assembléias. Os seminaristas não ficam incólumes nestas experiências, enquanto os temas políticos e sociais são discutidos por discentes pró e contra o regime militar e os movimentos populares. O termo “realidade brasileira” deflagra variados sentimentos, desde posturas de direita até as de esquerda, neste caso com inequívoca simpatia pela União Soviética e Cuba, 339

Pórtico.

140

contrários ao imperialismo americano.

Sentindo a faculdade ameaçada os

seminaristas a defendem com o seu preparo acadêmico e sólida formação, amparada em leituras de muitos autores, somados a posturas de liderança não encontram dificuldades em se impor sobre os seus colegas universitários com seus argumentos. Mas esta experiência de autonomia foge do controle e à regência de seus formadores. Percebem que depende deles a articulação das idéias e princípios, ainda que assessorados pelo padre Ferreira, não deixam de obter êxito nos embates o que gera autoconfiança em suas capacidades .A abertura que vivem então jamais foi imaginada por seus formadores. Será uma experiência que deixará marcas profundas em suas personalidades, interferindo significativamente na formação de uma nova mentalidade das futuras gerações de salesianos.

E essa marca inicialmente pessoal, terá posteriormente

significativos reflexos sobre a própria Instituição na sua posterior elaboração de uma nova forma de leitura da realidade.

141

CAPÍTULO 7 A CRISE DO PARADIGMA "RAZÃO"

O processo de Reestruturação foi realizado em clima de grande tensão política no país. O ambiente das universidades é foco de resistência ao regime militar, com brados de "abaixo a ditadura". Em 1967 o Diretório Acadêmico, funcionando numa casa anexa à Faculdade, é invadido pela polícia, acusado de atividades subversivas. A direção da faculdade, através do Conselho Departamental Administrativo, tenta intermediar os contatos com os militares, oferecendo inclusive advogado, se necessário, para a defesa dos estudantes. Esta intromissão pela faculdade em defesa dos alunos não é bem aceita por alguns membros do Diretório Acadêmico, sendo que quatro membros se demitem 340. Sobre este período nos testemunha o aluno Elio Bertola:

"Era o ano de 1967: repressão militar dura. Não se podia nem cochilar e já era espionado! O Diretório Acadêmico era atuante com chapa de direita e de esquerda. Tinha noite em que as coisas pegavam fogo, envolvendo alunos e professores, direção, clérigos e tudo mais. Eram discutidos vários assuntos, desde verbas federais para educação, leis, regimento, mensalidade, bolsa de estudo, etc. Isso foi fundamental para mim e para a maioria dos que estavam ali. Estávamos abrindo os olhos para uma nova realidade que desconhecíamos totalmente. Era impossível não participar341".

340

Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.173. 341 Ibidem p.173.

142

Há um crescente processo de politização da faculdade que se fortalece enquanto aumenta a rejeição ao regime militar e os estudantes realizam reflexões sobre a "Realidade Brasileira". Ainda em busca de entender essa "Realidade, em 1967, o DA traz como palestrista Dom Helder Câmara, então já mal visto pelo regime militar, num momento em que a oposição se manifesta nas músicas de Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros autores. Quando em Março o aluno Edson Luís Souto é morto pela polícia militar do Rio de janeiro, esse assassinato, de repercussão nacional, faz também eco na Faculdade Salesiana que é "centro de resistência, com movimentos memoráveis em tempo de ditadura. Reuniões tensas, discussões acaloradas. Era de fato uma fronteira plena da democracia 342". O movimento de estudantes da França, em maio de 1968, apresenta-se como um modelo a ser seguido. Malerba cada vez mais se firma como líder estudantil, não só dentro da faculdade, seu ponto de atuação mais visível, mas também na sociedade de Lorena. Fugir da polícia passa a ser atividade normal de sua vida. Deseja promover, com a morte do estudante Edson Luís Souto, uma passeata de protesto. A conselho do padre Ferreira, temendo uma repressão violenta do exército, resolve fazer um "cortejo fúnebre" em direção à catedral.

"Os seminaristas e alunos dirigiram-se para a catedral de Lorena. Os alunos externos formaram um bloco coeso e disciplinado, que desfilou em absoluto silêncio até a mencionada igreja. A presença do padre Ferreira, de batina, e a coesão do grupo exprimia claramente a força da resistência pacífica existente no ambiente da faculdade. Na Catedral de Lorena, Dom Cândido Padin fez o sermão contra a violência e o regime autoritário. O Protesto iniciou-se com uma assembléia, com discursos inflamados e terminou também com uma assembléia, com discursos pró e contra a situação vigente. Esta foi realmente a única passeata. Outras manifestações só foram possíveis no interior da faculdade343."

Na conservadora cidade de Lorena a Faculdade Salesiana vive uma situação paradoxal. Seus diretores a "grosso modo", possuem um bom relacionamento com as forças armadas e autoridades da cidade e região. São considerados padres sérios que possuem

342

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.176. 343 Ibidem. p.177.

143

trânsito livre em todos os ambientes. Entendem-se bem com as autoridades civis e militares. Mas é, exatamente dentro da "faculdade dos padres," que está o grande foco de resistência ao regime militar. E, se os padres mostram respeito pelas autoridades, as irmãs salesianas, estão explicitamente alinhadas com os alunos nas atividades contra o regime.

Em junho o regime militar começa a aumentar sua pressão. É dentro deste contexto de alta tensão política que vão ser realizadas as reuniões do que se pretende que seja a Restruturação da faculdade. É um período de radicalizações tanto dos militares como de segmentos da sociedade civil. O Processo de Reestruturação da faculdade, conduzido pelos alunos, coincide com um período de contestação e radicalizações contra o autoritarismo. O final do ano 1968 é marcado com temores de parte de estudantes e professores, que sentem e recrudescimento da repressão militar. Com a prisão do presidente do Diretório Ivo Malerba em no dia 12344 de outubro em Ibiúna, o temor das forças golpistas se consolida no interior da faculdade. No dia primeiro de novembro de 1968 a cidade é atacada por forças repressoras quando muito políticos e líderes são presos, entre eles professor Pasin e Irmã Iracema 345. Dom Cândido Padin atua com muita energia procurando libertar os detidos da tortura e da prisão. Malerba, prisioneiro no DOPS em São Paulo, consegue, apesar de tudo, compensar as aulas que deveria assistir com trabalhos escolares346 feitos na prisão, e é solto no dia 12 de dezembro, exato dia de sua formatura, onde comparece.

344

Ao contrário do Professor Francisco Sodero Toledo, a autora Beatriz Borrego apresenta a data de 13 de outubro. Essa diferença parece ter sido ocasionada pelo início da invasão ( dia 12 ) e a prisão de Malerba que foi realizada na madrugada, portanto dia 13. 345 Cf. Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.71. 346 "No Congresso de Ibiúna- SP. - realizado pela UNE, houve muitas prisões de estudantes, inclusive um da Faculdade Salesiana. Para poder acompanhar o que acontecia a esse estudante, a Faculdade aproveitou as riqueza pedagógica de seu regimento e organizou um currículo de trabalhos escolares, que substituíam a freqüência do aluno às aulas. Semanalmente o aluno tinha que prestar contas aos professores de quanto fazia. Depois de algumas semanas, o quartel em que estava preso houve por bem libertá-lo". Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002.

144

"A formatura de Ivo Malerba aconteceu exatamente no dia de sua chegada a Lorena. Ao entrar no recinto, onde os formandos de história recebiam seus respectivos diplomas e comemoravam mais uma etapa vencida da vida acadêmica, todos se levantaram. O ex. líder estudantil, apesar de trajar um terno, estava fisicamente diferente do que de costume - abatido e com o cabelo raspado. Logo foi tomando sua postura tradicional, de comandar toda e qualquer concentração de jovens - apoderou-se do microfone para tentar transmitir, de maneira ainda mais convicta, seus ideais revolucionários, solidificados durante os meses de detenção. Foi aquela confusão toda347".

No dia seguinte, 13 de dezembro era decretado o AI 5, quando Malerba 348 sob a repercussão da formatura do dia anterior, torna-se novamente um fugitivo.

O Ato Institucional número 5 oferece ao sistema um instrumento explícito de repressão. Muitos professores insistiam em continuar o processo de conscientização na Faculdade Salesiana, não tendo avaliado ainda a força do que seria o processo repressivo. Padre Ferreira, muito articulado com vários setores, telefona certa noite para líderes do DA João XXIII para que destruam toda a documentação existente, que é incinerada no meio da noite349. Já a partir de 1969 o DA deixa e existir, sendo substituído pelos Centros de Estudos, responsáveis por atividades culturais350. As tendências que se implantam pelo Lei 5.540/68 é de uma universidade tecnicista e não politizada.

"O novo modelo, como descreve Romanelli, tornou a estrutura geral universitária mais conservadora que o antigo modelo. A racionalidade e a modernização resultam na perda da autonomia da universidade. O objetivo geral, quer do ponto de vista do setor externo, quer de vista do setor interno, era da despolarização, a eliminação das lideranças políticas, das quais a universidade foi quase sempre o foco. E, assim a eliminação da participação social em prol da decisão de poucos351".

347

Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.68 348 Durante três meses Ivo Malerba estará escondido no sítio do Professor Pasin em Roseira. Em 1974 chegará a se integrar na guerrilha do Araguaia. Em 1976 será vereador e presidente da câmara Municipal de Lorena. Sua atuação política estará baseada na ideologia despertada nos anos de militância estudantil. Sobre sua atuação política, sintetiza: "O ser humano é fruto do meio onde vive. As condições históricas eram diferentes de hoje, mas não renego nenhuma vírgula do que fiz. Talvez, com a consciência que tenho atualmente, tivesse sido mais sensato". Cf. Ibidem. p.70. 349 Cf. Ibidem. p.70. 350 Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.194. 351 Ibidem. p.181.

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No processo de Reestruturação os seminaristas foram importantes em assegurar a dimensão salesiana para a faculdade, garantindo que não perdesse sua identidade salesiana. O processo de abertura e politização do seminário foi lento. Uma análise das estruturas e conteúdos dos livros de Atas e Crônicas nos permite descobrir vestígios das etapas de abertura e politização, num contexto de tradições européias, hermético, fechado à sociedade e realidades locais, tendo por modelo o concílio de Trento. Onde teria começado o processo de politização e de inserção dos clérigos no mundo da política e da "Realidade Brasileira"? Esse pensamento não controlado pelos formadores torna-se plenamente visível em 1968, com os três meses de assembléias estudantis, sem o controle direto dos padres mais conservadores, mas monitorados pelo padre Ferreira, uma mente aberta ao novo, pedra chave do pensamento autônomo na universidade. Percebe-se que Ivo Malerba352, professor Pasin353 e professor Toledo354, participantes deste momento histórico, fazem a ele referências de confiança e de respeito.

Essas idéias porém já estavam sendo incubadas dentro do seminário, apesar do rígido controle ideológico e de informações. Em 1962, na formatura dos alunos de História e Geografia, um incidente permite visualizar de forma antecipada, as primeiras tensões em

352

"As propostas dos estudantes contavam com o apoio de algumas autoridades religiosas das cidade, tais como um dos diretores da instituição, padre Antônio da Silva Ferreira. Ele se recusava a ter um envolvimento direto nos movimentos estudantis e era totalmente contra a violência, mas achava necessária a luta pela democracia. Era uma pessoa intelectualmente muito forte. Quando o convidávamos para assistir uma palestra ele dizia , "não, não me convidem para isso. Montem tudo e o que faltar vocês me chamem que eu faço". ( ...) o sacerdote agia como um pai que não quer que a filha namore, mas facilita a situação" Beatriz BORREGO, Letícia MARIA, Paula MAIA. Uma Lacuna na História; movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil, 2000. p.59. 353 O Centro de toda esta efervescência era o Centro Acadêmico, o núcleo, nisso entra a figura do Padre Ferreira, que era o Secretário Geral da Faculdade e professor de várias disciplinas, ele de acordo com os regimentos da Faculdade que acompanhava todas as assembléias do Centro Acadêmico. O Padre Ferreira – o que era interessante – não era nem conservador nem progressista, era um elemento de equilíbrio, fazíamos as reuniões e dois clérigos acompanhavam e as duas representantes das irmãs, expúnhamos todas idéias, se íamos participar de assembléias, de congressos, se iríamos fazer a semana de Salesianidade, que era feita nos anos 70 com toda a Faculdade cercada pela policia federal. Nesse movimento todo, o Padre Ferreira, sabia quando deveríamos brecar nosso ímpeto, ele dizia: “olha, cuidado, não é por ai, acho que vocês devem pensar isso, e ao mesmo tempo ele não impedia, - é importante que se diga isso -, que depois na década de 70, houve intervenções brancas no Diretório Acadêmico, a partir do momento que as coisas começam a mudar aqui dentro, a direção começa a interromper o Diretório Acadêmico, em função de tudo que estava acontecendo no país”. José Luíz PASIN. Entrevista - Lorena, CEDOC-UNISAL maio 2002. 354 Cf. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.177.

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nível Ideológico. Durante a formatura padre Nelo Tisotto, como paraninfo da turma, tem o seu discurso paralisado pelo diretor por sua clara afinidade com a esquerda: "Lembro-me355 bem, que na minha formatura em 62, o padre de Geografia Econômica (não me lembro o nome), começou a ler as apostilas de suas aulas. O General, o Coronel e vários pais saíram do auditório, causando aquela mal estar. Padre Leôncio pediu que concluísse seu discurso. Como continuasse, o padre Leôncio o interrompeu tirando-lhe das mãos o discurso, que era altamente subversivo. Voltando para Guaratinguetá com meu pai, que era fazendeiro, ele recriminava a situação questionando: 'foi para isso que eu coloquei você na faculdade? Está vendo toda esta coisa subversiva?' Meu pai tinha a mentalidade conservadora daquela época, e, por ser um homem de fazenda e da terra, ficou horrorizado com o que ouviu. Quando fui preso em 70 no Rio, ele falou-me: 'Eu não te avisei desses padres e dessas freiras?' De fato meu pai refletia a visão daquela sociedade agrária e conservadora do Vale Paraíba. Lorena e Guaratinguetá eram municípios produtores de leite e com uma elite dirigente extremamente conservadora356

O Seminário, ainda que fechado, sofre alguma influência da sociedade que o circunda. Percebe-se que de 64 a 68 existe mudança de mentalidade com certa abertura para o mundo político e, posteriormente, um abrupto fechamento em 1969, após o AI 5 e a tomada de posse do novo diretor357. Através de manuscritos da comunidade pode-se levantar esse processo de politização dos clérigos.

Um dos documentos que mais nos permitem verificar a realidade do dia-a-dia do mundo salesiano é o “livro das crônicas”, da comunidade. Alguns cronistas narram os fatos com detalhes, enquanto outros são sintéticos. Raramente se identificam. Essas crônicas são feitas por clérigos, obviamente que sob a "supervisão" de seus superiores, o que impõe 355

Este depoimento foi realizado numa forma coloquial. Dei-lhe um formato mais de texto escrito, mantendo porém absoluta fidelidade ao que foi falado. O original encontra-se gravado em fita e transcrito no CEDOC do Centro Unisal da Unidade de Lorena. Este procedimento foi adotado em todas as entrevistas. 356 José Luiz PASIN. Entrevista. CEDOC - Unisal - maio 2002 357 A direção de 1969 assim está composta: Diretor - Padre Anderson Paes da Silva; Vice Diretor- Padre Leandro Rosa; Tesoureiro - Padre Bonifácio Picinini; Secretário - Padre José Pereira Neto; Bibliotecário - Padre Milton Braga Resende; Conselheiro: Padre Vicente de Paula Moretti Guedes. Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.186.

Excluído: ¶

147

censura ao que é escrito. Os livros de Ata são escritos pelo secretário do Conselho da Casa e traz mais as discussões e deliberações dos superiores.

Uma retrospectiva de 1964 a 1969, através de uma análise dos conteúdos, nos permite reconstituir o processo de politização dos clérigos que tem o seu momento mais forte e visível no ano de 1968, para, a seguir, ter uma abrupta queda em 1969. A análise estrutural do documento nos permite visualizar isto. Percorrendo no livro das crônicas no ano de 1964 358, não se percebe quase nenhuma referência ao mundo externo porém no dia 31 de março de 1964, registra.

"Comemoração mensal de Dom Bosco. Não houve comemoração porque o rito não permitia. Bodas de ouro de ordenação do Rev.mo. Senhor Padre Júlio Deretz. Não houve festa porque se esperava comemorar essa data quando padre Júlio pudesse celebrar. À noite houve uma pequena manifestação de afeto. Passeio geral à fazenda do Mondezir. Recebemos a notícia do falecimento do senhor coadj. João Trombeta” 359

No dia primeiro de abril uma simples anotação: "30º aniversário da canonização de dom Bosco. Revolução no país. Demitiu-se o presidente e tudo se acalmou360".

Nos dias subsequentes ao golpe militar são tratados apenas aspectos do cotidiano. No dia 15 de abril do mesmo ano, numa nota lacônica, afirma: "Tomada de posse do novo presidente da República Ex.mo. Sr. Mal. Castelo Branco361.

No dia primeiro de abril, um dia após o Golpe do dia 31, o Capítulo da Casa reúne-se sem nenhuma referência ao golpe de 31 de março e, assim será ao longo dos meses. Tratam-se do cotidiano intra muros em cada reunião mensal. Nenhuma referencia à situação da conjuntura nacional. No dia 18 de setembro numa reunião extraordinária 358

O cronista do ano de 1964 é o mesmo por todo ano, como indica a caligrafia. Crônica da Casa, de 18/07/61 a 10/07/65 CEDOC - UNISAL. Lorena. 31 mar. 1964 p.117. 360 Ibidem. p.117. 359

148

com o Inspetor362 padre Daniel Bissoli, ao término da visita Inspetorial, há referências a várias reivindicações dos clérigos, todas elas de cunho doméstico. Apenas uma deixa no ar uma dúvida; Biblioteca: “só abre quando há um padre assistindo...” “não deixam ler certos livros...” e o senhor padre Inspetor comentou: “E isso é muito producente e louvável” 363

Ainda nessa ata discute-se o uso da batina em passeios, vista como incômoda. O padre Inspetor até consente em áreas desabitadas. Mas critica os que não usam batina para viagens a São Paulo.364 Quanto ao resto dos meses seguintes nenhuma referência à situação brasileira. A desinformação parece isolá-los numa ilha: fala-se de visitas, encenações teatrais, momento extras de oração e alguma eventual palestra. Durante todo o ano não existe um país com um regime militar.

Em 1966, percebe-se a entrada de notícias sobre um processo de politização do ambiente universitário. No dia 06 de agosto de 1966 fala-se de uma conferência sobre a Realidade Brasileira “onde o (orador) conferencista não compareceu” comparecimento acontece no dia 13 de agosto

366

365

.

O mesmo não

para se realizar enfim no dia 22 de

agosto. O palestrista é Franco Montoro que trata da “Realidade Brasileira: aspectos políticos do Brasil". "Foi aplaudido calorosamente - jantou conosco” estiveram ainda presentes Austhagésilo de Ataíde Carvalho Pinto.

368

· e no dia 22 visitas

367

. Neste mês

do ex. governador

Percebe-se uma mudança nas relações com o mundo externo e com

pessoas de influência na sociedade. Comparando-se a crônica de 1964, verifica-se num pequeno espaço de um único mês a presença de pessoas ligadas ao mundo civil, fora do âmbito meramente religioso. Anteriormente as crônicas nos narram os contatos com o 361

Crônica da Casa, de 18/07/61 a 10/07/65 CEDOC - UNISAL. Lorena. 31 mar. 1964 p.118. - Na Congregação Salesiana o termo "inspetor" equivale ao de "provincial" numa congregação religiosa. Ele é o superior maior de uma região cabendo-lhe o governo central deste setor em sentido amplo. Ele reporta-se ao Superior Geral mundial que na congregação tem o título de "Reitor Mor". 363 Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de 1966. CEDOC - UNISAL. Lorena. p.62. 364 Ibidem.. p.62. 365 Crônica da Casa, de 11/07/65 a 30/06/68 CEDOC - UNISAL. Lorena. 06 ago. 1966. p. 41. 366 Ibidem.. p. 41 v. 367 Ibidem. p. 42 v. 368 Ibidem. p. 42 v. 362

149

mundo externo eram visitas a igrejas, corais que cantavam, visitas em nível eclesiástico. Aos poucos novos “atores” começam a permear as crônicas do dia a dia do seminário369.

O cronista do ano de 1967 é bastante lacônico. Faz menção aos fatos rapidamente. Registra porém que no dia 26 de outubro vence no DA a chapa AGIR370, que será no ano seguinte a responsável por grande atividade do movimento estudantil de 1968, perdendo a chapa PAR371. Não deixa também de destacar o bom relacionamento dos salesianos com as forças armadas, quando notifica que em sete de setembro de 1967, padre Leôncio recebe a medalha do pacificador da parte do exército. Em 1968, no dia 25 de março os clérigos assistem ao filme Viva Zapata “que foi do agrado geral”

372

. No dia primeiro de Abril, o DA reúne-se em Assembléia

Extraordinária para analisar e tomar posição frente ao assassinato na Guanabara, pela polícia, do estudante Edson Luís de Lima Souto. No dia seguinte é feita caminhada de protesto até a catedral onde é celebrada missa. 373 Dia 08 de abril é realizada mais uma assembléia extraordinária do DA. No dia 20 de abril o cronista afirma a participação dos clérigos de palestra em São José dos Campos com o tema "Ciências na atualidade". Percebe-se cada vez mais uma abertura para o mundo para além da igreja.

369

Nos arquivos do CEDOC-UNISAL encontra-se um livro com o sugestivo título de “Casus Conscientiae et Questionis Liturgicae” que tem seu início em 14 de março de 1939 e termina abruptamente em 24 de junho de 1968. Neste livro não são descritos casos e as atas são breves e lacônicas. Apenas informam o dia da reunião e que foram tratados tantos casos de moral e tantos de liturgia. Certamente os conteúdos são confidenciais e são apenas assinalados como “casos”. O término dessas reuniões podem ser interpretadas sob a ótica de duas hipóteses: assinalar de um lado um certo desprestígio do controle das consciências com intervenção no privado, ou indicar que a crise da própria universidade não permitisse que reuniões tão sistematicamente realizadas sobre pontos considerados então poucos importantes diante do problemas presentes 370 AGIR - Aliança do Grupo de Integração e Renovação. 371 Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de 1966. CEDOC - UNISAL. Lorena.26 out. 1967. p. 79. 372 Ibidem. p. 79. 373 Crônica da Casa, de 11/07/65 a 30/06/68. CEDOC - UNISAL. Lorena. 06 ago. 1966. 25 mar. 1968. p.93.

150

A questão política preocupa. Na ata da reunião ordinária do Conselho da Casa do dia 28 de setembro de 1966 há o texto:

"Política Nacional: É deixado. Peço o favor de serem salesianos verdadeiros. A Doutrina e os princípios devem ser defendidos. Se o governo faz algo contra os princípios, paciência. Não tenho culpa. Mas devemos respeitar as pessoas. Na prática: os clérigos são imaturos e vamos nos calar. Contentemo-nos de expor os princípios. Leviandades podem nos levar as conseqüências graves em casa e na faculdade. É contra o espírito salesiano imiscuirmos na política".374

Essa preocupação já se manifestara dois anos antes: em primeiro de novembro de 1964 é feita uma reunião extraordinária do Inspetor 375 com todos os salesianos da casa. Comunica que tem recebido comunicações de Roma e do Santo ofício. Em alguns trechos manifesta a preocupação do envolvimento político de religiosos:

"Até padres e teólogos inteligentes com teorias que em pouco tempo fariam grandes estragos (...) não podemos formar nosso pessoal como há pouco tempo. Hoje se precisa uma formação mais sólida, profunda, clara e madura. Vocês devem ser mais rigorosos na admissão aos votos (...). Assiste-se a uma influência sempre maior de uma mentalidade racionalista que prescinde o espírito de fé, humildade, obediência, votos... (...) observa-se uma grande tendência ao que favorece o mundo: os divertimentos do mundo, jornais, revistas televisão. (...) procurar entusiasmá-los para nossa missão. Falar pouco de movimentos de apostolado de barulho... falar das atividades nossas. Coisas sociais... conferências... Aonde vamos? Será o superior a designar o salesiano para essas coisas e não o indivíduo a decidir-se. Muito cuidado em por os clérigos num contato com essas coisas. Bastam as idéias gerais. Claríssimas." 376

O fato é que após a revolução de 64 passa a existir uma maior aproximação dos clérigos com o mundo externo. Discutem-se questões políticas e percebe-se que há cada vez mais a preocupação com roupas civis pelos religiosos. Nas atas discute-se vicinalmente a passagem da batina para terno sacerdotal desse para a roupa civil. Da parte dos clérigos há sempre mais o desejo de estarem vestidos como o povo. No dia 21 de agosto de 68 é

374

Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de 1966. CEDOC - UNISAL. Lorena. p. 89v. O Inspetor é equivalente ao Provincial em outras congregações. É responsável por coordenar uma região. É a autoridade máxima local. 376 Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de 1966. CEDOC - UNISAL. Lorena. 25 mar. 1968. pp. 64v-65v. 375

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liberada a batina para os clérigos 377, sendo obrigatória apenas nas funções litúrgicas.378 No dia 22 irmã Iracema começa palestras para os clérigos sobre o cinema.379 Isso representa uma proposta de acolhimento de uma nova mentalidade. No dia 26 de agosto o livro das crônicas demonstra já uma nova situação:

"À noite, no auditório, reunida a assembléia universitária, para conscientização e elaboração de um programa para a reforma de nossa faculdade que estamos para iniciar. Resultado dessa reunião foi que serão suspensas as aulas por tempo indeterminado, para todos os dias, a partir das 19.00 h., na seção mista da faculdade, os alunos com os professores se reunissem para os debates. Os professores não foram muito bem aceitos para esses debates sob o falso signo do “paternalismo”. Resultado: constatou-se a necessidade da participação dos professores da faculdade nesses debates, pois que o assunto é bastante difícil e complicado. Em vista disso o horário380 da comunidade salesiana sofre modificações que são as seguintes: 6.30 – levantar, devido o prolongamento dos debates à noite na seção mista da faculdade, aonde vamos todos os dias livremente para participar dos debates que vão até às 22 h. 16.00h – Benção do (S)S. Sacramento e Leitura espiritual. 18.15 – terço e logo depois orações da noite na capela seguida do Boa Noite. 19.00 h. inicio das reuniões e debates na seção mista da Faculdade. (...) “381

Já no dia seguinte os clérigos tinham reunião com o padre Ferreira, “Para esclarecimento sobre o funcionamento da faculdade e sobre a reforma, lançada um tanto de improviso, por complicações do Diretório Acadêmico” 382

Já no dia 28 de agosto tem-se a primeira reunião com o padre Ferreira e posteriormente reunião da assembléia universitária, “para eleição da nova comissão central (...) porque

377

É sintomática esta data porque é exatamente neste período que estão acontecendo as Assembléias estudantis. Deve-se considerar dois pontos. Uma mudança de algo na época considerado tão importante, não seria realizado num segundo semestre de uma casa religiosa e no final de um mês. Isto sinaliza uma estratégia para que os clérigos pudessem participar das assembléias de forma mais discreta e sem se fazerem perceber como grupo de religiosos. 378 Cf. Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.6v. 379 Ibidem. p.6v. 380 Este horário "registrado oficialmente" no livro de crônicas não é de fato obedecido. A comunidade se organizava de acordo com a demora das assembléias e das reuniões após o encontro de estudantes. Os clérigos que estavam mais na liderança em muitos dias iam dormir até por volta das 3h da manhã. 381 Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.07 382 Ibidem. p.07

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a outra comissão fora toda debelada”.383 A presença dos clérigos nos debates estava desestabilizando as propostas da assembléia. Assim, no dia 07 de setembro, organiza-se uma assembléia extraordinária para que fossem aprovadas moções que não seriam, via de regra, aprovadas com a presença dos clérigos. O cronista narra:

(...) Às 15.00 h. , um grupo de clérigos foi participar, na seção mista da Faculdade, de uma reunião sobre a reestruturação da Faculdade, promovida ilegalmente por um grupo de estudantes. Isto porque não está no horário destes dias de trabalho, sobre a reestruturação, aos sábados e menos ainda no dia da Pátria”. 384

No dia 16 de outubro as aulas se reiniciam. Dom Cândido Padin , ligado a linhas progressistas da Igreja, realiza palestras sobre Medelin. Os seminaristas podem agora assistir TV em alguns momentos. Há maior distensão. Mas no dia 22 de outubro, “Às 19.00 h. fomos para a seção mista da faculdade para uma reunião extraordinária da assembléia dos alunos, para uma tomada de posição sobre a prisão385 do presidente do Diretório Acadêmico” 386

Malerba havia sido detido em Ibiúna, mas já no dia 24 a assembléia dos alunos realiza reunião de prestação de contas e apresentação dos candidatos para a gestão de 69. 387 O DA continua suas atividades, e, no dia 10 de dezembro, dom Cândido Padin e Dom Helder Câmara realizam conferência no auditório. O Cronista torna-se bastante lacônico com anotações sintéticas e não dando destaque ao evento. Vários cronistas se sucedem, com anotações sempre muito sintéticas e genéricas até março de 1969, o que indica um tempo de transição, sem uma direção muito clara, já que essas funções eram definidas e levadas com muita seriedade. A exagerada alternância de cronistas, indicada pelas diferentes caligrafias, pode indicar um tempo de função vacante. 388

383

Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.07v. Ibidem. p.08v. 385 Dia 13 de outubro em Ibiúna. 386 Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.12v. 387 Ibidem. p.13. 388 Ibidem. p.17. 384

153

No dia 06 de janeiro é anotada a indicação do novo diretor padre Anderson Pais da Silva. No dia 12 ele toma posse. Chegam novos padres, Cintra, dia 07 e Pereira dia 13389

Os livros das crônicas, por suas própria natureza, narram o cotidiano de um grupo. Se os fatos em si são objetivos, sua interpretação cabe ao cronista, que dá cor àqueles fatos que sua subjetividade valoriza. Portanto, a crônica está ligada a dois aspectos bem definidos: o fato acontecido e à angulação do narrador. Alguns cronistas deixam entrever sentimentos e posições pessoais na narração do evento; outros, friamente, anotam o fato sem maiores detalhes. Apesar porém das diferenças subjetivas dos que escrevem, uma análise estrutural dum livro de crônicas nos permitem entrever, apesar do brilho ou da opacidade de seus escritores, alguns elementos que fazem parte da objetividade dos fatos em si. Analisando os livros de crônicas dos anos de 1964 a 1971 podemos definir três tendências bem definidas.

No ano de 1964 o cronista é prolixo, percebendo-se neste período uma narrativa voltada unicamente para a comunidade. Ela parece pairar fora, não só do contexto nacional, mas da própria cidade. Ela existe “a se” nestes escritos. Pouca coisa é dita de fora. Destaquei atrás o fato do golpe de 64 merecer apenas uma lacônica menção. Cita-se apenas a posse do presidente Castelo Branco, e isso em pouco menos de uma linha. A partir de 66 até 68 percebe-se um crescimento de integração com a sociedade. Fala-se mais da Igreja, da sociedade, de experiências comunitárias, de cursos e palestras. O ano de 68 é marcado por intensa participação, interferindo inclusive no cotidiano da comunidade. O cronista, 389

. Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.17

154

apesar de circunspecto, obscurece porém os fatos, que narrados sem paixão, são porém assinalados como relevantes. Percebe-se as idéias de "participação" e "conscientização", conceitos presentes como reflexo de uma época e de uma mentalidade. Ainda que as descrições das assembléias não tragam a força das paixões que as envolveram, não deixa porém de assinalá-las e até posicionar-se diante delas. Na sua narrativa mostra-se como aluno participante do processo, incluindo-se sempre nos eventos que são narrados. A Prisão de Malerba em Ibiúna é citada. Em dezembro os diversos cronistas tornam-se lacônicos com simples notas.

O ano de 1969 mostra uma comunidade voltando-se para si. Não se falam mais em assembléias, em igreja local ou atividades externas. Até 1971 temos notas telegráficas dos acontecimentos e sempre se reportando para a vida interna da comunidade, não raro comentando o óbvio. Mesmo a figura de Dom Cândido Padin, até então propugnador de teses progressistas, aparece no contexto com palestras internas da Igreja, sobre "A figura do padre hoje e a estrutura e função de CNBB hoje". Parece que o bispo é convidado mais por ser autoridade religiosa, sendo-lhe porém passados temas que não apresentam conteúdos polêmicos390. Em alguns momentos o registro é frio como neste de abril de 1970: "22 – O P. Nestor Viaja 23 – O P. Prefeito foi a São Paulo. 24 – Chega o Pe. Nestor".391

Analisando a grafia percebe-se que essa atitude não é só de um redator. Ela perpassa todo o período. A Comunidade passa a existir enquanto objeto de crônica só para si, enumerando a maior parte das vezes alterações de calendário, viagens e fatos que fogem à rotina. Nosso objetivo não é aprofundar essa percepção, mas verificar como tais fatos sinalizam realidades diferenciadas. No primeiro caso estamos frente àquele fechamento do mundo salesiano oriundo desde o transplante no século XIX quando a congregação sobreviveu com suas próprias forças. Na segunda fase temos um engajamento social e 390

Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.27.

155

político como uma "join venture" com as novas mentalidades. E finalmente no terceiro período há um retrocesso, agora não natural, mas imposto. No dizer do padre Ferreira “a direção de 1969 viera para pôr ordem na casa392”. O silêncio instaurado pelo AI5 parecia também ter atingido padres e clérigos que tinham até então aderido a formas de engajamento político.

Se voltarmos um pouco atrás nos livros das Crônicas e das Atas, percebemos a preocupação com as atividades e envolvimentos dos clérigos fora do ambiente do seminário e a perplexidade que vai tomando os formadores por senti-los mais autônomos e auto-suficientes. Tudo isso é aparentemente anulado pela direção de 1969.

Os

formadores tinham sentido que algo estava mudando no contexto do seminário. Na reunião de 31 de maio de 1967 os formadores percebiam que algo se passava com os clérigos em busca de maior autonomia, que é citada como “críticas um tanto avançadas e imaturas”. Assim é registrado na Ata:

"Todo o tempo disponível foi empregado na colheita de alguns dados oferecidos pelos clérigos nesses últimos dias com o seu comportamento um pouco irrequieto, com algumas críticas um tanto avançadas e imaturas, com certas atitudes um tanto levianas. Com todo esforço por entender essas manifestações não chegamos a diagnosticar claramente os motivos. Parece, porém, que anda em tudo isso um desejo , talvez não muito consciente, mas real, de um diálogo efetivo para aumentar a responsabilidade na própria formação” 393.

Existe honestidade dos formadores. Não desejam manipular os formandos mas que se preparem para saber pensar. Nesta afirmação colocam um dos paradigmas fundamentais da proposta educativa de Dom Bosco que é o pleno uso da razão.

"Devemos levar os filósofos a que sejam homens maduros, adultos. Eles se sentem maduros, mas nas manifestações não o são. Ajudá-los à responsabilidade pessoal.

391

Crônica da Casa – 01/07/68 a 31/12/77. CEDOC – UNISAL. Lorena. p.33. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 393 Ata das Reuniões do Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia – 15/03/67 – 14/08/73. CEDOC-UNISAL. Lorena. p.05 392

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Habituá-los ao reto uso da liberdade. Desenvolver neles o espírito de iniciativa. É difícil usar a liberdade sem o espírito de iniciativa. (...) que clima criar entre os filósofos? Clima onde reine a razão. Com moços de 18 ou 20 anos é preciso raciocinar. Não se pode tratá-los só com imposição. A razão é a grande força humana.394

Os formadores são realistas, sabem que uma boa parte dos clérigos nunca chegará o sacerdócio e nem abraçarão a vida religiosa. Desejam prepará-los para o enfrentamento com o mundo. Na reunião do Conselho no dia 05 de março de 1968, o Conselho aborda o tema do “redimensionamento”, sem chegar porém, a conclusões 395 concretas e realistas. Talvez este seja um dos poucos lampejos de Protagonismo juvenil da parte dos formadores:

"...há necessidade de os clérigos obterem títulos acadêmicos (outros títulos além da Filosofia) também porque, sendo realistas, precisamos preparar os 80 % dos clérigos, que não ficarão conosco. Neste ponto é necessário deixar certa mentalidade tacanha (“ ristretta”) . Isso não nos adia porém a responsabilidade (...) em meio à atual confusão de idéias, a crise da autoridade e de obediência, devemos estar completamente com o papa. Por outro lado precisamos consultar os sinais dos tempos. Procurar compreender o que Deus deseja através das manifestações dos jovens” . (...) nossa preocupação deve ser de formá-los para os tempos atuais.396

Nesse ponto surgem problemas das leituras de Revistas. Nos conceitos tridentinos o educando deve preservar-se de tudo aquilo que possa por em risco sua opção pela vida religiosa e moral.

Há revistas como Fatos e Fotos, Realidade, que não devem estar na Biblioteca, à disposição dos clérigos. Para as outras é necessário formar-lhes o critério e a força de vontade para que não leiam o que não presta. Para os problemas de Rádio, cinema e TV vejam o que diz D. Riceri no Capítulo XIX”397

Em 1969 numa visita à comunidade o inspetor manifesta preocupação com os clérigos e seus contatos com os alunos externos. No ano de 1968 os clérigos haviam mergulhado no processo nas assembléias estudantis, tendo todo tipo de influência. Deseja-se agora o 394

Palavras do Inspetor padre.... In Ata das Reuniões do Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia – 15/03/67 – 14/08/73. CEDOC-UNISAL. Lorena. p.08 v. 395 Ibdem. p. 15 396 Ibidem. p.35. 368 Ibidem. p..35 v

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retorno ao enclausuramento, já que a "auto-suficiência" passa a ser vista como um perigo para a vocação dos formandos.

"Julgou oportuno, o Senhor Padre Inspetor, que as aulas de Filosofia para os clérigos não fosse feitas com alunos externos, mas separados. (...) Há clérigos, observa-nos padre Inspetor, que se mostram muito auto-suficientes. Se não vivermos sinais de verdadeira vocação será necessário tomar decisões mais firmes, permitindo-lhes uma experiência de vida prática salesiana” 398

Após o processo fracassado da Reestruturação, quando, não só foi aprovado um regimento com conteúdo apócrifo, mas ainda, a faculdade é de fato dividida em duas unidades independentes, surge uma reação dos superiores de São Paulo, buscando uma reorganização da Faculdade e da Comunidade Salesiana. Para quem olhava de fora, sem perceber os processos e crises que a comunidade salesiana vivera em 1968, a comunidade religiosa parecia ter se desorganizado totalmente. Os horários do seminário não eram cumpridos, os seminaristas vivam em assembléias vestidos a paisana. Tinha-se a nítida impressão de desgoverno e desarticulação da vida de comunidade. Os seminaristas estavam auto suficientes e com idéias próprias. Não era perceptível então para os superiores maiores399 que o que acontecera fora um processo que inclusive salvara a presença salesiana na faculdade. Assim no ano de 1969 é constituída nova direção da faculdade e da comunidade e o padre Anderson Paes vem, como já lembramos anteriormente, "para pôr ordem na casa400".

"A posse do novo diretor ocorreu em seção solene da Congregação, cercada de formalidades, a 14 de agosto do mesmo ano, com leituras de trechos da Sagrada Escritura em que 'se viam claras as dimensões da verdadeira autoridade'401".

Ata das Reuniões do Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia – 15/03/67 – 14/08/73. CEDOC-UNISAL. Lorena. p.49 v 399 O Inspetor e seu conselho que administram a Inspetoria e aos quais cabem as decisões em nível Inspetorial 400 Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 17 jul. 2002. 401 Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.186.

158

O diretor atacará várias frentes no sentido de reorganizar as estruturas do seminário e da faculdade. No seminário "é exigente 402" Era preciso que os clérigos se despolitizassem e voltassem as antiga disciplina e postura dos tempos passados. Os clérigos que não se adequam a esse retorno são dispensados. Há um processo de retaliação. Os clérigos encontram grande dificuldade de se adequarem, sobretudo pela experiência de inserção que tiveram em 1968. Há uma surda insatisfação. O novo diretor403 também assume postura firme com a UNE: "Pe. Anderson pegou muito pesado. A UNE quando começou tinha uma orientação de esquerda e marxista. Mas havia uma mentalidade adulta. Depois a UNE virou coisa de adolescente, (perdoem-me o pessoal da Une). Perdeu aquela base séria de estudo e de análise da realidade. O problema é que a UNE trazia soluções que não se adaptavam a Lorena. O choque com o padre Anderson foi forte porque ele possui um conceito muito forte de autoridade e é no tempo dele que surgem presidentes de DA que quebraram a tradição, de gente que com radicalizações, não possuíam a postura de Malerba, O Pasin, Almada, Balerini... que tinham capacidade política, que sabiam discutir, argumentar. Surgem presidentes com propostas clientelistas. Falta-lhes visão de totalidade” 404.

Finalmente com as irmãs os desencontros são tais que elas acabam por se separar em uma faculdade autônoma. Sobretudo a incapacidade de diálogo irá marcar todo o processo de ruptura entre os grupos, fazendo com que acabem por se criar uma incompatibilidade que se prolongará até os dias de hoje.

"Com tristeza relembro um período de crise da Faculdade, no momento em que as duas, 'Masculina' e 'Feminina' pareciam se dividir, sem ter nada uma contra a outra: brigam com os padres, as freiras, os alunos, incompreensões, discussões..." (Ney Guimarães). As divergências entre salesianos que dirigiam a Faculdade e as salesianas pertencentes ao Instituto Santa Teresa, foram se ampliando. Divergiam sobre o local de funcionamento dos cursos, sobre a atuação frente à situação política do país, sobre o 402

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 403 - A imagem do padre Anderson Paes neste período histórico nem sempre possui uma justa avaliação dos protagonistas do período. Em meio às fortes turbulências da décadas e da Instituição aparece como figura forte e até autoritária, tanto em nível de seminário como da faculdade. Foi com ele que aconteceu a ruptura com as irmãs consideradas progressistas para o período. Segundo porém o testemunho do padre Ferreira, "o seu diretorado trouxe para a vida da faculdade a consolidação de cursos novos, como Psicologia e Estudos Sociais, criação da Faculdade de Direito, equilíbrio da situação econômico-financeira da Instituição, criação de novos ambientes, etc..." Idem. 05 de outubro de 2003. 404

Ibidem.

159

movimento estudantil. O resultado final foi a separação, passando a sub sede a se constituir em faculdade autônoma em 1975".405

A década de 70 marca a implantação de um modelo tecnicista na educação no Brasil ainda que os salesianos tentem manter os paradigmas educacionais de Dom Bosco. O aumento da faculdade, o crescente distanciamento dos salesianos da cátedra, substituídos por leigos, à maioria deles não alinhados com o pensamento aristotélico-tomista406, o aumento excessivo de alunos por salas de aula407 e mesmo a decadência dos ideais do movimento estudantil, agora funcionando numa dimensão clientelista 408, vão fazendo que a Faculdade cresça, mas ao mesmo tempo vá perdendo seu ambiente de familiaridade e de cumplicidade que marcaram seus primeiros 20 anos. A Faculdade Salesiana neste momento, apaziguadas dos seus conflitos nos meados dos anos 70, parte agora para se estruturar como uma Faculdade em crescimento, sendo esse momento de expansão do Ensino Superior privado. A crise parecia superada.

405

Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.191 406 Cf. Ibidem. p.195 407 "A Faculdade foi criada para a formação dos seminaristas, e ao multiplicar seus cursos, ela se estruturou. Os alunos que fizeram o vestibular e concluíram o curso, voltavam para a complementação dos estudos" ( Guido Nascimento ). Nesse período de transição, a abertura os cursos de licenciatura curta e plena constituiu-se numa das mudanças marcantes. Foram realizadas para atender a demanda de mercado, provocando o aumento considerável do número de alunos por turno e propiciando o aparecimento de salas super lotadas. Cf. Ibidem. p.193. 408 Cf. Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002.

160

CAPÍTULO 7 A EMERGÊNCIA DA RACIONALIDADE ATIVA

Em 1969 a crise deixa o âmbito visível dos fatos, para entrar nas consciências. Na mente dos clérigos-universitários, dos fatos vividos emerge uma releitura de Racionalidade, que se constitui numa nova mentalidade, inicialmente marginal, contestadora. Os clérigos que viveram a crise Institucional e de Paradigmas desenvolvem uma nova forma de ver a Racionalidade como entendida até então. Essa tendência revisionista é própria do momento histórico. Egressos dos recentes eventos de 1968, quando viveram uma forte experiência de autonomia e ao mesmo tempo o contato com correntes de matriz marxista.

A visão de educação que até então estivera presente na prática do Instituto de Filosofia buscava ensinar "o que e como pensar", dentro das demarcações da ortodoxia católica. Todos deveriam configurar seu pensamento ao dos educadores, acreditando-se que a Suma Teológica possuía a chave filosófica da verdade. Ainda que estudassem autores diversos e de diversas épocas, o ângulo de avaliação dos mesmos era o da "sã filosofia" na ótica do "doutor angélico". A Faculdade Salesiana, sendo continuidade do Instituto de Filosofia, continuava a apoiar-se nos critérios educativos do Concílio de Trento, reflexo da própria prática da Igreja, que ao instituir os seminários, os mantinha sob rígido controle ideológico, impedindo leituras que colocassem em risco a fé e a moral. Mesmo neste contexto, existiram alunos que procuravam, secretamente, ter acesso aos conteúdos

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proibidos, o que era considerado orgulho intelectual e incapacidade de obediência. Apesar das mudanças da década de 60, o ambiente do seminário permanece fechado, com os internos, separados dos externos e tendo controladas as informações nas as "tiras de jornais” colocados nos murais, determinando o que podia ou não ser conhecido e pensado pelos formandos. A Faculdade mantinha assim critérios típicos de seminário que eram aplicados com maior rigidez para os seminaristas porque submetidos aos regulamentos e práticas da vida religiosa, mas que não deixa também de se estender aos estudantes leigos e leigos, de modo mais ameno, obviamente, porém não menos incisivo. Era uma mentalidade que se constituía como normal nas práticas da faculdade. Os salesianos só não contavam que as salesianas, mesmo dentro da mesma faculdade, porém em prédio diferente e com certa autonomia de governo, assumissem posturas muito mais livres de pensamento e ação do que as praticadas na ala masculina.

O primeiro grande equívoco, não percebido então com clareza pelos formadores, é que uma instituição de ensino superior, quando fundada, não mais poderia ficar restrita a um grupo de seminaristas católicos, quando, o acesso de “alunos externos” era considerado como um favor409. Tanto que nos primórdios, eles se restringiam a um pequeno grupo que devia se submeter a uma estrutura rigidamente católica. Num Estado constitucionalmente laico, mantinha-se como faculdade uma organização confessional estruturada como seminário. Toda a organização visava pois atender aos clérigos, que seriam posteriormente professores e diretores para todas as obras salesianas do Brasil e do cone sul americano. Portanto, apesar de atender aos aspectos legais do Ministério da Educação com referência ao Ensino Superior, tais exigências eram vistas de forma míope, como burocráticas, aplicadas a um seminário.

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"Organizada inicialmente paras habilitar os membros da congregação salesiana para o exercício do Magistério, teve que aos poucos ir cedendo à demanda da sociedade local e regional. (...) o corpo discente, nos anos iniciais, caracterizava-se por ser, constituído por clérigos salesianos, contando com presença diminuta de alunos externos, que no entanto aumentaram em número nos anos subsequentes, embora de forma lenta neste primeiro período". Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e ensino Superior. Taubaté: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2003. p.78.

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Neste contexto mantinha-se o paradigma “Razão” como elaborado por João Bosco para educação dos adolescentes, valorizando sua tendência gregária através do associacionismo. Acreditava-se que o adolescente necessitava da tutela dos educadores no entendimento do bem e da verdade. O uso da razão é então visualizado como "entendimento" do querer dos educadores, concebidos como detentores do “reto uso da razão” numa visão essencialmente aristotélico-tomista. A verdade precisa apenas ser apreendida pela razão, cabendo ao mestre mostrá-la na sua objetividade para que o educando a abrace. Essa idéia é também fortalecida pelo conceito religioso da “verdade revelada por Deus” que se impõe como um dado definitivo. Percebe-se o quanto é contraditório essa visão que estava na mente dos que assumia a direção da faculdade e da maioria dos professores. Ora, se essa mundividência permitia a elaboração de uma teoria educacional apoiada numa verdade inquestionável, porque objetiva, tal proposta se adequava bem ao seminarista salesiano que havia entregue sua vontade a um projeto de vida religiosa. É portanto natural, que para o clérigo na vida da universidade, ainda que trabalhando com a razão, não lhe repugnasse a idéia de uma obediência religiosa, expressa pelos ministros consagrados, ou uma obediência racional, expressa pelo doutor angélico. O processo da educação era o de se fazer conhecer a verdade pela razão e a ela aderir com a vontade. Aliás a educação das décadas anteriores valorizava o respeito e a obediência aos mais velhos, às tradições e aos costumes. A Faculdade Salesiana mostra uma tendência de ignorar, sobretudo para os formandos, o mundo que a rodeia, com rígido controle do acesso à comunicação com o mundo exterior, como nos testemunha o egresso José Paulino:

"Ao sair para enfrentar a vida laica até então desconhecida, eu só possuía os conhecimentos acumulados em minha experiência de quatorze anos de vida enclausurada, onde conseguira dois títulos acadêmicos, além de dois anos completos do curso superior de Teologia. Com esta bagagem comecei a procurar emprego na cidade de São Paulo. E comecei como agente previdenciário. (...) Não consegui durar sequer uma semana nesse emprego. Tudo me era totalmente estranho. Até mesmo as situações mais corriqueiras do cotidiano, como conversar numa mesa de bar, descontar um cheque, abrir uma conta bancária, falar sobre futebol, mulher, custo de vida. Esses assuntos, incógnitos para mim, eram fonte de angústias e de dolorosas aprendizagens. Para quem vivera quatorze anos em companhia de muitas pessoas e, de repente, começava a viver só, mesmo estando no meio da multidão, era uma sensação de

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deslocamento, como se estivesse num país estrangeiro, ou perdido em outro planeta, ou numa grande solitária410".

A preocupação do deste ex. manifesta como os conceitos eram rígidos em plena década de 60 quando uma parte dos jovens urbanos, sobretudo universitários, estavam envolvidos numa era de contestações que iam do campo moral ao político. Neste contexto, se rígido era o controle do ambiente físico, muito o mais o era no campo das Idéias. Certamente que em algum momento essas estruturas seriam abaladas pela pressão de mudanças em toda sociedade. No ano de 1968 porém esses acontecimentos se precipitaram quando nas Assembléias os clérigos vivem, a contragosto da maior parte dos formadores, uns momentos de liberdade de pensamento e de idéias sem a tutela dos religiosos que os educavam. 411".

Os rumos que assume a assembléia em 1968 configuram uma nova realidade para os pós noviços, quando são imersos num turbilhão de idéias até então olhadas sob o filtro dos manuais e mentalidade dos formadores. Depara-se com jovens marxistas com um bom conteúdo teórico, que podem mostrar com paixão suas convicções e crenças, e não com uma visão dessas idéias apenas como conteúdos aprendidos em manuais 412 para se fazer prova. No ato de argumentar e contra argumentar, colocam-se frente a frente às visões tomista e marxista413. O confronto de posições tão díspares supõe reais convicções de ambas as partes. A paixão do momento exige estudo, aprofundamento e bases de sustentação das próprias idéias. A repressão militar, a perda da liberdade e a consciência crítica diante da opressão são elementos que fazem parte do contexto. Os clérigos confrontam-se com a realidade política, social e econômica do país sem o filtro dos

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José Paulino da SILVA. Itinerário de libertação; a educação na encruzilhada entre o discursos progressista e a prática conservadora. São Luís: Sotaque Norte, 2002. p.63. 411 As convulsões ideológicas atingem indistintamente formadores e clérigos, existindo sobre os últimos uma forte influência do DA e da UNE. Até 1967 as direções do D.A. estão alinhadas com os salesianos, existindo real estremecimento com a gestão do Ivo Malerba. 412 "A desgraça dos grandes da filosofia é cair nas mãos dos professores. O gênio que vira manual ou objeto curricular do ensino oficial está condenado a um processo, quase infalível, de enfadonha banalização. A obra prima, no caso a Suma Teológica, será, antes de mais nada, achatada, para se acomodar aos programas didáticos. Será depois mutilada, senão esquartejada. Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a Nova era do Espírito. São Paulo: Loyola, 1998. p. 18.

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formadores, podendo desenvolver a dimensão crítica da realidade sem a tutela dos seus mestres tomistas. E, o aguçamento do espírito crítico, se permite avaliar a situação política do país, também faz ver as contradições do próprio seminário. Ao discutir sobre a definição dos destinos da faculdade, não podem ignorar o contexto histórico do controle ideológico da revolução, percebendo também que o mesmo acontece na formação, onde não só são conduzidos por uma única forma de pensamento, como também são despolitizados enquanto toda a sua vida depende da decisão de terceiros. Ao refletir sobre o todo percebem as contradições da parte. Esse exercício de busca do essencial permite-lhes perceber o contigente, e constatam que alguns elementos do seu cotidiano, colocados até então como dogmas, são relativos e questionáveis.

É importante notar que a Assembléia não trata apenas da faculdade, mas analisa o entorno político social e econômico do Brasil. Os clérigos defendem incondicionalmente a faculdade, porque salesianos. O nível das discussões é alto porque apoiado em princípios de autores com suas doutrinas amparadas em significativas bibliografias. As falas, argumentos e contra argumentos procuram ser fundamentados. O desejo dos universitários leigos de participar do gerenciamento da faculdade não deixava de ter algum eco também nos anseios mais profundos dos seminaristas, pois desejavam isso também para o seminário. A busca de liberdade, autonomia e auto gestão era um anseio tanto da juventude leiga como religiosa. Ainda que lutando pela faculdade, procurando que sua gestão não fosse entregue aos leigos, muitas das idéias e propostas calavam fundo na mente dos clérigos. O horizonte de possibilidades oferecido pelo seminário era limitado e controlado pela visão dos formadores. A leitura da realidade era feita a partir do lugar e da ótica dos superiores. Nestes embates agora eles podiam perceber outras angulações, outras percepções e outro lugar de ser ver a realidade. No calor dos debates e enfrentamentos certamente não aquilataram o quanto tais idéias, o do grupo rival, lhes caia na alma. Afinal como jovens, gozando de uma autonomia até então desconhecida, queriam a vitória. Mas ao retornarem para a realidade do seminário percebem com outros olhos o ambiente e a mentalidade em que até então tinham vivido. O fato é que o 413

Nem sempre as assembléias possuíam visíveis essas visões para um observador menos atento. Elas

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impacto sobre a mente dos seminaristas tinha sido grande. Em defesa da instituição haviam entrado em contato com informações que até então lhes tinha sido negadas. Intelectualmente bem preparados numa cultura clássica faziam contato com outras formas de pensamento e de "verdades" defendidas com paixão. Tudo isso coloca em crise a visão que até então tinham tido da própria vida no seminário.

O prolongamento da Assembléia a um ponto que cansa seus participantes, o medo de comprometimento do ano letivo, tem seu enfeixe na vitória das idéias defendidas pelo grupo moderado, representado em parte, pelos clérigos. Os ânimos se arrefecem com a prisão de Malerba no encontro da UNE em Ibiúna e com as retaliações do governo ao movimento estudantil, sobretudo a partir do AI5. Ao findar o ano letivo de 1968 o projeto de Reestruturação da Faculdade Salesiana conhece seu ocaso, frente ao Regime Militar que imporá com mão de ferro novos rumos para a sociedade e a educação. E essa atitude será de certo modo reproduzida com a posse da nova diretoria da faculdade no ano de 1969.

Terminados esses episódios, os eventos de 68, porém, ensejam na mente dos universitários salesianos a releitura dos paradigmas iluminadores de sua Congregação, onde as idéias de liberdade, participação e conscientização encontravam eco em suas mentes. O confronto com os líderes do DA deu-lhes confiança enquanto agentes de um processo em que a argumentação dependia de suas próprias potencialidades, apesar dos encontros com o padre Ferreira para articularem estratégias, eram eles, em suma, os agentes do processo414. Os debates os fizera tocar a realidade e interferir nela como agentes da história com todos os seus riscos e desafios. Nestes momentos suas vidas não eram conduzidas pelo sino, sinal do tempo de Deus, mas nos embates da cidade terrena com suas paixões e lutas. Nas assembléias percebiam-se agentes de uma história que teria o rumo que eles, por sua argúcia e esperteza mental, dariam. É dentro deste contexto que termina a assembléia.

eram porém o embasamento teórico de posições defendidas.

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O espirito crítico experimentado nas assembléias fez com que percebessem que muitas práticas da vida do seminário eram inadequadas para os novos tempos. Tradições, postas como verdades supremas passam a ser questionadas, pois não se permitem mais aceitar "verdades" que não passem pelo crivo crítico de sua razão. Desejam, agora, atuar como protagonistas e co-responsáveis frente à realidade. A obediência dócil deve ser substituída pelo diálogo, sabendo-se que vontade dos superiores muitas vezes identificada como a vontade de Deus, é de fato arbitrária e unilateral. Ao voltar à vida interna do seminário, trazem ideais de luta contra o autoritarismo e defesa de autodeterminação, querendo ser protagonistas de suas vidas e agentes dos destinos e caminhos da congregação, questionando os rígidos preceitos emanados da vontade dos superiores que, em nome de Deus, impõem a própria visão, e, não raro, os próprios caprichos na vida da casa de formação. Não há num primeiro momento a elaboração teórica de uma contestação do conceito de razão como fora entendida por dom Bosco. O que existe, inicialmente, é a intuição que a razão não é apenas para entender, mas para construir, participar, optar e intervir na realidade. Rejeita-se o autoritarismo não só do Estado, mas também da congregação. Como jovens desejam ser protagonistas na construção da história com engajamento político e social, ao defenderem a autonomia do pensamento e da ação. Racionaliza-se que Dom Bosco, no século XIX, fora um homem de seu tempo à frente de uma sociedade em mudança. Começa-se a intuir que não era necessário imitar as ações de Dom Bosco como no passado, mas apreender seu espirito e sua mentalidade. Padre Ferreira saberá respeitar o espaço de reflexão dos jovens415, exigindo somente um pensamento lógico, sem contradições, sabendo que a busca da verdade é um processo, não aceitando educadores que se encastelem em posições pré concebidas, mas não sustentadas teoricamente. Possuindo suas convicções, na contramão do dogmatismo, respeita o caminho intelectual dos jovens, desde que 414

embasados. Jamais negou suas posições, mas acreditava a

Era um processo que perpassava toda a sociedade, onde agora estavam imersos. Nas entrevistas percebe-se o profundo respeito que padre Ferreira sempre angariou de todas as alas. E em contrapartida, manifesta respeito pelos alunos que muitas vezes se opuseram a faculdade, reconhecendo neles conteúdo e conhecimento. Cf. Depoimentos de Barbacena. 17/07/2003. ( obs. Devese distinguir duas fontes de "Barbacena" ). Defino como depoimentos o material recebido e assinado. É diferente das "Entrevistas de Barbacena" que foram gravas e posteriormente transcritas. 415

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verdade, não se importando de que lado viesse e quem a proferisse. O importante para ele era o pensar com lógica, sem contradições, com honestidade intelectual e fundamentos. Não teme colocar-se ao lado o dos estudantes quando se torna necessária a tomada de posição, como no caso do “cortejo fúnebre” em direção da catedral num protesto promovido pelo DA pela morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima e Souto no dia 28 de março de 1968; os alunos passam por um verdadeiro paredão de soldados e a presença do padre Ferreira com sua batina preta e o prestígio que possui na cidade impedem alguma ação mais violenta 416. Procura intermediar as partes, tanto entre alunos e direção, como com alunos e exército não temendo tomar posições quando as coisas se radicalizam de um lado ou de outro. Sua coerência permitiu que passados os anos, os egressos dos conflitos da época, se refiram a ele sempre com respeito, assim como ele o faz nos seus testemunhos , quando se refere aos jovens que então faziam sua luta e reivindicações417.

Os superiores maiores da Inspetoria Salesiana de São Paulo porém não se conformavam com a desarticulação que estava vivendo Lorena. Acreditava-se necessário silenciar o ânimo dos externos e repor o seminário nos trilhos, restaurando-se a ordem e a disciplina da casa religiosa. Os superiores mostravam-se atônitos com a aparente desorganização do seminário em1968. Em documentos anteriores já vinham advertido sobre a dispersão e a perda do espírito religioso gerado pelos novos tempos. A greve estudantil e a Assembléia haviam lançado os seminaristas num estilo de vida considerado inadmissível, seja pelos horários desorganizados, seja pelo conjunto de ideologias veiculadas nas reuniões de estudantes. O novo diretor de 1969 vem "para colocar ordem na casa”

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com inequívoco retorno ao modelo do passado com seus regulamentos e a

tradições. Acontece porém que a experiência de engajamento e participação tinha sido tão forte nos clérigos que suas cabeças estavam diferentes. Os mais exaltados são

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Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 417 Em alguns momentos desta minha pesquisa ele advertiu-me algumas vezes que algumas figuras estavam sendo interpretadas unilateralmente e de modo injusto. Alguns desses personagens tinham se colocado inclusive contra ele. Pude perceber sempre o equilíbrio na análise dos fatos e das pessoas.

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acusados de "rebeldia intelectual" enquanto assumiam a postura e os "valores do mundo" e, como religiosos, manifestavam infidelidade ao fundador quando faltavam com a obediência e a humildade, querendo autodeterminarem a própria vida. É um momento de retaliações. Salesianos afinados com os alunos mais politizados foram afastados. Alunos que não tinham se adequado ao repuxo foram mandados embora. O livro de crônicas, termômetro do período, volta ao modelo de antes de 64 quando são dadas notícias domésticas, ignorando-se movimentos estudantis, governo, enfim, a vida "lá fora". A laconicidade retorna. Testemunhas da época narram que realmente foram calados todos os que pensavam, deste modo, ou foram mandados embora da congregação ou transferidos de casa se eram sócios perpétuos 419. Mas, dentro deste contexto, a própria Igreja oferecia elementos desestabilizadores. O período pós-Vaticano II é complexo, porque representa o embate de duas grandes correntes: um primeiro grupo pretende a manutenção das tradições e princípios da Igreja intactos, enquanto um segundo propõe que, através do "aggiornamento", faça-se uma configuração da Igreja para os tempos atuais. Muitos religiosos neste período vivenciam crise de identidade, enquanto sentem caírem um a um os referencias que até então tinham sido os iluminadores de suas vidas, nem sempre sendo capazes de se adequarem, racional e emocionalmente, aos novos tempos e às novas visões de mundo. Neste período de tantas mudanças a acusação de infidelidade possui um impacto psicológico forte nos religiosos. João Bosco havia elaborado um estilo de vida que deveria ser mantido, no conceito dos conservadores. Tal "fidelidade" chega a tal radicalidade no passado, que em Niterói, a guisa de exemplo, se quisera manter até os horários de comunidade praticados em Turim420. O conceito de tradição descia assim aos mínimos detalhes da vida cotidiana e, 418

Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo Vice diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. 419 Os salesianos possuem os chamados “votos simples” e “votos perpétuos”. Os votos simples são feitos anualmente pelos seminaristas que durante um ano pertencem à congregação. Anualmente após avaliados podem ser aceitos ou não para a renovação dos votos. A não aceitação representa imediato desligamento da congregação. Com os votos perpétuos passam a ter direito de estabilidade na congregação. 420 "Uma das dificuldades da instalação do modelo de internato foi o horário, o "controle das atividades", segundo Foucauld, uma velha herança dos monges, "especialistas do tempo, grandes mestres do rítimo e das atividades regulares". Os salesianos consideravam o modelo da escola de Valdoco ( Turim Piemonte - Itália ), criado pelo próprio Dom Bosco, como protótipo educativo a ser utilizado em qualquer parte e no todo. Logo de início, o Horário tornou-se tema de discussão: não podiam conceber outro. As cartas dos primeiros salesianos dele falam com emoção e saudade. Dom João Cagliero, ao visitar os três

Excluído: c

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era muito mais denso, quando se tratavam dos princípios elaborados pelo fundador. Na organização mental dos religiosos, sobretudo os mais antigos, a fidelidade às tradições da Congregação era fidelidade ao fundador. Assim, alguns clérigos, entram em crise de consciência ao perceberem que estão marcados intelectualmente por valores diferentes daqueles que tinham abraçado como religiosos. Alguns preferem abandonar a congregação por se perceberem em desarmonia com o modelo adotado 421 até então. Outros não se sentem culpados e assumem novas posturas 422 com coragem e determinação, vendo nisto uma espécie de missão e mística profética

"O primeiro passo no caminho que vai da opressão à liberdade só se dá pela consciência da vida de opressão. Daí por diante, a trajetória a libertação se impõe como vocação Instintiva423"

A repressão a estes é feita pelos superiores com firmeza: aos rebeldes é imposto o silêncio e a disciplina. Deveriam acolher as orientações dos superiores, sendo expulsos os que se manifestassem rebeldes, enquanto os outros, mesmo não concordando, deveriam amargar silêncio não expondo as próprias idéias 424.

colégios salesianos do Brasil ( Niterói, Lorena e São Paulo ) verificou que adotaram o brasileiro, e determinou que utilizassem o italiano, seguido pela casa Geral de Turim ( Valdocco )". Manoel ISAÚ. Luz e Sombras, Internatos no Brasil. São Paulo: Salesianas, 2000. p.208 421 Às vésperas de um torneio esportivo, na semana em que o provincial realizava uma visita canônica, recolhemos todos os guarda-pós ( capotinhos ), enfiamos tais vestes dentro de um grande baú abandonado num porão, passamos um cadeado e jogamos a chave no leito do rio Taboão da Serra, que passava no fundo do pátio da faculdade. Libertar-nos dos trajes "medievais", foi evidentemente, mais fácil do que desvencilharmos as teias de toda uma alienação nas quais nos encontrávamos entranhados. No entanto, trocar a vestimenta clerical pelo traje civil representava, para vários de nós, um gesto de rebeldia que iria culminar com a saída definitiva do seminário, com a ruptura com a vida clerical". José Paulino da SILVA. Itinerário de libertação; a educação na encruzilhada entre o discursos progressista e a prática conservadora. São Luís: Sotaque Norte, 2002. p.62. 422 No filme sociedade dos poetas mortos a cena final é significativa. O professor que tentara ensinar os alunos a pensarem é mandado embora e o colégio retorna aos moldes do passado. Mas isso só acontece no exterior. Quando o professor vai saindo da sala um aluno sobe na carteira escolar e depois vários alunos fazem o mesmo. A idéia é clara as estruturas externas não mudavam, mas a cabeça deles sim. Cf. Sociedade dos Poetas Mortos. Direção de Peter Weir. São Paulo: Touchstone Home Video, 1991. 129 min., color., legendado. ( Tradução de Dead poets society - Fita de vídeo - VHS/NTSC. Drama). 423 José Paulino da SILVA. Itinerário de libertação; a educação na encruzilhada entre o discursos progressista e a prática conservadora. São Luís: Sotaque Norte, 2002. p.14. 424 Este processo de retaliação envolvia também a congregação já que as idéias modernas estavam presentes em todos os meios , o que aliás era um fenômeno eclesial. Entende-se que após o Vaticano II tenha havido uma debandada de milhares de sacerdotes não conseguindo se enquadrar em novos valores ou sentido questionados os paradigmas que até então tinham sustentado suas vidas.

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O ano de 69 e a década de 70 são marcados pelo retorno ao passado. As experiências acalentadas na década de 60, que têm sua maior expressão nos eventos de 68, agora, são rigidamente reprimidas, nos seus ideais de liberdade, participação e conscientização. O novo Inspetor inicia um processo de retaliação a tudo que represente o novo. É a tradição procurando abafar as novas mentalidades. Procura-se reorganizar o seminário fazendo-o voltar ao que sempre tinha sido. A Congregação porém, em nível mundial, se ressentia das angústias e incertezas do tempo presente. Sendo uma Congregação nova, com pouco mais de um século de fundação, suas respostas aos novos tempos tendiam a ser rápidas. Enquanto Lorena vivia sua crise de identidade, em nível mundial reuniões de Capítulos Inspetoriais especiais procuravam diagnosticar a realidade e dar respostas imediatas aos novos tempos, desafiadores pelas novas mentalidades, e mais desafiadores ainda pelo "aggiornamento" proposto pelo Vaticano. É feita em nível mundial 425 uma pesquisa sobre a estrutura da congregação onde as pesquisas são publicadas detalhadamente em três volumes com o título "O que Pensam os salesianos sobre sua Congregação Hoje". Não é um documento oficial, mas um levantamento de dados com comentários e apresentação de resultados. Sobre a obediência, comenta-se:

"Os irmãos refletiram no conceito de obediência religiosa movidos por motivos personalistas, sublinharam que a obediência deve comportar maturação e desenvolvimento dos religiosos e que, ao mesmo tempo, exige deles uma participação ativa. O sentido comunitário de hoje leva-os a apresentar a obediência como procura comunitária da vontade do Senhor. (...) . Por conseguinte o Superior é visto como dócil indagador da vontade de Deus numa comunidade ativamente empenhada juntamente com ele na mesma procura".426

As angústias vividas pelos clérigos em 1969 são reflexo não de uma situação conjuntural, mas estrutural. Os seminários, por sua própria natureza de casas de formação, são mais resistentes ao novo e àquilo que é de vanguarda. As retaliações 425

Participam desta avaliação em Roma representantes de 76 países. As respostas dos questionários e seus comentários estão presentes em três volumes elaborado em Roma e Impresso Em São Paulo com o Titulo: Radiografia das Conclusões dos Capítulos Inspetoriais Especiais. SALESIANOS. O que Pensam os Salesianos Sobre a Congregação Hoje. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas.. 1969. v. I,II e III. 426 Idem. Radiografia das Conclusões dos Capítulos Inspetoriais Especiais; o que pensam os salesianos sobre a congregação hoje. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1969. v2.p. 164.

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sofridas são reflexo dos formadores, sempre mais alinhados com a tradição e, mesmo de grupos reacionários, que resistem a novos desafios. Neste período já existem estudos de João Bosco em nível cientifico, mostrando que ele fora um homem arrojado, muito além de seu tempo, vivendo choques com o governo e com a Igreja ao assumir um estilo de educação de vanguarda para os padrões do seu tempo. Neste período de incertezas, os referenciais de formação não são únicos, pois mesmo dentro da Igreja circulam diferentes interpretações para as novas realidades e os novos tempos. O Vaticano II então se preocupa com uma igreja integrada com as realidades do tempo atual.

Percebe-se que a fidelidade não se realiza na reprodução das ações dos

fundadores, mas na apreensão do chamado, "espirito o fundador", sendo essa uma angulação muito nova. A absorção desta idéia não é repudiada, ainda que inicialmente não tenha sido captada por Lorena. Os clérigos haviam conseguido que nas Assembléias prevalecesse a aprovação de suas idéias. Os que agora retornavam ao claustro tinham aprendido a lutar defendendo idéias como agentes estudantis. Acalmados os embates, algumas palavras estavam latentes em suas mentes: inserção, conscientização, participação. Essas idéias porém não são visíveis no mundo do seminário. documentos oficiais do período

427

Os

calam sobre isso. As crônicas, supervisionadas pelos

superiores, descrevem o cotidiano interno na sua previsibilidade. Os testemunhos de exseminarista da época lembram a inadequação dos seminaristas sentindo-se aprisionados física e intelectualmente no ambiente do seminário, sobretudo porque tinham mudado o seu modo de pensar sobre a realidade em que viviam. Após terem sido agentes e protagonistas dos eventos da política universitária, deveriam agora se submeter à vontade arbitrária dos superiores, aceitando práticas religiosas, culturais e comunitárias de décadas passadas, distanciados por altos muros da realidade e mentalidade do mundo externo. Os superiores lutam com dificuldades para contê-los. No Conselho Inspetorial428, distantes da química do cotidiano e dos conflitos vividos pela comunidade. Ficava a visão de uma casa que tinha se desgovernado, quebrando regras e 427

Atas e crônicas. Os salesianos desde de o tempo de Dom Bosco utilizaram uma terminologia leiga para se referir a sua organização administrativa. Assim substituem a Palavra "Província" por Inspetoria. Ela é governada por um provincial que recebe o nome de inspetor e é auxiliado neste governo por um Conselho, chamado de Inspetorial. 428

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tradições. Uma forte reação de direita agora se definia. Para os que tinham participado assembléias ficava agora difícil enquadrar-se, aceitar que outros pensassem por eles.

Aos seminaristas que viveram a experiência de 1968 coube o silêncio nos anos seguintes, sob a imposição dos conservadores, acolhendo as monótonas atividades conventuais do seminário. Em suas mentes porém existia um novo modo de ver a educação e a formação dos futuros salesianos. A racionalidade não deveria ser mais passiva, mas ativa. No seu envolvimento nas assembléias estudantis, tinham sido protagonistas e agentes de um processo histórico sem balizamentos pré-fixados. Emergia nesses jovens o conceito de uma racionalidade ativa que confronta, avalia, discute e busca a verdade. Esse estilo de pensar havia sido estimulado por alguns antigos formadores, agora afastados da faculdade e do seminário. Defendiam que essa forma 'rebelde" do uso da razão era uma forma de fidelidade ao fundador, como homem de vanguarda no seu tempo. Trancafiá-lo no cotidiano e nas práticas do século XIX, seria uma forma de infidelidade ao seu espírito. Um novo conceito crescia na mente destes jovens: tomavam consciência que eram agentes da história não como atores coadjuvantes, mas efetivos protagonistas. Não se pode ignorar que o pensamento marxista estava também latente nesta mentalidade, ainda que de forma diluída e discreta. Os conceitos de opressores e oprimidos, luta de classe e os conceitos da "Pedagogia do Oprimido429", somavam-se à nascente Teologia da libertação que se configurava com força maior sob o influxo de Gutierez na América Latina e por alas progressistas que começavam a ser capitaneadas por muitos líderes, entre eles Lonardo Boff e Pedro Casaldália, no Brasil. É impossivel, parece-nos, quantificar a intensidade do influxo de tais idéias em circulação sobre os formandos. Não há dúvidas porém, que elas estão subjacentes na mentalidade da época. Toda a redoma que o seminário tentara criar, isolando os pós noviços das "influências do mundo" iam caindo uma a uma.

429

- Paulo FREIRE. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1977

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Na aparente tranqüilidade do claustro "onde a vida voltara ao normal", uma nova geração aprisionada às regras e regulamentos do século passado, deixava suas mentes voarem e conceberem um novo modo de educar. As leituras paralelas e alternativas fora do currículo, os estudos da realidade externa e os eventuais atos de rebeldia contra a ordem vigente, iam configurando uma nova geração com valores diferenciados. A participação nestes eventos tinha-lhes dado nova leitura da realidade.

Os eventos das duas décadas fizeram surgir um novo tipo de salesiano, aberto a uma nova forma de educar, onde a racionalidade do educando é vista como criadora. A Faculdade Salesiana contribui com uma nova mentalidade, mais autônoma e livre. Os que "sobrevivem" às retaliações de demissões das décadas de 60 e 70, influenciarão as escolas salesianas para que se distanciem do modelo europeu conservador, educando novas gerações para uma racionalidade crítica, eficiente e libertadora. A Verdade, acredita-se, é construída por cada jovem confrontando-se com as realidades que o circundam.

Há uma releitura da Racionalidade como tinha sido concebida até então: Esta é a grande síntese que emerge dos jovens que viveram estas duas décadas. Entendem que João Bosco fora um homem de vanguarda e que soubera integrar-se com as novas realidades do nascente mundo industrial, e, ao elaborar seus paradigmas educacionais, não os concebera como peças monolíticas e estáticas, mas dinâmicas e capazes de responder ao seu tempo. Portanto, os discípulos do mestre tinham o direito, e até o dever, de não engessar o seu pensamento no século XIX, mas de torná-lo sempre atual. Era necessário "capturar" o espírito do seu pensamento pedagógico-educacional que se aplicasse às realidades do século XX, e não assumir uma prática que, se fora inovadora no século XIX, perdia sua eficiência frente a novos desafios. Essas idéias "contrárias à tradição" serão assumidas por muitos educadores que, quando jovens, estiveram imersos na crise de 1968. Essas "idéias inovadoras" serão incorporadas ao ideário pedagógico salesiano, na medida em que esses jovens do passado ocupem as cátedras e mesmo a direção do Unisal.

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Paulatinamente essa nova visão vai sendo alterada como referencial educacional. O conceito de Razão se materializa "no saber pensar", tornando-se agente da história. Os paradigmas da pedagogia salesiana continuam a ser Razão, Religião430 e Bondade431, entendidos não mais no seu sentido primitivo. A Razão, enfoque de nossa pesquisa, não é mais o entendimento dos ensinamentos dos detentores do saber, mas é, antes de tudo, a participação do jovem que constrói a verdade como agente da história.

Essa nova concepção de racionalidade aos poucos vai se implantando, gerando uma nova configuração entre educadores e alunos. O jovem, apesar de estar num processo de amadurecimento, é visto como protagonista da própria educação. Isso não diminui a importância do educador, mas este se entende como um parceiro que vê no educando não mais um mero receptor de valores e verdades formatadas, mas artífice de sua própria construção.

Certa ocasião quando folheávamos aleatoriamente livros numa biblioteca, nos deparamos com um que nos chamou a atenção. Mostrava uma estátua de mármore de um adolescente grego - símbolo da beleza, da arte, da perfeição e harmonia - que se auto esculpia. Tinha a parte superior do corpo completamente pronta. Com o cinzel e o martelo esculpia suas pernas pouco acima do joelho, onde o mármore mostrava-se ainda bruto. Era a obra de arte construindo a obra de arte, o homem se auto esculpindo. Essa imagem falava por si. O Educador pode fornecer o martelo e o cinzel, mas o processo educativo não acontece se o próprio jovem não é protagonista de sua construção. No conceito educativo salesiano, modernamente, o educando não é uma pedra bruta a ser moldada pelos educadores, mas é o agente de sua própria educação.

Os primeiros educadores salesianos acreditavam-se "escultores" de uma nova geração, "impondo-lhes", de certa forma, o seu modelo ideal de juventude. Os eventos da década 430

- A religião aplia-se para uma visão ecumênica. - A "amorevollezza" continua no seu sentido primeiro, agora apoiada com o auxílio da moderna psicologia. 431

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de 60 deram consciência "à própria estátua" que ela deveria se auto esculpir, podendo escolher formas e nuanças pessoais, longe de uma uniformização idealizada. A Educação passa a ser concebida não como uma fórmula pronta, mas como uma ação onde o mestre também tem que escutar e acolher opções e caminhos percebidos pelo educando. O mestre oferece seu saber, sua experiência e suas percepções, a educação porém só será verdadeira quando for capaz de respeitar a autonomia do educando.

Finalmente é importante salientar que essa idéia de "Racionalidade Ativa", se parece óbvia em si, dentro do ambiente salesiano representa uma alteração de um dos elementos fundantes da Pedagogia salesiana. Para os que se apegam ao passado isso pode ser visto como uma traição ao proposto pelo fundador, para o grupo de educadores porém, que foram moldados e emergiram dos eventos de 1968, é um ato de fidelidade. João Bosco dera respostas para as necessidades educativas das gerações de jovens do século XIX; caberia os seus discípulos apresentarem respostas para os novos tempos. Para estes, o adaptar-se aos novos desafios seria a forma mais adequada de continuar o ideal educativo elaborado por João Bosco.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência vivida pela Faculdade Salesiana de Lorena não se encerra no ano de 1969. Todo o fechamento e o retorno ao antigo sistema foi uma reação conservadora, buscando preservar o “status quo” até então existente. Ainda que institucionalmente tenha cessado a greve, que a UNE tenha sido extinta, que o seminário tenha voltado ao seu antigo modo de vida, existiram pessoas que vivenciaram um novo modo de ser e pensar, e, nas décadas seguintes, influenciarão a configuração do ideário da Instituição. Ainda que silenciados, os que ficaram no seminário serão os futuros agentes da educação salesiana nas obras salesianas do Brasil como professores, administradores e diretores.

Esses conflitos vividos foram fundamentais para configurar o rosto, os valores e a crenças do Unisal432 nas décadas seguintes. Estarão nos altos postos os egressos daquela crise. As tensões nunca estão de todo resolvidas, porque elas são da própria natureza da universidade. Ainda que existam os que oscilem entre a racionalidade passiva e a ativa, prevalece porém, a crença numa nova forma de educação, onde o jovem é concebido como protagonista primeiro e capaz de gerenciar seus caminhos na vida e na própria 432

- A Faculdade Salesiana, hoje, Centro Universitário Unisal, evoluindo dos antigos modelos, organizase numa dimensão de colegialidade e de diversos organismos com sua própria autonomia na gestão universitária. Está ligado a IUS, Instituição das Universidades Salesianas em todo o mundo. O Unisal, congrega perto cinco mil universitários, somente na unidade de Lorena, com 11 cursos, sendo dirigida da Unidade de Americana onde está a reitoria, que ainda preside as unidades de São Paulo e Campinas.

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história. É uma nova mentalidade de governo e de animação. No ideário dos que viveram a crise como alunos, prevalece o sentido de auscultar as bases sentindo seus anseios. Incrementa-se a organização estudantil. Anualmente professores e a própria instituição são avaliados pelos universitários, algo inconcebível no passado.

Os clérigos continuam a ocupar os antigos prédios anexos à universidade, existindo porém uma mudança significativa no atual modo de viverem: reúnem-se em assembléias onde podem expressar com liberdade seu pensamento e propostas para a congregação. Participam do Conselho dos Formadores, do Diretório Acadêmico e assembléias nacionais da UNE. O acesso a informações é irrestrito.

O sino, um resíduo do passado, continua a bater antes do nascer do sol, quando se dedicam a orações e meditações. Durante o dia estão no cotidiano da universidade, atuando em obras sociais, trabalhando com dependentes químicos, adolescentes que cometeram atos inflacionais desde pequenos furtos até assassinatos. Politizados, exigem direitos opinando e defendendo idéias. Muitas vezes com mochilas nas costas, de tênis e bermuda partem para as periferias da cidade, em nada lembrando os circunspectos clérigos do passado433, reclusos nos antigos pórticos com suas batinas e sonhos de autonomia na cabeça.

Deve-se considerar que já havia latente no período em estudo o desejo de um novo estilo de educação para as novas realidades. Em 1963, antes da eclosão da crise, existia já em muitos salesianos a preocupação de assumir o essencial de Dom Bosco, aquilo que fora definido como "espírito do fundador".

433

- Certa ocasião, quando um formador reclamava com um superior de que os clérigos estavam questionando seriamente uma atitude sua, teve do superior, egresso dos episódios de 68 e, de quem esperava uma reprimenda aos reclamantes, essa frase textual: “É ótimo que questionem pois é sinal de que pensam”. Aquilo que seria no passado tratado com reprimenda, é visto hoje como virtude e sinal positivo. As novas gerações de clérigos estão se formando num estilo pluralista, ativo, participativo e politizado. Seria necessário em nova pesquisa delinear o impacto da crise das duas décadas na formação do novo estilo de salesiano, pois ele dará o rosto a dezenas de escolas em todo o Brasil.

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"Sono tentativi, ancora incerti ed embrionali, inspirati tuttavia da amore sincero e fede sicura, di guardare alla sostanza al di là di enventuali forme caduche, di coglieri lo spirito nella lettera, di ricuperare tutto ciò che è vivo tra cose morte e secche, ad alimento di educatori non inerti, non insensibili alla meditazione, insoffrenti di eredità stanche e infrutuose, inconciliabili com "tradizioni" soporifere o paralizzanti. Um tale atteggiameno sembrava coincidere perfettamente sai con l`esigenza del tempo che com le caratteristiche del messaggio. L`inevitabile confronto tra il Don Bosco di ieri e il Don Bosco vivo nel suo pensiero e nelle sue opere oggi era imposto dall`inconfutabile irrepetibilità, più o meno ampia e profonda, di tutti e tempi e tutte epoche. Al "nihil novi sub sole" resiste tutto ciò che, al di del perenne e dell`essenziale, del necessario e dell`analogo, costituisce propriamente la 'storia'434".

É certo porém que os eventos de 68 em Lorena representaram um referencial significativo na elaboração da idéia de protagonismo juvenil, avançando-se aí mais que em outras regiões da congregação no mundo.

Foram idéias que nasceram de um

conjunto de influências que se projetaram inclusive em nível mundial pela liderança de seus protagonistas nos Capítulos435 mundiais, nos quais foram figuras de destaque.

Cada vez mais a racionalidade proposta pelo fundador é entendida como protagonismo do jovem e não como adesão a um saber pronto. Procura-se hoje aprofundar as intuições educativas de João Bosco. O passado não deve ser anulado, com suas contribuições, mas também não deve e nem pode ser entendido como um ideário petrificado, o que pode ser definido com a fórmula que Egídio Viganó, ex. reitor mor procurou sintetizar sobre a atualização dos salesianos no mundo: "con don Bosco e con i tempi."

Na Historiografia é preciso transcender aos fatos e ao episódico para as idéias que estão subjacentes a eles. A "captura" do essencial se realiza numa leitura acurada da trama do cotidiano que vai de fatos aparentemente frágeis e circunstanciais, que, interpretados, nos permitem apreender uma realidade imperceptível para um observador superficial. É assim que o longo dos anos uma Instituição de Ensino Superior vai construindo seus princípios, e, é nessa construção ao longo de sua história que se vai definido o seu perfil no conjunto de pessoas que a constituem, com “cores ideológicas” que acabam por 434 435

Pietro BRAIDO. Don Bosco Educatore Oggi. Roma: Tipografia Poliglotta Vaticana, 1963. p.10-11. - Esses capítulos são reuniões de representantes da congregação com pleno poder legislativo.

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predominar, como o marxismo, o positivismo, o liberalismo, a naturalismo e assim por diante. Alguns segmentos acabam por imprimir um tipo de pensamento predominante, compondo-se uma clara identidade institucional. .

Essa identidade institucional pode se organizar e forma difusa, ou numa sólida Escola. Serão então promovidos a professores aqueles alunos que além da competência, estejam afinados com o ideário em vigor. Esse processo porém não é pacífico. Dentro do ambiente universitário existe o embate de correntes, de escolas e mentalidades. É normal que algumas correntes conheçam seu ocaso pela perda de adeptos ou mesmo por retaliações de grupos em ascensão. Os chamados “postos chaves” são importantes porque, literalmente, abrem ou fecham portas. Os detentores do poder maior procuram garantir que os comandos de instâncias inferiores estejam afinados com seus projetos e ideais. Descuidos neste processo podem gerar a queda mesmo dos grupos que detém o controle maior da Instituição, e portanto das idéias por elas geradas e veiculadas. É comum ver em universidades grandes professores que vão aos poucos perdendo espaço com redução de aulas, falta de verbas para seus projetos, dificuldade de ajuda em publicações, vetos a iniciativas e projetos seus, porque não afinados com o grupo que detém o poder ideológico da Instituição. Basta que uma pessoa assuma o cargo de coordenador ou diretor e esteja afinado com as idéias deste docente para que exista uma mudança radical de posturas e espaço suficiente para o crescimento destas pessoas com as idéias que ela representa.

A

princípio não falamos

aqui de atitudes

maquiavélicas,

de

politicagem,

apadrinhamentos ou clientelismo. Aponta-se para algo mais profundo, o espaço do poder das idéias. Os problemas ideológicos de uma universidade não são problemas paroquiais, mas representam a chave das idéias que irão reger a sociedade como um todo. Serão elas que definirão políticas e verbas que serão aplicados em favor ou mesmo contra muitos segmentos sociais. Apropriar-se do comando ideológico de uma universidade ou mesmo de um ou mais cursos, representa gerar um grupo significativo de líderes da sociedade que lhe darão um determinado perfil e, essa mesma sociedade,

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realimentará essa instituição de Ensino, da qual assimilaram a formação. As universidades são portanto verdadeiros campos de batalha na dimensão ideológica. Longe de uma visão romântica de um professor dando aulas que apenas informa, está-se aí “fazendo a cabeça”, criando-se mentalidades, gerando-se crenças que serão posteriormente materializadas em atitudes pessoais e sociais. É por isso que grandes correntes políticas, econômicas, religiosas e outras lutam por ocupar espaços dentro do Ensino Superior, e, na medida em que o conseguem, procuram aí ampliar e solidificar sua presença. E, nem sempre a identidade oficial de uma universidade representa o conjunto de idéias que de fato são veiculadas por seus cursos. Que digam as “católicas” do Brasil afora... no nosso curso de História na Universidade Católica de Petrópolis, na década de 80, só tivemos apenas um professor que era tomista e portanto alinhado com ideário oficial da Universidade, no entanto mais de 70% do corpo docente era marxista, alguns militantes, com visível presença numa universidade conservadora na sua direção. Este curso colocava anualmente no mercado um bom número de ex. alunos com formação marxista que iriam atuar nas escolas, ampliando divulgando este ideário

. As universidades confessionais não possuem a ingênua visão de querer converter seus alunos, mas criar uma mentalidade dos líderes da sociedade alinhada com suas crenças e valores. Os alunos da Universidade de Pequim, quando no famoso episódio da Praça da Paz Celestial, quiseram fazer restrições ao governo comunista da China, foram massacrados porque suas idéias representavam a desestabilização do sistema político. “Idéias”, “Mentalidades” e “Concepções” são um capital aparentemente fluido, mas que podem mudar os destinos da sociedade e da nação.

O Ensino Superior é espaço da tensão, luta e confronto. Isto faz parte de sua própria essência. É por isso que no longínquo século XIII na Universidade de Paris o bispo Etienne Tempier retaliou o grupo de jovens professores, expulsando-os da cátedra. Nada muito diferente da Universidade de Pequim. Aqueles “perdedores” de Paris do século XIII tinham construído uma mentalidade entre seus colegas e discípulos de forma que não só retornaram à universidade como seus dirigentes, mas ainda dobraram e

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conquistaram a própria igreja impondo o aristotelismo como filosofia que dá base ao tomismo, erigido em filosofia oficial da cristandade e assumido recentemente pelo próprio papa João Paulo II no documento “Fides et Ratio”.

O Tomismo luta até hoje por manter sua hegemonia no pensamento cristão ocidental. Na Faculdade Salesiana de Lorena este confronto – este eterno confronto – aconteceu entre direção e alunos. Nada diferente, mais uma vez, da universidade de Paris do século XIII (os episódios da Praça Celestial viriam depois): professores banidos, alunos silenciados ou expulsos. A aparente extirpação “do mal”, que porém não teve sucesso. A Mentalidade, a “fluida força das idéias” havia conquistado mentes. Esses “perdedores” do século XX tinham construído uma mentalidade que lhes permitiu não só voltarem à faculdade como seus dirigentes, mas imporem seu pensamento como critério de formação de novas gerações. Mais cedo ou mais tarde novas idéias, novos grupos estarão de novo lutando por esse espaço. Aliás... este “mais tarde” pode estar sendo “agora” com forças aparentemente frágeis, mas que vão se conformando, como o magma, para futuras explosões e erupções, no universo geológico, chamados de vulcões, e no mundo dos homens, de crise. Assim como em alguns lugares da terra existem falhas geológicas que fazem prever com certeza terremotos “algum dia”, assim o ambiente do Ensino Superior, em qualquer Instituição, pode-se prever “tremores” mais cedo ou mais tarde.

Essas considerações nos permitem aquilatar a crise do Paradigma Razão na Faculdade Salesiana.

Não foi apenas a discussão de termos e filigranas acadêmicas.

O

entendimento da Racionalidade como concebido por João Bosco representava a direção que seria dada na formação de novas gerações de educadores. Este conceito-chave sofrendo alterações, representava então, na época, para alguns, o desmonte de toda uma forma de se educar. Pode-se então entender que os episódios da década de 60 e 70 foram significativos para o destino não só do seminário, mas sobretudo da própria Faculdade e de sua identidade como instituição de ensino. A luta para salvar a faculdade do controle dos alunos, teve um efeito colateral inesperado: deu acesso aos formandos a visões que

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até então lhes tinha sido negadas ou apresentadas de forma "domesticada". A descoberta da autonomia e as influências do marxismo adentram, qual caixa de Pandora aberta, nos ambientes do seminário. A Teologia da Libertação 436 já estava em processo de amadurecimento, mas não ainda em plena maturidade de idéias. Os referenciais ideológicos ainda eram confusos para os atores deste momento histórico. A descrição do suceder histórico, foi fundamental neste trabalho, pois foi exatamente na trama do cotidiano que as idéias foram gestadas e nasceram. O que pretendemos não foi realizar uma crônica, mas ler por debaixo dos fatos as idéias e ideologias que se confrontaram e lutaram pelo poder de formar as mentes nas Faculdades Salesianas nos anos dourados. As idéias não nasceram límpidas e transparentes, mas emergiram de forma imperceptível dos fatos vividos. Uma visão geral das Idéias então veiculadas só foi possível ser visualizada com a distância do tempo, quando só então os fatos puderam ser interpretados.

O enfoque do jovem como protagonista e como agente produtor do próprio caminho, foi a grande síntese da passagem da Razão elaborada por Dom Bosco no século XIX e alterada nas décadas após os anos 60.

Entender este processo é compreender os

caminhos a ser trilhados por essa Instituição de ensino no século XXI. “A História é mestra da vida”, dizia um velho adágio latino. O questionamento do Paradigma Razão não foi um mal na Faculdade Salesiana de Lorena, como intuíam seus diretores, mas uma etapa de crescimento da Instituição, conformando-se a novos tempos e novas necessidades. E, como dissemos, é da essência das universidades a tensão e a crise, pois, paradoxalmente, elas são necessárias para desestabilizarem, destruírem e permitirem construções de novas mentalidades para novos tempos.

Afinal, são os

Paradigmas que dão o referencial dos caminhos e destinos da Educação, e, apreende-los e saber de que se forma se irá educar as novas gerações.

183

436

- Neste trabalho demos pouco ênfase à Teologia da Libertação porque neste momento histórico ela ainda está se configurando.

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TOLEDO, Francisco Sodero. Historiador, professor do Unisal e da Faenquil, fundador do Instituto de Estudos Valeparaibanos (IEV). Seminário sobre os 50 anos do Centro Unisal de Lorena. Lorena, 23/03/2002.

Depoimentos escritos

FERREIRA, Antônio da Silva. Crise de 1974 - Lorena. Barbacena, 16 de julho de 2002. _______. Reforma Universitária Segundo as Leis de Diretrizes e Bases de 1961 e 5740/68. Barbacena, 16 de julho de 2002. _______. Centro Acadêmico e Diretório Acadêmico - Lorena. Barbacena, 16 de julho de 2002. ______. Seção Feminina da Faculdade Salesiana - Alguns Flashes. Barbacena, 16 de julho de 2002.

Textos de Arquivo

Ata da Casa - 14/03/1956 - 07/12/66 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. Ata da Casa - 1967 - 1976 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. DA João XXIII - Pasta I - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. DA João XXIII - Pasta 2 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. Crônica 1960 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. Crônica 1963 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. Crônica da Casa 18/07/61 - 10/07/1965 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal Unidade Lorena. Crônica da Casa - 11/07/63 - 30/06/68 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena. Crônica da Casa - 01/07/68 - 28/10/72 - CEDOC - Arquivo do Centro Unisal - Unidade Lorena.

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