A Encenação Documentária - primeira abordagem (2010)

May 19, 2017 | Autor: Fernão Ramos | Categoria: Film Theory, Film and Philosophy, Theory of Documentary, Film Aesthetics, Cinema Studies
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A Encenação Documentária

Fernão Pessoa Ramos
Professor Titular do Departamento de Cinema (DECINE)
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)




RESUMO: O texto aborda diferentes formas de encenação em tomadas da
narrativa documentária, classificando-as em três tipos: a) a encenação
construída; b) a encenação locação; c) a encenação direta, também chamada
de encena-ação. Estudamos a ação documentária na circunstância da tomada,
conforme se oferece para e pelo espectador. Em nossa conclusão,
vislumbramos como se coloca a questão do ator face os modos de encenação
documentária.




Alguns dos principais lugares-comuns na reflexão sobre documentário
estão relacionados à questão da encenação. Trata-se de tema onde grandes
confusões conceituais são permitidas. Vamos começar pelo primeiro mito a
ser desconstruído. Não é verdade que o documentário nasce se distinguindo
do cinema ficcional que se fazia em estúdios, no modo da antiga oposição
Lumière versus Méliès. O documentário surge utilizando largamente estúdios
e encenação. Boa parte dos filmes que compõem o que chamamos de tradição
documentária utiliza formas distintas de encenação. Trabalham em ambientes
fechados, preparados especificamente para a encenação documentária (os
estúdios), ou utilizam locação. Roteiro prévio detalhado e encenação são
elementos básicos para o documentário enunciar. É necessário, portanto, ao
pensarmos a encenação documentária, distinguir em sua amplitude a
modificação de atitudes que a presença da câmera provoca.
A encenação é um procedimento antigo e corriqueiro em tomadas de
filmes documentários. Vamos distingui-la em três tipos:
1ºTipo de encenação : a encenação-construída. O que chamo de encenação-
construída é um tipo de ação inteiramente construída para a câmera. Para
tal, são utilizados estúdios e, frequentemente, atores não profissionais.
Na encenação-construída a circunstância da tomada está completamente
separada (espacial e temporalmente), da circunstância do mundo cotidiano
que circunda a presença da câmera. A relação entre espaço-dentro-de-campo e
espaço-fora-de-campo é de heterogeneidade radical. Como exemplo, podemos
citar a encenação-construída em documentários como Night Mail, The Thin
Blue Line ou Walking with Dinossaurs (este último, um documentário da BBC).

A encenação-construída engloba um conjunto de atitudes desenvolvidas
explicitamente para a câmera e a circunstância de mundo que conforma a
imagem. Denominaremos esta circunstância na presença da câmera, de tomada.
Em Night Mail, clássico do documentário inglês, a cena em que os carteiros
estão dentro do trem distribuindo cartas em boxes, foi inteiramente filmada
num vagão estúdio, construído para as tomadas do filme. As condições
tecnológicas da época não permitiam tomadas daquele tipo, com aquela
imagem, em um vagão em movimento. A própria a concepção estética do
documentário griersoniano solicita fotografia sofisticada e angulações
rebuscadas. A fotografia característica do documentarismo inglês faz com
que a ação na tomada seja pré-concebida em seu desenvolvimento. Exige
preparação da ação, repetições, decupagem prévia e representação
especificamente voltada para as condições de luz e sombra exigidas pela
máquina câmera. Está fora de seu horizonte a dimensão estética do
transcorrer do mundo em sua intensidade e indeterminação.
No documentário cabo, manifestação contemporânea do documentário
clássico, podemos ver a dimensão que ocupa hoje a encenação-construída. A
produção citada da BBC, Walking With Dinosaurs, é realizada com material de
ponta em manipulação digital da imagem. Tomadas são realizadas dentro e
fora de estúdio, com intenso uso de trucagem. Tanto a manipulação digital,
como a encenação-construída em frente da câmera, são procedimentos
utilizados para obtenção da figura imagética do dinosauro. A encenação de
uma reconstituição ou reconstrução histórica sempre foi um gênero forte no
documentário do tipo A Vida de Cleópatra. O documentário baseado em roteiro
e decupagem prévia, com asserções sobre o mundo histórico, trabalha,
portanto, com imagens carregadas de trucagem digitais, obtidas em estúdio.
Ao analisar a amplitude da tradição documentária hoje, devemos reconhecer o
lugar de destaque que é ocupado pela encenação em estúdios de
documentários. A ação previamente encenada mistura-se a formas mais
contemporâneas, como depoimentos para a câmera e montagens com material de
arquivo.
2º Tipo de Encenação: a encenação-locação: A encenação neste caso é
feita em locação, no local onde o sujeito-da-câmera sustenta a tomada. O
diretor pede explicitamente ao sujeito(s) filmado que encene. Em outras
palavras, que desenvolva ações e expressões com a finalidade de figurar
para a câmera um ato previamente concebido. A encenação-locação distingue-
se da encenação-construída ao explorar efeitos próprios à circunstância de
mundo, onde o sujeito filmado vive a vida. Na encenação-locação a tomada
explora a tensão entre a encenação e o mundo em seu cotidiano. Existe aí um
grau de resistência entre a intensidade do mundo e a encenação
propriamente, que não está presente na encenação-construída. Esta tensão se
respira imageticamente enquanto estilo.
A encenação-locação envolve ações preparadas especificamente para a
câmera, mas nela já sentimos em grau maior a indeterminação e intensidade
do mundo em seu transcorrer. Para encenar, Flaherty viveu a dura vida de
Aran, do mesmo modo que viveu com Nanook. O encenar, para o diretor
americano, possuía um sentido distinto daquele que teve para o grupo
documentarista inglês dos anos 30. Nanook era efetivamente um esquimó. As
tomadas foram feitas em seu mundo, a Baia de Hudson, sob condições adversas
de temperatura, ainda que não exatamente aquelas que o filme representa.
Não existiam condições tecnológicas, no início dos anos 20, para se filmar
em locomoção pela região Ártica. O negativo, por exemplo, não tinha emulsão
em baixas temperaturas. A solução encontrada por Flaherty foi preparar a
ação do personagem, mantendo-se próximo a pequenos centros habitados onde
encenou o movimento de Nanook em terras distantes. Este tipo de encenação
documentária coloca questões éticas e estéticas, bastante distintas da
encenação-construída. Se o filme Nanook o esquimó fosse encenado através da
ação-construída, Nanook não seria o esquimó Allariak, mas um ator amador
japonês, representando um esquimó dentro de um estúdio, no verão
californiano, tendo acima de sua cabeça, fora de campo, um chuveiro jogando
flocos de isopor. Flaherty abominava a encenação-construída, como fica
claro em sua biografia e em diversos conflitos que teve com diretores
realistas hollywoodianos. É o caso dos desentendimentos com Murnau, por
exemplo, durante as filmagens do filme Tabú, de 1931. Na encenação-locação
reside um grau de intensidade da tomada inteiramente distinto daquele da
encenação-construída. O espectador não vê uma imagem de estúdio, mas vê uma
imagem da Baia de Hudson, e isto está bem claro pare ele, embora não esteja
claro que o iglú, no qual Flaherty mostra uma família abrigada do frio, não
pode ter teto para permitir a entrada da luz. Como a ética que rege a
fruição do documentário Nanook, o esquimó/1922, não é a ética centrada na
demanda de interação e reflexão, o fato da câmera não mostrar o iglú sem
teto, possui uma importância marginal para definirmos o campo ético deste
documentário.
Também Rucker Vieira destelhou casas para filmar o interior de
residências no documentário Aruanda e Linduarte Noronha teve problemas para
encontrar o garotinho que atua como filho na família que o filme mostra.
Flaherty igualmente tivera dificuldades para obter a permissão da mãe para
seu filho interpretar o menino da família nuclear em O Homem de Aran. Como
Flaherty, Noronha acabou escolhendo um líder comunitário da região, João
Carneiro, para viver o protagonista Zé Bento. Aruanda é um documentário
ligado às propostas do documentarismo clássico britânico, e tem sua ação
inteiramente construída dentro dos parâmetros éticos e estéticos da
encenação-locação. Dizer que Aruanda "faz ficção" é esquecer a tradição
documentária da primeira metade do século. Aruanda é um documentário que,
como tantos outros, reconstitui um fato histórico -a formação de um
Quilombo na Serra do Talhado por Zé Bento. Para construir sua narrativa e
estabelecer as asserções sobre este fato histórico, utiliza moradores da
região para encenar um pedaço da História, no próprio cenário em que vivem.
Análises fílmicas documentárias costumam descarrilhar quando os
procedimentos estilísticos da encenação-locação são analisados a partir do
campo ética definido pela preparação da encenação-construída ou pela
indeterminação da encenação-direta.
Há toda uma gama de filmes ficcionais que exploram a intensidade da
tomada. Diretores de ficção se especializaram em lidar com este tipo de
imagem e extrair o máximo efeito da intensidade da tomada em locações.
Afirmar que filmes ficcionais possuem uma característica documentária por
explorar a tomada em locação, demonstra falta de familiaridade com a
tradição documentária e com a tradição ficcional do cinema. Não só o
documentário trabalha amplamente com tomadas planejadas, fechadas para a
indeterminação, mas também, em toda a história do cinema de ficção, são
comuns tomadas sob a influência das condições intensas de locação. Filmes
de ficção, que trabalham com a intensidade da tomada, são apenas ficções
com traços realistas mais marcados. Nada possuem em comum com a narrativa
documentária, conforme a definimos como forma de enunciação assertiva.
3º Tipo de Encenação: A encenação-direta, que também chamamos de
encena-ação
A encenação-direta engloba uma série de ações e expressões detonadas
pela própria presença da câmera. Na encenação-direta, ou na encena-ação, os
comportamentos cotidianos surgem modulados pela intrusão do sujeito que
sustenta a câmera. Filmes como Entreatos e Nelson Freire (João Salles),
Caixeiro-Viajante (Albert Maysles, David Maysles e Charlotte Zwerin), Grey
Gardens (Albert Maysles, David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer), High
School (Frederick Wiseman), Santo Forte (Eduardo Coutinho), Coração
Vagabundo (Fernando Grostein Andrade), e boa parte da tradição documentária
que vem do Cinema Direto, pode ser citada como exemplo. Entre Maysles e
Wiseman a encenação-direta oscila. Os irmãos Maysles, embora sempre na
posição de recuo, costumam abrir espaço maior para o adensamento da
encenação, realçando personalidades que existem para a câmera. Coutinho, em
Santo Forte, e em sua produção recente, acentua esta tendência. Rompe a
inserção do personagem no mundo cotidiano para figurar uma personalidade,
compondo-a na forma depoimento. Já Wiseman assume de modo decidido o recuo
do sujeito-da-câmera. Sentimos em seus filmes mais o mundo em seu
transcorrer e menos o exibir-se para a câmera.
Pierre Perrault em Pour la Suite du Monde (1963), clássico do Cinema
Direto Canadense, recria, para o documentário, uma pesca de berluga que não
existe mais. A encenação dos pescadores de berluga no filme de Perrault
coincide com a encenação dos pescadores de tubarão em O Homem de Aran ?
Quando os pescadores falam para Perrault, sobre a proposta de encenação da
pesca eles não encenam. Eles estão falando sobre a ação da pesca, do mesmo
modo que Lula, na encenação cotidiana de seu ser, fala para João Salles em
Entreatos. No filme de Perrault, a encena-ação fica clara para o
espectador, é discutida e tematizada no próprio filme. Serve de motivo para
o detonar da narrativa documentária em um estilo bem característico do
Cinema Direto. A questão do filme não é encenar a pesca mas filmar a encena-
ação de uma pesca já extinta, através dos depoimentos dos pescadores. A
ação da fala sobre a encenação é o tema do filme, e não a re-encenação em
si de uma ação extinta (a própria pesca que não se fazia mais. Não há,
portanto, a encenação-construída desta pesca. Haverá sentido em chamar,
pelo mesmo nome, motivações tão distintas da mesma ação-encenar? Haveria
algo de comum entre o encenar da pesca de tubarão em O Homem de Aran, a
encena-ação dos pescadores de beluga em Perrault, e a encena-ação de Lula
para Salles?
A encenação-direta é a franja da encenação considerada ética pelo novo
documentário que surge na virada dos anos 60. Flaherty vive dois anos na
ilha de Aran, se aproximando gradativamente da população e filmando usos e
costumes do lugar. Apesar da convivência intensa com o mundo que filma,
Flaherty pensa a representação documentária, exclusivamente dentro do
horizonte estilístico da encenação-locação. Homem de seu tempo, não está no
horizonte de Flaherty a ética e a concepção estilística documentária que
irá fundamentar uma nova narrativa nos anos 60. Como exigir de alguém a
consciência de uma época que não é a sua, mas nossa? O Cinema
Direto/Verdade não encena, ou, ao menos, não encena dentro dos parâmetros
da encenação-construída ou da encenação-locação. Pode um documentarista,
que filma dentro da estilística da encenação-direta, pedir para o sujeito
na tomada repetir duas vezes a mesma passagem por uma porta, pois a luz não
estava adequada? Eticamente não pode. Não seria ético a presença de
procedimentos de motivação da ação, próprios da encenação-locação, em
filmes como Entreatos, Caixeiro-Viajante, Grey Gardens, Titicut Folies, Les
Glaneurs et la Glaneuse.
Em uma das passagens marcantes de Cabra Marcado para Morrer¸ Coutinho
pede ao personagem João Mariano para repetir uma cena, em função de um
problema técnico com o som. A magia da tomada se quebra e a sombra de uma
encenação, do tipo locação, subitamente aflora. A figuração do personagem
se adensa na imagem e sua persona, seu estar no mundo para o sujeito-da-
câmera, se afina. Em sua ética intuitiva, curtida no cotidiano de camponês,
João Mariano sente que há algo de errado no ar, e se cala. O embaraço,
seguido do silêncio, é o embaraço ético pela mudança de sintonia no
encenar. Coutinho percebe o tropeço e se esforça para sair da situação
delicada, tentando retomar o ritmo da vida no filme. Dentro da dimensão
reflexiva, própria à narrativa de Cabra, a quebra do código é exposta como
uma dívida ao espectador, como se ele merecesse uma explicação para a
presença deslocada da encenação-locação naquele espaço que deveria ser o da
encenação-direta.
O conceito de encenação perde consistência caso seja visto de modo
uniforme na história do documentário. Tudo se torna encenação, seja no
documentário, seja na ficção. Coloca-se no mesmo patamar uma encenação em
estúdio e uma leve inflexão de voz, provocada pela presença da câmera. Os
atos de encenação dos três habitantes de Aran que, sem nenhum vínculo de
parentesco, interpretam uma família nuclear, surgem como equivalentes às
atitudes afetadas de Edith e Edie Beale em Grey Gardens. Do mesmo modo,
podemos dizer que Lula, em Entreatos, não encena seu cotidiano de campanha
para a câmera de Walter Carvalho. Ele vive a vida de político em campanha e
a equipe de Entreatos o filma. Certamente, a presença da câmera e seu
equipamento flexionam, em alguma medida, a atitude de Lula. Podemos
vislumbrar, em diversos momentos de Entreatos, como também em Grey Gardens
(1975), ou Estamira (2006, Marcos Prado), a atitude exibicionista para
câmera, tão comum na circunstância de tomada, configurada pela encenação-
direta. Mas seria a encena-ação uma encenação propriamente?
No sentido amplo, todos nós encenamos em todo momento, para todos. A
cada presença para nós, tentamos nos interpretar a nós para outrem, e não
seria diferente para a câmera. Para cada um, compomos uma imago, e reagimos
assim à sua presença. Somos nós, através dos olhos de outros, agindo para
nós, conforme eu, sujeito, sinto ele, outrem-nós, dentro de mim. Não é
diferente com a experiência da presença da câmera e seu sujeito, na
circunstância da tomada. Apenas a mediação fenomenológica é um pouco mais
complexa. No caso da tomada, temos como alteridade não apenas a pessoa
física que sustenta a câmera, mas o endereço para o qual nos lança o
sujeito-da-câmera: o endereço do espectador em sua circunstância. Se Lula
ou Edie Beale encenam para câmera, encenam do mesmo modo que encenam para o
mundo que compõe seus personagens, e que os define, para si, como Lula ou
Edie. A câmera e seu sujeito são apenas um outro outrem. Outrem que possui
a capacidade de flexionar meu modo de ser, mas de forma similar a outras
alteridades que vêm bater em minha percepção. Este é, portanto, o campo a
partir do qual define-se a encenação-direta, um campo que, na realidade,
não pertence ao universo da encenação, conforme costumamos defini-la. A
encenação-direta não existe. Por isto, podemos chamá-la de encena-ação:
trata-se de um comportamento cotidiano, flexionado em expressões e atitudes
detonadas pela presença da câmera. Diferentemente, as encenações
'construída' e 'locação' envolvem procedimentos que deslocam a ação do
sujeito de seu transcorrer qualquer no cotidiano.
Em Santiago (2007), Salles revive fases de sua carreira, oscilando de
um tipo de encenação para outro. O filme mapeia esta oscilação entre o
período que vai de meados dos anos 90 a meados dos anos 2000. Santiago é,
na realidade, dois filmes em um só, o segundo debruçando-se sobre o
primeiro, através de um movimento reflexivo de má-consciência. Salles se
incrimina, e talvez isso faça com que praticamente não fale. Não é sua a
voz over do filme. Recrimina-se por haver filmado o "primeiro" Santiago (os
depoimentos de Santiago, propriamente) dirigindo as ações, da pessoa
Santiago, no modo encenação-locação. Isto, em si, não constitui nenhum
pecado ético, mas a narrativa o sente desta forma. No documentário moderno,
dentro do qual Salles situa hoje sua obra, o tipo encenação-locação, ou o
tipo encenação-construída, são vistos de modo bastante crítico. Em
Santiago, os dilemas em torno de como o mordomo Santiago deve encenar na
tomada, são sobrepostos aos dilemas da representação de um outro de classe,
dilemas acrescidos de um sentimento de má-consciência que percorre o filme.
Nas tomadas com o mordomo à diferença ética e estilística acrescente-se a
fissura da presença de um outro de classe. Outro de classe que se configura
não só através da experiência pessoal expressa pela voz em primeira pessoa
mas, de modo ainda mais intenso, por vir embaralhada à memória de infância.
O que Salles demanda a si mesmo? Que nas tomadas do primeiro Santiago já
tivesse a consciência crítica do documentário moderno, que então lhe
faltou. Que já estivesse em sintonia com as demandas éticas da encenação-
direta ou da encena-ação. Em outras palavras, que estivesse em sintonia com
a franja ética da encena-ação que o documentário moderno exige para que a
figuração de outrem, seja considerada ética. A má-consciência de Salles
quer que em meados dos anos 90, já estivesse sintonizado com um tipo de
documentário que chega ao Cinema Brasileiro no final da década, pelas mãos
de Coutinho: o documentário que explora, através da posição de recuo do
sujeito-da-câmera, o tipo/personagem, fazendo girar a corda da fala. Mas o
diretor consegue lidar com sua demanda em Santiago, apesar da falta de
perspectiva histórica e de condescendência consigo. Recuperando o fio da
meada, produz um belo documentário de dois fôlegos. No intervalo, entre o
primeiro e o segundo Santiago, compõe o retrato do artista quando jovem, em
busca de um estilo. No primeiro documentário que aparece em Santiago,
encontramos uma imagem ainda em sintonia com a encenação clássica. São
claras as tinturas pós-modernas, do tipo que vemos em América, documentário
dirigido por Salles em 1989. Em um segundo momento, já convicto da ética do
Cinema Direto, o diretor centra a voz na crítica da encenação-construída e
clama emotivamente pela ausência da encena-ação. O clamor e a culpa nos dá
uma clara medida da forte interação existente entre valores éticos e modo
de encenação.
Seu colega da produtora Videofilmes, Eduardo Coutinho, leva adiante
os dilemas da encenação em Jogo de Cena (2007). O filme evidencia a intensa
presença do tema no documentário contemporâneo brasileiro. Coutinho
sobrepõe à encenação-construída de atrizes a encena-ação da fala, que ganha
corpo em depoimentos de vida. O deslize no modo de encenação se aproxima de
um fake documentary, numa forma narrativa que fascina particularmente a
sensibilidade contemporânea. Em Jogo de Cena, por exemplo, a atriz Fernanda
Torres tenta, sem sucesso, encenar uma personalidade no modo construído, na
forma que, enquanto atriz, está habituada. No entanto, a gravidade
documentária do sujeito-da-câmera Eduardo Coutinho a desloca para o campo
da encena-ação onde seu modo de encenar gira em falso, fazendo com que
literalmente desabe. Marília Pera enfrenta o mesmo problema, ressentindo-se
do campo reduzido que o modo da encena-ação documentária apresenta para o
exercício de seu talento de atriz. O campo do documentário é
tradicionalmente o campo da encena-ação do sujeito no mundo; ou, ainda, o
campo da encenação-locação, ou da encenação-construída, do sujeito que
interpreta a cena na tomada (em O Homem de Aran, por exemplo). Podemos
concluir que a construção da ação na cena documentária envolve modos de
presença onde atores profissionais (e particularmente 'estrelas', que
possuem tipo de presença mais marcado) têm dificuldade para levantar vôo e
respirar, singularizando assim uma forma narrativa dentro do universo
cinematográfico.
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