A epopéia do futebol e a construção de heróis nas crônicas esportivas de Nelson Rodrigues

September 14, 2017 | Autor: Anna Diniz | Categoria: Identidades, Futebol, Imprensa Esportiva, Crônicas esportivas
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A epopéia do futebol e a construção de heróis nas crônicas esportivas de Nelson Rodrigues1

Anna Carolina Paiva DINIZ2

Resumo Este artigo é parte de uma pesquisa que verifica de que forma o jornalista Nelson Rodrigues contribui para o reforço do mito de uma identidade nacional solidificada no futebol. Para tanto, este trabalho analisa a crônica Descoberta de Garrincha com o intuito de perceber de que forma este autor constrói heróis com uma rica “brasilidade”. São destacados elementos textuais (adjetivos, expressões hiperbólicas, etc.) que dão liga a essa vertente de identidade nacional. Para que este estudo seja completo, serão abordados alguns conceitos de crônicas bem como a inserção deste tipo de texto no jornalismo brasileiro. Palavras-chave: Crônicas esportivas. Futebol. Identidade. Imprensa esportiva.

Introdução Antes de tratarmos da crônica como um texto no jornalismo esportivo – mais precisamente na obra rodriguiana, que é o objetivo desse trabalho – é preciso verificar a trajetória histórica desse gênero. Façamos um breve apanhado histórico: voltemos 500 anos. Quando os portugueses atracaram suas caravelas em território brasileiro, as crônicas já eram bastante difundidas nos países europeus não como conhecemos hoje em dia, mas como diários de navegação. Os relatos de viagem eram bastante comuns e recebiam o nome de crônica, pois tinham ar finalidade de resgatar o tempo. O mais famoso dos cronistas foi o português Fernão Lopes, que tinha por função registrar os feitos dos reis de Portugal. Outros como Colombo, que descreveu o novo mundo em seu diário, ou como Caminha que contou sua primeira impressão sobre o Brasil em carta ao rei de Portugal, deram os

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Artigo fruto da pesquisa para o trabalho de conclusão Futebol e identidade nacional: análise das crônicas esportivas de Nelson Rodrigues sobre a copa do mundo de futebol de 1958 apresentado em junho de 2010 no Curso de Comunicação Social/Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão – UFMA, São Luís. 2 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão

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primeiros contornos ao que viria a se tornar, nos fins do XIX e inicio do século XX, um gênero bastante popular no Brasil. A crônica ganha nova forma com os folhetins: É exatamente como folhetim que a crônica surge no jornalismo brasileiro. Um espaço que os jornais reservam, semanalmente, para o registro do que aconteceu no período. Sua redação é confiada a escritores (poetas ou ficcionistas). Segundo Afrânio Coutinho, o folhetim começou com Francisco Otaviano, em 1852, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Ali, ele assinava o „folhetim semanal‟. Seus continuadores são José de Alencar, Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Raul Pompéia, Coelho Neto, etc.”, (MELO, 1994, p. 151).

Ainda segundo Melo, “pouco a pouco o folhetim foi assumindo a característica que o tornaria um gênero autônomo no nosso jornalismo, desvencilhandose da seção de variedades. Transformou-se em crônica” (MELO, 1994, p. 152). A partir da década de 1930 é que a crônica se consolida e ganha bastante aceitação nas páginas dos jornais brasileiros.

Foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres. Nos anos 30 se firmaram Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo seria o cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga. (CÂNDIDO apud MELO, 1994, p. 153)

Segundo Melo, essa aceitação se deve a alguns fatores chave: a Semana de Arte Moderna de 1922 que difundiu idéias de brasilidade – o tom coloquial dos textos atesta que não cabe mais um tom bacharelesco que não refletia a realidade nacional – e o desenvolvimento da imprensa que agora passa tomar rumos empresariais. Nesse contexto, o cronista se torna “um interprete das mutações que dão nova fisionomia à sociedade brasileira.” (MELO, 1994, p.154). Pinheiro (2009) vai além da análise do conteúdo destacando que: Se as crônicas jornalísticas têm quase obrigatoriamente por tema fatos e assuntos da atualidade, o mesmo não se dá com a complexidade de sua forma: esta abarca tanto o movimento da cidade contemporânea ao

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narrado quanto os jogos e ritmos da cultura enquanto a cidade se veio construindo até o agora. De qualquer maneira, sempre uma das marcas da crônica será esse gesto de aproximação entre o lido e o acontecido, como se o contato manual de dobrar e folhear em banca, bar, praça ou trem, fizesse parte (e faz) das técnicas e processos narrativos desencadeados pela imprensa, mas já dentro de outros contextos de luz, distância e proporção. Trata-se de crônicas de costumes, de política, de carnaval, artes, futebol, a tendência dominante é a prática de um humor carnavalizado, do paródico ao grotesco, que, em certa medida, e junto a certos procedimentos específicos de construção textual, fazem autor e leitor participarem (ou parecer participarem) do evento (como foliões, artistas, jogadores, etc.) (PINHEIRO, 2009, pp. 24-25).

Assim, o autor e o leitor estão em um mesmo contexto social. O dia-a-dia, o cotidiano e as coisas que nele acontecem afetam os dois – guardadas as devidas proporções de status social. Os dois, leitor e autor, estão ligados em política, futebol, carnaval, mesmo que torçam para times diferentes, sejam avessos ou prós carnaval, gostem ou não do governo, os dois dividem esse contexto, estão a par do que acontece e o que os une é a linguagem que aproxima quem escreve de quem lê. A construção textual – expressões populares, a coloquialidade, a oralidade – é que vai ditar o ritmo de aproximação ou afastamento. Pinheiro (2009) destaca ainda que, além da peculiaridade da forma e do conteúdo da crônica, este texto, devido a mobilidade do jornal (pode ser levado pra qualquer local), perpassa ambientes de leitura externos e privados fazendo-se, dessa forma, presente em variados contextos.

O cotidiano esportivo nas páginas dos jornais: a crônica de esportes

Não é difícil de perceber que temos contextos convergentes: a crônica é uma análise do cotidiano; o futebol é um esporte do cotidiano. Nada mais natural que este, tão em voga nesse período, fosse tomado como tema por vários escritores. Temos, dessa forma, um contexto de extremo entusiasmo com as coisas nacionais – estamos falando dos primeiros anos do governo Vargas –, principalmente com o futebol. A mídia, por meio dos cadernos esportivos, dos cronistas que, em grande parte, colorem os feitos dos jogadores com tintas fortes dando a estes contornos de heróis.

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Não defendemos aqui a ideia de que todos os leitores, todo o país tinham uma visão otimista sobre o futebol e que todas as pessoas que consumiam essas mídias aceitavam a ideia de construir uma nação por meio desse elemento.Muitos intelectuais desse período3 achavam absurda a difusão do esporte. Mas não podemos descartar a influência da imprensa esportiva no imaginário coletivo da época que, por sua vez, estava muito propenso a aceitar essa visão. Consideramos aqui o fato da autoridade da palavra do jornalista, como analisa Vannucci: Na medida em que interpretam a realidade e constroem um texto histórico que é aceito pela comunidade dos leitores, os jornalistas se colocam como autoridades culturais que se atualizam através do tempo e do espaço. [...] Esse modelo de intelectual-jornalista [...] parece encaixar-se perfeitamente à figura do cronista – pelo menos, a do cronista com espírito critico e margem de independência em seu espaço autoral. Em boa medida imunes às regras castradoras da prática jornalística, os cronistas têm maior liberdade e autonomia para exercer a autoridade cultural e jornalística na divulgação de visões alternativas do mundo. Ao fazê-lo, tem possibilidade e o objetivo de persuadir o público a aceitar seus pontos de vista. Nem por isso, devem ter como meta agradar a sua audiência. Ao contrário, devem admitir a missão de suscitar perplexidades. (VANNUCCI, 2004, p. 43)

As notícias e comentários em textos de jornais e no rádio eram consumidos num contexto maior de extremo otimismo com as questões nacionais. Além do sucesso do futebol, o presidente Vargas lançava a campanha “o petróleo é nosso” e os artistas iam a Europa expor obras com temas nacionalistas. Como foi analisado por Vannucci (2004), jornalista tem status de autoridade intelectual e por estar nesse contexto de otimismo, seu texto acaba reproduzindo algumas ideias que começam a se consolidar nesse período. Dos anos 40 aos 60 do século passado, construiu-se uma ideia de futebol arte. Tivemos um pequeno período de pessimismo entre 1950 e 1958 – depois do Brasil

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Graciliano Ramos, por exemplo, sob o pseudônimo de J. Calisto, disse que “por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente [...] um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês” (RAMOS, 2007, p. 36). Para ele, o futebol era um esporte intruso incapaz de ser assimilado. Além disso, Ramos se mostra resistente ao que vem de fora e declara que “temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O futebol não pega, tenham a certeza” (Ibid., p. 36).

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perder a copa de 1950 e com a eliminação na copa de 1954 – mas que foi logo superado com a conquista de 1958. As bases da crença no futebol-arte são muito sólidas, não se pode negar. O brasileiro via a seleção canarinho conquistar seu espaço jogando com graça, com leveza, vencendo potências européias que estavam em um nível de desenvolvimento acima do nosso. Ou seja, tínhamos uma espécie de trunfo que nos tornava “menos subdesenvolvido”. Nas crônicas esportivas, geralmente, elege-se um personagem principal sobre o qual se tece uma narrativa que, em grande parte, contribui para a transformação de jogadores em heróis nacionais. Aqueles que se destacavam em uma partida difícil ou conseguiam uma sequência de bons resultados, garantiam espaço nos jornais e tinham grande tendência a tornarem-se ídolos eternizados nas crônicas de grandes autores. Dentre os cronistas de grande destaque na imprensa esportiva, podemos elencar os irmãos Rodrigues (Mario Filho e Nelson Rodrigues), João Saldanha, Armando Nogueira como os com obras mais consistente no que diz respeito a esse tipo de produção. Cada um deles tomou o futebol ao seu modo e ajudou a construir essa espécie de mito que é o futebol arte brasileiro. Entre as décadas de 1940 e 1960, a maior parte dos grandes heróis – durante a copa de 1950 no Brasil, os grandes vilões – eram os jogadores negros de origem pobre. Segundo Lovisolo & Soares (2003), o bom desempenho nos gramados fazia com que os jogadores tivessem um estímulo a mais para mostrar seu bom futebol. A boa atuação poderia render ao jogador bons salários, visibilidade na mídia e credibilidade com a torcida. O estilo de futebol do brasileiro, individualizado, cheio de dribles, estilização e improvisação seriam ferramentas com as quais o indivíduo oriundo das massas pode obter notoriedade e mobilidade social (LOVISOLO & SOARES, 2003, p. 138).

E criou-se ídolos em série. Garrincha e Pelé, por exemplo, até hoje têm status de semi-deuses. A seguir, entraremos no universo jornalístico de Nelson Rodrigues. Destacaremos de sua produção a crônica Descoberta de Garrincha escrita durante a copa do mundo de futebol de 1958, quando o Brasil ganhou seu primeiro

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título na categoria. Mas antes disso, é necessário que destaquemos a estética dominante na narrativa deste autor, para em seguida, por meio de uma análise narratológica, possamos perceber como este autor constrói uma pátria que calça chuteiras.

A estética neobarroca na América latina e a teatralização do cotidiano nos textos de Nelson Rodrigues Os jornais do início do século passado tinham uma veia literária amplamente trabalhada e o jornalismo dava bastante ênfase às sensações: os fatos eram mais táteis, mais visíveis, mais palpáveis. Essa característica é percebida claramente na literatura latina por meio de uma forma de expressão barroca (ou neobarroca por ter ganhado novos contornos na América), já que o texto latino americano tem “um modo específico de utilizar a linguagem, de dispor a frase, conferindo ao texto um sentido que é o da sua prometida teatralização” (VASCONCELOS apud RODRIGUES, p. 2009, p. 112), pois “o americano não recebe uma tradição verbal, mas a coloca em atividade, com desconfiança, com encantamento, com atraente puerícia” (LIMA apud RODRIGUES, 2009, p. 111). A estética barroca surgiu na Europa e tem como principal meta a quebra com as linearidades e a previsibilidade do classicismo. Sobre o barroco, Marques (2000) afirma que: trata-se de uma arte da comunicação, do comprometimento persuasivo, da desafeição satírica e afetividade erótica de metáforas extravagantes. Podemos dizer ainda o espaço do movimento, tensão, estado de excitação e deslocamento, gozo dos sentidos e arte da persuasão (MARQUES, 2000, p. 146).

O barroco na América Latina (neobarroco) tem como um dos pilares culturais a questão da mestiçagem. Esta é tomada como uma característica que sintetiza a colonização, portanto é assumida como um signo cultural. É sabido que a colonização latina não se deu como nos Estados Unidos com Reformistas ou representantes da Renascença européia, mas sim com “nômades, vagabundo e foras-de-lei ibero-indígeno-mouriscos” (MARQUES, 2000, p. 167) e, em seguida, com o contato com africanos e nativos, fizeram com que, de cara, nos

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deparássemos com uma variedade cultural que desconstruia linearidades. Portanto, a América Latina constrói-se desde sua gênese com uma tendência barroca. Essa atitude neobarroca faz com que se criem novos espaços, do dialogismo, da polifonia, da carnavalização, da paródia e da intertextualidade, o barroco se apresenta, pois como uma rede de conexões, de sucessivas filigranas, cuja expressão gráfica não seria linear, bidimensional, plana, mas em volume, espacial, dinâmica. Na carnavalização do barroco insere-se, traço específico, mescla de gêneros, a intrusão de um tipo de discurso em outro (SARDUY apud RODRIGUES, 2009, p. 112).

Percebemos essa característica neobarroca logo na primeira crítica de jornal escrita por Nelson Rodrigues em março de 1936 ele ataca a ópera Esmeralda do veterano autor brasileiro Carlos de Mesquita recriminando-o por este ter ido buscar inspiração na “Notre-Dame de Paris”. Para o jornalista, faltava em Esmeralda: a impaciência nevrótica dos barulhos que nos cercam: o estardalhaço dos bondes, das carroças, dos vagões, a sirene das fábricas, a velocidade das rotativas, os pregões, as campainhas, as brocas de asfalto, o uivo nostálgico das locomotivas, o apito do vapor. Eu me pergunto, o que pode representar esta senhorita como documento de dor, de alegria e, por último, como documento humano? [...] Se o maestro se dispusesse a investigar bem, concluiria surpreso que, na sua própria rua, existem personagens à altura de uma ópera, e personagens já urbanizados, humanizados dramatizados pela vida mesma. Em suma: gente que vai sofrendo, sonhando, amando e sorrindo, não com poses convencionais, e sim histérica e grotescamente, com esgares caras feias, ríctus tremendos, babas de ódio, medo e lasciva. O maestro precisa conhecer melhor os seus semelhantes. Lembro ainda que procure adquirir uma cultura mais freudiana”. (CASTRO, 1992, p. 140).

Mesmo com um apelo modernista percebido quando este autor evoca elementos que nos remetem à evolução e o progresso das cidades como, por exemplo, os sons fortes das buzinas, sirenes, das locomotivas, também a velocidade de veículos e da rotina – elementos que não condizem com o marasmo sugerido em Esmeralda – vemos que todos esses elementos combinados nos remetem a sensações de caos e turbulência tendo em vista uma seleção de palavras que teatralizam a vida urbana por meio do elemento barroco da proliferação que consiste em substituir o significado por uma cadeia de significantes que agem de forma metonímica. É uma “enumeração

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disparada, acumulação de diversos nós de significação, justaposição de unidades heterogêneas, de lista díspar e collage” (SARDUY apud MARQUES, 2000, p. 104). Nelson Rodrigues também evoca o elemento humano que, em alguns autores, se perde dentro dessa modernidade, mas que, para ele, deve ser um item levado em consideração, ou melhor, deve ser tido como elemento central convivendo e dialogando diretamente com todo esse caos moderno. Daí o motivo pelo qual Nelson Rodrigues convida Carlos de Mesquita a conhecer a obra de Freud. O jornalista se mostra insatisfeito pelo fato de não encontrar o cotidiano urbano nas óperas brasileiras. Naquela época – décadas de 1930-40 – ainda percebia-se claramente uma tendência à reprodução dos modelos europeus, mas Nelson Rodrigues queria ver o ambiente urbano, as cores da cidade pulsando nas obras brasileiras. Por isso, em sua primeira crítica sobre as óperas queria ver a gente que sofre, que sonha, “as babas de ódio e o medo”. Queria ver nos palcos o que via nas ruas e também na intimidade mais escondida, velada nos lares daquela época numa tentativa de desnudar a “burguesia” brasileira/carioca do início do século. Nelson Rodrigues queria contar seus causos urbanos, por isso, em 1941, Nelson escreve sua primeira peça: A mulher sem pecado.Num intervalo de quatro anos, o dramaturgo já tinha feito uma verdadeira revolução no teatro brasileiro. A sua veia dramática – em grande parte fruto do jornalismo praticado no início do século XX que tendia à exacerbação das sensações e à literatura – influenciou também a sua obra jornalística, como vimos. Percebemos essa tendência a teatralização na obra jornalística na série A vida como ela é..., sucesso no jornal de Samuel Wainer – Ultima Hora – e nas crônicas esportivas onde a dramaticidade faz das partidas mais simples, verdadeiras epopéias, como veremos a seguir na análise narratológica da crônica Descoberta de Garrincha.

Descoberta de Garrincha: a produção de heróis

Em 15 de junho de 1958, o Brasil jogou contra a temida Rússia que era apontada como uma das grandes favoritas ao título. No dia 21 de junho, Nelson Rodrigues escreveu a crônica Descoberta de Garrincha na qual relata como foi a partida.

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O intuito do autor é mostrar a graça dos dribles, a graça de ser brasileiro e de fazer do futebol mais que uma competição: o futebol para Nelson Rodrigues é arte. E nesse jogo, Garrincha, o personagem da semana estava, segundo o autor, em “estado de graça.” Bastava ao Brasil o empate, mas o placar final foi 2 x 0 para nossa seleção. Nelson Rodrigues exalta a simplicidade de seu personagem principal que, antes de ser um jogador, é um homem humilde de uma cidadezinha mineira: seu Mané, o Mané Garrincha que nos primeiros três minutos de jogo, segundo Nelson Rodrigues, “disparou pelo campo adversário como um tiro” e assim, “driblando um, driblando outro e consta que numa penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin” (RODRIGUES, 1993, p. 53). Vemos que, para o cronista, Garrincha não foi simplesmente avançando em direção à área russa: ele penetrou de forma fantástica desbancando, inclusive o líder político russo que, obviamente, não compunha o escrete daquele país. Dessa forma, por meio da substituição de uma expressão prosaica indicando avanço ao ataque, Nelson Rodrigues transcende o campo do esporte aludindo questões políticas e conduz o leitor a pensar que naquele momento o poderio russo, seja ele esportivo ou político, cairia aos pés dos jogadores. Ninguém lembraria que naquele momento o Brasil era uma nação fraca economicamente e com graves problemas sociais, pois os filhos desses problemas – os jogadores de origem humilde – estavam mostrando como uma potência européia que o futebol racional era falho e a graça e a leveza da ginga, do drible e do talento individual do futebol reinventado era a medida do sucesso. Percebemos que o autor tenta nos mostrar que a autoconfiança é um fator decisivo para as partidas. Se Garrincha não tivesse confiado que podia driblar todo o time russo, o Brasil talvez tivesse sofrido durante o jogo. No trecho que segue, percebemos bem esse aspecto: Só Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o Lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. (RODRIGUES, 1993, p. 54).

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É interessante destacar nesse trecho que, segundo o autor, pouco importa para Garrincha a importância das sumidades russas: o que realmente importa a ele são suas origens, assim, o cronista constrói um herói bastante ligado às origens e que não teme o poderio russo. Muitas são as metáforas usadas nesse texto para realçar o “espetáculo” desta partida o que faz do jogo uma epopéia. “Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: baile, sim, baile!” (RODRIGUES, 1993, p. 53). Neste trecho, o autor observa que a partida foi mais que uma apresentação: foi um baile. Ele usa a repetição da palavra para enfatizar que o jogo foi um “show de bola” por parte de Garrincha. Em outro trecho, o autor diz que “quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo” (RODRIGUES, 1993, p. 54). Nelson Rodrigues utiliza mais uma vez da substituição através da hipérbole para criar imagens que darão ao leitor a medida do que este imagina que tenha acontecido. Sobre a utilização dessas hipérboles, Marques diz que Diante delas, nossa leitura, frequentemente condicionadas à linearidade do texto, depara-se com situações de choque e de atrito que se multiplicam em processos de abismamento. Cria-se outra sintaxe de leitura, que avança e recua constantemente por meio de movimentos lúdicos de significantes e significados – que não servem senão para erotizar o código. E, como uma das alavancas desse processo, temos então a utilização incessante de adjetivos e processos frasais de adjetivação. (MARQUES, 2000, p. 147).

A linguagem, em Nelson Rodrigues, precisa estar apoiada na figurativização da palavra, pois é a partir disso que o leitor criará novas sínteses visuais e sintáticas, por meio do surgimento de imagens totalmente inusitadas e hiperbólicas (MARQUES, 2000, p. 103). Ainda Marques (2000), tomando a ideia de Afonso Ávila (ÁVILA apud MARQUES), retomando a ideia da tendência à estética barroca: O barroco assumiu por vezes a feição de arte persuasória, cumprindo seu papel de estética a serviço da Contra-Reforma, ou seja, como porta-voz da igreja em reação ao humanismo crítico e ao racionalismo do Renascimento. Em suas crônicas esportivas, Nelson Rodrigues opera uma expressividade semelhante, uma vez que ele não se limita a

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comentar as partidas ou seus “personagens da semana”; ele parece travar uma luta interminável contra todos aqueles que não pensam o futebol utilizando-se de suas ferramentas e de seu aparato imaginativo. Por isso, muitos de seus textos assumem esse mesmo tom de arte persuasiva, pois é a sua percepção que quer fazer prevalecer, numa tentativa de convencer seus leitores valendo-se de metáforas e imagens (MARQUES, 2000, p. 173).

Sobre a reação do público que via a partida na Suécia, o cronista diz que estes soltavam uma “gargalhada cósmica” cada vez que Garrincha dava um drible, que os russos tinham a “inocência de passarinhos” e que, com os dribles iam ficando nervosos “com uma raiva obtusa”. Todas essas expressões hiperbólicas ajudam a configurar as imagens da realidade que o autor queria passar: um espetáculo que gerava um prazer aos olhos de quem assistia à partida e a reação dos russos que passam de inocentes pássaros a indivíduos com uma enorme raiva. Com essas metáforas, hipérboles e sequências de adjetivações, o autor acaba construindo um jogador indefectível e este ganha status de herói nacional por fazer com que o país ganhasse visibilidade por meio de um futebol tido como mágico.

Considerações Finais O Brasil entrou no século XX com o intuito de se “civilizar” a todo custo. Esse pensamento foi bastante difundido principalmente entre as elites que procuravam imitar os modos de conduta europeus para tentar alcançar um nível de civilidade. O futebol chega ao Brasil como uma prática de um esporte nobre unicamente por ser praticado na Inglaterra. Logo de cara, as elites o tomam para si como uma prática que tornava os praticantes mais civilizados. Logo nos primeiros anos, o esporte vai caindo no gosto popular devido a sua prática de fácil assimilação deixando de ser unicamente praticado pelas elites urbanas. Nas décadas de 1930 e 40, o esporte ganha o gosto popular e tem-se a profissionalização e a participação da seleção brasileira em competições internacionais. Todo esse contexto de euforia pode ser percebido por meio de uma análise da imprensa da época. O rádio era a vedete, mas as crônicas esportivas também eram consumidas pelos torcedores e esta, por estar veiculada nos jornais e este ser um suporte que, pela natureza dobrável e

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maleável, perpassa vários espaços tanto públicos como privados e o seu conteúdo era apreensível direta (pela leitura) ou indiretamente (pelos comentários de quem as lia). Dessa forma, as ideias dos cronistas que, como mostrou Vannucci (2007), são uma espécie de “autoridades intelectuais”, e trabalham, no caso de Nelson Rodrigues, principalmente, com uma linguagem persuasiva, ganham status de verdades quase que irrefutáveis. O discurso de que temos os jogadores foram grandes heróis nacionais, que são retrato fiel de nossa pátria e que, por isso – pela prática do futebol –, nos tornamos menos subdesenvolvidos trabalhado de forma repetitiva e apaixonada, envolve com uma manta de verdade absoluta o que foi dito pelo cronista alicerçando a construção da ideia de uma identidade nacional sintetizada no futebol.

Referências

BARRETO, Lima. Marginália. São Paulo: Brasiliense, 1961, p. 63 In: MORGADO, Andrêya Garcia da Paixão. Um jogo de letras: a crônica literária e o futebol. 2007. 164 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007. CASTRO, Ruy. Anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. LOVISOLO, Hugo Rodolfo. SOARES, Antonio Jorge. Futebol: construção histórica do estilo nacional. Campinas, Rev. Bras. Ciênc. Esporte v. 25, n. 1, p. 129-143, set. 2003 MARQUES, José Carlos. O futebol em Nelson Rodrigues. São Paulo: Educ/Papesp, 2000. MELO, José Marques. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994. PINHEIRO, Amalio. O texto em expansão: crônica jornalística e a paisagem cultural na América Latina. In. PINHEIRO, Amalio (org). O meio é mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras, 2009. RAMOS, Graciliano. Traços a esmo. In: MORGADO, Andrêya Garcia da Paixão. Um jogo de letras: a crônica literária e o futebol. 2007. 164 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Estudos Literários) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007 RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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RODRIGUES, Paulo Morgado. Barroco e mestiçagem: confluências entre poesia & crônica na América Latina. In: PINHEIRO, Amalio (org). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras, 2009. SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vegas, 1988. VANNUCCI, Karine Claussen. O jornalismo de Nelson Rodrigues: a crônica como espaço de intervenção no mundo social. Disponível em www.bdtd.ndc.uff.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1148. Acessado em 24 de agosto de 2009.

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