A Era do(s) Jazz - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo IV

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Música Popular Brasileira, Porto Alegre
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Da Belle Époque à Era dos Jazz Após a Primeira Guerra Mundial, cristalizaram-se, a partir da América do Norte, dois elementos fundamentais no crescente setor de lazer dos países do mundo ocidental: o cinema e os salões de dança animados por jazz bands. Esta nova expressão disseminou-se de tal forma que a década de 20 foi, por obra do escritor Scott Fitzgerald, chamada de Era do Jazz. Zuza Homem de Mello, em Música nas Veias Era 1900 e, em determinado momento daquele ano, o quase menino Octavio Dutra acabava de dar os últimos retoques em sua primeira composição, singelamente intitulada Valsa Nº 1. Uma valsa brasileira, gaúcha, porto-alegrense. Sem que ele pudesse imaginar, nesse exato instante estava sendo parido o século XX na música de sua cidade (Ok, ok, a gente sabe: o século XX começa em 1901, mas não dava pra perder essa licença poética e, sim, o sem-graça mandou lembranças). ***

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Julio de Castilhos: Família, Pátria e Humanidade. O Rio Grande de São Pedro adentrava a nova centúria com 1.149.070 habitantes. Um décimo eram estrangeiros em busca de uma vida melhor neste que era o terceiro poder político e econômico da federação, perdendo apenas para Rio e São Paulo. Os três estados reuniam 60% das indústrias e metade do minúsculo eleitorado nacional – só votava quem sabia ler e escrever e, por exemplo, de cada 10 gaúchos, sete não sabiam. Porto Alegre, então a sexta cidade brasileira em população, tinha 73.274 habitantes – a primeira era o Rio de Janeiro, depois vinham São Paulo, Salvador, Recife e Belém do Pará. Seguindo nesse mapa, dia 24 de outubro de 1903 morria uma das maiores figuras – para o bem e para o mal – que a política do Estado já pariu: Julio de Castilhos. Tinha 43 anos e um câncer na garganta. Obsessivo apóstolo do positivista Augusto Comte, Julio foi o grande patriarca de uma tradição que se sedimentava desde 1898, com seu discípulo Borges de Medeiros. Os dois exerceriam no Rio Grande do Sul seu absolutismo quase imperial por 37 anos – com uma mistura bizarra de lisura administrativa e fé cega, que justificava perseguir, matar e cometer as mais variadas barbaridades. Durante sua vigência, pelo menos dez mil cidadãos tiveram de emigrar para países ou estados vizinhos pra salvar a pele. Afinal, o lema de Castilhos era: para os correligionários, tudo; para os adversários, a lei – na prática, aos opositores não restava nem ao menos esta última opção.

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Borges de Medeiros e os bigodes da austeridade. *** As bandas de música eram as grandes atrações dos coretos de todas as praças dignas desse nome, encarregando-se da maior parte da trilha sonora pré-rádio e pré-disco. Radamés Gnattali, nascido no bairro porto-alegrense do Bom Fim em 1904, lembra: Naquele tempo, em Porto Alegre, eu não ouvia música, só tocava. Tocava Villa-Lobos, Nazareth, meu pai comprava tudo (em partituras, claro). Ouvir, mesmo, só muito tempo depois, com 24, 25 anos, quando já tinha vitrola. Ver a banda tocar nos finais de semana era programa obrigatório. E tentar fazer o mesmo nas noites de dias de trabalho, idem. Tentar ver, né?, porque a iluminação era totalmente precária. Mas é bem verdade que a vida noturna das ruas começava a se incrementar desde o final do oitocentos, graças à maravilha dos postes elétricos – ainda poucos, mas já espantando poetas, conservadores e meliantes, que achavam aquilo um abuso de claridade.

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Um tango argentino de... Roberto Eggers. Em 1900 e pouco, Alberto e Roberto Eggers (este último: Porto Alegre, 18/12/1899 – Porto Alegre, 14/5/1983) são os primeiros de uma longa lista de meninos-prodígio que vão abrilhantar esse começo de século na capital: Alberto na flauta e Roberto ao piano. O segundo vai ser um respeitado maestro, para quem não faltará trabalho até o final dos anos 1960. Já Alberto se dedicará mais à composição de valsas como Almerinda – hit local de 1907 – e Corazón Que Sufre – editada em Buenos Aires. Alguns bairros fervilhavam, especialmente, graças à mistura de diferentes culturas, diferentes imigrações. O resultado foi eternizado em poucos registros, como o de um álbum de composições do descendente de italianos (talvez italiano de nascença) F. Perrone. Os Perrone eram moradores do Bom Fim, como os Gnattali – Radamés Gnattali, Aída Gnattali e mais uma penca de grandes músicos sobre os quais você vai ler daqui a alguns capítulos. E não ficou imune à convivência entre italianos, negros e judeus, que, tanto quanto se possa imaginar, se frequentavam na Santa Paz da Concordância. Bandolinista, Perrone deixou um álbum impresso com dezenas de composições para o instrumento. Algumas, como a tarantela Caprichosa, refletindo claramente a (con)fusão entre ritmos italianos e escalas e sotaques da música klezmer dos judeus que moravam ali em volta, num crossover de fazer inveja aos anos 1990.

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Rua da Praia, cerca de 1900. Foto do lendário Calegari O início sistematizado da imigração judaica para o Rio Grande do Sul se dá em 1904, com a vinda do primeiro grupo que iria se estabelecer em Santa Maria, na colônia Philipson – imigrados através da Jewish Colonization Association. A entidade, fundada pelo Barão Maurício de Hirsch, fora criada para viabilizar colônias agrícolas judaicas na Argentina e no Rio Grande do Sul. Quem vinha pra este lado do Atlântico, na sua maioria, tinha sofrido perseguições de toda espécie em seus países de origem. Em 1909, compram a fazenda Quatro Irmãos, em Passo Fundo, que é dividida em lotes entre gente vinda da Argentina e da… Bessarábia. Daí já dá pra sentir a pororoca cultural. Em 1927, mais famílias: desta vez da Lituânia e da Polônia, na maioria judeus de cultura askenazim. São esses que vão acabar ficando pela capital, estabelecendo-se como comerciantes e, trabalhando com crediário, revolucionando o comércio local. Outro nome dessa cena é o compositor Francisco de Leonardo Truda, autor de belezinhas como o schottisch Violetas – composto na década de 1910 e fiel retrato da Belle Époque porto-alegrense. Truda também era o editor do jornal musical O Guarany (não confundir com o outro Guarany, editado também na capital 30 anos antes). Leonardo foi figura de alguma expressão e, em 1923, presidiria o Centro Musical Porto-Alegrense, que contava com uma orquestra de 60 figuras. Quanto ao Guarany, conservou-se apenas seu número seis, e em péssimo estado. Data de 10 de maio de 1906 e tem como principal destaque a partitura de uma bela valsa chamada Souvenir. Que não faria feio a Nino Rota, mas foi composta por um conterrâneo seu, o italiano radicado em Porto Alegre A. Ímola. A pequena biografia que acompanha a partitura dá conta de que Ímola era trompista da Orquestra do Teatro Scala de Milão e que, antes de chegar à cidade, 5

passou pelas melhores sinfônicas da Argentina. A conclusão do texto é um primor: “Infelizmente dava-se o distincto músico ao uso do álcool, que o arrastou a um quarto da Santa Casa de Misericórdia onde morreu, há poucos annos”. Mais um esquecido é J. Bicudo, autor do maxixe Berimbau Não É Gaita, composto em 1922 ou 23. Título, aliás, que hoje é uma expressão popular – até Renato Borghetti tem um disco chamado Pensa Que Berimbau é Gaita? Resta saber se à época a frase já existia, ou se ela popularizou-se em função dessa pequena joia instrumental.

Olha a turma: Ary Barroso e Augusto Vasseur, lado a lado. Sentado, Luiz Peixoto. Um que não nasceu, mas passou muitos anos em Porto Alegre é o carioca (de 3/9/1899) Augusto Vasseur. Começou a estudar música na capital gaúcha, aos oito anos de idade. Aos 13, já estava no Instituto de Belas-Artes. Aos 15, estreou como compositor num chote1 chamado Morena. Na adolescência, voltou ao Rio, diplomou-se com medalha de ouro no Instituto Nacional de Música e se veio a se tornar um dos mais destacados pianistas e violinistas dos anos 1920. Até sua morte, no Rio de Janeiro, em oito de dezembro de 1969, alternaria seu desempenho entre o violino erudito – chegou a ser spalla da orquestra do Teatro Municipal – e o piano popular, com direito a composição de marchinhas, foxes e sambas carnavalescos. *** Empolgado com toda essa movimentação, o empresário Marcelino Herrera inaugura, na Rua da Praia, o Odeon Variedades. 6

Seria o primeiro café-cantante da cidade, nos melhores moldes parisienses e cariocas. Uma novidade palpitante… …que não dura dois meses. A literatura porto-alegrense também fervia, com a geração de Eduardo Guimaraens (autor do clássico local A Divina Quimera, de 1916), Felippe d’Oliveira, Alceu Wamosy, Álvaro Moreyra e Marcelo Gama. Todos com os pés fincados no simbolismo, ainda que com pitadas de niilismo e até de sua variante mais, digamos assim… gótica: o penumbrismo. Logo começará a aparecer outra geração de respeito, que terá seus pontos altos no pelotense Simões Lopes Neto, Alcides Maya, Augusto Meyer e o Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Alguns dos mais velhos, como Maya, Moreyra e Gama, convivendo diariamente com uma gurizada que daria muito o que falar (Dyonélio Machado e Eduardo Guimaraens, entre outros) no “ponto de encontro” obrigatório da turma: a Praça da Harmonia, no comecinho da Rua da Praia. Não por acaso, apelidada então de “Praça dos Poetas”. Enquanto isso, as possibilidades de formação para um aspirante a musicista nascido na capital multiplicavam-se. No mesmo 1908 em que a Carris substitui os burros que puxavam os bondes pela revolucionária tração elétrica, inaugura-se o Conservatório de Música do Instituto Livre de Belas Artes (já não era sem tempo o caso dos bondes. Como conta Achylles Porto Alegre, nos últimos anos da tração animal, só um santo podia andar de bonde sem perder a paciência. Mas em compensação o primeiro automóvel da cidade chega em 1906.).

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Esquina da Rua da Praia com a Senhor dos Passos, na virada do século O popular Belas-Artes, futuro Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem no seu primeiro time de professores nomes de peso da música erudita local como Murilo Furtado e seu diretor Araújo Vianna. Vai ser ali que, ao longo de todo o século e adentrando o milênio seguinte, virão a se formar muitos dos melhores músicos do Estado. Eruditos e populares. *** No mundo lá fora, no dia 23 de Outubro de 1906, Santos Dumont decola do Campo de Bagatelle, em Paris, a bordo de seu 14Bis. Estava inventada a aviação. Apenas dezenove anos depois, já em 1927, a VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense – seria a primeira empresa aérea brasileira e uma das primeiras do mundo. O primeiro voo, em três de fevereiro desse ano, inaugurou a linha Porto AlegreRio Grande, e logo seus hidroaviões (sim, eram hidroaviões) sedimentariam a rota Porto Alegre-Pelotas-Rio Grande como uma das primeiras do planeta. No ano seguinte ao feito de Santos Dumont, dia cinco de março de 1907, Lee D. Forrest faz, em Nova York, a primeira transmissão experimental de um programa de rádio. Doze meses depois, em 16 de março de 1908, era inaugurada em San Diego, Califórnia, a primeira emissora do mundo. Levou 13 anos pra chegar. Em sete de setembro de 1922, na Exposição do Centenário da Independência, no Rio, acontece a primeira transmissão radiofônica nacional. Dois anos depois, em 1924, nascia a Rádio Sociedade Rio-Grandense, de Rio Grande (principal cidade portuária gaúcha, 317 km ao sul de Porto Alegre), seguida pela Rádio Pelotense (de Pelotas, cidade ao lado). Finalmente, em 1927, é inaugurada a primeira emissora da Capital: a Rádio Sociedade Gaúcha (desse novo mundo falaremos no capítulo seguinte). Porto Alegre era uma cidade em ebulição, com a segunda maior frota de automóveis do Brasil: três mil, perdendo só pra São Paulo. Mas como as pessoas ouviam rádio? Ora, muita gente correu pra comprar seus aparelhos logo que se começou a falar no assunto. Muitos, na verdade, não. Poucos. Depois é que a coisa foi indo. Afinal,

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não tinha um Leonetti pra fazer uma fábrica de receptores bons e baratos. *** E o Carnaval mudava rapidamente.

A tal da bandurra (um bandolim de 12 cordas) Desde o final do século XIX, havia desfiles de grupos mascarados das mais variadas classes sociais, acompanhados por orquestrinhas ou estudantinas com as mais improváveis formações instrumentais. O Club dos Pierrots, por exemplo, era descrito no Correio do Povo de 24 de fevereiro de 1903 como um conjunto seleto formado por sete violões, um violão espanhol, duas flautas, três violinos, uma bandurra e um cavaquinho. Tocando polcas, valsas, marchas, dobrados, mazurkas, havaneiras, schottischs e mesmo seleções de óperas. Achou a formação curiosa? Então que tal a Orquestra Mista de um grupo anônimo registrado pelo mesmo Correio do Povo três anos antes?: concertina, ocarina, trombone e instrumentos de papelão. A descrição feita no jornal do governo, A Federação, neste mesmo carnaval de 1900, descreve no detalhe uma dessas formações populares e nunca muito bem organizadas: E lá se foi o bando onde figuravam dominós de metim de cores desbotadas, os tradicionais macacos de barba de pau, alguns tipos 9

com casaco virado do avesso e pedaços de pelego nos rostos; tudo isso ao ruído de uma canglorosa corneta, um bombo com a pele frouxa, uma caixa de rufo no mesmo estado, pandeiros, violas, violões, chocalhos, etc. Um, talvez o mais abastado do grupo, trajava calça e jaqueta de Zuavo, feitas de belbutina e já muito rafadas; completava-lhe a toillete um chapéu de papelão „a Directorilo‟. A „riqueza‟ do vestuário conferiulhe a honra de levar a bandeira: um pedaço de morim com letreiro ilegível, escrito com pó de sapatos. E lá se foram eles, todos muito suados, muito ruidosos, muito sujos e sobre tudo… sem nenhum espírito.

Ocarinas da época Só que essa folia espontânea logo ficaria tão elitizada – culminando com a volta das sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos, em 1906 – que, doze anos depois, 20 de fevereiro de 1912, estava lá, no mesmo A Federação: Em outros grandes centros as festas de carnaval são a consagração das hetairas da flor do vício. Em nossa capital, porém, os festejos carnavalescos têm um certo cunho familiar, todo provinciano e todo nosso, que fazem o encontro não só do povo, mas também de grande número de forasteiros.

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Assim devia ser um carnaval que agradasse A Federação: as classes mais altas dançando nos bailes e desfilando em carros alegóricos pelas ruas centrais. O povo assistindo, jogando confete e serpentina e brincando com lança-perfumes. E é assim que estava sendo: neste 1912, 30 mil pessoas comemoraram deste jeito a festa, na Rua da Praia. Animação total ao som de… valsas, polcas, tangos e schottischs! Nesse formato, a festa durou até 1928, quando houve o último desfile com carros alegóricos. Só que também havia os blocos. Desde os rivais Chorando na Esquina e Chorando no Meio da Quadra até o refinado Leopoldina Juvenil. Além, claro, da turma (já então) animada da Cidade Baixa. Um povo de bairro – negro em sua maioria – que pulava e dançava sem divisões.

Concertina No meio disso tudo, dois nomes disputavam as atenções durante o reinado de Momo e seus meses precedentes: Octavio Dutra e Pedro de Barros. Sobre Octavio é o próximo capítulo inteiro. Já Pedro era compositor, tocava muito bem violão e venceu a espantosa cifra de dezessete carnavais no início do século, sempre à frente do bloco Os Tesouras (donde saiu o nome do jogador Tesourinha, que hoje batiza o ginásio municipal de Porto Alegre). Décadas mais tarde, o filho de Pedro, Hemetério, seria o fundador de uma das principais Escolas de Samba do Rio Grande do Sul: a Bambas da Orgia. O ano de 1914 seria o último para as grandes sociedades carnavalescas: a I Guerra encerraria imediatamente toda a Belle Époque, e elas iriam junto.

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Carnaval... futebol! Pelo menos já estavam em atividade o Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense (fundado em 15 de setembro de 1903 por uma turma de descendentes alemães) e o Sport Club Internacional (de 4 de abril de 1909, idéia de três irmãos paulistas). ***

O mapa de melhoramentos da Porto Alegre de 1914 A década de 1910 assistiu o boom das revistas musicais em Porto Alegre. Elas surgiram na virada do século e prosseguiriam até os anos 1930 – quando chegam a elencos de mais de três dezenas de músicos e atores. Uma esquecidíssima paixão gaúcha. Dos poucos nomes dessa cena que se quedou registrado é Eduardo Fernandes Martins. Mais conhecido como Edu Martins, o cara se dividia entre o trabalho como trombonista do Theatro Colyseu e a regência dos 31 músicos da Banda do Décimo Regimento de Infantaria do Exército. A partir dos anos 1910, fez nome como compositor de habaneras e dobrados militares, de títulos como Tenente Coronel Francelino ou Capitão Herculano. Músicas registradas em discos tanto para a Casa A Electrica quanto para a carioca Odeon – com a Banda da Casa Edison. Além, é claro, da lendária partida única de 78rpms dos efêmeros Discos Rio-grandense. Só nesses, dos 102 registros, 23 gravações eram da sua banda, e 17 das músicas gravadas saíram de sua pena – só perdeu pra Octavio Dutra. Por volta de 1918, Edu ainda escreveu com o jornalista Pery Borges a revista A Flor do Pampa. A peça musicada seria levada à cena pela Companhia de Sainetes e Variedades, anunciada como a primeira vez em que se pensou um musical com temática regional gaúcha. A abertura já nasceu clássica: A Canção do Gaúcho. Só que

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os autores brigaram às vésperas da estreia, e proibiram a execução da partitura. Três anos mais tarde, Pery reescreveu todo o libreto. Agora mais pra opereta do que pra revista, A Flor do Pampa estreia em 1921, numa montagem da Companhia Zaparolli, no Theatro Guarany. A música era a original de Edu, exceto por uma canção: justamente a Canção do Gaúcho, para a qual agora havia outra letra, escrita pelo poeta (e coronel) Faria Corrêa. Foi essa que emplacou, gravada por Francisco Pezzi para a Odeon em 1928 sob o título de Canto de Gaúcho e cantada até hoje. Ainda que mais conhecida pelo seu primeiro verso: Gaúcho eu Sou… Gaúcho eu sou, nasci feliz Nessa terra formosa onde estou, Sob o céu do meu lindo País. Vim lá de fora, Sou laçador. Só não pude laçar até agora O meu amor. Gaúcho forte, À querência voltarei: Do potreiro dos teus olhos Nunca mais me apartarei. *** Em 1910, Porto Alegre já tinha 130.227 habitantes. Quase o dobro da população de apenas 10 anos antes, e 16% eram estrangeiros – a maior parte portugueses, italianos e alemães. A taxa de alfabetização era alta para a época: 60%. Alfabetizados que podiam optar entre sete jornais diários (sete!). Para se divertir, bailes, saraus, piqueniques e cinemas. Por esses anos se comemorava a tal “remodelação do espaço urbano”. Inspirada na que o prefeito Pereira Passos havia feito no Rio de Janeiro, ela consistia basicamente na remoção dos pobres do Centro para áreas mais periféricas. Começada pelo intendente Otávio Rocha (de 1924 a 1928), pegaria fogo a partir da década seguinte, com Alberto Bins na prefeitura (1928 a 1937) – por trás de uma medida alardeadamente higienista, mal se 13

disfarçava o preconceito. Está lá no jornal O Independente, de 20 de março de 1910: Vagabundos e meretrizes estão pedindo um freio: o Acre está despovoado; ali faltam mulheres; meretrizes descaradas para lá, onde talvez se corrijam. Matto Grosso precisa de homens; vagabundos exportados! Quem vem bem a calhar com essa nova Porto Alegre é o arquiteto alemão Theodor Wiederspahn. Tão inseparável hoje da cara da cidade que é tratado na intimidade como Theo, o cara assinou nada menos que os prédios do Hotel Majestic (hoje Casa de Cultura Mário Quintana), a Cervejaria Bopp (Shopping Total), os Correios e Telégrafos (Memorial do Rio Grande do Sul), a Secretaria da Fazenda, o Edifício Ely (Tumelero), a Faculdade de Medicina e por aí vamos. Nasceu em Wiesbaden em 1878, chegou na cidade aos 30 anos, e morreu amargurado em 1952, depois de, a partir da Segunda Guerra Mundial, ser perseguido pelo simples fato de ser alemão. A Casa Mariante foi a primeira a publicar partituras de compositores locais. Entre 1919 e 1927, trabalhou adoidado, imprimindo em São Paulo. Já pela parte do registro fonográfico, viviase a já citada utopia da Casa A Electrica e seus Discos Gaúcho. Efervescência, portanto.

A Pathé Baby Voltando aos cinemas, o primeiro prédio adaptado exclusivamente para projeção de imagens em movimento é o Recreio Ideal, na Praça Senador Florêncio, inaugurado dia 20 de maio de 1908 e equipado com um cinematógrafo Pathé. A partir do final da década de 1910 se passa a completar o programa dos filmes com shows dos melhores músicos da cidade. Isso, além dos 14

instrumentistas que acompanhavam com música as projeções, que eram ainda mudas, e sem contar com as orquestrinhas que tocavam nos saguões, entre um programa e outro. Graças ao cinema, trabalho para músicos era o que não faltava na Porto Alegre dos primeiros anos do século XX. Nem em lugar nenhum do Brasil. E a cidade estava tomada pela febre cinematográfica. Achylles Porto Alegre, em 1920: (...) a “arte do silencio” é hoje a “cachaça” de toda a gente, e a loucura do bello sexo. O cinema pode dizer-se acabou de matar a “vida em família”, que há muito tempo já vinha perdendo o seu encanto e desapparecendo. Isso, em 1920! E segue: À hora em que escrevo, muitos lares estão desertos, porque as salas dos cinemas estão replectas. Também, pudera: olha a qualidade da turma que ali ganhava a vida. No Cine Colombo, Radamés Gnattali, os irmãos Júlio e Sotero Cosme, Júlio Grau, etc. Já no Avenida, o pianista da casa era o futuro compositor erudito Armando Albuquerque - que inclusive, anos mais tarde, comporia uma peça em homenagem aos projetores usados: Pathé-Baby. (E não só se passavam fitas, também havia já quem as fizesse: em 1909 o alemão Eduardo Hirtz, que havia vindo para o Brasil ainda criança e comandava uma rede de cinemas na capital e interior, filmara O Ranchinho do Sertão, primeira ficção cinematográfica local.) O som só chegaria às telas em 1927, e, mesmo assim, primeiro nos Estados Unidos. No Brasil, a novidade só seria conhecida dois anos depois e, em Porto Alegre, na virada de 1930, quando estreia na cidade O Cantor de Jazz, com Al Johnson. Era o filme sonoro, falado e cantado. Os pianeiros das salas de cinema perderiam seus empregos quase instantaneamente. As orquestrinhas de saguão ainda duraram mais um pouco, mas também partiriam sem deixar vestígios. Restavam apenas os shows curtos, em frente à tela, entre um film e outro. Foi um momento de desemprego em massa de músicos que só se repetiria com a chegada do video-tape, 30 anos mais tarde. Pra completar os divertimentos sadios da classe média e da burguesia, havia ainda os footings nas praças, os corsos de automóveis, as tardes nos cafés. E as noites nos theatros, cassinos e cabarés – nestes últimos, claro, mulheres, só a trabalho. Pra fechar, confirmando seu pioneirismo telefônico, em 1922, a primeira central telefônica automática do país é instalada. Em Porto

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Alegre. Era a terceira do mundo, antecedida pelas de Chicago e Nova York. *** Voltemos um tantinho a Armando Albuquerque (Porto Alegre, 26/6/1901 – 16/3/1986). Recém-formado em violino e harmonia pelo Instituto de Belas Artes, o moço causava estranheza por suas composições eruditas personalíssimas. Mas, paralelo à sua obra como compositor, tocaria piano e contrabaixo em grupos de música popular – tanto em Porto Alegre quanto no Rio de Janeiro, onde passaria uns tempos. Volta pra cidade na primeira metade dos anos de 1930, pra enfrentar até o jazz de um cabaré da rua Voluntários da Pátria, o Dancing Royal. No final da década de 1940, ainda faz uns bicos pra Rádio Difusora, mas logo se dedicaria basicamente a compor música de câmara. Em toda sua carreira escreveu apenas uma peça popular, um choro chamado justamente Não Deu Pra Gostar, (quase certamente da década de 1920), cujo título já explica o fato de ter sido a única experiência sua na área… *** É nos anos 1910 que retorna à cidade o porto-alegrense Arthur Elsner. Cego desde o nascimento, em 24 de junho de 1899, Arthur tinha ido para o Rio de Janeiro aos 8 anos de idade, estudar no Instituto Benjamin Constant. Lá, se alfabetizaria em letras e partituras e se especializaria em piano, tudo pelo sistema Braile. Quando se formou, tinha pouco mais de 15 anos mas era uma das estrelas da banda da escola, tocando piano e acordeom. A estes instrumentos, somaria, em 1923, uma curiosidade importada por ele em primeira mão. Era o drums, estranha engenhoca inventada pelas jazz-bands americanas, e que soava como o último grito no mundo da música popular. Nenhum gaúcho – e pouquíssimos brasileiros – tinha visto um negócio daqueles antes.

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Primeiras baterias O primeiro exemplar havia aportado em terras brasileiras apenas quatro anos antes, tocado pelos americanos da Harry Kosarin Jazz Band, que fizeram uma turnê por Rio e São Paulo para apresentar o novo ritmo do jazz para as embasbacadas plateias nacionais. O tal drums não tinha só drums (tambores), mas também um caótico e barulhento amontoado de pratos, ferragens, blocos de madeira e até sinos de vaca! O curioso é que, a partir do momento em que é incorporado à música brasileira, poderia ter se chamado, sei lá, drúmis - afinal, saxophone virou saxofone, trumpet virou trompete e por aí vai. Mas o drums teria nomes nacionais totalmente diferentes do que lhe deram seus inventores. Duas variantes, ambas elucidativas do conceito inicial que sua sonoridade causou nos nativos: a primeira, que não pegou, foi pancadaria. A segunda, bateria. E bateria, pra quem não lembra, é o coletivo de… panelas. Era esse coletivo de panelas que Arthur importou da Áustria. Quebrava o maior galho: em vez de, como se fazia até então, ter um cara pra tocar a caixa, um para o bumbo e outro para os pratos, se colocavam os três instrumentos nas mãos (e pés) do mesmo sujeito. Era o primeiro 3 em 1 da história da música.

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A banda de Gordon Stretton foi o primeiro grupo de jazz a apresentarse na cidade Em Porto Alegre a consagração da novidade se dá no mesmo 1923 em que Arthur importa seu exemplar (há quem fale em 1924). Foi nessa data que a cidade assiste pela primeira vez uma banda de jazz: a Gordon Stretton Jazz Band. O grupo, liderado por um músico negro nascido em Liverpool, na Inglaterra (!!!), estava em turnê pelo País, acompanhando a vedette francesa Mistinguetti. E lá estava, com destaque, ela: a bateria! Uma novidade e tanto. Voltando a Elsner: ao longo da década de 1920, seu hobby seria inventar instrumentos. Ele, cego, os desenhava minuciosamente e passava o projeto para um marceneiro amigo seu, que os construía. Muitos deles eram dados a tocar por um outro menino-prodígio, chamado Namur Barcellos – que, anos mais tarde, teria o disputado posto de harpista da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Eram coisinhas como um violino de lata, um violoncelo com o corpo feito de caixa de charutos, uma bengala que virava viola, garrafofones, violinos com cornetas, chapéus com sinos e por aí vai. Instrumentos que foram guardados com amor e cuidado por Namur durante toda a sua longa vida e hoje não se sabe onde foram parar.

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Arthur comporia também muita música – tanto erudita quanto popular –, mas também quase tudo se perdeu. O que não foi por água abaixo na enchente de 1941, virou fumaça quando incendiaram a Rádio Farroupilha, em protesto contra o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Mas o que mais importa com relação a Elsner é seu talento como um dos (multi-)instrumentistas mais solicitados de seu tempo. Tocou com os maiores músicos e as melhores orquestras da cidade. Num ano podia ser pianista de uma típica de tango, no outro atacar de acordeonista e percussionista da Jazz-Band de Paulo Coelho e, logo ali, gaiteiro de algum regional ou piano solo como titular de um programa na Rádio Gaúcha ou na Farroupilha. Isso quando não fazia tudo isso ao mesmo tempo. Nunca deu a menor pelota pra sua cegueira. Afinal, ela nem ao menos o impedia de andar sozinho pela cidade, subindo e descendo dos bondes na parada certa, e sem jamais macular seus impecáveis ternos de linho branco. Já entradíssimo na terceira idade, Arthur assume o cargo de diretor da Banda Municipal de Porto Alegre. Mais tarde ainda, chegaria a ser percussionista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA. Só não pergunte como é que ele se entendia com o maestro… Provavelmente graças ao seu lendário ouvido, que lhe permitia hábitos curiosos e feitos que viraram lenda. Por exemplo: contra a canalha que, nos cabarés, aproveitandose de sua cegueira, roubava sua cerveja enquanto ele tocava. O meliante só não contava com um detalhe: sempre que largava uma garrafa pela metade, Arthur estalava o dedo contra o gargalo e conferia o tom da nota emitida. Na volta, repetia o processo. Se ele tinha largado a garrafa em lá, e ela agora se encontrava em fá, é porque algum esperto havia tomado uma terça maior do seu precioso líquido… (outra história que ficou famosa foi sua tentativa de identificar um carro que o atropelara pelo tom da buzina. Não deu, claro. Mas aumentou a lenda). E não se pode fechar o assunto “Arthur” sem lembrar que ele foi também um pioneiro na publicidade. Nos anos de 1950, montou um estúdio caseiro com um gravador que só ele – evidentemente – sabia operar. E ali gravava jingles e comerciais de rádio.

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Arthur Elsner: figurinha tão carimbada da boemia portoalegrense que recebeu de presente até um poema de outro boêmio notório, Mario Quintana: Um dia, um ceguinho de nascença… – pois bem, para ser mais explícito e para conservar por mais algum tempo a sua passageira imagem neste mundo – um dia numa daquelas nossas conversas de bar, o sanfonista Artur (sic) Elsner me confessou: “Bem sei que, para vocês eu, teoricamente, estou nas trevas.” Teoricamente?! – pensei, num comovido espanto Talvez no mesmo silencioso espanto com que os anjos escutam as palavras que digo dentro da minha treva iluminada. *** E se no final dos anos 1910 quem volta do Benjamin Constant é Arthur Elsner, uma década depois acontece o mesmo com outro grande músico cego: o violonista Levino Albano da Conceição. Que tem quem diga que nasceu em Caçapava (RS), mas a maior parte dos pesquisadores garante que veio ao mundo em Cuiabá, Mato Grosso. Também não há consenso quanto ao ano: 1895 ou 1896. O dia é mais fácil: 12. O mês também varia: outubro ou novembro. Ééé, amigo: dureza! Enquanto Elsner era cego de nascença, Levino perdera a visão aos sete anos. Mas aos nove (há quem diga aos 12) já era conhecido como um dos melhores violonistas – e grande improvisador – de Cuiabá. Mais um da longa série de meninos prodígio desse capítulo. Que geração! Aos 22, não se sabe como nem por que, estava morando em Porto Alegre. E é na capital gaúcha que vai estrear oficialmente num palco, com um concerto no Theatro São Pedro, em 1918. Logo em seguida, está no Rio de Janeiro, estudando no Benjamin Constant. Lá, se especializa em violão com o renomado professor Joaquim dos

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Santos. E não se limita a estudar: logo é também professor de música de seus colegas cegos. Volta a Porto Alegre e passa alguns anos no estado, deixando a comunidade musical boquiaberta. Tocava na capital e por todo o interior, fazendo imenso sucesso entre plateias frequentadíssimas por músicos. Todos estavam lá pra ver de perto suas interpretações muito pessoais de páginas eruditas adaptadas, como A Cavalaria Rusticana, ou os dificílimos tanguinhos e choros que compunha. Peças que, já pelo título, avisavam o que vinha pela frente: Marciano no Choro, Não Combina, Não Salta José ou Há Quem Resista? Como quase todos os grandes músicos de sua geração, logo entrou pra turma de Octavio Dutra.

Octavio Dutra Nos anos 1930, era um dos maiores nomes do instrumento no país, figurinha carimbada na revista carioca O Violão, chamado de O Rei do Violão pela imprensa e destaque do Dicionario de Guitarristas,editado em 1935 em Buenos Aires por Domingo Prat. Diz ali: Es considerado como uno de los más grandes solistas de su patria, alcanzando su nombre una notoriedad en verdad muy grande. Como Octavio Dutra, também fez nome como maestroensaiador de alguns dos melhores grupos carnavalescos de então (os dois chegam a assinar em parceria uma série de sucessos momescos, como Victoria), como o Bloco dos Tigres. E aí, em 1939 – há quem fale em 1933 – se muda novamente para o Rio. E, dali, para 21

os palcos de todo o Brasil, sempre achando um tempo pra fundar escolas de música para cegos (com apoio do Instituto Benjamin Constant) e dar aulas para futuros virtuoses. Como Dilermando Reis, que começou sua carreira ainda garoto acompanhando o mestre. Para lembrar o amor que sempre teve à terra que primeiro o reconheceu à grande (ou, talvez, o tenha parido), compôs peças como Canção Gaúcha ou Saudades do Rio Grande. No fim da vida, foi morar em Cuiabá. Onde, segundo alguns, morreu em algum ponto dos anos de 1950. Mas outros afirmam – apostaria nessa – que sua morte foi em Niterói, no Rio, dia 19 de fevereiro de 1955. *** Na literatura, a Porto Alegre pré-Revolução de 30 está imersa nas vanguardas modernistas, com nomes como Tyrteu Rocha Vianna, Ernani Fornari, Athos Damasceno e Augusto Meyer – todos fazendo boa poesia sobre temas urbanos e regionais. Na política, com uma única ausência entre 1908 e 1913, Borges de Medeiros há 24 anos governava o estado como se fosse um imperador. Para isso, inclusive, havia enfrentado a sangrenta Revolução de 23, liderada por um Assis Brasil furibundo por perder mais uma eleição fraudada. Foram 324 dias de muita correria e poucos (mas sangrentos) combates – sem falar nas vergonhosas orgias dos degoladores, em pleno século XX. Mas não tinha como: contra as metralhadoras dos legalistas, os revolucionários iam com cargas de lanceiros, a mesma estratégia usada um século antes, na Revolução Farroupilha. Dá pra se dizer que acabava ali, cruamente, a Belle Époque nos perdidos suis do Brasil. Cinco anos depois, em 1928, Getúlio Vargas começa sua irresistível ascensão política justamente conciliando os até então inconciliáveis chimangos e maragatos. E ainda nessa década, entre 1924 e 1927, um líder tenentista extremamente carismático parte de Santo Ângelo e percorre 25 mil quilômetros de Brasis, à frente da sua coluna de milhares de homens. Queriam derrubar o governo de Artur Bernardes. Acabaram dispersos, na Bolívia. E o tal líder, de nome Luís Carlos Prestes, começaria ali sua lenda. E ainda pintando o cenário desses anos de 1920, há que se falar dos cafés e confeitarias com música ao vivo, então popularíssimos. Porto Alegre tinha mais de 30, cada um com sua orquestrinha, sua 22

típica de tango ou ambos. Cenário brilhantemente retratado in loco pelo cronista Achylles Porto Alegre, em 1920: O “café” moderno é o ponto de reunião dos intellectuais, dos jornalistas, dos artistas e dos políticos. Ahi, entre uma fumaça e um gole de café, se combinam os mais arrojados planos litterarios, artísticos e administrativos. Ahi se concebem num relance, deante da chavena ou do calice inspirador, o poema, o romance, o artigo de fundo, a chronica, o quadro, a eleição do presidente da Republica ou a organisação de um ministerio. Ahi se planejam revoluções e deposições de governo. Ahi se guinda o indivíduo ao Capitolio ou se o arremessa da Rocha Tarpea. Ahi, o escriptor naturalista ou realista vai estudar, surpreender e apanhar os typos vivos de seus contos, de suas novellas e romances. (…) É, por assim dizer, o “pivot” da vida contemporanea. *** Já que se falou nas típicas… O Rio Grande do Sul ouvia muito tango. Muito. Nas cidades da fronteira com a Argentina e o Uruguai, então, não tinha nem graça. O processo se intensificaria nos anos de 1930, com as rádios El Mundo e Belgrano, argentinas e tangueiras, sendo tão ou mais escutadas nessas cidades do que as emissoras brasileiras. O futuro sambista Túlio Piva, por exemplo, morador da fronteiriça Santiago do Boqueirão, só ouvia emissoras portenhas. Radamés Gnattali lembrava claramente da década de 1920 na sua cidade: em Porto Alegre, só se tocava tango argentino. O samba estava restrito ao Rio. Ainda haveria outros surtos tangueros nas décadas seguintes, mas esse primeiro foi talvez o mais importante. Ribombou no sul com força de trovoada, mas soou em todo o país: A Media Luz e La Cumparsita estavam entre as músicas mais tocadas no Brasil de 1927. No ano seguinte, emplacam da mesma forma Caminito, Che Papusa, Mano a Mano e Esta Noche me Emborracho, sucessos de Carlos Gardel. No mesmo ano, também, se torna muito popular um dos primeiros tangos argentinos brasileiros (sic), composto em espanhol por Raul Roulien: Adiós Mis Farras. O primeiro havia sido escrito 10 anos antes, por Ernesto Nazareth: Nove de Julho. Nenhum gênero internacional suplantava a popularidade do tango nesse momento no país. Até na Bahia – e Jorge Amado que o 23

diga – se tocava e dançava o ritmo portenho. Octavio Dutra – sempre ele – chegou a escrever arranjos para tangos de Gardel, para serem tocados com seu regional. E compôs também mais de um tango argentino. O surto era tão generalizado que, por toda a década de 1920, as grandes atrações dos cabarés gaúchos eram típicas de tango, e não a música brasileira, cubana ou americana tocada por orquestras, jazzbands ou seja-lá-o-que-for. Sim: muitas casas noturnas, confeitarias e cafés tinham duas bandas contratadas, uma delas só para tangos e milongas.

Os Turunas Pernambucanos usavam nomes de bichos e foram influência para várias 'regionais' que viriam depois E até se dançavam maxixes, mas não pegava bem. Mesmo que já em 1898 o Correio do Povo já registrasse o gênero tocado com cavaquinhos, violões e pandeiros, ainda era música de negros, e suas coreografias só eram permitidas para eles. As exceções eram o Carnaval ou as casas mais do que suspeitas. Tá lá no jornal A Federação, já em 1906: O maxixe é tudo que há de mais puro brasileiro. É a nossa dansa popular. Está bem claro que não é dansado nos salões da melhor roda social; não é uma dansa distincta. Mas é sempre dansada nos cafés-concertos, sociedades de rapazes e em todas as festas populares. Pra que se tenha uma ideia da segregação que sofriam no estado os ritmos negros cariocas então popularíssimos no resto do país, é demonstrativo o exemplo, mais uma vez, de Octavio Dutra, o

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principal compositor dessa cena. Das 482 músicas que compôs entre 1900 e 1937, míseras 16 eram sambas e outras duas, sambascanções. Um retrato do contexto muito peculiar em que viviam os gaúchos, desde então se sentindo diferentes do resto do seu próprio país. Maxixes, lundus e, logo depois, os primeiros sambas, eram coisa de negros e pronto. Quem comprava discos não comprava esses discos. Muitos deles, as fábricas nem mandavam pras lojas do sul. Mais um dado para defender a tese: nas pioneiras gravações dos Discos Rio-grandenses, em 1913, as 102 músicas registradas em Porto Alegre são 16 polcas, 15 valsas, 14 schottischs, 11 modinhas, 11 dobrados e nenhum samba ou maxixe. Por essas e outras, depois de conquistarem os cabarés e dancings, as típicas permaneceriam em seus palcos pelos 50 anos seguintes. Por mais de meio século, umas épocas mais, outras menos, todo mundo em Porto Alegre sabia ao menos os passos básicos do tango. Como prova definitiva de que desde a década de 1910 o ritmo já era incorporadamente gaúcho, há uma notícia publicada no Correio do Povo, em 1914. Nela, um jornalista não identificado fala com curiosidade e espanto sobre a polêmica que o excesso de voluptuosidade nas coreografias do ritmo estava despertando na Europa. O texto se espantava justamente com o choque dos europeus perante algo que para os leitores gaúchos já era tão corriqueiro. E dançado até no carnaval. Se o samba custou a emplacar – e o maxixe só o faria no final da década de 1920 – a avassaladora febre nordestina que se espalhou pelo Brasil nos primeiros anos do século XX pegou forte na gauchada. O micróbio da tal enfermidade se chamava Turunas Pernambucanos, grupo que havia descido do Recife para encantar o público gaúcho em 1924. Até o convicto chorão Octavio Dutra compôs uma canção sertaneja chamada justamente… Sertaneja, que foi sucesso num carnaval. E não foi só: aproveitou a passagem dos Turunas para compor umas coisinhas em parceria com o saxofonista Ratinho, uma das estrelas do grupo (o qual tinha também o violonista Jararaca, com quem Ratinho formaria depois a dupla Jararaca & Ratinho). Mas não é espantoso que os chorões daqui se deixassem influenciar pelos pernambucanos. Afinal, no Rio, três anos depois, um novo grupo nos mesmos moldes, os Turunas da Mauriceia, motivaria o surgimento de discípulos como o Bando de Tangarás – que reunia, entre outros, Noel Rosa, Almirante e João de Barro. E o curioso é que 25

eles já eram produto da influência dos citados Turunas Pernambucanos. Que, por sua vez, tinham nascido totalmente influenciados por um grupo… carioca! Os Oito Batutas, de Donga e Pixinguinha, que havia passado por Pernambuco em 1922. Oito Batutas que, por sua vez, fora criado por inspiração no Grupo de Caxangá, liderado pelo violonista pernambucano João Pernambuco. Isso é que é globalização… *** Foi na década de 1910 que começaram a aparecer no Brasil os primeiros ritmos americanos: o charleston, o ragtime, o fox-trot e os hoje esquecidos shimmy, cake-walk, one-step e black-bottom. Era o primeiro ataque em massa da cultura norte-americana, que, a partir daí, a cada 30 anos, apocalípticos acreditam que ela vai dizimar nossa “frágil” nacionalidade. Para o amigo ter uma ideia da velocidade dessa primeira invasão, entre 1903 e 1914 foram gravados no Brasil apenas sete discos com música estadunidense. Nos 12 anos seguintes, entre 1915 e 1927, esse número sobe nada menos que 2.500%: 182 gravações! Os ritmos mais populares eram o one-step e o charleston, logo seguidos pelo fox-trot e o ragtime. Todos, já nos anos de 1920, constando no repertório de qualquer encontro dançante que se prezasse e compostos com absoluta naturalidade por autores gaúchos. A primeira grande mudança foi na formação instrumental dos grupos de música popular. O gênero jazz não tinha dados as caras, mas a palavra jazz se tornaria rapidamente o substantivo que designaria um conjunto de instrumentistas formado por sopros e uma cozinha rítmica composta por bateria, banjo, violão e/ou piano, contrabaixo ou tuba. Em Porto Alegre, não levaria nem meia década pra coisa pegar fogo e os jazz reinarem absolutos, soterrando os formatos até então consagrados de banda ou regional. Eram as estrelas das gravações, dos bailes, das festas. Nada era mais chique do que montar uma bandinha e chamá-la de … jazz. Tocavam de tudo: todos esses ritmos americanos aí de cima, maxixes, polcas, schottischs,habaneras. Na verdade, só não rolava era… jazz.

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Formação original d'Os Oito Batutas, quando tocava música nordestina e, em seguida, viraria regional de choro e samba Tudo começa no mesmo 1923 em que Louis Armstrong gravava seu primeiro disco com a King Oliver´s Jazz Band, e apenas cinco anos depois da primeira gravação de jazz da história, da Original Dixieland Jass (sic) Band. A invasão começa quando o flautista Albino Rosa reune uma turma de amigos músicos pra fundar um regional. O próprio termo regional, registre-se, era novidade, criado por grupos que tocavam também choro, mas estavam mergulhados na citada febre nordestina – daí o nome: regional. Inspirado no sucesso carnavalesco Espia Só, de (adivinhem?) Octavio Dutra, Albino batiza seu sexteto de Regional Espia Só. Além dele, tocando flauta, tinha Binga no violão, Veridiano Farias no violino, Severiano Severo de Souza no ganzá e Herald Alves na caixa. Pra completar o time, um cara que tocava cavaquinho, banjo e uma espécie de bandolim-criado-a-Toddy chamado bandola. O nome do rapaz era Marino dos Santos. Guardem.

Bandolim e Bandola Albino costumava trocar uma ideia com os marinheiros que, como ele, frequentavam as casas mais suspeitas dos arredores do 27

cais do porto. Os caras navegavam pelos mares do mundo, portanto, sempre tinham novidades. Como, por exemplo, a mudança acontecida com os Oito Batutas: a banda liderada por Pixinguinha nascera grupo de música nordestina, depois virara regional de choro e samba e agora era… jazz-band. A novidade estava ligada à sua estada na Europa, no começo de 1922: eles agora tinham dois saxofones, trombone, trompete (ou, como se dizia então, pistão), banjo, piano, bateria e dois percussionistas! E, na sua esteira, estavam pipocando no Rio de Janeiro grupos como a pioneira Jazz Band Brasil-America (que leva a expressão jazzband pela primeira vez a um disco, com o fox-trot Vênus). A qual se segue a Brazilian Jazz ou a Jazz-Band Beira-Mar Cassino – em ambas, tocava o já citado Augusto Vasseur. Tudo parecia muito interessante, mas ainda distante da realidade local. E o Espia Só seguia regional, defendendo uns cobres em serestas e ensaios de sociedades carnavalescas.

Os Oito Batutas, agora transformados em jazz band Só que, em setembro de 1927, Pixinguinha em carne e osso – e acompanhado de seus batutas! – é a grande estrela da inauguração da Companhia Cervejaria Continental (mesmo prédio que era antes Cervejaria Bopp e viraria Brahma 20 anos depois). O grupo, versão jazz-band, estava então no auge da popularidade, tocando sambas, maxixes, choros e algumas resistentes emboladas de seus tempos sertanejos. Os shows na Continental eram a culminância de uma excursão que percorria o sul do país. E além de tocar no belíssimo prédio – uma das obras primas do arquiteto alemão Theo Wiederspahn que, 75 anos depois, se transformaria no Shopping Total

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–, fizeram mais 20 apresentações na Exposição do Parque do Menino Deus.

Turunas da Mauriceia Muito mais do que havia acontecido com os Turunas Pernambucanos, meia década antes, a estada gaúcha dos Batutas foi decisiva pros rumos que a música da cidade iria tomar nos anos seguintes. Também pudera: não pouparam esforços em se enturmar: tomavam todas com o pessoal e Pixinguinha em pessoa, o sujeito que definiu para sempre o que seria o choro, o compositor mais importante do país… encomendou músicas para Octavio Dutra! Sabe lá o que é isso? Como se não bastasse, passou longas tardes na Confeitaria Central, tentando convencer o pianista da casa, Paulo Coelho, a ir embora com ele pro Rio. Pra culminar, numa janta oferecida pelo Regional Espia Só, piraram definitivamente o cabeção da turma, enchendo os caras de ideias sobre jazz bands. Albino, que só sabia daquele som por ouvir contar, pirou. Afinal, era seu ídolo Pixinguinha – em pessoa – que o aconselhava a mudar o nome do grupo, tirando o regional e adotando o jazz. Evidentemente, também precisariam trocar a instrumentação e o repertório. Isso era o de menos. *** Em clima de empolgação total, Albino compra de uma só vez dois saxes alto, um sax soprano e uma bateria. De quebra, seguindo mais um conselho de seu novo amigo Pixinguinha, pede pra amigos marinheiros trazerem do Rio alguns arranjos escritos para essa formação. Mais um golaço: nessa época nenhum desses grupos

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tocava música arranjada. O lance era cada um por si e Deus que não se metesse (tanto que as edições de músicas em partitura não tinham nem ao menos os acordes do acompanhamento. Era a melodia, a eventual letra e só. Cada um fazia o seu). Arranjos escritos de música popular eram coisa de bandas, militares ou não, como as que gravavam suas polcas e valsas nos Discos Gaúcho, na década anterior.

O grande Alcides Gonçalves, de quem falaremos muito, cantando do jeito que dava antes de se popularizar o microfone E é lá que se tem os primeiros registros de saxofones na cidade: já em 1913, pelo menos dois quartetos usavam o instrumento: o Grupo Faceiro e o Grupo Sulferino (sax, flauta, cavaquinho e violão). Severino Hernandez também se sabe que tocou no Theatro Apollo dia 28 de junho de 1926 a polka-chôro A Defeza do Fantoche (sic), de Octavio Dutra. E já haviam passado pela cidade, no Cine-Theatro Coliseu (esquina das hoje Voluntários da Pátria e Pinto Bandeira, centro de Porto Alegre), o saxofonista Euclides Sena, O Príncipe Negro, e os já citados Turunas Pernambucanos, que tinham o lendário Ratinho no sax soprano. A bateria, como se viu, não era novidade absoluta por causa de Arthur Elsner e da Gordon Stretton Jazz Band. Mas mesmo assim, não se tem registro de Arthur tocando bateria. E a Gordon Stretton só estava passando por aqui. Portanto, o importante nisso é que, mais do que bateria e saxofone, o que o agora equipadíssimo Albino iria mostrar aos portoalegrenses era a primeira banda com baterista e vários saxofonistas gaúchos! Tocando juntos! 30

Microfones de 1927 E não é só. Sempre curioso, ele também compra uma outra novidade espetacular. Um aparelho insólito, que captava o som, mandava pra um outro negócio ligado na corrente elétrica e esse, por sua vez, reenviava o som para uma caixa preta que aumentava incrivelmente o volume. Tudo ligado por fios. Já pensou??! O troço se chamava microfone, e era o último grito nos Estados Unidos, onde tinha começado a ser comercializado há apenas um ano. Invenção graças a qual outras duas novidades logo se popularizariam: o rádio e as gravações elétricas. Neste mesmo ano de 1927 era inaugurada a Rádio Sociedade Gaúcha. Viabilizada, como todas as rádios, graças ao tal microfone. E os estúdios brasileiros também sofreriam uma revolução, em parte por causa dele: no lugar dos precários cones de metal até então utilizados para a gravação mecânica, agora o lance era com eles, com imensa melhora no resultado sonoro. A invenção seria a alegria de muitos cantores – e o despeito de outros tantos. Afinal, até então, crooner que se prezasse tinha de conseguir se fazer ouvir no gogó. Ou, no máximo, com o auxílio de deselegantes megafones de lata, pra não ser soterrado pelo som da banda ou orquestra. Agora isso tudo era coisa do passado! O grupo de Albino tinha bateria, saxofones e microfone! Êita regional incrementado! Só que não era mais um regional. Seu nome mudara para jazz Espia Só. A ampliação de freguesia foi imediata. Com a formação de regional, seguiriam tocando em ensaios de sociedades carnavalescas e nas serenatas, que logo começariam a rarear – afinal, se começou a ter de plantar olheiros nas esquinas pra avisar quando chegasse a polícia, porque o delegado Henrique de Freitas Lima decidiu mandar

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prender os boêmios seresteiros. Maldição: em seus tempos áureos, o regional Espia Só chegou a tocar quatro serenatas por semana.

Cine-Theatro Coliseu, em 1910 Já como jazz band, as novas possibilidades eram infinitas: bailes e festas nas casas dos ricos e – espanto! – até na Sociedade Germânia, mesmo sendo uma banda 100% negra. Acabou que não davam conta dos convites, vindos da capital e do interior. Agenda lotada: sábados, feriados e soirées domingueiras. Eram agora 10 músicos: Albino Rosa na flauta e sax alto e Marino dos Santosnos saxes alto e soprano. Marino já era um instrumentista raro: são poucos os saxofonistas que, antes dos anos de 1960, se dedicaram ao ingrato soprano da família. Mesmo no jazz, e nos Estados Unidos, não eram muitos. Sidney Bechet, eventuais momentos de Johnny Hodges e pouco mais. Aqui no Brasil, além de Marino, havia, conhecidos nacionalmente, Ratinho e Luiz Americano. Severo foi promovidíssimo: do ganzá pra tuba. Herald Alves também, de uma mísera caixa pra uma bateria completa. Além disso, contrataram um trompetista chamado João Luís, o trombonista Oswaldino Peixoto, Armindo Alves (provavelmente irmão de Herald) pro banjo, e Luiz Camaleão Alves (outro irmão?), que fazia vocais e ainda segurava as pontas no ritmo, com pandeiro, afoxé e ganzá… De quebra, um cantor: Leopoldo Carvalho, o popular Marreca. Pra fechar, atacando de curinga entre banjo, contrabaixo, violão e violino, outra futura estrela do saxofone portoalegrense: Paulino Mô Nego Mathias. Mais um nome pra guardar. Paulino e Marino viriam a ser os maiores saxofonistas 32

gaúchos entre os anos 1930 e 50, famosos e respeitados. E Albino ainda completa as novidades mandando trazer um exemplar do rei dos saxes: o portentoso sax tenor. Hoje os naipes são parlamentaristas, mas, na época, Marino, que já tocava alto e soprano, ficou doido. Queria de qualquer jeito ter a honra de ser o primeiro tenorista do Estado. Imagina: aquele era o saxofone que o Pixinguinha tocava!!! Mas a coisa não ia sair barato. Afinal, tinha mais gente de olho no bicho. Até decidir quem o tocaria, Albino trancou o dito cujo num armário. O que ele não imaginava é que toda noite Paulino Mathias roubava a chave, pegava o sax e o levava pra casa, pra estudar. Quando, 15 dias depois, o chefe avisou que ia fazer um teste pra ver quem estrearia a novidade, o resultado foi um variado festival de guinchos. O troço tava empatado, com todos em segundo lugar, quando Paulino pediu licença. Será que ele podia tentar? Assombro total: o cara não tocava nenhum sax até então. E tirava um som melhor até que Marino e Albino! Foi aclamação: esse nasceu pra tocar sax tenor… Voltando aos bailes, a sistemática de então era a seguinte, bastante rígida e minuciosamente disciplinada: fosse quem fosse a atração, tocava uma música… e parava. Aí o pessoal aplaudia. Os músicos então bebiam uma coisinha e tocavam mais umas três ou quatro. Nova pausa. Novos aplausos. Então, mais uma descansadinha pra molhar o bico. Tocavam outras três. Nova parada. Comiam uma coisinha, que ninguém é de ferro, rebatiam com uma dosezinha pro santo e atacavam de novo. E assim a noite ia esquentando. Aos trancos e barrancos. No meio da semana ainda havia festivais benemerentes, promovidos pelas moçoilas e rapazes da alta sociedade, em cinemas e bailantes. E os membros do Espia Só seguiam se destacando na enxurrada de grupos que vinham em sua cola, tanto pela música quanto pela elegância: vestidos com impecáveis smokings ou, conforme a situação, casacos azul-marinho com botões de madrepérola, gravata borboleta, calças creme de boca meio-sino e uma chinfra sensacional: um imenso lenço creme caindo do bolso do paletó até quase a cintura. Famosos, doutores em champanhota e acontecendo no Café Society, o grupo vai indo bem até que, em 1928, acontece a primeira baixa. E, putz, logo de sua maior estrela: Marino dos Santos.

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Mas seguiram bem arrumados e felizes até 1932, quando cometem um erro clássico: o velho truque da conversa furada de empresário. Um sujeito os contrata para uma excursão nacional, prometendo mundos e fundos… e desaparece no começinho da tour, ainda em Santa Catarina. Era o fim da primeira jazz band gaúcha. (Na verdade, parte do grupo já havia desertado, ao não topar a aventura. Pra compensar, agregaram duas cantoras iniciantes e um sapateador cubano (?!?). Conseguem se virar um tempo como o Trio Espia Só, que seguiria, capengueando, Brasil acima: Paulino de volta ao violão, Albino na flauta e o tal sapateador cubano, que teve de virar cantor na marra. Vão pra Santos, tocam em puteiros do porto, passam uns tempos contratados por uma rádio paulista, tentam o Rio, não conseguem nada, embarcam pra Belém do Pará. Lá, ficam uns tempos, e voltam para Porto Alegre, com o rabo entre as pernas.) A partir daí, vários dos ex-integrantes do Espia Só montariam seus próprios conjuntos. Albino é que nunca mais teria ânimo pra encarar uma liderança e seguiria como um modesto saxofonista tocando pelos dancings e boates da cidade até o final dos anos de 1960, quando se aposenta. Morre, bem velhinho, em 1982. ***

O livro Jazz em Porto Alegre, de Hardy Vedana (L&PM) Depois do Jazz Espia Só, a porteira estava aberta. A Royal Jazz Band foi a segunda formação do gênero em Porto Alegre. O principal pesquisador dessa cena, Hardy Vedana – Erechim, 13/6/1928, Porto Alegre, 15/6/2009 -, autor de Jazz em Porto Alegre (editado pela L&PM), afirma que a Royal teria sido fundada em 1924. Só que o mesmo Vedana, no mesmo livro, garante que 34

o Espia Só foi o primeiro a mudar de regional para jazz, em… 1927. Aí, você decide. De qualquer forma, a Royal Jazz Band teria uma vida muito mais longa que sua predecessora: só encerraria as atividades em 1968, depois de 44 anos de carreira. E também seria a pioneira em abrasileirar o nome, já que desde o final dos anos 1930 atendia pela simpatissícima alcunha de Orquestra Rojabá (ROyal JA-az BA-nd, pegou?). Fundada pelo baterista Alvino Beroldt e pelo pianista e arranjador Helmut Grünewald, o grupo sempre teve Helmut à frente, marcando de cima, com seu punho forjado em puro aço alemão.

Espia Só Jazz Entre o final dos anos 1920 e meados dos 30 muitos outros jazz pintaram no pedaço. O Jazz Real, de 1927, era um septeto com trompete, trombone, três saxes, piano, bateria e… uma geringonça chamada violinofone, um bizarro violino equipado com cornetas, parecido com o inventado por Arthur Elsner, tentativa internacional da época para aumentar o som do instrumento antes de haver a amplificação elétrica (mesma ideia que levava os cantores ao megafone de lata). Era tocado por um dos líderes do grupo, Armando Leão – que acumulava também a função de cantor. O outro chefe era Sady Sá, que atacava de sax alto e flauta. Eram a atração do Café A Barrosa. A Guarany Jazz-Band também é de 1927. Durou menos de um ano, e não mereceria registro não fosse por dois fatos: foi nela que começou sua carreira Ernani Oliveira, quando ainda tocava violino. E em suas hostes havia um bandoneon todo espetado de cornetas –

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tipo o violinofone -, tocado pelo Espíndola. Era o pessoal se virando pra se fazer ouvir.

Orquestra Ernani & Marino em 1941 Ernani Oliveira nascera dia 24 de novembro de 1908, em Viamão, 10 km a leste de Porto Alegre. Logo que o Guarany JazzBand encerrou sua carreira, ele fundou a Orquestra Ernani Oliveira. O ano era 1929. Ao longo da sua vida, depois do violino inicial, ele aprenderia tuba, bombardino e trombone, acabando no trompete (nesse meio-tempo, pra não se entediar, ainda pegou o bandoneon). Seria o grande nome do seu instrumento nessa geração, brilhando a partir do momento em que, nos anos 1930, entrou para o Jazz-Band de Paulo Coelho. Do grupo de Paulo só sairia quando estavam todos na Argentina e ele teve um forte surto de saudadite da mamãe, voltando pra casa antes que todo mundo, em 1938. Em 1946, volta a ser destaque, fundando o que quase certamente foi o primeiro grupo profissional porto-alegrense criado para efetivamente tocar… jazz. Curiosamente, não tinha jazz no nome. Eram Os Malucos do Ritmo. Um octeto com ele no trompete, Breno Baldo no sax alto, mais um clarinetista, um trombonista, Antoninho Gonçalves na guitarra elétrica (sim, em 1946!), Swing no piano, um contrabaixista e o glorioso Natalício na bateria. Tocavam o que chamavam de jazz hot e eram contratados da Rádio Difusora. Certamente o número de jazzófilos porto-alegrenses em 1946 não era lá muito grande (se nem em 2011 é…). Hot então, nem falar! Mas os caras eram bons e aí, em 1948, foram gentilmente convidados pela direção da emissora a manter seu emprego aumentando o grupo. Queriam que eles virassem a orquestra da rádio: maior e, 36

principalmente, mais comportada. Ernani topa e, dois anos depois, recebe com honras o saxofonista Marino dos Santos, que voltava de uma longa temporada fora do estado. Juntos, rebatizam o grupo de 15 músicos como Orquestra de Ernani & Marino, com feras como o guitarrista Raul Lima- ainda na ativa! -, o pianista Suingue e o baterista Natalício. Seria a formação mais prestigiada de seu tempo.

Orquestra Ernani & Marino em 1952 Tanto que a Rádio Gaúcha comprou seu passe e, pouco depois, são eleitos a Melhor Orquestra do Ano de 1952. Fazem uma exitosa excursão a Montevidéu e seguem até 1956, quando os dois líderes brigam e Marino vai novamente embora da cidade. Ernani segue sozinho com o grupo até 1968, quando morre, dia 2 de dezembro. *** Outra formação curiosa dessa cena é a Jazz Band Tupinambá. Surgida em 1930, o pessoal se considerava os reis da cocada preta – ou, melhor: The Kings of Black Coconut Candy. Foram provavelmente o primeiro grupo porto-alegrense a criar seus próprios arranjos. E faziam disso um mistério sagrado: trocavam constantemente o local dos ensaios e, maravilha!, chegaram a desenvolver um dialeto próprio de gírias pra evitar que espiões roubassem os tais arranjos. Além disso, tocar vários instrumentos era especialidade da casa. O diretor Guisado respondia por trombone, banjo e bandoneon. Carlos Gomes Ferreira, que depois iria para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, encarava sax alto, clarinete, piano, violão, violino, flauta e banjo! E o arranjador era nosso velho conhecidoVeridiano Farias, exviolinista do Regional Espia Só, que agora tocava trombone.

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Orquestra Ernani & Marino em 1950 Também de 1930 é o Jazz Cruzeiro, fundado pela família Corrêa: o baixista Flávio Corrêa, seu irmão baterista Oscar Corrêa, e a mulher deste, a cantora Horacina Corrêa, futuro mito. A semente do grupo fôra a Orquestra Cruzeiro, criada em 1922 como uma revolucionária mistura de regional e orquestra de câmara: um cantor, flauta, dois violinos, violoncelo, contrabaixo, três violões, bandolim, um sujeito tocando caixa e outro no bumbo-e-prato. O porto-alegrense Flávio, nascido em 4 de fevereiro de 1900, por volta dos anos de 1920 já tinha agarrado o posto de O Grande Contrabaixista da Cidade – e não o largaria pelos 30 anos seguintes. É nesse grupo que estreia como cantor o Johnson, ao lado do acordeom do então jovem gaiteiro catarinense Pedro Raymundo. De ambos se falará mais em outros capítulos (sobre Johnson, no de Lupicínio; sobre Pedro, no do Regionalismo). Até a ascensão da Jazz-Band de Paulo Coelho, o Jazz Cruzeiro seria o melhor da cidade – melhor até que o Espia Só. Ernani Oliveira tocou trompete ali, paralelo a seu trabalho com sua própria orquestra. E não é à toa que foi o grupo de Paulo a suplantá-los. Afinal, foi do Jazz Cruzeiro que Coelho recrutou quatro de seus principais músicos: Ernani, Flávio, Oscar e Horacina. Pra fechar, não dá pra deixar de fora o Jazz Carris. Iniciada em 1934, com 13 figuras (dois banjos!), a orquestrinha fazia parte da

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política de entretenimento dos funcionários da firma de transporte fundada na década de 1880 – Carris que segue em atividade até hoje, há tempos como empresa pública. Nestes anos, era da iniciativa privada, e tinha, além da orquestra, seu próprio cine-teatro. Pelo Jazz Carris passariam os já citados Pedro Raymundo, Marino dos Santos e Breno Baldo, mais uma seleção de outros craques. Todos contratados como funcionários da empresa e tendo de trabalhar também em alguma atividade não-musical: motorneiros, cobradores… Enfim. A partir dos anos 1940 os jazz sumiriam lentamente de cena, suplantados pelos novos formatos das big-bands e das orquestras (não sem antes ver florescer o Jazz Futurista, Jazz Baby, Jazz Pampeiro – do 3º Batalhão da Brigada Militar –, Jazz Indiano, Jazz Venezianos, Jazz Rio…). O imenso poder de fogo das big-bands substituiria, inflando, as formações por vezes quase aleatórias dos jazz, em favor do novo conceito americano dos naipes: três ou mais trompetes, três ou mais trombones, três a cinco saxofones, mais uma cozinha rítmica de piano, contrabaixo, bateria e guitarra (com o Rio Grande se permitindo a licença poética de incluir violino e bandoneon para um set de tangos e milongas). *** Mas não encerremos antes de seguir as histórias de Marino e Paulino, instrumentistas geniais e esquecidos. O porto-alegrense Marino dos Santos nasceu no bairro Mont´Serrat, dia 26 de abril de 1908. E, como seus já citados contemporâneos Paulo Coelho, Radamés Gnattali, Dante Santoro e Lupicínio Rodrigues, aos 15 anos já era um músico de respeito – o que se botava no leite dessas crianças é um mistério perdido. Com seis, tocava cavaquinho nos animados saraus familiares. Aos nove, começou a estudar violão, e já se apresentava em público cantando e tocando. Aos 12 – em 1920 – é admitido na orquestrinha do irmão, que tinha flauta, três violinos, cello, dois violões, e ele no cavaquinho e na bandola. O repertório variava: pra bailes na Colônia Africana, maxixes, quadrilhas e tanguinhos. Pras plateias de brancos,

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valsas e pot-pourris de operetas. Como isso soava ou era arranjado, é um mistério. Ninguém ali lia ou escrevia música.

Hardy Vedana Já era um nome relativamente conhecido quando, em 1923, Albino Rosa o chama para o regional Espia Só. E aí entram duas versões pra transformação de Marino em saxofonista, mais uma vez, contadas pelo mesmo pesquisador, no mesmo livro: Jazz em Porto Alegre, de Hardy Vedana. A Opção A é aquela de que a gente já falou. Albino adquiriu aquele lote de instrumentos, incluindo os saxes, e equipou o pessoal. Já a B é muito mais hollywoodiana: …O problema maior de Marino era comprar um instrumento caro e ainda raro como aquele. Achar, até tinha achado. Estava lá, na vitrine da loja de música do Valcareggi (que segue firme até hoje, no mesmo endereço, na rua João Alfredo, bairro da Cidade Baixa). Mas cadê dinheiro? A solução vem por obra e graça de um anjo de guarda de nome Oswaldo Vergara, o doutor para quem, nas horas ocupadas, Marino trabalhava como motorista. Pois foi no exercício de sua função que, um belo dia, se desviou a rota do doutor pra passar, por acaso, na frente da loja. Parou o carro e, num ímpeto, lascou: – O senhor tem que comprar aquele instrumento pra mim! Creiam: deu certo. O doutor abriu a carteira e lhe presenteou com os 200 mil réis necessários. Em cinco minutos Marino era o feliz proprietário de um saxofone, indo levar seu patrão para uma audiência no fórum. E não foi só. O filho do doutor tocava piano, e foi com o “Dr. Jr.” no acompanhamento que Marino começou a aprender, de forma totalmente autodidata, o novo instrumento. Mal tocava as primeiras notas, atacou o primeiro baile. Instrumento na mão, muito peito e uma

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certa capacidade de improvisação foram as armas usadas pra enfrentar, no Jazz Espia Só, seu vasto repertório de… cinco músicas. Qual das duas versões é a exata? Vai saber… Voltando a Paulino Mô Nêgo Mathias: ele tinha nascido em Santo Antônio da Patrulha (73 km a leste de Porto Alegre), dia 10 de janeiro de 1910, e era outro que, aos 15 anos, já era profissional da música. Tocava bandolim no grupo Os Boêmios – cujo violonista e cantor era Zé Bernardes, da futura dupla regionalista Oswaldinho & Zé Bernardes – que era então um dos conjuntos musicais mais requisitados para animar… piqueniques! (sempre lembrando que não havia rádio, gramofones não eram nem portáteis nem baratos, e a música ao vivo era a única opção). Da trajetória de ambos com o Espia Só, já se falou. Sigamos pois, daí. Marino sai do grupo em 1928 pra tocar com Paulo Coelho na Confeitaria Central. E no susto: tava ele, bem tranquilo, tocando um baile na Colônia Africana quando vê entrar porta adentro o já então famoso Paulo. Quase tão jovem quanto Marino (tinha míseros 18 anos, contra os 20 do saxofonista), Coelho já era uma estrela, e vinha fazer um convite irrecusável: queria que ele fosse o principal solista do jazz que estava montando para tocar na confeitaria. Marino hesitou, hesitou… e não topou: Eu tinha até vergonha de conversar com ele. Me sentia inferiorizado em virtude de ele tocar nas melhores casas do centro da cidade, e eu, na periferia. Não disse pra Paulo, mas também sabia que não lia música suficientemente bem pra enfrentar um músico letrado. Mas ficaram de se falar. A solução encontrada foi a mais óbvia: Marino deu uma intensiva de estudos em leitura musical. Quando achou que dava pra encarar, procurou Paulo e assumiu o posto na hora. A partir dali, se Porto Alegre teve seu Duke Ellington, e ele foi Paulo, Marino foi seu Johnny Hodges: eu era uma pedra bruta que fui (sic) lapidada por Paulo. Feliz daquele que foi acompanhado pelo melhor pianista da América Latina, sem favor nenhum. O único intervalo na parceria foi quando, em 1930, empolgado com a Revolução, Marino se alista nas forças getulistas (não que eu quisesse ser militar, mas sabe como é o entusiasmo cívico! Ainda mais sendo gaúcho, e naqueles dias!). Foi parar em Passo Fundo, extremo noroeste do Rio Grande do Sul. Lá, fez exame de música e, sempre modestíssimo, se surpreendeu quando foi aprovado na parte teórica. Dali, se mandou para o Rio de Janeiro com o Sétimo Batalhão 41

de Combate. Fez um novo concurso, passou em terceiro lugar, e ganhou o posto de terceiro-sargento-músico. E aí, pombas, estava no Rio de 1930, e era músico. É absolutamente óbvio que passou a fugir do quartel para, com seu sax soprano, fazer uma pós-graduação em choro, ministrada nos piores botecos do Mangue. Quando se sentiu diplomado honoris causa, voltou pra Porto Alegre, deu baixa, e reassumiu seu posto com Paulo Coelho, embarcando com ele para uma gloriosa estada de um ano em Buenos Aires. A partir daí, Marino também vai também fazendo alguma fama como compositor. É seu um choro que ficou clássico nas rodas locais, Saxofonista Triste, além da polca com o bárbaro título de Jair Furando, e a polca-valsa Silvinha – prova definitiva de que a época era mesmo de fusões: que diabos é uma polca-valsa?!? Popularidade e trabalho não faltavam. Em meados dos anos 1930, além de perfilar na orquestra de Coelho, ainda toca no Jazz Carris. E, como todos ali tinham de trabalhar não só como músico, virou motorneiro. Ou quase: como eu tocava e compunha razoavelmente bem, o diretor da Carris seguidamente me dispensava do serviço de motorneiro. Daí a facilidade de tocar em três lugares (na rádio e nos cafés – com Paulo –, e na Carris). E também pode ter pesado o fato do motorneiro Marino ter entrado com tudo em cima de outro bonde, pelo simples fato de que pegou na firma às cinco da manhã, virado de um baile terminado às quatro. Dormiu, claro. Quando Paulo morreu, ele já tinha saído do jazz-band e formado seus próprios conjuntos. Um deles era um quarteto com o lendário pianista Swing, pra tocar na Boate Marabá. O outro era a Marino e Sua Orquestra, com 10 figuras, arranjadas pelo mesmo Swing, contratada da Rádio Difusora e com um time de responsa: entre outros, o velho parceiro Paulino Mathias no sax tenor, guitarra e contrabaixo, o futuro Maestro Macedinho no sax alto, e Horacina Corrêa no vocal. Sua moral é tanta que, em 1941, quando é feito o primeiro concurso de jazz bands de Porto Alegre, a matéria da Folha da Tarde intitulada Qual será o melhor jazz da cidade? e coloca como grande questão a dúvida: Marino. Ele aceitará ou não? “It‟s is the question”! Por enquanto, o popular saxofonista nada decidiu. E segue: Em Marino, indiscutivelmente, reside uma boa parcela do interêsse que despertará a contenda.

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Por essas e outras que a popularidade do grupo logo os leva pra São Paulo, contratados pela Rádio Cultura. A orquestra toca algum tempo por lá, mas o que faz sucesso mesmo é um quinteto paralelo, com Marino no clarinete, Swing no piano, Paulino no contrabaixo, mais trompete e bateria. Tanto que, quando acaba o primeiro contrato, os músicos, como bons gaúchos, decidem voltar pra casa. Só ele fica. A partir daí, entra pra grandes orquestras paulistas, como a de Sylvio Mazzuca, e só volta a Porto Alegre em 1948, novamente por um bom motivo. Iria montar, como se viu, a melhor big-band surgida desde a Jazz-Band de Paulo Coelho: a Orquestra Ernani & Marino. O grupo, que tinha também um grande baterista, Natalício, faz muito sucesso até 1954, quando Marino, mais uma vez, vai embora. Desta vez pro Rio, direto pra orquestra da TV Tupi. Enquanto isso tudo acontecia, Paulino Mathias tinha se tornado uma estrela dos melhores cabarés da época – o Dancing Royal, o Dancing Oriente (ambos nos anos de 1930 e 40) e o Castelo Rosado (nos 1950). Ao mesmo tempo, iluminava as transmissões da Rádio Gaúcha, para a qual fora contratado em 1934: era um grande improvisador, coisa rara nestes tempos. E, apesar de ter se estabelecido como saxofonista e clarinetista, seguia tocando – e bem – bandolim, violino e violão. Em 1960, Marino volta pela última vez a Porto Alegre, e novamente pra tocar na melhor big-band de então. Desta vez, a prestigiadíssima Orquestra de Karl Faust, onde permanece até que, no final dos anos de 1960, o alemão Faust volta pra sua terra natal e o grupo se desfaz. Acaba ali uma era: a partir de então, Marino e Paulinho vão ser o retrato de sua geração, passando da mais alta glória para empregos cada vez mais indignos, em boates e inferninhos cada vez mais decadentes, até o momento em nem isso mais havia. Paulino morre em Porto Alegre, em 1977, completamente esquecido em vida. Tão ou mais que Marino, que se vai três anos depois, morando modestamente numa casinha na Vila Nova (zona rural no extremo sul de Porto Alegre). Na Porto Alegre de 1980, ninguém mais queria saber de velhos saxofonistas.

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