\"A escola e o território: um acordo democrático improvável ?\", in BAUMANN BURGOS Marcelo (dir.), A escola é o mundo do aluno, Garamond, 2014, pp. 480-497.

June 19, 2017 | Autor: Benjamin Moignard | Categoria: Sociology of Education, Learning and Teaching, School violence, School Violence Prevention
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Capítulo 19 A escola e o território: um acordo democrático improvável?1 Benjamin Moignard In BAUMANN BURGOS Marcelo (dir.), A escola é o mundo do aluno, Garamond, 2014, pp. 480-497. http://www.travessa.com.br/a-escola-e-o-mundo-do-aluno/artigo/9ae769cf-ff18-47a0a70e-f44e4c4c4ab2 Como uma escola democrática, destinada a todos os alunos, pode fazer com que todos tenham êxito, independentemente de seu meio social de origem? Nenhum sistema de educação consegue, atualmente, resolver essa equação impossível. As classificações internacionais se multiplicam e apontam os limites dos sistemas educativos, quaisquer que sejam eles, em matéria de êxito de alunos oriundos dos meios populares. O grau das desigualdades sociais de êxito na escola é bastante diferente de um país para outro, e nenhum deles pode se vangloriar de ter solucionado a dificuldade estrutural de tornar a escola massificada realmente democrática. Esse desafio continua sendo de uma atualidade alarmante diante, da questão de reduzir as desigualdades sociais de êxito na escola, nas sociedades em que os diplomas são percebidos como o meio mais igualitário de reduzir as desigualdades de acesso às posições sociais mais valorizadas. É nesse contexto, que se deve colocar em pauta a dificuldade de a escola adaptar seu modelo, para que os habitus escolares possam ser apropriados por todos os alunos e não mais ligados, a priori, às proximidades sociais e culturais que os alunos advindos dos meios mais privilegiados têm com a escola. Nesse sentido, há talvez um paradoxo importante que perpassa a maior parte dos países democráticos, em relação aos movimentos de massificação escolar: se a exigência de acesso a mais escola para todos os alunos é uma questão compartilhada entre eles, o tratamento social da dificuldade escolar vem se desdobrando em direção a



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Tradução de Dayse Mary Ventura Arosa.

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uma

tomada

de

consciência

das

questões

normativas,

cada

vez

mais

desconectadas e distantes daquelas da aprendizagem. Esta contribuição visa a questionar as relações entre socialização escolar e território popular, no contexto desse movimento de democratização. Tomaremos como base o caso da escola francesa, por vezes apresentada no exterior, e no Brasil em particular, como um modelo dos valores republicanos e igualitários que, em geral, nós lhe imputamos. Veremos, no entanto, que esse modelo republicano, que se pretende efetivamente igualitário, encontra dificuldades para tornar real o ideal de uma escola democrática que assegure o sucesso de todos os alunos.

1. Massificação e fracasso escolar: a nova situação do público popular O fim dos anos 1970 foi marcado, na França, por um movimento de massificação do ensino médio, assim como na maioria dos países democráticos nessa época. A necessidade de mão de obra qualificada, como um imperativo moral e político de uma maior igualdade de oportunidades no acesso às posições sociais mais valorizadas, foi uma alavanca decisiva para a massificação do ensino médio. O peso da escola foi multiplicado dentro da lógica de distribuição das posições sociais, e novas problemáticas surgiriam ligadas ao público egresso dos meios populares, que, até então, não cursava esse nível escolar, salvo em casos excepcionais. O novo público de alunos advindos de meios populares, que passou a frequentar o ensino médio, trouxe, no seu rastro, certos “problemas sociais” sobre os quais vários autores passaram a se debruçar. A questão do fracasso escolar, a princípio, ilustra essas novas preocupações sobre uma problemática central do desafio democrático da massificação do ensino médio: as desigualdades sociais de êxito na escola. Viviane Isambert-Jamati (1985) apresenta, assim, a maneira pela qual a qualificação pelos meios pedagógicos franceses e a pesquisa sobre os desafios de sucesso e de fracasso transformaramse no debate público e em relação com evoluções estruturais mais amplas, não apenas como uma preocupação escolar, mas também como um “problema social”. Segundo ela, quando a escolaridade, que vai além do ensino fundamental, se torna a regra, nos damos conta de que não basta prever novos lugares. Se as formas de fazer, as referências culturais, as condutas atingidas continuam exatamente as mesmas, uma parte importante do novo público experimenta tantas dificuldades, que rapidamente é eliminada como inapta. Não é apenas o atraso, mas o “fracasso” que se torna um



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“problema social”, uma vez que o nível de estudos em questão passou a ser necessário para participar normalmente da vida social, em particular, profissional. (p. 157)

A autora explica como, em um contexto marcado pela unificação do sistema educativo e pela generalização progressiva do acesso ao ensino médio, no fim dos anos 1960, a emergência da temática do fracasso escolar juntou duas questões até então tratadas de forma separada. Em primeiro lugar, a dos desníveis sociais de escolarização, que se mostra pelo viés de uma acepção relacional ou relativa do fracasso escolar: os alunos ocupam os estratos inferiores na hierarquia das posições escolares e sofrem, portanto, mais duramente, as consequências negativas em termos de orientação, qualificação, acesso a emprego, condições de inserção socioprofissional. Em segundo lugar, a da existência de uma fração, mais ou menos importante, de alunos considerados como aqueles que não satisfazem as exigências próprias às situações e aos cursos escolares, vistos em uma acepção específica ou absoluta de fracasso escolar. Essa última acepção responsabiliza o aluno ou uma categoria de aluno por realizar ou fracassar em realizar tal aprendizagem ou tal aquisição cognitiva ou cultural, atender ou não tal ou tal nível de cultura escolar, de formação, de escolarização ou de qualificação. Nesse sentido, Jean-Yves Rochex (2001) afirma que o número de incompreensões e de falsos debates, mas também de paradoxos próprios à temática do fracasso escolar, se deve ao fato de que as realidades, às quais nos remetem uma e outra dessas duas acepções, desdobram-se de forma diferente, em função de lógicas relativamente independentes. Somente considerando essas realidades diferenciadas permite dar conta do contraste entre a elevação considerável do nível de formação das novas gerações que conheceram o sistema educativo francês há quarenta anos - com a generalização do acesso ao segundo ciclo do ensino fundamental2, de 1960 a 1975, depois, a massificação do acesso ao ensino médio, de 1985 a 1995, e a emergência, a persistência, e mesmo a exacerbação do debate social, midiático e pedagógico sobre o “fracasso escolar” - e os fenômenos sociais que lhe são associados. (p. 71)

A

emergência

desses

“fenômenos

sociais”,

outra

versão

do

que

caracterizamos aqui como problemas sociais, põem em questão a capacidade de o ensino fundamental II sozinho de lutar contra as desigualdades sociais de êxito escolar. O fato de o fracasso escolar atingir mais maciçamente os alunos oriundos

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Na França, o ensino fundamental é divido em école e collège, esse último correspondendo aos anos de 6º a 9º anos do ensino fundamental no Brasil. Daqui em diante, será usado o termo ensino fundamental II para designar collège, uma vez que essa designação é utilizada nas escolas brasileiras em geral. NT.



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de meios populares do que os demais é entendido como “‘um motivo de escândalo’, do ponto de vista da igualdade de oportunidades e em relação aos valores da ‘democracia meritocrática’” (FORQUIN, 1982, p. 52). Essa incursão do “problema” do fracasso escolar no debate público na França e a colocação em pauta de políticas orientadas para a luta contra o fracasso escolar nos anos 1980 influenciaram, por muito tempo, as pesquisas sobre essa questão. O desenvolvimento das políticas de educação prioritária, as primeiras formas de descentralização aplicadas à escola, a nova importância conferida ao contexto local para questionar as alavancas de êxito ou de fracasso dos alunos suscitaram a emergência de novos objetos de pesquisa que se aproximam das preocupações identificadas sobre o “campo”. Contudo, a problemática do fracasso escolar seria suplantada, nos anos 1990 e 2000, pela emergência de uma dificuldade maior da escola em manter condições de aprendizagem satisfatórias, em particular nos estabelecimentos que acolhem grande parte dos alunos oriundos de meios populares. A emergência da problemática da “violência na escola” concentrou uma parte importante da atenção midiática e política e contribuiu, talvez, para transformar os relatos de profissionais de educação sobre as dificuldades trazidas para a escola, ou seja, a atitude incompatível de certos alunos em relação às expectativas da escola, ao invés de sua falta êxito ou dificuldade de aprendizagem. Nesse sentido, as preocupações em torno da necessidade de transformar a escola em um santuário são particularmente intensas no sistema educativo francês, que se estruturou em torno da ideia de uma ruptura necessária entre a escola e seu meio e que parece confrontada a dupla frente de dificuldades. Dessa forma, tradicionalmente muito atada a sua independência e ao seu monopólio legítimo da função educativa, a instituição escolar, em seu conjunto, se voltou tanto sobre ela mesma, que se sentiu, cada vez mais, ameaçada pela degradação, pela dureza e pelo estranhamento de seu ambiente mais próximo. (OBERTI, 2006, p. 150).

A importância crescente do tema da violência na escola contribuiu para reforçar as atitudes de desafio da escola no contexto desse ambiente e para transformar, em certa medida, as rotinas dos educadores que consideram de uma nova maneira a gestão da ordem sob a forma escolar. Essas questões de ordem e segurança no espaço escolar se impuseram assim ao debate público e se tornaram uma das maiores preocupações dos atores da escola (DEBARBIEUX; MONTOYA, 1998). Assim, os desafios da luta contra o fracasso escolar, antes orientados às

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aspirações escolares que visavam à melhora do êxito dos alunos, foram suplantados por um imperativo social maior: mais do que fazer com que os alunos em dificuldades tivessem êxito, era necessário proteger-se da contaminação da má influência dos alunos difíceis sobre os outros e seu ambiente escolar. 2. Tensões normativas na escola: dos alunos em dificuldades aos alunos difíceis À medida que o mito meritocrático e igualitário se afastava, afirmava-se, para os atores escolares, o risco de uma “contaminação” da escola pela rua, em particular nos bairros populares. O advento da “violência urbana” como problemática central no tratamento das questões ligadas à juventude desses bairros, a partir do início dos anos 1980, faz parte da concepção de uma escola sitiada pelo espaço externo (MUCCHIELLI, 2001). Certo número de pesquisas credita a ideia de uma violência intrusiva, alimentada pelo bairro, à dupla pressão da democratização escolar e do agravamento

da

violência

no

ambiente

mais

próximo

da

escola.

Essas

manifestações de desordem escolar traduzida em violência na escola não são, no entanto, uma novidade. Jacques Verger (2008) recorda, na introdução de um dossiê da revista Histoire de l’Éducation dedicada a essa questão, que “esse fenômeno é onipresente na história da educação”. Contudo, o tratamento social da violência transformou-se de forma significativa, relacionado com a degradação da segurança nas escolas, ao mesmo tempo em que ela se democratiza. As desordens na escola democrática aparecem, assim, como uma consequência das tensões normativas entre vida juvenil e normas escolares, que marcam as dificuldades de adaptação da escola francesa à nova heterogeneidade do público e o seu confronto com as socializações juvenis e populares em particular (PAYET, 1995). Desde 1967, Jacques Testanière (1967) anunciava o fim de uma forma de agitação integradora, possuidora de uma função social legitimada, que ele define como uma forma ordinária de socialização escolar que fortalece o grupo/ turma. A modificação social do público provocou uma diminuição da tolerância às desordens, que não são mais assimiladas a uma função de regulação das tensões ou de rituais de classe, mas a uma forma de agitação anômica que traduz a manifestação de um desencantamento dos alunos diante da evidência do fracasso e das desigualdades sociais de acesso e de êxito escolar (TESTANIÈRE, 1972).



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As desigualdades sociais de êxito escolar, em um contexto de massificação do sistema educativo, constituem o pilar a partir do qual se estrutura o que Anne Barrère (2002) designa como “uma nova era da desordem escolar”, caracterizada, em particular, pela acumulação de incidentes no espaço da sala de aula e do estabelecimento, provocada pela multiplicação dos conflitos relacionais e o desenvolvimento de uma forma de “dessocialização dos problemas profissionais ligados à autoridade” no interior da escola (BARRÈRE, 2002, p. 10). É nesse contexto que o controle das desordens escolares tornou-se uma questão central da profissionalização de educadores e da gestão de estabelecimentos escolares. A capacidade da escola em impor sua lei não é tão óbvia: a ordem escolar passou a ser negociada, a escola viu sua legitimidade para estabelecer modelo social universal e integrador colocada em xeque (PÉRIER, 2010). A agitação tradicional que marcava a desconfiança em relação aos adultos, na qual, depois de muito tempo, o exercício de uma forma de solidariedade de classe se esgotou (WILLIS, 1977) e o controle da ordem escolar transformaram-se numa questão de gestão de desigualdades sociais de êxito escolar, enquanto a incorporação do modelo meritocrático republicano pelos alunos de classes populares se confrontava com a realidade de seu fracasso. Os alunos com fracasso escolar passam a ser os alunos “difíceis”, a imagem do cancro simpático (“cancre sympathique » – o que isso significa ?) se apagou em benefício desse novo “selvagem” que encarna a resistência à norma escolar, esse aluno desviante que “carrega com ele toda a precariedade e instabilidade do mundo social ao redor” (GEAY; ORIA; FROMARD, 2009, p.). Esses alunos “produtores de desordem inensináveis3”, diriam igualmente Mathias Millet e Daniel Thin ( 2003), tornaram-se o alvo priviliegiado de um grande número de dispositivos que desconectam as aprendizagens da socialização escolar, esquecendo-se, por vezes, que os confrontos normativos na escola nem sempre são de ordem patológica (BAUTIER; RAYOU, 2009). 3. Políticas de educação prioritárias para gerir os problemas sociais? A gestão das desordens e seu tratamento pelo poder público se inscrevem em uma transformação mais ampla das políticas de educação e, em particular, das 3

No original, inenseignables, um neologismo, criado aqui em português para garantir a força da palavra no texto. NT.



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políticas de educação compensatórias nestes últimos vinte anos. Se certo número de pesquisas sobre a questão reposiciona o objeto em um contexto de transformação generalizada do sistema de ensino e de redefinição dos quadros ordinários da forma escolar (RAYOU, 2002), o tratamento político da desordem está essencialmente circunscrito aos estabelecimentos que acolhem os alunos oriundos dos bairros populares. A partir dos anos 1990, a política das “Zonas de Educação Prioritárias” (ZEP), que simbolizam a luta contra o fracasso escolar nos bairros populares, através de uma série de medidas e dotações específicas, marcou uma abertura significativa em direção às preocupações sociais bem maiores do que as simples questões escolares até então expostas. Certo número de relatórios e publicações científicos colocaram em evidência, na época, uma forte disparidade de alunos em ZEP, de acordo com os meios acadêmicos, e se inquietavam com a multiplicação excessiva de seu número, o que enfraquecia de fato uma política cujos efeitos pareciam diluídos sob o peso do número (MOISAN, 2001). O novo mapa das zonas resultaria, assim, em parte do fato de a política de desenvolvimento social urbano e, notadamente, de desenvolvimento social dos bairros levar em conta essa questão. Desde então, assiste-se a uma forma de aproximação das políticas territorializadas que visam explicitamente ao tratamento dos problemas sociais ligados ao tema da exclusão (TISSOT, 2007). As ZEP tornaram-se, pouco a pouco, uma ferramenta suplementar de gestão das problemáticas sociais dos bairros desfavorecidos, em vez de um meio de luta contra o fracasso escolar. Muitos pesquisadores sublinham o risco de se passar de uma política de sucesso escolar das crianças menos favorecidas para uma simples “gestão social das desigualdades escolares” (GLASMAN, 1992). Inúmeras políticas públicas destinadas aos bairros procuram então “novas coerências” (OBLET, 2008), e a redefinição do mapa das ZEP possibilita dar significado a essa lenta evolução de uma política escolar para uma política, cada vez mais, orientada pelas questões urbanas, em que a questão do controle das desordens, simultaneamente dentro e em torno da escola, se intensifica. De fato, as políticas de educação prioritárias estão cada vez mais permeáveis às formas de ações públicas que se interessam, antes de tudo, pelos desafios de regulação social. É nesse espírito que apareceu, em 1992, uma nova classificação para as escolas de ensino fundamental II ditas “sensíveis”, utilizada, ao mesmo

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tempo, pelos ministérios da Educação Nacional e do Interior. Novos meios foram atribuídos a esses estabelecimentos, a fim de possibilitar ações pedagógicas inovadoras. Entretanto, o essencial era, antes de tudo, reter os educadores nesses locais e favorecer certa estabilidade das equipes, através da concessão de bonificações variadas. Esse número de estabelecimentos era relativamente estável, entre 150 e 180 escolas, favorecendo a sua denominação como “estabelecimento sensível”. Quando uma grande maioria de estabelecimentos “sensíveis” era também classificada como ZEP, essa dupla filiação não era automática. Cinco critérios foram definidos

para

denominar

uma

“escola

sensível”:

a

taxa

de

categorias

socioprofissionais desfavorecidas, a taxa de alunos bolsistas, a taxa de alunos estrangeiros, a taxa de alunos atrasados em mais de dois anos ao ingressar no 6º ano, a taxa de alunos em horário semi-integral. A colocação na classificação “colégio sensível” abria, na verdade, uma brecha na lógica de zoneamento que existia, até então, com as ZEP. Em 1992, somente 60% dos 174 estabelecimentos “escolas sensíveis” estavam classificados como ZEP, o que significa, para Martine Kherroubi e JeanYves Rochex, que “rotulando” os estabelecimentos, ela (a categoria administrativa “escolas sensíveis”) acentuou a tensão que existia, desde o início da política ZEP (CHARLOT, 1994), entre duas versões totalmente diferentes da territorialização das políticas educativas: aquela em que a unidade territorial é a zona, dentro de uma perspectiva mais ou menos regulada pelo Estado, e aquela em que unidade territorial é o estabelecimento, cujo chefe tem a responsabilidade de gerir, combinando lógicas diferentes (lógica de gestão, lógica de consumismo, lógica de mercado etc.). (KHERROUBI; ROCHEX, 2002, p. 114) De fato, a escala de intervenção da “escola sensível” não é mais o bairro ou a zona, mas o próprio estabelecimento, o que induz à formalização da ideia segundo a qual o exercício, dentro desse tipo de estabelecimento, demanda formas de acompanhamento específico que visam a responder a um problema local, ao invés de combater uma desvantagem social. Há uma transformação radical da abordagem da relação do território com as dificuldades escolares: não se trata tanto de compensar as desvantagens sociais por toda parte onde elas estejam, mas de gerir estabelecimentos considerados como difíceis. Essa situação não é somente francesa, mas se inscreve dentro de um movimento de recomposição das modalidades de organização da ação pública em educação em escala europeia, que

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privilegia um tratamento individualizado dos problemas escolares e sociais, em vez de uma lógica de zoneamento que vise a compensar as desigualdades sociais do controle de dispositivos que possam favorecer o êxito na escola. 4. A tentação da subcontratação: da escola única ao advento dos dispositivos A correlação entre denominar esses alunos como perturbadores e sua origem social, sua suposta concentração nos bairros mais sensíveis, evoca a hegemonia de um modelo de conformidade escolar distante dos hábitos juvenis populares. De fato, a permeabilidade das questões da escolarização aos problemas sociais mais amplos é uma marca importante das novas políticas de educação: não se trata tanto de reduzir as desigualdades de êxito escolar, mas de gerar populações de alunos considerados inadaptados à escola (ROCHEX, 2008). A figura do aluno “perturbador” tornou-se, portanto, um alvo incontornável da ação pública em educação, dentro de uma lógica de designação e de categorização de públicos beneficiários, cada vez mais individualizados, que se inscreve em um movimento significativo de diferenciação das formas de ação pública em educação (FRANDJI et al., 2011). Mais precisamente, políticas nacionais são completadas por dispositivos de tratamento local, que tendem ao tratamento específico de públicos designados como perturbadores. Nesse sentido, Mathias Millet e Daniel Thin (2003) afirmam que ao nível das escolas4, a passagem de um discurso sobre a redução das desigualdades sociais e escolares às políticas de luta contra as “desordens escolares” de gestão de alunos “difíceis” conduz à organização desses espaços em dispositivos de tratamento e de enquadramento dos “excluídos do interior”, os mais perturbadores da ordem escolar, espaços que tendem a funcionar como espaços de transição institucional entre a exclusão interna do sistema de ensino e posições dominadas dentro do espaço social. (p. 41)

É dessa maneira que se desenvolveram nas cidades ou territórios mais populares, dispositivos locais de tratamento de alunos excluídos temporariamente, o que evidencia o advento das novas fronteiras de abordagem dessa categoria de alunos tidos como perturbadores, egressos dos meios populares. Essa nova configuração do tratamento da dificuldade escolar e da heterogeneidade dos públicos marca para Anne Barrère (2013) uma “nova era da organização escolar”.

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Escola aqui é o collège, isto é, segundo ciclo do ensino fundamental, que vimos chamando de ensino fundamental II. NT.



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Esses dispositivos constituem “um conjunto de suportes organizacionais variados, capazes de levar em conta particularidades dos territórios, dos públicos e das urgências - das heterogeneidades de espaços, de pessoas e de tempos” (BARRÈRE, 2013, p. 113). A autora acrescenta que esses dispositivos são entendidos como uma resposta plausível ao tratamento de problemáticas variadas e de públicos heterogêneos, que transformam, sem modificar completamente, uma forma escolar tradicional, talvez inadaptada, diante da nova configuração de uma escola massificada. Esses dispositivos não se direcionam sempre aos mesmos públicos, nem mobilizam as mesmas formas de tratamento, nem os mesmos profissionais, mas visam, de forma alternada ou simultânea, a lutar contra o fracasso escolar, a reduzir a violência na escola ou a evitar a evasão escolar. O público a ser atingido é quase sistematicamente associado aos “problemas de violência ou comportamento” que perturbam a ordem escolar, enquanto os Internatos de Reinserção Escolar5 visam explicitamente ao tratamento dos “alunos perturbadores”. Mesmo que a escola mantenha o controle, esses dispositivos marcam uma mobilização nova em escala local, dentro da definição das políticas educativas e do tratamento dos alunos com mais dificuldades na escola. São as associações, as prefeituras, que sustentam e financiam, no todo ou em parte, esses espaços alternativos de tratamento. Diante disso, observam-se assim múltiplos sinais de mudança, se não de ruptura, da onipotência centralizada da educação nacional na Franca, demarcando aquilo que Choukri Ben Ayed (2009) chama de “uma nova ordem educativa local”. As coletividades territoriais, em particular, têm investido grandes somas nos últimos quinze anos no espaço da escola ou no tratamento de certas categorias de alunos. Esse movimento é antigo, tendo inclusive caracterizado uma parte da política nacional de educação prioritária nas ZEP, mas o perímetro e o número desses dispositivos locais que se direcionam a certas categorias de alunos têm uma nova amplitude. Geralmente apresentados como um meio de participação ativa para a redução das desigualdades sociais de êxito na escola, de melhoria das condições de escolarização no território, esses dispositivos têm como objetivo, em particular, os alunos percebidos como aqueles que têm dificuldades ou em situação de 5 Durante um ano, os alunos sao escolarizados em estruturas especiais noite e dia.

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fracasso escolar, entre os quais figuram em primeiro lugar aqueles identificados como perturbadores. O postulado pedagógico sobre o qual se apoiam esses dispositivos é, em geral, o do tratamento individual dos alunos, marcado por uma transformação nos referenciais dos profissionais de intervenção social, que pensam, a partir daí, a relação

de

ajuda

como

uma

postura

de

acompanhamento

que

visa

a

“responsabilizar os usuários” (MOIGNARD; RUBI, 2013). Isabelle Astier (2007) lembra a tendência das políticas sociais, a partir de meados dos anos 1990, de promoção de uma lógica de reconhecimento das formas de realização de si, que incita os profissionais da área social a trabalhar a capacidade de um indivíduo de se dotar de recursos necessários para enfrentar o curso de sua vida ou superar uma dificuldade. Em outros termos: a assistência e a relação de ajuda se complementam. Essa ideia, sem dúvida, é o espírito que anima esses dispositivos de tratamento dos alunos excluídos: ainda que a escola seja acusada de ser incapaz de regular sozinha suas dificuldades, não se questiona sua capacidade de integrar uma parte importante dos alunos originários de certos meios sociais. É o aluno, e somente ele, que deve provar a sua capacidade de se adaptar a uma forma de socialização escolar, reduzida à estrita integração e aceitação das exigências normativas da escola, em termos de postura e de comportamentos, e não a partir dos processos de construção de maneiras de agir e pensar que estejam comprometidas com a receptividade e apropriação pelos alunos. Dessa forma, cria-se uma série de atividades dedicadas a formas de “ressocialização”, organizadas sobre o princípio da incorporação pelo aluno das regras de conduta ligadas à manutenção da ordem escolar. Essa socialização escolar é percebida como “a” condição de entrada na aprendizagem, sem que a dimensão socializante da aprendizagem em si seja de fato questionada. As atividades cognitivas ligadas aos usos escolares ordinários são, na verdade, relegadas ao lugar de questões periféricas, traduzidas sob a forma de acompanhamento de deveres mais pontuais de um enquadramento “metodológico, em torno de alguns exercícios particulares. Finalmente, é a partir de uma forma hipotética de ressocialização escolar, que os conteúdos são organizados, demonstrando uma naturalização excessiva do déficit de socialização do qual sofreriam alguns alunos. Explicando-lhes e lhes dando as regras do jogo, eles terão um comportamento mais adaptado à escola: trata-se de, em outros termos, tornar

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inteligíveis as referências normativas da escola e os usos dela decorrentes em termos de comportamento. Assiste-se assim a uma forma de deslocalização dos usos normativos da escola que os dispositivos são encarregados de transmitir. A questão do comportamento é desvinculada das questões de aprendizagem, a atividade do aluno está referida a uma visão utilitarista do exercício escolar. Esses alunos, que já são aqueles que têm dificuldades de entrar nas lógicas de aprendizagem mais estruturantes, são finalmente confortados, em uma forma de mal-entendido permanente, acreditando que está fazendo o que é necessário, cumprindo tarefas e se conformando às prescrições escolares, sem, para isso, mobilizar a atividade intelectual requerida para um trabalho real de aculturação, eles estimam estar quites com os requisitos da instituição e satisfazer, assim, às condições de êxito, o que só ocorre em casos raros” (BAUTIER; ROCHEX, 1997, p. 112).

A baixa assiduidade do aluno é sistematicamente associada a um déficit de sociabilidade escolar, que remete a uma prescrição particularmente normativa de comportamentos esperados, e que não levam em conta os elementos do contexto que, no entanto, marcam profundamente a sua experiência escolar. Ao colocar como alvo os alunos com necessidades ditas particulares, esses dispositivos se inserem em uma reconfiguração dos espaços escolares, demarcando não tanto um enfraquecimento da instituição, como se denuncia às vezes, mas uma reapropriação pelos atores não escolares das questões da escolarização. É evidente que poderíamos nos alegrar com uma mobilização dos atores locais no tratamento das problemáticas que colocam efetivamente questões reais para uma instituição que se deve proteger. Entretanto, essa configuração se faz num único sentido, não pelo registro de uma mobilização partilhada, mas sobre aquela do abandono de certas prerrogativas escolares a novos atores que não as demandam tanto.



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Somos forçados a constatar, de maneira paradoxal, que essa abertura da escola a novas colaborações demonstra, afinal, um fechamento significativo dos estabelecimentos sobre uma forma escolar restrita, que devolve, literalmente, uma parte significativa das questões de aprendizagem e, portanto, de socialização escolar, às portas da escola. Apesar da boa vontade evidente e dos recursos talvez preciosos para certo número de alunos, o foco dos dispositivos sobre as questões de ressocialização escolar pressupõe uma inadaptação dos alunos que não participam do contexto e não cumprem as condições de desenvolvimento de sua experiência escolar. A questão é, de fato, compreender como e sobre que bases a escola constrói ou não as condições de acesso a um universo normativo, que não pode ser um dado adquirido em uma escola democrática. Nos bairros populares, mais ainda que em outros, não há dúvida de que a escola deve mobilizar-se, para que o sentido da aprendizagem e do saber não fique reduzido a uma dimensão estritamente utilitarista. Esse imperativo não pode ser limitado a algumas especificidades locais: é um combate a enfrentar. Conclusão Se é indispensável que a escola possa oferecer as garantias elementares de segurança dentro de seus muros, não se deveria, sob pretexto de protegê-la, correr o risco de isolá-la e fragmentá-la. O ideal democrático de uma mesma escola para todos quebra-se, no momento em que se precisa uma forma externa de tratamento dos alunos que causam problemas para a instituição. É claro que nem todos os alunos oriundos de meios populares são atingidos por essas modalidades de enquadramento. No entanto, seu desenvolvimento como desdobramento da natureza e das modalidades de organização das políticas públicas, em matéria de educação e de compensação das desigualdades sociais de acesso ao êxito escolar, deve ser questionado. O santuário republicano, que visava à afirmação de um pertencimento comum, não é mais, nos dias de hoje, do que um meio de se proteger do mundo. Uma escola dentro da cidade, sem a cidade. Um certo número de disposições que citamos fecha a escola dentro de uma forma de isolamento escolar, que coloca como prévia à ação de ensinar uma predisposição dos alunos às normas e às exigências escolares que aparecem como indispensáveis. Essas medidas participam também da transformação de uma forma escolar que se concentra sobre a gestão da ordem e da disciplina, em detrimento de uma

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abordagem pedagógica que faça do saber um elemento decisivo de uma socialização escolar que torne a aprendizagem possível. O mito de uma escola santuário sitiada pelo exterior deve, portanto, ser combatido, dentro daquilo que alimenta as crispações e tensões que participam amplamente da falência do projeto democrático, que só a escola, e a escola pública em particular, é hoje capaz de incorporar em nossas sociedade démocraticas. A escola se constrói de maneira incontornável na interação com seu ambiente, e, se é evidente que ela sofre, às vezes, as consequências de processos que a ultrapassam, não temos dúvidas de que ela seja capaz de agir, para o melhor, por um ideal democrático que não se pode deixar de continuar a sustentar. É, portanto, necessário encontrar novas normas e novos acordos para a escola no meio popular e em outros contextos, meios de fazer viver essa dialética entre uma escola aberta, que possa ser portadora de sentido, e uma exigência acadêmica indispensável à emancipação de cada um. Referências bibliográficas ASTIER, Isabelle. Les nouvelles règles du social. Paris: PUF, 2007. BARRERE, Anne. Un nouvel âge du désordre scolaire : les enseignants face aux incidents. Déviance et Société, n.26, p.3-19, 2002. ______________. La montée des dispositifs : un nouvel âge de l'organisation scolaire. Carrefours de l'éducation, v.36, n.2, p. 95-116, 2013. BAUTIER, Elisabeth; RAYOU, Patrick. Les inégalités d'apprentissage. Programmes, pratiques et malentendus scolaires. Paris: Presses Universitaires de France, 2009. _________________; Rochex, Jean-Yves. Ces malentendus qui font les différences. In: La scolarisation de la France. Critiques de l'Etat des lieux. Paris: La Dispute, 1997. pp. 105-122. BEN AYED, Choukri. (). Le nouvel ordre éducatif local. Mixité, disparités, lutte locale. Paris: Presses Universitaires de France, 2009. CHARLOT, B. (dir) (1994) - L´Ecole et le territoire: nouveaux espaces, nouveaux enjeux, Paris, Armand Colin DEBARBIEUX, Eric; MONTOYA, Yves. La violence à l'école en France : 30 ans de construction sociale de l'objet (1967 - 1997). Revue Française de Pédagogie, n.123, p.93-121, 1998. FORQUIN, Jean-Claude. L'approche sociologique de la réussite et de l'échec scolaire: inégalités de réussite scolaire et appartenance sociale (II). Revue Française de Pédagogie, n.60, p. 51-70, 1982. FRANDJI, Daniel et al. (). Pluralité des catégories de "cibles", tensions et implicites dans les élaborations. In: DEMEUSE, M. et al (Eds.). Les politiques d'éducation

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