A escravidão nas fazendas pastoris de Soledade, no norte do RS

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por MARIO MAESTRI Doutor em História pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

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Maria Beatriz Chini Eifert. Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de soledade (1867-1887). Passo Fundo: EdiUPF, 2006. (Coleção Malungo, v. 12).

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A escravidão nas fazendas pastoris de Soledade, no norte do RS Apesar da função germinal que a fazenda pastoril desempenhou na origem e no desenvolvimento da formação social sulina, além de alguns estudos monográficos, não dispomos de sequer uma história geral da estância no Rio Grande, ao contrário do Uruguai e da Argentina, onde abundam valiosos trabalhos sobre o tema.[1] Destaque-se que Guilhermino César, último grande expoente da historiografia tradicional sul-rio-grandense, esboçou uma primeira leitura da estância, de sua origem aos dias atuais, sem, porém, jamais concluir o trabalho, publicado postumamente em 2005 – A origem da economia gaúcha: o boi e o poder.[2] Esse paradoxo manteve-se apesar da abundância da documentação, da qualidade de estudiosos ligados ou não ao mundo pastoril, das periodizações e paradigmas interpretativos construídos pela historiografia platina sobre a questão. Por motivos ideológicos, a história da fazenda no Rio Grande do Sul parece ter sido vista como uma espécie de caixa de Pandora, a ser mantida sempre cerrada. Como no Uruguai e na Argentina, os mitos da democracia pastoril e da produção sem trabalho são também bases constitutivas das explicações apologéticas do passado sulino. O Rio Grande divide com aquelas regiões a apologia das virtudes democráticas das imensas propriedades, da reprodução natural dos rebanhos, da ocupação pelo colonizador de territórios sem donos, de civilização assentada na destemeridade e nobreza de trabalhador visceralmente livre, o gaúcho.[ 3]

Entretanto, ao contrário dos pampas platinos – à exceção, até os anos 1850, dos departamentos setentrionais do Uruguai –, o Rio Grande constituiu região de economia e de sociedade fortemente apoiadas no trabalhador escravizado.[4] É realidade longamente negada ou minimizada pelos intelectuais orgânicos, inicialmente, da sociedade liberal-pastoril e, a seguir, positivista-industrial, apesar de todos os levantamentos populacionais dos séculos 18 e 19 registrarem o volume e, até mesmo, a expansão absoluta da mão-de-obra escravizada no Rio Grande do Sul, além mesmo do fim do tráfico transatlântico de cativos, em 1850-1852.[5] Uma produção escravista rio-grandense que envolveu de forma significativa, ainda que não exclusiva, a própria economia pastoril regional, como lembraram, explicitamente, em 1978, eruditos estudiosos ligados ao Instituto Histórico Geográfico Rio-Grandense, durante polêmica com o historiador Décio Freitas, precisamente sobre essa questão, sem, porém, jamais terem se aprofundado no estudo do status do cativo na criação animal, o que permitira iniciar a elucidação orgânica de questão de importância germinal para a compreensão do passado riograndense.[6] Gaúcho – o paradigma rio-grandense De forma geral, mesmo quando a historiografia sulina reconheceu alguma importância ao trabalho escravizado no Rio Grande do Sul, esforçou-se em reafirmar a fazenda pastoril, ou, ao menos, as práticas pastoris propriamente ditas, como esferas de intervenção exclusivas do trabalhador livre, ou seja, do gaúcho, descendente sobretudo de charruas e guaranis. A população escravizada registrada nas fazendas trabalharia exclusivamente nas atividades não pastoris domésticas e mais pesadas – horta, transporte, construção etc. –, atividades nas quais, nos fatos, ocupava-se sistematicamente. A elucidação das razões da utilização do cativo caro, considerando-se a baixa rentabilidade da fazenda pastoril, no contexto da existência de gaúchos hábeis no trato das coisas do campo, constituía, igualmente, dificuldade metodológica na solução dessa verdadeira “charada historiográfica”. A superação dessa contradição aparente exigia compreensão da organização pastoril que superasse a constatação da disponibilidade reputada de mão-de-obra livre e identificasse as razões histórico-estruturais do caráter subordinado do mercado de trabalho livre no Sul, ao igual de que no resto do Brasil. Até os últimos tempos da escravidão, os campos sulinos não foram plenamente apropriados e cercados e o gaúcho detinha, em parte, os instrumentos – cavalos, arreios etc. – para produzir furtiva ou semifurtivamente seus meios de subsistência, o que dificultava sua metamorfose plena em peão, ou seja, em trabalhador pastoril

assalariado obrigado pela necessidade econômica a vender sua força de trabalho a preço vil. Nessas condições históricas, o trabalho coato ou semicoato impunha-se como uma importante relação de trabalho na produção pastoril rio-grandense, ainda que não assumisse o caráter quase exclusivo, como em outras atividades produtivas mercantis – charqueadas, monocultura exportadora etc.[7] A própria fantasia apologética sobre as condições de existência singularmente positivas do gaúcho, identificado de fato ao fazendeiro, dificultava a compreensão da incapacidade dessa categoria social de reproduzir-se vigorosamente, criando população excedente capaz de substituir abundantemente a mão-de-obra escravizada, quando subsistissem as condições necessárias para tal. Nos fatos, o padrão de existência do gaúcho-peão rio-grandense no século 19 e começos do século 20 exige estudos como o desenvolvido por Laudelino Medeiros para os anos 1960.[8] Novos estudos Nos últimos anos, alguns autores começam a abordar, direta ou indiretamente, o status do trabalhador escravizado na produção pastoril, ainda que, em alguns casos, com base em ótica empírica que produz valiosa informação sem avançar na elucidação das determinações essenciais da produção pastoril e de suas relações com as demais esferas produtivas e sociais da antiga formação social sulina. Esses valiosos trabalhos centram-se sobretudo nos municípios do Meridião riograndense, desde sempre coração da economia pastoril bovina sulina. À exclusão de alguns trabalhos da historiografia municipal, referentes à pós-Abolição, praticamente não tínhamos informações sobre a história da estância no norte do Rio Grande Sul, de singular importância historiográfica, ainda que prática social mais pobre e mais recente em relação à atividade congênere do Meridião. A primeira abordagem orgânica dessa realidade foi empreendida, em meados dos anos 1970, por Paulo Zarth, pioneiro na ênfase, numa ótica sistemática, da importância da escravidão na produção pastoril nessa região e no Rio Grande do Sul.[9] De expansão econômico-demográfica mais tardia, sem sediar nenhuma universidade federal, o norte do Rio Grande constituía região com presença frágil nas representações historiográficas do passado e, conseqüentemente, do presente. A fundação em 1998-1999, em Passo Fundo, do primeiro Programa de Pós-Graduação em História fora da região metropolitana de Porto Alegre permitiu que o norte sulino passasse a ser objeto de análises históricas sistemáticas. Tive o privilégio de dirigir duas importantes dissertações, uma sobre a fazenda e a outra propriedade latifundiária no norte do Rio Grande do

Sul, no PPGH - Universidade de Passo Fundo. Em 2002, o arquiteto Nery da Silva apresentou àquele programa levantamento-interpretação histórico-arquitetônico de fazendas localizadas ao longo do antigo Caminho Novo da Vacaria, publicado a seguir na forma de livro.[10] Em 2006, Helen Ortiz concluiu detalhada elucidação do processo de expansão da propriedade latifundiária no município de Soledade, após a Lei de Terras, de 1850-1854, ainda inédita.[11] A mão de obra escravizada Também natural de Soledade como Nery da Silva e Helen Ortiz, Maria Beatriz Chini Eifert defendeu, em 2006, dissertação sob o título Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de soledade (1867-1887), que tive igualmente o prazer de orientar e agora a satisfação de apresentar, na forma de livro, sob o mesmo título, como 13º volume da coleção Malungo. Participaram da banca examinadora os professores Fernando Camargo, da Universidade de Passo Fundo, e Solimar Oliveira Lima, da Universidade Federal do Piauí, autor de importante estudo sobre a escravidão nas fazendas públicas piauienses.[12] Marcas da escravidão nas fazendas pastoris de Soledade [1867-1883] constitui texto ágil, de fácil e agradável leitura, o que registra o punho de autora graduada em Letras e atuante por longos anos nessa área. O cuidadoso e preciso arrolamento, análise e apresentação das fontes estudadas de Maria Beatriz Chini Eifert assinalam, por sua vez, o igual domínio das técnicas da produção historiográfica, demarcando o ingresso pleno da autora nas filas dos historiadores rio-grandenses. A partir de inventários, processos-crime, cartas de alforria etc., guardados sobretudo no Arquivo do Fórum de Soledade, Maria Beatriz propõe-se em seu trabalho descrever realidades internas essenciais da mão-de-obra escravizada nas fazendas do antigo distrito de Botucaraí – Soledade –, nos anos 1867-1883, na perspectiva de contribuir ao necessário conhecimento desse importante palco da produção pastoril no Rio Grande nas últimas décadas da escravidão. Na primeira parte do trabalho, a autora apresenta sinteticamente o cenário geral do seu estudo, destacando o povoamento, os fazendeiros, a produção pastoril, a economia ervateira regional etc. No segundo capítulo, aborda as fazendas estudadas, sobretudo no relativo à mão-deobra escravizada nelas presente – quantidade, gênero, preço, profissão, relação com os bens móveis e imóveis etc. A construção-apresentação de múltiplas tabelas, sintéticos descritivos da realidade estudada, constitui valiosa contribuição à historiografia. Cativos campeiros Na terceira e última parte, a partir do estudo de documentação judicial, sobretudo referente a pedidos de libertação, Maria Beatriz aborda

singularmente o grande personagem de sua investigação, o trabalhadortrabalhadora escravizado, até então estudado como categoria social sintética, para que possa ser visto como protagonista individual de sua dura existência, na procura de construção totalizante do cenário social estudado. Marcas da escravidão reafirma dados gerais de outros estudos, como o caráter social e político dominante dos estancieiros na região, seguidos pelos comerciantes, fato registrado no domínio da representação política municipal. Maria Beatriz enfatiza, igualmente, o caráter relativamente pobre dessa economia, em relação às grandes plantações mercantis e ao próprio Meridião rio-grandense. Ressalta a pobreza das moradias, mobiliário, apetrechos domésticos e produtivos, evidenciada nos próprios inventários dos mais ricos proprietários, e o alto valor na época dos cativos em relação aos outros bens, móveis e imóveis. A autora registra a média de 5,4 cativos por propriedade inventariada e o relativo equilíbrio sexual, corroborando dados obtidos para outras regiões. Ao destacar o grande número de filhos dos inventariados, quase igual aos dos cativos, assinala a necessidade de se apreenderem os dados sobre a população cativa no contexto da população livre moradora das fazendas, já que a documentação tradicionalmente estudada registra com dificuldade os trabalhadores livres – mensalistas, diaristas, agregados etc. – presentes nessas unidades produtivas. Outro importante dado destacado pela autora é o caráter jovem da população escravizada – dos 113 cativos arrolados nos inventários, 44 tinham de zero a quinze anos. Estudos em desenvolvimento certamente nos revelarão detalhes da expansão demográfica na população escravizada das fazendas pastoris permitida pelas características dessa produção. A documentação computada pela autora não permitiu determinar se a população estudada encontrava-se envolvida pelo tráfico interprovincial rio-grandense em direção ao Centro-Sul, muito ativo durante os anos 1870, segundo Robert Conrad.[13] Realidade sui-generis A leitura de Marcas da escravidão sugere-nos que, na investigação das unidades pastoris, não podemos saltar das descrições líricas do passado para o desconhecimento cabal da diversidade relativa das condições de vida dos trabalhadores dessas explorações em relação aos das unidades agrícolas ou manufatureiras escravistas exportadoras, diferenciação surgida das determinações das condições médias de existência pelas diversas condições materiais de produção. O caráter precoce da delimitação de profissão a crianças escravizadas, desde os quatro anos, no caso de um menino arrolado como “campeiro”; a prática dos escravistas de presentearem as filhas com cativas quando

se casavam; a importância e precocidade relativa da ação abolicionista na região, com destaque ao juiz sergipano Melchisedeck Mathusalém Cardoso, que certamente merece investigação biográfica, são alguns dos diversos aspectos desse universo ressaltado pela investigação. Em maio de 2006, Leandro Daronco apresentou dissertação ao PPGH da Universidade de Passo Fundo referente ao trabalho e à resistência no noroeste do Rio Grande do Sul, que demarcou importantes aspectos das tensas relações sociais entre trabalhadores escravizados e escravizadores.[14] Maria Beatriz registra com destaque o martírio de Catarina, jovem de apenas vinte anos, nas mãos de seus proprietários, surrada e queimada barbaramente. Com marcas de relhadas cicatrizadas e supuradas, Catarina procurou a proteção da Justiça, rejeitada por ser “cativa má”, já que fugira três ou quatro vezes dos algozes. Realidade que, sem dizer tudo, diz muito sobre páginas do passado dessa região do Rio Grande do Sul que permaneciam, como lembra pertinentemente a autora, apenas registradas em documentos em acelerada decomposição e nas suas tristes seqüelas sociais atuais. _____________ [1] Cf., entre outros: ASSUNÇÃO, Fernando O. Historia del gaucho. Buenos Aires: Claridad, 1999; BARSKY, Osvaldo. Historia del capitalismo agrario pampeano: la expansión ganadera hasta 1895. I. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003; BERTOLINO, Magdalena; NILLOT, Julio. Historia económica del Uruguay. Tomo I e II. Montevideo: Fundación Cultura Universitaria, 1991; CARREÑO, Virginia. Estancias y estancieros del rio de la Plata. Buenos Aires: Claridad, 1999; DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero: de la explotación primitiva a crisis actual. Montevideo: La Banda Oriental, 1974; GILBERTI, Horacio C.E. Historia económica de la ganadería argentina. Buenos Aires: Solar, 1970; MONTOYA, Alfredo Juan. Como evolucionó la ganadería en la época del virreinato. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984; MONTOYA, Alfredo Juan. La ganadería y la industria de salazón de carnes en el periodo 1810-1862. Buenos Aires: El Coloquio, 19714; PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967; QUESADA, María Sáenz. Los estancieros. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1991; SESTO, Carmen. Historia del capitalismo agrario pampeano: la vanguardia ganadera bonaerense. 1856-1900. II. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. [2] CÉSAR, Guilhermino. Origem da economia gaúcha: o boi e o poder. Int: HOHLFELDT, A. Porto Alegre: IEL, Corag, 2005. [3] Cf. MAESTRI, Mário. O reflexo perverso: história e historiografia do trabalhador escravizado no RS: 1819-2006. História Revista, Universidade Federal de Goiás [UFG], 2007 [No prelo]. [4] Cf. PALERMO, E. R. Banda Norte: una historia de la Frontera Oriental: de indios, misioneros, contrabandistas y esclavos. Rivera: Yatay, 2001. [5] Cf. MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade. 3. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: EdUFRGS, 2006. [6] Cf. entre outros: FREITAS, Décio. Escravos na estância. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 de março de 1978; XAVIER, Paulo, Aspectos da pecuária em Alegrete. Correio do Povo, Suplemento Rural, 10 mar. 1978. [7] Cf. MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EdiUPF, 2002. p. 85-122.

[8] Cf. MEDEIROS, Laudelino. O peão de estância: um tipo de trabalhador rural. Porto Alegre: Instituto de Estudos e Pesquisas Econômicas da UFRGS, 1964. [9] Cf. ZARTH, P. A. História agrária do planalto gaúcho. 1850-1920. Ijuí: EdiIjuí, 1997. [10] SILVA, Nery Luiz Auler da. Antigas fazendas: arquitetura rural do planalto médio, séc. XIX. Passo Fundo: Edição do Autor, 2003. [11] ORTIZ, Helen. O banquete dos ausentes: a Lei de Terras e a formação do latifúndio do norte do RS - Soledade, 1850-1889. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, 2006. [12] LIMA, Solimar Oliveira. Braço forte: trabalho escravo nas fazendas da nação do Piauí (1822-1871). Passo Fundo: Edi UPF, 2005. [Malungo 4] [13] Cf. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 1850-1888. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 65. [14] DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul. (1840-1888) Passo Fundo: EdiUPF, 2006. (Coleção Malungo, v. 12).

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