A escuta no processo criativo do Grupo Obra Aberta

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Descrição do Produto

Universidade Estadual de Campinas Instituto de Artes

Lucas Zewe Uriarte

A escuta no processo criativo do Grupo Obra Aberta

Campinas, 2015

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Ur33e

Uriarte, Lucas Zewe, 1988UriA escuta no processo criativo do Grupo Obra Aberta / Lucas Zewe Uriarte. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. UriOrientador: José Augusto Mannis. UriDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Uri1. Improvisação (Música). 2. Música experimental. I. Mannis, José Augusto,1958-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Listening in the creative process of the Grupo Obra Aberta Palavras-chave em inglês: Improvisation (Music) Experimental Music Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática Titulação: Mestre em Música Banca examinadora: José Augusto Mannis [Orientador] Denise Hortência Lopes Garcia Rogério Luiz Moraes Costa Data de defesa: 26-08-2015 Programa de Pós-Graduação: Música

Resumo Este trabalho apresenta um estudo acerca do processo criativo do Grupo Obra Aberta, grupo dedicado à música experimental e improvisação do qual faço parte. O objetivo é averiguar como a escuta atenta e analítica agiu no processo criativo do grupo, apontando para os impactos na sua produção. Enquanto metodologia foi empreendido um trabalho prático de criação musical com o Grupo Obra Aberta, pautado por diferentes estratégias de escuta, observado e registrado em formato de áudio e vídeo, e relatado nesta pesquisa. Os relatos são apresentados em ordem cronológica, compreendendo o período de março de 2013 a julho de 2015, tornando possível acompanhar a evolução do grupo ao longo do tempo. Em meio aos relatos nos reportamos aos exemplos musicais, disponíveis como apêndice da dissertação, apresentando o resultado do trabalho prático desenvolvido. Ao analisar o processo criativo salientamos as implementações, aquisição de recursos, descobertas e processos de refinamento, avaliando por fim as contribuições da escuta no desenvolvimento do grupo. A dissertação se organiza em três capítulos. O primeiro consiste na apresentação do Grupo Obra Aberta expondo sua formação, integrantes, percurso e a abordagem do grupo em relação ao processo criativo. Apresentamos também neste capítulo o modelo de processo criativo de José Augusto Mannis, do qual tiramos ideias e conceitos aplicados nas análises nos capítulos posteriores. No segundo capítulo, o processo criativo de treze momentos escolhidos por sua importância e diversidade são relatados, em articulação com as principais referências que se relacionam com o trabalho do grupo, principalmente no que diz respeito a escuta. Entre elas destacam-se a escuta reduzida de Schaeffer, o Deep Listening de Pauline Oliveros, o I-son de François Bayle e os conceitos de Knowledge base e referent de Jeff Pressing. Passamos então à discussão onde o impacto da escuta atenta e analítica é avaliada em duas instâncias: no tempo real da ação e na construção de um repertório compartilhado de ações. As considerações finais apontam para a escuta agindo em constantes processos de renovação, construção e ampliação. Palavras-chave: Grupo Obra Aberta, escuta, processo criativo, improvisação

Abstract This work presents a study on the creative process of the group Obra Aberta, a group dedicated to experimental music and improvisation to which I am part of. The aim of this project is to investigate how the attentive and analytical listening has acted on the creative process of the group, pointing to its impacts on the group’s work. The methodological steps comprehends a practical creative work with the group Obra Aberta, guided by different listening strategies, that was observed, registered in audio and video format, and reported on this research. The reports are presented chronologically, from March 2013 to July 2015, making it possible to follow the evolution of the group in this period. On the reports we refer to the musical examples, available as appendix of the dissertation, presenting the results of the practical creative work developed. In the analysis of the creative process we highlight the implementations, resource acquisitions, findings and sophistication processes, assessing how listening has contributed to the development of the group. The dissertation is organized in three chapters. The first one introduces the reader to the group Obra Aberta, exposing its foundation, members, and presenting group’s approach to the creative process. We also present in this chapter the creative process model of Jose Augusto Mannis, which provides ideas and concepts applied in the analysis in later chapters. In the second chapter the creative process of thirteen moments, chosen for their importance and diversity, are reported in conjunction with the main references related to the group's work, especially with regard to listening. Among them we mention Schaeffer’s proposal of reduced listening, Pauline Oliveros deep listening, the concept of I-son presented by François Bayle and the concepts of Knowledge Base and Referent created by Jeff Pressing. We then proceed to the discussion where the impact of the attentive and analytical listening is evaluated in two instances: in the real-time action, and building of a shared actions repertoire. The conclusions point to the listening acting in constant renewal, construction and expansions processes. Key-words: Grupo Obra Aberta, listening, creative processes, improvisation

Sumário INTRODUÇÃO

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CONTEXTUALIZAÇÃO: DAS INDETERMINAÇÕES NAS POÉTICAS MUSICAIS DAS DÉCADAS DE 50 E 60 AO GRUPO OBRA ABERTA

11

PROPOSTAS NO CAMPO DA ESCUTA

12

SOBRE ESTE TRABALHO

14

SOBRE O GRUPO OBRA ABERTA

16

A FORMAÇÃO

16

OS INTEGRANTES – REFERÊNCIAS INDIVIDUAIS

17

O PROCESSO CRIATIVO NO CONTEXTO DO GRUPO

21

O PROCESSO CRIATIVO NA ABORDAGEM DE JOSÉ AUGUSTO MANNIS

23

PANORAMA DA PRODUÇÃO DO GRUPO

27

RELATOS DO PROCESSO CRIATIVO DO GRUPO OBRA ABERTA

30

LINHA DO TEMPO

30

RELATOS DA PRODUÇÃO DO GRUPO NO ANO DE 2013

33

1. PRIMEIROS ENSAIOS

33

1.1 Improvisação Generativa (Improvisation Générative)

33

1.2 Pierre Schaeffer e a escuta reduzida

34

1.3 Vinko Globokar e os cinco modos de interação

39

2. MÚSICA DAS ÁRVORES

43

3. PRIMEIRAS IMPROVISAÇÕES LIVRES

50

3.1 Derek Bailey e a Improvisação livre

50

3.2 Rogério Costa: improvisação livre e desterritorialização (segundo a filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari) 4. INTERRUPTORES E CRUZAMENTOS (OU SEMÁFOROS)

51 58

4.1 Fátima Carneiro dos Santos: escuta e composição da paisagem sonora – escuta como gesto poiético 5. RVC 5.1 A escuta e o corpo

59 68 71

6. RITUAIS SONOROS E MÚSICA INTUITIVA

72

6.1 Stockhausen e a música intuitiva

73

6.1.1 Breves considerações sobre a intuição

75

77

6.2 Pauline Oliveros – Deep Listening 7. IMPROVISAÇÃO LIVRE 2

79 83

RELATOS DA PRODUÇÃO DO GRUPO NO ANO DE 2014 8. EXPERIÊNCIAS NO CONSERVATÓRIO DE PARIS E NOVOS EXERCÍCIOS DE IMPROVISAÇÃO

83 87

8.1 Alain Savouret e as escutas micro, meso e macrofônica 9. IMPROVISAÇÃO LIVRE 3 – FOLIA

89

10. HINOX

90

10.1 Mannis e o ensino de improvisação na UNICAMP

94

10.2. I-son: François Bayle e a releitura de Rodolfo Caesar

95

11. MIXAGEM IMPROVISADA RELATOS DA PRODUÇÃO DO GRUPO NO ANO DE 2015 12. CONCERTO CÊNICO – GRAMANI JOGA BADMINTON COM AS ANDORINHAS

107 113 113

12.1 Gramani joga badminton com as andorinhas

115

12.2 Semáforos versão II

118

12.3 Staff Soundpainting

119

12.4 Portais (Os Números e a Caverna)

122

13. OBRA ABERTA VERSÃO GROOVE

136

13.1 Referent e Knowledge base: ferramentas para a consistência no ambiente da improvisação idiomática e não idiomática

138

DISCUSSÃO

142

A ESCUTA NO TEMPO REAL DA AÇÃO

142

A ESCUTA NA CONSTRUÇÃO DO REPERTÓRIO COMPARTILHADO

145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

151

DISCOGRAFIA

154

APÊNDICE

155

EXEMPLOS MUSICAIS

155

Agradecimentos

Aos meus irmãos de som do Grupo Obra Aberta: Fabio, Fernando, Henrique, Marcelo e Theo, não só pela participação direta neste trabalho, mas principalmente pela amizade que é a base da nossa música. A minha família, pelo cuidado, paciência e apoio incondicionais em toda a minha trajetória. Ao professor Mannis, mestre e amigo que tanto me instigou e me ajudou a crescer com sua sabedoria e generosidade. Aos professores que me incentivaram a trilhar os caminhos da criação: Jônatas Manzolli, Silvio Ferraz, Denise Garcia, Claude Ledoux e Alexandros Markeas. Aos professores envolvidos nas bancas de composição, qualificação e defesa: Denise Garcia, Rogério Costa, Paulo Tiné, Fernando Hashimoto, Ângelo Fernandes e Tadeu Taffarello. À Dominique, pelo carinho. A todos os amigos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste trabalho, em especial ao Leo Matricardi, Bruno Cabral, Livia Nicolucci, Gabriel Rimoldi, Bernardo Penha, Chico Oliveira, Jorge Geraldo, Danilo Granato, Beatriz Coimbra, Fernanda Serradourada, Tiago de Mello, Lygia Pereira, Lucas Reitano, Laura Videira e Janete El Haouli.

Lista de figuras

Figura 1: Grupo Obra Aberta ............................................................................................................... 16 Figura 2: Percepção, análise e síntese em ciclos de ciclos com diferentes ênfases ............................. 25 Figura 3: Relação entre Forma e Estrutura .......................................................................................... 26 Figura 4: Tabela do jogo Semáforos (sem indicação de materiais) ..................................................... 64 Figura 5: Tabela do jogo Semáforos (indicações de materiais usados pelo grupo em 2013) .............. 65 Figura 6: Diagrama do exercício Tocar a nota do outro ...................................................................... 85 Figura 7: Partitura 1: Comum de HINOX, trecho com texto ............................................................... 98 Figura 8: Indicações de execução - gestos - HINOX ......................................................................... 100 Figura 9: Pilar 1: Corda Bamba ......................................................................................................... 102 Figura 10: Pilar 2: Mantra .................................................................................................................. 102 Figura 11: Pilar 3: Groove .................................................................................................................. 103 Figura 12: Exemplo de Partitura 2: Individual de HINOX ................................................................ 104 Figura 13: Visualização do Patch PD desenvolvido para a Mixagem Improvisada .......................... 109 Figura 14: Cartaz de divulgação do concerto Gramani joga badminton com as andorinhas ............. 113 Figura 15: Trecho da série das estruturas de pulsação 7 (4-3), usado no jogo Badminton ................ 116 Figura 16: Primeira página da partitura de Números II ..................................................................... 124 Figura 17: Primeira estante da partitura de Portais, posteriormente determinada Estante 1: Folia ... 126 Figura 18: Estante 2: Máquinas .......................................................................................................... 130 Figura 19: Estante 3: Zen/Tribos ........................................................................................................ 131 Figura 20: Estante 4: Gestos .............................................................................................................. 132 Figura 21: Estante 5: Groove ............................................................................................................. 133

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Introdução Contextualização: das indeterminações nas poéticas musicais das décadas de 50 e 60 ao Grupo Obra Aberta A partir da década de 50, fazendo parte do turbilhão de mudanças e experimentações da música no século XX, as indeterminações e aberturas passaram a figurar enquanto técnicas composicionais possibilitando uma renovação no processo criativo musical da época. Ao perceber o emprego dessas novas técnicas de composição, o escritor, filósofo e crítico de arte Umberto Eco escreve em 1962 seu ensaio intitulado Obra Aberta, propondo um modelo teórico para explicar e abordar as formas de indeterminação na arte na década de 50 e início da década de 60, presentes na literatura, artes plásticas e música (ECO, 2003). Em relação à esta última o autor vai buscar na vanguarda europeia exemplos de obras musicais nas quais identifica aberturas em relação a combinação, sucessão e duração das seções. Dentre obras citadas por Eco estão importantes peças de referência para a época tais como Klavierstück XI (1956) de Karlheinz Stockhausen, Sequenza I per flauto solo (1958) de Luciano Berio, Trocas de Henri Pousseur (1957) e a Terceira Sonata para Piano (1955-57) de Pierre Boulez,. Fazendo um recorte da música contemporânea norte americana da mesma época, Michael Nyman (1999) faz uso do termo música experimental para designar uma poética na qual indeterminações ainda mais radicais fazem parte do processo composicional. O autor examina obras de compositores americanos, em especial Morton Feldman, Earle Brown e John Cage, afirmando que nesta nova poética o interesse dos compositores experimentais recai em criar situações e processos que podem gerar ações musicais, e não objetos musicais estanques (NYMAN, p. 4). Simultaneamente

ao

surgimento

dessas

novas

poéticas,

suscitada

por

questionamentos acerca das regras que governavam a linguagem musical na época, observa-se a emergência da improvisação livre, prática altamente experimental na qual nada é determinado a priori, ou seja, a abertura é total. (BAILEY, 1993, p. 84). Desde então práticas musicais das mais diversas, se valendo da abertura enquanto recurso, seja ela parcial ou total, se expandiram consideravelmente alcançando outros lugares além dos Estados Unidos e Europa e chegando também ao Brasil.

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Em nosso cenário podemos destacar o trabalho de Hans-Joachim Koellreutter, alemão radicado no Brasil, citando as obras: Wu-li, música experimental situada entre a música concertante e música improvisada, composta em forma de partitura gráfica, pautada no que o compositor chamou de estética relativista do impreciso e paradoxal (KOELLREUTTER, 1990); Tanka II, para piano, voz declamada e tam-tam ou gongo grave, também uma partitura gráfica baseada no estilo de poesia japonesa que recebe esse nome; e os Modelos de Improvisação, criados para fins pedagógicos (BRITO, 2001). Atualmente temos enquanto uma das principais referências na área o compositor, improvisador e professor Rogério Costa, que se dedica tanto à prática quanto à pesquisa no campo da música experimental improvisada, mais especificamente da improvisação livre. De seu trabalho prático citamos o envolvimento com os grupos Akronon (SP - já extinto) e Música Ficta (SP), e sua direção junto à Orquestra Errante, grupo formado por alunos da ECA (Escola de Comunicações e Artes) – USP. Ainda em São Paulo destacamos a atuação dos músicos Fernando Iazzetta, Lilian Campesato, dos grupos Ibrasotope, NME, Camerata Profana (USP), e da atuação do Circuito de Improvisação Livre. Em Campinas, nos últimos anos, destacamos a atuação no campo da música experimental dos compositores Jônatas Manzolli, José Augusto Mannis, Silvio Ferraz, e Denise Garcia, e de alguns grupos criados no âmbito da UNICAMP. Destes citamos o grupo Paralax (já extinto), coordenado pela Profa. Dra. Denise Garcia, que em sua breve história dedicou-se exclusivamente ao repertório contemporâneo brasileiro; o Coletivo Improvisado, grupo de improvisação livre coordenado pelo saxofonista Manuel Falleiros, e o Grupo Obra Aberta, objeto desta pesquisa. O Obra Aberta é um grupo de música experimental, formado em 2012, por alunos do Departamento de Música da UNICAMP. Dedica-se à criação coletiva, tendo a improvisação como principal ferramenta para a realização de ideias musicais, veiculadas por meio de partituras abertas, jogos musicais, performances e intervenções. O trabalho do grupo interage com referências que vão desde a improvisação livre, música contemporânea, jazz, música brasileira e teatro musical, inspirando não somente as sonoridades mas também diferentes abordagens do processo criativo.

Propostas no campo da escuta Estreitamente relacionadas às novas abordagens do processo criativo no século XX surgem igualmente propostas de renovação no campo da escuta. De compositores a

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cognitivistas, são inúmeros aqueles que se lançaram em pesquisas na área, tratando do assunto a partir de métodos bastante distintos. Neste trabalho apresentamos algumas propostas de escuta que se relacionam diretamente com o trabalho do Grupo Obra Aberta. Como primeira referência usamos o trabalho do teórico e compositor francês Pierre Schaeffer, e sua proposta de uma nova escuta acompanhando a poética da música concreta: a escuta reduzida. Apoiada sobre o conceito de époché, atitude de suspensão de juízo fenomenológico na concepção de Edmund Husserl, a escuta reduzida busca uma percepção sonora abstraída de qualquer conteúdo semântico ou indicial, procurando auscultar o objeto sonoro unicamente em suas propriedades físicas (SCHAEFFER, 1966). Discípulo de Schaeffer, François Bayle desenvolve sua música acusmática associando a esta um novo tipo de escuta que aproxima os sentidos da audição e da visão: a Imagem de som, ou I-son. Para Bayle os sons eletroacústicos, matéria real difundida por caixas de som e não por músicos com seus instrumentos, produzem enquanto matérias transformadas as imagens, estas com suas morfologias próprias (BAYLE, 1994). Rodolfo Caesar amplia o conceito de imagem-de-som ao propor que todos os sons, independente de serem eletroacústicos, podem ser tomados enquanto imagem (CAESAR, 2013). O compositor e improvisador Alain Savouret, responsável pela criação da disciplina de Improvisação Generativa no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris, nos propõe como ferramenta para o desenvolvimento da escuta analítica a hipótese da tripla escuta, dividindo a escuta nos planos (1) microfônico, (2) mesofônico e (3) macrofônico. A escuta microfônica é aquela que ausculta com detalhe a matéria sonora, fazendo um recorte da mesma e a congelando no tempo e no espaço, ou seja, considerando-a como objeto isolado de seu contexto. A escuta mesofônica é um tipo de auscultar dinâmico, solicitado quando a matéria sonora se desloca no tempo e no espaço. É uma escuta que cria a história da matéria sonora, ou seja, acompanha sua evolução no tempo e espaço. Na escuta macrofônica a matéria sonora é relacionada com aspectos culturais e semânticos presentes na bagagem do ouvinte. É uma escuta baseada no conhecimento e reconhecimento (SAVOURET, 2010). A improvisadora norte americana Pauline Oliveros é conhecida por suas obras de caráter introspectivo, com longos pedais e uma constante interação com os sons do ambiente. Para perscrutar estes sons, Pauline se engaja em uma deep listening (escuta profunda), na qual procura ouvir o ambiente sonoro em sua totalidade. Nessa atividade a compositora propõe a escuta do som do ambiente como uma grande composição (OLIVEROS, 2006).

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Igualmente relacionada aos sons do ambiente, a pesquisa de Fátima Carneiro dos Santos (SANTOS, 2002; 2006) tem como objeto a escuta e composição da paisagem sonora a partir dos sons da cidade. A autora toma as paisagens sonoras das ruas como ponto de partida para a composição, podendo disparar diversas ideias musicais a partir de sua dinâmica, considerando não somente suas sonoridades. Santos relaciona sua prática com a Soundscape composition, poética na qual os sons ambientais são usados enquanto material musical. A autora comenta que, para além da inclusão da gama de sons ambientais enquanto material musical, como na Soundscape composition, a evolução da poética e estética musical no século XX nos abriu a possibilidade de escutar tais sons enquanto música, engajando-se em uma escuta que se configura enquanto gesto poiético (SANTOS, 2002, p. 96). Nos campos da Cognição e da Psicologia a percepção foi igualmente objeto de estudos ao longo do século XX e XXI. Na Teoria Motora da Percepção, Alain Berthoz aproxima a percepção da ação, ao afirmar que “a percepção não é apenas uma interpretação das mensagens sensoriais: ela é forçada pela ação, é simulação interna da ação, é julgamento e tomada de decisão, é emancipação das consequências da ação” (BERTHOZ, 2013, p. 15 apud MANNIS, 2014, p. 211). Nessa concepção o objeto percebido estimula nosso corpo a uma simulação interna de ações possíveis em relação a ele. Quando olhamos para uma cadeira, por exemplo, nos colocamos em relação com ela simulando internamente a ação de sentar.

Sobre este trabalho Este trabalho consiste em um forte encontro entre produção artística e pesquisa acadêmica, que teve origem já no final de 2012, antes do início formal das atividades de mestrado. Na época pesquisava sobre a escuta no ambiente de improvisação livre e obra aberta, práticas que me fascinavam e que faziam parte das minhas atividades musicais. Identificava nestas práticas que a escuta atenta era fundamental para o desenrolar da performance, e tinha curiosidade em saber como ela agia e quais poderiam ser os seus impactos. Ao mesmo tempo fundei em parceria com outros músicos o Grupo Obra Aberta, dedicado justamente à música improvisada e obra aberta, vislumbrando, para além de interesses artísticos, uma oportunidade de pesquisar de forma prática como a percepção musical age nesse ambiente. Já com o mestrado em curso, os conhecimentos apreendidos e as reflexões suscitadas pela pesquisa passaram a ser disseminados entre os integrantes grupo, influenciando no processo de criação. Em um determinado momento decidi convergir totalmente a pesquisa com a produção do grupo, tomando esta como central ao trabalho.

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O objetivo desta pesquisa consiste em averiguar como a escuta agiu no processo criativo do Grupo Obra Aberta. Para tal desenvolvemos uma prática de grupo que se pautou por uma escuta atenta e analítica em diferentes estratégias ao longo do processo criativo. Relatamos este processo criativo do grupo em ordem cronológica, acompanhando seu desenvolvimento,

identificando

buscas

pretendidas,

implementações,

descobertas

e

dificuldades, demonstrando como produção e escuta se moldaram e se desenvolveram mutuamente. Nossa hipótese é de que a percepção musical, e mais especificamente uma escuta atenta e analítica, age na renovação de ações na improvisação, na construção de um repertório comum de ações e também na expansão da gama de sonoridades, gestos, ideias e processos com potencial para se tornar material musical. O trabalho se justifica por possibilitar a ampliação dos conhecimentos acerca de processos criativos na música experimental desenvolvidos no Brasil, tornando disponível um material de consulta contendo exercícios, ideias de jogos, e uma produção artística que pode servir de referência para trabalhos de outros grupos. A dissertação está organizada da seguinte maneira: no primeiro capítulo, Sobre o Grupo Obra Aberta, apresentamos o grupo descrevendo o momento de sua constituição, apresentando a formação de seus integrantes, e também algumas informações sobre como se dá o processo criativo no grupo. Expomos também o modelo de José Augusto Mannis para o processo criativo, que servirá de apoio para a análise dos relatos. No segundo capítulo, Relatos do processo criativo do Grupo Obra Aberta, descrevemos, em ordem cronológica, de março de 2013 a julho de 2015, o processo criativo do grupo em 13 momentos, a partir da técnica de diário de bordo. Os relatos apresentam as principais ideias discutidas, as buscas pretendidas, as implementações, descobertas e dificuldades que se manifestaram durante o processo. Ao final de cada item apresentamos ainda alguns aspectos próprios ao desenvolvimento da percepção musical, que chamam a atenção em relação àquela produção específica ou ao momento do grupo. As principais referências teóricas aplicadas ao trabalho do grupo, principalmente no campo da percepção musical, são descritas em articulação com os relatos conforme se relacionam com o processo criativo. O trabalho conta com 15 exemplos musicais, entre vídeos e áudios, apresentando nossa produção criativa e ilustrando os relatos. Na Discussão apresentamos uma reflexão sobre os elementos analisados no diário de bordo, apontando como a escuta atenta e focada agiu no processo criativo do grupo. As Considerações finais apontam para a escuta agindo em constantes processos de renovação, construção e ampliação.

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Sobre o Grupo Obra Aberta

Figura 1: Grupo Obra Aberta Fonte: Foto de Fernanda Serradourada

A formação O Grupo Obra Aberta surge no final de 2012 por iniciativa de cinco amigos músicos: Fernando Sagawa, Henrique Cantalogo, Marcelo Chacur, Theo de Blasis e eu, Lucas Uriarte. Era um período de transição em nossas vidas, alguns eram recém-formados, outros estavam finalizando a graduação, Fernando e eu ingressaríamos no mestrado poucos meses depois. Nosso futuro era incerto, estávamos todos fechando e ao mesmo tempo inaugurando ciclos sem saber ao certo o que aconteceria dali para frente, porém todos compartilhavam da certeza, vontade e necessidade de continuar fazendo música. É nesse contexto que surge o Grupo Obra Aberta, antes de tudo um corpo/espaço nos assegurando o fazer musical, a pesquisa, a experimentação e a criação. O pontapé inicial para a formação foi dado por mim. Além da vontade de integrar um grupo de música contemporânea experimental, e assegurar o fazer musical, tinha também

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uma razão acadêmica. Estava prestes a entrar no mestrado e meu tema era a escuta na improvisação, portanto imaginei que nada melhor do que fazer parte de um grupo que trabalhasse com improvisação para me auxiliar no desenvolvimento da pesquisa. Porém ainda não imaginava que o grupo viria a ser o objeto desta pesquisa, minhas expectativas eram menores nesse sentido. O convite feito aos meus colegas para formar o grupo já deixava claro que o trabalho a ser desenvolvido seria direcionado à uma prática musical específica: a improvisação e a obra aberta. Na época, estava fascinado por essas práticas por identificar que seu desenrolar era possível somente através de uma escuta engajada e de uma forte interação entre os músicos. Vislumbrava um grupo dedicado a fazer música dessa forma, tendo a improvisação como ferramenta e meio fértil para a criação de propostas artísticas. Comecei então a pensar em músicos possivelmente interessados em fazer parte de um grupo com tais características. Era essencial que todos os integrantes fossem músicos criativos e disponíveis ao diálogo, a fim de compartilhar suas vontades, aspirações, conhecimentos e criar coletivamente. Nos reunimos pela primeira vez em dezembro de 2012 na biblioteca do Instituto de Artes da UNICAMP, onde discutimos a respeito do grupo, suas futuras atividades, e sobre as expectativas de cada um. Fizemos uma sessão de escuta e análise onde tomamos contato com peças com aberturas na escrita, tais como Stimmung de Stockhausen, minha peça Gamelão para grupo de percussão, e gravações do próprio Gamelão Javanês. Ouvimos ainda improvisações ao piano de Alexandros Markeas, compositor, pianista e professor de Improvisação Generativa do Conservatório de Paris, que se tornaria nossa primeira grande referência. Nesse primeiro encontro se encontravam presentes Fernando Sagawa, Marcelo Chacur, Theo de Blasis, Henrique Cantalogo e eu. Fabio Evangelista viria integrar o grupo poucos meses depois, completando a formação.

Os integrantes – referências individuais Fábio Henrique Menezes Evangelista iniciou os estudos musicais em piano aos 9 anos e concluiu o curso técnico no conservatório. Atualmente cursa música com habilitação em Composição Musical na UNICAMP onde estudou com os professores Silvio Ferraz, José A. Mannis, Denise Garcia e Jonatas Manzolli. Em 2008 e 2009 participou de seminários de

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Análise Musical com Claude Ledoux e Improvisação Generativa com Alexandros Markeas, ambos professores do Conservatório de Música de Paris. Seu contato com a música contemporânea e experimental se deu principalmente a partir do seu ingresso na UNICAMP, onde, através das aulas do Prof. Augusto Mannis, passou a se interessar também pela improvisação, sendo esta uma de suas principais ferramentas de trabalho na área da composição. Fábio desenvolve um intenso trabalho de música para teatro, cinema e dança, tendo contato com essas áreas desde bastante cedo. É o integrante com mais experiência nessas áreas, e já se envolveu também em trabalhos enquanto ator, por essa razão tem uma boa desenvoltura com relação ao corpo. Como acordeonista conhece um repertório próprio do instrumento para a música brasileira incluindo baião, forró e música caipira, tendo também alguma fluência na improvisação idiomática dentro da música brasileira. É professor de música para crianças, e se utiliza da improvisação musical com fins pedagógicos. Fernando Seiji Sagawa formou-se em Saxofone pela Escola Técnica de Música Allegro (São Carlos) e graduou-se Bacharel em Saxofone Popular pela Unicamp/SP onde atualmente cursa Mestrado em Performance. Atua como saxofonista, compositor e arranjador em diversos grupos de música popular e erudita e com eles se apresentou em festivais no Brasil e América latina. A sua formação principal é de saxofonista, mas toca também flauta e tem conhecimento de piano. É fluente em jazz e em música popular brasileira, e começou a improvisar nesses idiomas. Atualmente tem se dedicado ao estudo da música erudita clássica e contemporânea, expandindo cada vez mais seus horizontes musicais. É bastante generalista, aberto a diversos tipos de música. É um compositor bastante ativo, tendo apresentado diversas propostas ao Obra Aberta, e seguidamente trabalha com trilha sonora para teatro e dança. É o integrante com mais familiaridade no que diz respeito às ferramentas tecnológicas, dominando programas de edição de áudio, e trabalhando com síntese e live eletronics, onde faz uso também de sintetizadores e controladores. Atualmente no grupo divide sua atenção entre o saxofone e a eletrônica. Henrique Cantalogo Couto é natural de Ribeirão Preto-SP e atualmente cursa o Mestrado em Música pela Universidade Estadual de Campinas sob orientação do Prof. Dr.

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Edmundo Hora. É pianista, desenvolve trabalhos na área de correpetição e estuda cravo e música barroca. Tem uma dupla formação de pianista e cravista, o que acarreta não somente em duas técnicas instrumentais diferentes, mas no estudo e domínio de dois repertórios distintos. Tem grande conhecimento de harmonia, passando pela harmonia tradicional do barroco (é um excelente continuísta), à funcional, clássica e romântica que aprendeu através do estudo do piano, com domínio também da harmonia popular. A improvisação surgiu do contato com a música brasileira, mas a partir de seus estudos de música barroca e clássica passou a improvisar também nesses idiomas. Tem grande disposição ao lidar com a voz, tendo atuado como coralista por muitos anos. Trabalha também com música para teatro e tem boa desenvoltura com o corpo e a performance por conta de suas experiências na área. É também compositor de canções e de música instrumental, onde mistura principalmente influências da música brasileira e música antiga. Lucas Zewe Uriarte é bacharel em Composição Musical pela UNICAMP. Em sua produção composicional destacam-se obras para grupos de câmera, trilhas de teatro e música improvisada. Em 2013 ingressou no Mestrado em Música na UNICAMP sob orientação do Prof. Dr. José Augusto Mannis. De janeiro a junho de 2014 estudou com Claude Ledoux, Alexandros Markeas e Vincent Le Quang no Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris. Começou na música popular, e seu instrumento principal é o violão, mas também toca piano. Tem familiaridade principalmente com o repertório de canção brasileira e participou de diversas formações corais, o que lhe permite utilizar bastante da voz nas suas improvisações. O contato com a improvisação vem da música brasileira mas intensifica-se e toma outras dimensões a partir do trabalho com o Prof. Augusto Mannis. É um compositor ativo, dedicando-se principalmente à música contemporânea, tendo apresentado diversas propostas criativas ao Grupo Obra Aberta desde sua formação. Trabalha com teatro e dança desde 2008, desenvolvendo afinidade com as artes performáticas. Atualmente tem trabalhado com vídeo, possuindo algum conhecimento na parte de eletrônica, gravação e manipulação de áudio. É o integrante mais voltado para a vida acadêmica, dedicando-se à pesquisa há algum tempo, com interesse pelas áreas de improvisação, análise musical, composição e percepção musical.

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Marcelo Chacur Politano é bacharel em Música (saxofone) pela UNICAMP. Durante a graduação estudou na Universidade Concordia de Montreal com Georges Dimitrov e Universidade de Leipzig em programas de intercâmbio acadêmico. Sua produção artística e acadêmica se concentra nas áreas de Música do Século XX e XXI e Etnomusicologia. É multi instrumentista, toca diversos saxofones, flautas regionais, clarineta, piano, violão, cavaquinho. Sua formação musical tem por base a música popular brasileira, na qual teve suas primeiras experiências com improvisação, mas seu horizonte musical é bastante aberto e compreende experiências com músicas tradicionais (folclóricas) e também música erudita clássica e contemporânea. Desenvolve estudo acerca de músicas tradicionais (folclóricas), e integra bandas com repertório voltado para a música dos balcãs, música latino americana e brasileira. Atualmente se dedica à música contemporânea, e cursa a Graduação em Composição na Faculdade Santa Marcelina em São Paulo. Tem composto música acústica mesclando referências de diversas músicas do com música contemporânea. Theo de Blasis iniciou seus estudos musicais na escola Espaço Musical com Ricardo Breim na cidade de São Paulo. É bacharel em violão pela Universidade Estadual de Campinas, onde estudou com Ulisses Rocha. Como compositor compõe música para teatro e formações camerísticas, e como performer desenvolve trabalho de transcrições de música russa do início do séc. XX para violão solo. É o integrante que mais se dedica ao estudo do instrumento (violão), e além do violão toca também guitarra e ukulelê. Sua formação está centrada principalmente na música brasileira, mas seu horizonte musical é bastante amplo, passando por música folclóricas e música erudita clássica. Conhece muito bem a harmonia popular e da música clássica. Começou a improvisar na música brasileira, repertório que executa com diversos grupos dedicados à mesma, onde atua também enquanto arranjador e compositor. Desenvolve trabalhos com dança e teatro, sendo bastante desenvolto com relação ao corpo e performance. É professor de música para crianças, e usa a improvisação para fins pedagógicos. Atualmente cursa a Graduação em Composição na Faculdade Santa Marcelina em São Paulo.

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O Processo criativo no contexto do grupo O trabalho criativo do Grupo Obra Aberta consiste em jogos musicais, obras abertas e performances criadas de maneira colaborativa, envolvendo sempre indeterminações e improvisação, esta última assumindo papel central em todas as ações. As propostas criativas apresentam formas variadas, compreendendo partituras gráficas, partituras em notação tradicional com parâmetros deixados em aberto, peças performáticas se assemelhando ao teatro musical, intervenções artísticas, e também a improvisação livre sem guias ou ideias determinadas a priori. No grupo todos são compositores e intérpretes, e a maior parte do trabalho criativo se dá de forma coletiva, colaborativa e democrática, onde todos têm voz e vez, podem discordar, acrescentar, propor outras saídas, reformular. Nesse contexto a criatividade emerge das trocas dinâmicas entre os participantes, ou seja, mais do que experiências individuais combinadas, nossos jogos e peças carregam também ideias e experiências construídas coletivamente, assumindo que um grupo é mais do que a soma de suas partes (SAWYER, 2006). As propostas criativas passam sistematicamente por três etapas que serão aqui descritas, compreendendo sua apresentação e sistematização, trabalho e teste, detalhamento e fechamento até a conformação final, para então se estabelecerem como parte do repertório do grupo. Todas as etapas são recursivas e podem ser retrabalhadas a qualquer momento do processo. Primeira etapa – sistematização e apresentação Numa primeira etapa as propostas são formuladas por um ou mais integrantes, normalmente após uma reflexão e trabalho individuais fora do ambiente de ensaio. Porém esses primeiros lampejos criativos podem também partir do grupo todo através de brain stormings coletivos, discussões e sessões de improvisação. As ideias levantadas são então formuladas em formato de propostas criativas das mais diversas e apresentadas ao grupo. Segunda etapa – trabalho e teste Uma vez apresentada a proposta nos colocamos a discuti-la e testá-la nos encontros. É o momento onde todos se apropriam da proposta, estando livres para sugerir implementações, mudanças, ajustes, ou mesmo para descarta-la, mas não antes de procurar soluções. Esta é uma etapa essencialmente coletiva, onde todos participam se colocando de

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maneira crítica. Dessa colaboração normalmente emergem questões importantes e boas soluções. Terceira etapa – detalhamento e fechamento Após a etapa de testes direciona-se para o fechamento e detalhamento da proposta. etapa que nem sempre é definitiva, umas vez que qualquer operação de detalhamento está novamente sujeita à análise de todos. Mesmo que a proposta esteja fechada ela não é de maneira nenhuma imutável, podendo ser continuamente manipulada e modificada. Todas as propostas criativas são pautadas pela interação, ou seja, nelas o comportamento de cada músico influencia e se torna estímulo para os outros. Para se comportar dessa forma procuramos nos colocar em um ambiente de imersão onde nada importa além da própria efetivação da proposta e diálogo entre os músicos. Nesse sentido nos aproximamos muita da ideia de jogo, como definido por Huizinga: Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não-séria"1 e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. (HUIZINGA, 1993, p.13-14)

A ideia de imersão em um determinado contexto é essencial ao grupo, pois essa relação aprofundada permite aos seus integrantes um alto nível de concentração e prontidão, melhorando a interação e potencializando o jogo. Para a imersão se faz necessária uma preparação do ambiente, do corpo e da mente, que buscamos através de exercícios de respiração, relaxamento e dinâmicas de grupo, muitas vezes vindas do teatro. O encontro, seja ele ensaio ou apresentação, é tratado sempre de maneira ritualística. Huizinga ainda cita enquanto elemento inerente ao jogo algo bastante importante na música e na improvisação em especial: a tensão, associada à ideia de incerteza, à expectativa de que algo aconteça. Segundo o autor: “Há um esforço para levar o jogo até ao

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Huizinga coloca a seriedade e o jogo em oposição ao relacionar aquela às coisas necessárias e este ao supérfluo. Portanto quando se refere ao jogo como uma atividade “não séria” não quer dizer que este não deve ser levado a sério - pois segundo o próprio autor, “certas formas de jogo podem ser extraordinariamente sérias” (1993, p. 8) - mas sim que é algo supérfluo.

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desenlace, o jogador quer que alguma coisa ‘vá’ ou ‘saia’, pretende ‘ganhar’2 à custa de seu próprio esforço” (Idem, p. 12). A incerteza e a expectativa são sensações inerentes à improvisação musical e se acentuam de acordo com o grau de abertura proposto na prática. Quanto mais livre, menos se sabe como as ações ecoarão. Ao improvisarmos livremente, sem regras preestabelecidas, nos identificamos com a proposta de Rogério Costa ao pensar o jogo a partir da concepção deleuziana do jogo ideal. Neste “todas as jogadas são possíveis pois cada lance inventa suas regras. Sem a intenção de dividir o acaso em um número de jogadas distintas, o conjunto de jogadas afirma todo acaso e o ramifica em cada jogada” (COSTA, 2003, p. 41). Sendo assim, em ambiente onde nenhuma condição ou regra é colocada, a maneira de se jogar (de interagir) é condicionada somente pelas próprias ações do jogo.

O processo criativo na abordagem de José Augusto Mannis Segundo Mannis (2014, p. 212), “o processo criativo é constituído de ciclos de processos cognitivos de percepção, análise e síntese, que operam na consciência, mas com influência do subconsciente e do inconsciente”. No ciclo da percepção se dá a recepção das informações, na análise o processamento e na síntese uma formulação conclusiva. Cada ciclo apresenta suas particularidades, porém todos estão ocorrendo simultaneamente no processo enfatizando-se um ou outro nas diferentes etapas, conforme veremos a seguir. No ciclo da percepção a atenção é acionada e direcionada por processos volitivos, estes que consistem em esforços deliberados de um indivíduo para a realização de algo. Aquilo que é recebido neste estágio passa por uma perscrutação na instância da análise, através de ferramentas de raciocínio tais como abstrações, decomposições, comparações e associações. Uma vez compreendidas as informações a partir da análise, passamos à reconstrução do objeto ou à construção de um objeto derivado na instância da síntese. Esta reconstrução pode se dar de maneira materializada, ou seja, gerando um produto final concreto (um objeto, uma obra de arte, um texto) ou de forma imaginária e simulada. A reconstrução atua também para reforçar a assimilação do conteúdo identificado no objeto, fechando um primeiro ciclo com a síntese remetendo-se novamente à percepção. Em alguns tipos de escuta técnica, como por exemplo a escuta reduzida, direcionada para as qualidades do objeto sonoro, a instância da análise opera fortemente. Se o objeto percebido e analisado

2 No nosso caso entendemos o ganhar como algo coletivo, aproximando-se do que entendemos por ser consistente, improvisar e interagir com fluidez.

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não puder ser reconstruído (sintetizado), o processo de escuta pode se dar várias vezes até que a formulação conclusiva (síntese) seja satisfatória. No ciclo da análise o objeto é examinado a partir de dispositivos de abstração, decomposição, comparação e associação. Os elementos percebidos são comparados entre si e com outros já conhecidos, suscitando conexões, identificações e classificações. Nessa instância ocorre o processo de desmontagem dos objetos percebidos, dissecando-os em relação a seu material, estrutura e forma. A desmontagem deve se dar de maneira que as partes do objeto possam ser reunidas para sua reconstrução na síntese. A desmontagem analítica se inicia pela distinção entre a matéria e a forma do objeto observado: após ser reconhecido como unidade perceptível, ele é identificado quanto àquelas. A organização e a estrutura (estática ou dinâmica) da primeira, até ela atingir a conformação final do objeto (até chegar à sua forma), constituem a estrutura desse objeto. Essa estrutura é o código, que, ao ser aplicado na ressíntese do objeto (simulação mental ou realização efetiva que engendrará sua efetiva assimilação), permitirá a sua remontagem. (MANNIS, 2014, p. 216)

Os objetos que passam pela instância da análise podem ficar guardados na nossa memória, esta que comporta tanto o objeto inteiro quanto suas partes (material, estrutura e forma). Mannis chama essas informações armazenadas de repertório, e salienta que elas podem ser empregadas em outros contextos. No ciclo da síntese ocorrem as construções, que se dão com processos de estruturação e conformação operando nas informações que se percebe, se analisa, e também naquelas contidas no repertório. As construções concluídas são percebidas e analisadas, e dessa maneira podem também ser integradas ao repertório e posteriormente utilizadas em outras construções. Em cada etapa há portanto a ação contínua de percepção, análise e síntese com diferentes ênfases, em ciclos de ciclos recursivos, agindo para a efetivação do processo criativo (v. Figura 2). A percepção e análise de um objeto acarreta na construção (síntese) de novos objetos, que serão assimilados e incorporados ao repertório, este último que poderá ser acessado durante o processo criativo. E a cada vez que se pensa em um novo processo, que se atenta para novos sons e estímulos a partir da percepção e análise, os ciclos de ciclos são mais uma vez realimentados.

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Figura 2: Percepção, análise e síntese em ciclos de ciclos com diferentes ênfases Fonte: MANNIS, 2014 p. 220.

Em um contexto de produção musical Mannis afirma que toda obra é construída com determinado(s) material(is), agenciado(s) através de

estrutura(s), esta por sua vez

contida na forma (MANNIS, 2011). Nesse contexto: [Material é] toda a paleta de sonoridades, recursos, modelos, processos, estímulos, diretivas e premissas estabelecida antes e durante o processo de uma obra. Pode envolver elementos e materiais de todas as naturezas, apresentados e representados em todos os suportes. Caracteriza-se, portanto, como o núcleo básico e original a partir do qual se constrói a obra através de sua estrutura até o estabelecimento final de sua forma. Elementos de Estrutura e Forma também podem fazer parte do Material. O Material constitui em si um potencial de Estrutura além de um potencial de sua própria transformação, ou seja, o Material pode se multiplicar, se reproduzir e se renovar (MANNIS, 2011, p.234).

Em relação à Estrutura e Forma, estas se relacionam intimamente, sendo a primeira o que determina o conteúdo e a segunda o que conforma este conteúdo, cristalizando-o, sendo determinada pelo continente. A Estrutura é criada para agenciar o material, veicular através dele um processo e, portanto, podemos considerá-la como o devir do material. Esta mesma Estrutura constitui em si um potencial de Forma. Tomamos a figura abaixo para exemplificar a relação entre Forma e Estrutura.

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Figura 3: Relação entre Forma e Estrutura Fonte: MANNIS, 2011 p. 234

Mannis acrescenta ainda algumas ideias da filosofia de Gilles Deleuze à sua abordagem sobre o processo criativo. Para o autor a própria obra em processo de criação pode ser considerada um território, este em constante transformação, ainda não cristalizado, ainda construindo seus próprios códigos (MANNIS, 2014). Uma obra é construída a partir de materiais vindos de territórios diferentes, agenciadas pelo compositor que as reterritorializa em sua obra a partir de processos de acomodação. Quando um material é tirado de outro domínio (outro território) para ser usado em uma obra, ele se encontra primeiramente estressado, sem as conexões que o sustentavam no seu lugar de origem. No processo criativo o material é móvel, suscetível a mudanças e constantes acomodações, reterritorializando-se e desterritorializando-se continuamente até que se equilibre e se acomode em seu novo território (a obra). Para atingir este equilíbrio é necessário que se reestabeleçam ou sejam criadas novas conexões amparando o material. Podemos pensar em uma peça de uma máquina, por exemplo, que em seu lugar de origem estava conectada a outras partes, cumprindo uma função específica naquela máquina. Uma vez tirada de seu território de origem, nesse caso a máquina, a peça se encontra desconectada e ainda sem função. Para poder fazer parte de outra máquina é necessário que se agenciem as conexões, a fim de que a nova peça se acomode e volte a desempenhar uma função no todo. Mannis defende que as construções na instância da síntese ocorrem sempre a partir da mimese de materiais observados e analisados. Porém o autor não entende mimese como mera imitação de um modelo, mas sim como uma representação deste a partir do olhar do artista, conforme concepção proposta por Aristóteles. Na concepção de Aristóteles, entre a obra de arte e o modelo nela representado está o artista, e devido a essa mediação o seu valor não corresponde mais ao quanto ela se aproxima de seu modelo, e sim ao quanto ela transmite sobre a expressão e a interpretação do artista. Não cabe,

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portanto, à obra de arte o papel de representar ou descrever pura e simplesmente os modelos nela contidos, pois o artista, na sua interpretação, ao representá-los acaba espelhando suas ficções. (MANNIS, 2014, p. 210)

Nos processos de criação os materiais representados podem ser de várias origens, se cruzando em uma única obra. Sendo assim podemos ter em uma mesma obra materiais oriundos de territórios diferentes, que são recombinados, acomodados e reterritorializados na obra construída. Enquanto forças articuladoras do processo criativo o autor destaca o par acaso e necessidade (MANNIS, 2011), elementos complementares que agem continuamente durante todo o processo, em todas as etapas. Uma boa ideia geradora pode vir por acaso, de uma observação despretensiosa, porém imediatamente após sua descoberta já surge a primeira necessidade: encontrar maneiras de transportá-la ao suporte escolhido. Do contrário, pode-se partir de algo muito específico, de um objetivo muito claro que direcione a escolha do material, e a partir deste e da sua manipulação surgem por acaso boas ideias de estrutura e forma. E por vezes ao buscar por algo partindo de uma necessidade encontram-se ao acaso boas ideias, ou por acaso descobrem-se outras necessidades, e assim por diante.

Panorama da produção do grupo No trabalho realizado pelo Grupo Obra Aberta os materiais utilizados para as propostas são de diversos tipos, desdobrando-se em obras com características bastante distintas. Na seleção de materiais não há nenhuma restrição, sendo motivada pelo interesse particular de cada integrante dada a potência identificada em cada material. Passaremos agora a um panorama da produção do grupo apresentando brevemente suas propostas organizadas por proximidade de material. Metáforas da paisagem sonora Usar a paisagem sonora como metáfora significa não somente imaginar música a partir dos sons que escutamos em um determinado ambiente, mas também a partir dos movimentos, densidades, velocidades e intensidades nele percebidas. No centro deste tipo de proposta está a escuta poiética, que toma o ambiente em suas sonoridades e dinâmica3 enquanto elemento estético. Desta ideia surgiram os jogos Música das Árvores e Semáforos.

3 Por dinâmica do ambiente nos referimos ao seu modo de funcionamento, compreendendo as ações e interações dos elementos que o compõem.

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Jogos performáticos / teatrais Jogos onde o corpo e o uso do espaço comunicam tanto quanto o som. Neles o gesto físico é expressivo, sendo empregado não só para gerar sons mas como um elemento de linguagem por si só. São eles: RVC, Abertura Abrapem, Gramani joga Badminton com as andorinhas, Vôlei e Portais. Também o trabalho com regência através da ferramenta do Soundpainting se encaixa nesta categoria. Espetáculo HINOX Neste espetáculo o principal material utilizado foi o Hino Nacional Brasileiro, deglutido e digerido em forma de performance. O jogo está justamente no trabalho com um referencial presente na memória dos participantes e do público. Compreende diversos outros materiais utilizados ao longo do espetáculo. Improvisação idiomática – Obra Aberta Versão Groove Consiste em uma espécie de suíte dançante na qual passamos por diversos territórios da música mundial, tais como funk, rock, reggae, música indiana, música dos Balcãs, baião, samba etc. É uma performance na qual mesclam-se algumas regras de improvisação idiomática com improvisação livre, uma vez que as sonoridades de cada território são respeitadas, porém qualquer outro tipo de intervenção musical pode ocorrer. A estrutura da performance não está definida a priori e não se baseia em músicas de referência já compostas em cada território. Improvisação livre É a improvisação sem regras preestabelecidas, partindo da própria matéria sonora, onde a maneira de jogar (de interagir) é condicionada pelas próprias ações do jogo, sendo assim cada jogada é a referência para as próximas. É uma prática que acompanha o grupo por praticamente toda sua trajetória, se revelando como um espaço onde convivem ideias e experimentações das mais diversas. Performances com instrumentos digitais e aparato tecnológico Instrumentos digitais e aparatos tecnológicos são utilizados em alguns jogos e também nas improvisações livres, mas são duas as performances pensadas e construídas tendo os mesmos como ponto de partida e apoio. A Mixagem Improvisada é uma performance de improvisação livre onde utilizamos somente o instrumento digital construído no software Pure

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Data especificamente para essa finalidade. Já a peça Print Screen consiste em uma improvisação com roteiro por vídeo conferência via Skype. Intervenção artística Temos um jogo pensado enquanto intervenção artística no qual interagimos com o público fora do espaço da sala de concerto, de preferência em espaços públicos ruidosos e de bastante circulação. Esta intervenção chama-se Compasso Livre, nela o público é chamado a compor a sua música a partir de cartilhas com indicações diversas que estão na frente de cada músico, podendo ser combinadas de qualquer maneira imaginável. Soundpainting Ferramenta de composição e improvisação em tempo real a partir de gestos, usada no jogo Staff soundpainting e também no HINOX. Permite a coordenação de ações em tempo real através de gestos preestabelecidos indicando quem toca, o que toca, como toca (intensidade, velocidade) e quando toca. Materiais vindos do universo musical Jogos construídos a partir da observação de outros jogos, de obras musicais de referência e de procedimentos em música no geral. Números I e II são partituras gráficas guiando a improvisação, indicando aos músicos quem toca e que tipo de ação empreende: figura ou fundo. C4: jogo de dois tempos e dois espaços diferentes. Um tempo móvel em um espaço restrito, partindo sempre do C4 (C central)4 e um tempo restrito (dilatado) em um espaço aberto. People are all the same: jogo a partir de um material claro e forma definida, com aberturas em relação ao modo de tocar e transformações a partir do material. Solos e duplas: jogo concebido a partir da ideia de movimento virtual do som no espaço, ideia também empregada em Gramani joga Badminton com as andorinhas.

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Nesta dissertação as notas musicais estão representadas conforme a norma norte-americana: 440Hz = A4.

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Relatos do processo criativo do Grupo Obra Aberta Neste segundo capítulo relatamos em ordem cronológica o processo criativo do grupo, passando por 13 momentos distintos desde o começo das atividades até as produções mais recentes. Os relatos apresentam as principais ideias discutidas e seu percurso, as buscas pretendidas, as ações e implementações, descobertas e dificuldades ocorridas durante o processo. As principais referências teóricas que se relacionam direta ou indiretamente ao trabalho do grupo, principalmente no campo da escuta, são descritas em articulação com os relatos conforme se relacionam com o processo criativo. Em meio à descrição fazemos referência à exemplos musicais disponibilizados em mídia digital como anexo ao texto, consistindo em registros da prática desenvolvida como parte da pesquisa. Antes de passar propriamente aos relatos apresentamos uma linha do tempo na qual constam todas as realizações do Obra Aberta desde a sua fundação até os dias atuais. Neste trabalho apresentaremos apenas aquelas que estão em negrito, escolhidas por sua importância para o grupo e pela diversidade com que se apresentam.

Linha do tempo Ano de 2013 Primeiros Ensaios - [março] Música das Árvores - [março] Primeiras Improvisações Livres - [abril] Figura e Fundo; Números - [abril] - relatado no item Concerto cênico - Gramani joga Badminton com as andorinhas Primeira gravação - [25 de abril] - Música das Árvores e Improvisação Livre I foram registradas nessa ocasião Interruptores e Cruzamentos - ou Semáforos - [maio] C4 - [maio] RVC - [agosto]

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Primeiro Concerto - [15 de agosto] Participação na XXIII ANPPOM - [19 a 23 de agosto] Versão Groove Bar do Zé - [10 de setembro] Concerto Casa do Lago - [12 de setembro] Concerto FEIA XIV– Intervenção Compasso Livre - [23 de setembro] Compasso Livre – Terminal de Ônibus de Barão - [09 de outubro] Compasso Livre com dança na Inauguração do VÃO - [23 de outubro] Outros exercícios: Pulsação e Atravessar de um lado para o outro - [outubro] Outras peças: Jogo das Canoas e People Are All the Same - [outubro] Primeira aproximação com música eletrônica - [outubro] Rituais Sonoros e música intuitiva - [novembro] Banca de composição - [28 de novembro] Segunda gravação – Improvisação Livre II - [12 de dezembro]

Ano de 2014 Apresentação no Centro de Convenções da UNICAMP - [25 de janeiro] ABRAPEM - [1 a 3 de maio] Concerto FASM - [9 de maio] Novos exercícios de improvisação – CNSM - [agosto] HINOX - [7 de setembro] Oficinas FEIA XV - [setembro] Soundpainting - [setembro] - relatado no item Concerto cênico - Gramani joga badminton com as andorinhas Números Portais - [setembro] - relatado no item Concerto cênico - Gramani joga badminton com as andorinhas

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Gramani joga badminton com as andorinhas - [outubro] - relatado no item Concerto cênico - Gramani joga badminton com as andorinhas

Apresentação XXV SOBRAC - [20 de outubro] Versão Groove no Centro de Convivência Cultural de Campinas - [22 de novembro] Mixagem Improvisada - [dezembro] Recital Henrique Cantalogo - [12 de dezembro] Recital Fabio Evangelista - [18 de dezembro]

Ano de 2015 Print Screen - participação em coluna da revista digital LINDA (NME) - [março] Concerto Cênico Gramani joga badminton com as andorinhas - [14 e 15 de maio] Unimidia com NME - [1º de maio] Oficinas na Faculdade de Educação da UNICAMP - [12 de junho] Versão Groove no Echos Bar - [8 de julho].

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Relatos da produção do grupo no ano de 2013

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Primeiros Ensaios O objetivo dos primeiros ensaios consistiu em estabelecer um domínio comum de

trabalho através da criação de um vocabulário de ideias e ações referentes a escuta, improvisação e interação. Neste primeiro momento apresentei algumas referências que me pareciam ser bons guias para a nossa prática musical que estava por nascer. Apesar de saber que todos tinham suas experiências com improvisação e música experimental, alguns mais outros menos, propus nos primeiros meses que partíssemos das mesmas referências, construindo juntos um know-how coletivo. Boa parte do tempo destes ensaios era destinada à apresentação de ideias e ações seguida de discussões críticas. Neste momento tomamos contato com um importante volume de documentação de referência, acessando textos, partituras e gravações, sendo que alguns destes são apresentados ao longo do texto.

1.1 Improvisação Generativa (Improvisation Générative) As primeiras atividades realizadas com o grupo se basearam em ideias e exercícios propostos por Alexandros Markeas (professor do Conservatório Nacional Superior de Música e Dança de Paris - CNSMDP) quando da sua vinda em 2008 e 2009 à UNICAMP na Academia de Inverno, na qual ministrou oficinas, cada uma com uma semana de duração. Posteriormente, em 2014, tive a oportunidade de cursar a Disciplina Improvisação Generativa (Improvisation Générative) ministrada pelo Prof. Markeas no CNSMDP através de intercâmbio acadêmico com a UNICAMP. Mais adiante discorreremos sobre esta experiência e sua influência no trabalho do grupo. Na disciplina de improvisação generativa, por princípio, o ponto de partida de qualquer ação é sempre a escuta, e é a partir dela que se desencadeia e é gerada a improvisação propriamente dita. Engajando-se em uma escuta atenta associada a uma ação fortemente focada5 potencializa-se uma construção musical em ambiente de imersão na qual toda a síntese está relacionada à análise do que está sendo coletivamente produzido levando em conta a interpretação pessoal por cada participante. Sistematicamente Markeas apontava para a necessidade de focar a escuta na matéria sonora percebida, de maneira a considerar

5 Segundo Mannis a escuta atenta e a ação focada dependem de processos volitivos, onde um esforço deliberado é empreendido, e portanto não são ações neutras ou inconscientes. (MANNIS, 2014)

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suas qualidades intrínsecas, suas linhas de força, e os caminhos incitados pelos gestos sonoros. Esta atitude remete-se diretamente ao próximo item apresentado neste trabalho, dedicado à escuta reduzida. Igualmente importante na improvisação generativa é a ideia da exploração de novas sonoridades, seja a partir da extensão das técnicas de instrumentos convencionais (técnicas estendidas); da utilização de corpos sonoros não convencionais; ou a partir do tratamento em síntese ou transformação sonora através de manipulação em aparatos ou aplicativos eletrônicos. Nas oficinas de Markeas na UNICAMP realizamos diversos exercícios de improvisação guiada, bem como sessões de improvisação livre. As propostas de improvisações guiadas podem ser construídas a partir de diretrizes diversas, incluindo a restrição de material, restrição de modos de jogo, indicações quanto a parâmetros específicos, indicações quanto à forma, quanto ao espaço, ou podem partir de alguma ideia mais abstrata e geral, sem necessariamente manter foco em um elemento específico. Dentre os exercícios de improvisação guiada realizados por Markeas (MANNIS, 2008 e 2009), três deles foram bastante utilizados nos nossos ensaios: Miniaturas; Duplas e trios; Jogo dos quatro objetos. Estes e outros exercícios foram registrados em relatórios das oficinas que se encontram disponíveis na internet6.

1.2 Pierre Schaeffer e a escuta reduzida Pierre Schaeffer (1910-1995), engenheiro, pesquisador, teórico, compositor, produtor de rádio e escritor francês, foi um dos pioneiros da música com suporte eletrônico e inventor da música concreta, construída a partir de sons gravados e manipulados diretamente sobre seu suporte físico de registro. Naquela época, ao trabalhar com os novos meios e diante da possibilidade da criação sonora através da manipulação de objetos físicos despertou em Schaeffer questionamentos sobre o fazer musical, a estética musical e a escuta. O conceito de objeto sonoro é produto da idealização de uma percepção sonora abstraída de qualquer conteúdo semântico da qual emergem imagens sonoras estreitamente vinculadas às propriedades físicas do som percebidas à escuta. Este estado de percepção, para Schaeffer, era esperado como totalmente neutro, devendo o objeto percebido ser supostamente o mesmo para todos os ouvintes7. Esta atitude perceptiva foi denominada como

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Links para acesso: http://unicamp.academia.edu/Jos%C3%A9AugustoMannis e http://unicamp.academia.edu/Jos%C3%A9AugustoMannis 7 A verificação efetiva desta proposta e sua discussão não é o assunto em jogo aqui neste momento, portanto vamos considerar esta situação como dada naquele momento histórico.

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escuta reduzida, apoiada sobre o conceito de époché, atitude de suspensão de juízo fenomenológico na concepção de Edmund Husserl. Assim sendo, ao considerar estar diante de uma percepção absoluta e neutra, compartilhada por todos os ouvintes, foi possível para Schaeffer proceder ao estabelecimento de uma organização taxonômica de todos os materiais sonoros podendo ser percebidos, até certo ponto e certo grau, com uma unidade coerente, enquanto objeto sonoro. Desta forma surge a tipo-morfologia do objeto sonoro apresentada no livro 5 do Tratado dos Objetos Musicais, obra que, após exaustiva especulação acerca dos objetos sonoros, se interrompeu antes de contemplar toda a abrangência pretendida no tocante aos objetos musicais. Além da renovação do fazer musical decorrente das proposições suscitadas pela música concreta, Schaeffer se lança no estudo da percepção sonora e musical em direção a um escutar renovado (SCHAEFFER, 1966), investigando-o desde suas acepções mais antigas até as situações observadas durante suas recentes especulações. O autor distingue quatro modos de escuta. São eles: 1. Escutar (écouter): é o ato de “emprestar o ouvido” a algo ou alguém. É a escuta de um evento onde através do som produzido visamos a fonte sonora que o produziu, a causa, a localização espacial. O som como indício de algo que aconteceu, portanto ligado diretamente a uma causa. 2. Ouvir (ouïr): é perceber fisiologicamente através da orelha aquilo que é dado à percepção, mesmo quando não houver o interesse ou a intenção de escutar. É uma escuta passiva da qual nunca nos livramos, pois os sons estão sempre nos cercando pois, como diz Murray Schafer, os ouvidos não tem pálpebras (SCHAFER, 1991). 3. Auscultar (entendre): pressupõe ter uma intenção de escuta, prestar atenção, qualificar aquilo que queremos ouvir. É uma escuta analítica, auscultando as imagens sonoras que emergem das características físicas do material sonoro percebido. O termo em português “entender”, apesar de amplamente empregado neste caso, tem se mostrado inapropriado, devido às suas acepções e seu uso no nosso idioma. No idioma francês o uso de entender (entendre) se confunde com ouvir (ouïr). Em português a ambiguidade se dá entre entender e compreender. Já o termo “auscultar” em português se refere a escutar para identificar e

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diagnosticar ruídos, o que é bem mais próximo da atitude da qual Schaeffer trata especificamente neste item8. 4. Compreender (comprendre): é reter ou associar uma informação. É uma escuta numa dimensão semântica criando relações de sentido e valor entre os sons percebidos, podendo se concluir em mensagens ou significados objetivos e específicos, como códigos, ou em conteúdos poéticos, acompanhados de apreciação estética e mesmo desdobramentos emocionais. Um segundo passo na classificação das escutas de Schaeffer é a distinção de dois pares de tendências opostas no que diz respeito às atitudes de escuta dos ouvintes: •

Escuta natural X Escuta cultural o Escuta natural: aquela que tem como foco os indícios de eventos, a origem do som e a localização espacial da sua fonte sonora. Ouvir prestando atenção no indício do som. Atitude orientada ao nível do Escutar (1). o Escuta cultural: na qual o foco é a mensagem, os valores e os significados simbólicos do qual o som é portador, afastando-se do evento sonoro em si. Ouvir prestando atenção no significado portado pelo som. Atitude orientada ao nível do Compreender (4).



Escuta banal X Escuta especializada o Escuta banal: aberta a todas as direções, sem nenhum foco específico, sem uma intenção. Pode ser uma escuta de eventos (indícios) ou de significados, mas sempre num nível superficial. Sua orientação predominante é o Ouvir (2), mas podendo ser também o Escutar (1) e o Compreender (4). o Escuta especializada: focada em algum aspecto, intencional, podendo ser uma escuta atenta de eventos (indícios) ou de significados. Tem o Entender (3) como orientação principal e, dependendo da especialidade da escuta

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José Augusto Mannis defende a tradução de entendre para auscultar alegando que “Devido à ambiguidade do termo entendre, ressaltada por diversos autores além do próprio Schaeffer (cf. ZANGHERI, 2013, p.92-95), em português o uso do termo auscultar para se referir a esse tipo de escuta (entender) se mostra mais apropriado, pois tem o sentido específico de perscrutar (examinar ou investigar a fundo) a escuta, e, portanto, refere-se a uma intenção de escuta, a prestar atenção, a qualificar aquilo que queremos ouvir: uma escuta analítica, auscultando impressões e representações sonoras que emergem da percepção atenta das características físicas do material sonoro.” (MANNIS, 2014, p. 214-215)

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(para onde ela aponta e dirige sua atenção) pode se orientar pelo Escutar (1) ou pelo Compreender (4). A partir de análises detalhadas das atitudes de escuta, Schaeffer entende que existe sempre um certo dualismo que se baseia no par “Origem dos sons (indícios)” X “Significados simbólicos (conteúdo agregado)”, aos quais a escuta “ordinária” se orienta. Em ambos os casos, o som é tratado como veículo portador de informações outras que não aquelas inerentes a ele mesmo. A outra face da escuta ordinária é a chamada escuta reduzida, cujo foco recai totalmente sobre as características intrínsecas dos sons percebidos, sem a intenção de saber sua origem ou de lhe atribuir significados. É uma escuta que vai na direção do objeto sonoro. Se a intenção de escuta se dirigir ao próprio som [...] indícios e valores são esquecidos em proveito de uma percepção global, não habitual, mas, todavia, irrefutável: porque, ao ter descuidado voluntariamente da procedência do som, percebe-se o objeto sonoro (SCHAEFFER, 1966, p. 155).

A escuta reduzida, apresentada nos primeiros encontros, surgiu como uma importante ferramenta para a improvisação generativa, uma vez que a intenção de se dirigir ao próprio som vai de encontro à ideia de uma improvisação que se estabelece a partir da própria matéria sonora gerada. Voltamos à discussão acerca da escuta reduzida diversas vezes ao longo da nossa produção. Tendo por base estas duas referências começamos nossas atividades práticas pelo Jogo dos quatro objetos, que funciona da seguinte maneira: Cada músico deve escolher quatro objetos sonoros diversificados (com decorrentes motivos e situações musicais). É dada uma duração na qual os músicos devem interagir entre si, cada um com seus objetos sonoros, usando também o silêncio, respondendo uns aos outros, procurando formar e seguir a energia dos gestos e dos sons. Cada músico deve empregar seus objetos sequencialmente [...] passando ao seguinte sem repetir nenhum dos anteriores, isso durante a duração preestabelecida. Após cada improvisação, tem início outra com duração mais curta. (MANNIS, 2008 p.4)

Apesar de ter sido proposto enquanto Jogo dos Quatro Objetos, normalmente fazíamos com apenas três. Para escolher os objetos os músicos foram incitados a buscar por sonoridades diversas nos seus instrumentos, usando técnicas estendidas, tratando o instrumento como um corpo sonoro rico em possibilidades. Cada objeto deveria ter uma

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característica própria clara e definida, chegando, portanto, a ser facilmente reconhecível, ou seja, se confundido muito pouco com os demais. Diante da restrição imposta pela escolha dos objetos, éramos obrigamos a pensar nas possíveis estratégias para torná-los expressivos, e passamos então a usar de forma mais consistente e consciente a variação de alguns de seus parâmetros inerentes: velocidade, intensidade, densidade, alturas, timbre, modos de tocar etc. Este procedimento não era habitual à maior parte dos integrantes do grupo na época, uma vez que em suas experiências anteriores em improvisação o foco recaía na condução das ideias através de frases musicais, sendo neste caso a atenção voltada à harmonia, contorno melódico e figuração rítmica. A criação heurística9 a partir de objetos sonoros e parâmetros perceptíveis destes começava assim a ser construída desde os primeiros ensaios e foi aos poucos sendo incorporada nas propostas do grupo. Isso não significou que a improvisação a partir de frases e harmonias mais bem definidas tenha sido rechaçada de nossa pratica, como veremos mais adiante. Na dinâmica do jogo fazíamos sessões cronometradas, progressivamente de 1’30’’ para cada objeto, depois 1’, 30’’, 15’’ e 5’’. Algumas rodadas deixávamos o cronômetro à mostra, outras indicávamos com gestos os últimos segundos antes das mudanças. Muitas vezes, ao ver que o tempo estava acabando, éramos forçados a ‘achar’ ou ‘fabricar’ rapidamente transições e finais de sequência. Ainda nesses primeiros ensaios fizemos alguns exercícios modais, igualmente baseados no material deixado pelo Prof. Markeas, nos quais cada um dos integrantes, na sua vez de tocar, deveria escolher e enfatizar uma única nota do modo, podendo apenas passar pelas outras notas, porém sempre repousando na nota escolhida. Tivemos bastante dificuldade em jogar com esta restrição devido a seu caráter inabitual de repouso sistemático em uma só nota. A partir do terceiro ensaio as improvisações modais foram interrompidas, pois não conseguíamos conciliar a variação paramétrica com discurso musical em idiomas modais, tendo sido retomadas somente alguns meses mais tarde.

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Heurística, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, significa: “1. Arte de inventar ou descobrir. 2. Método que pretende levar a inventar, descobrir ou a resolver problemas. 3. Processo pedagógico que pretende encaminhar o aluno a descobrir por si mesmo o que se quer ensinar, geralmente através de perguntas.” (HEURÍSTICA, 2015). Ricardo Mandolini, professor na Université Lille 3, trabalha com processos heurísticos na criação musical, encaminhando o aluno à descobertas a partir da prática musical. Em 2008 e 2009 o professor ministrou oficinas de heurística musical na UNICAMP, nas quais dirigiu os alunos na reconstrução de peças do repertório do século XX, configurando-se como um trabalho de descoberta (heurístico) sobre as mesmas. Sobre a experiência de Mandolini com alunos na UNICAMP consultar relatórios (MANNIS, 2013c, 2015)

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Uma terceira referência apresentada que encontrou ressonância no grupo foi o famoso artigo Réagir de Vinko Globokar escrito em 1970 (GLOBOKAR, 2013), no qual o compositor apresenta cinco modos principais de interação e a utilização dos mesmos em obras abertas de sua autoria.

1.3 Vinko Globokar e os cinco modos de interação Vinko Globokar, compositor e trombonista francês de origem eslovena, se utiliza de processos abertos na composição como uma maneira de engajar criativamente os intérpretes, estabelecendo um elo de interdependência entre compositor e intérprete. Contudo, defende a ideia de um compositor que “preserve a possibilidade de ‘conduzir’ - canalizar – as diferentes formas de participação [do intérprete]”(GLOBOKAR, 2013), alegando que a total liberdade em muitos casos leva os intérpretes a seus clichês pessoais, nem sempre interessantes para a obra (idem, 2013). Por este motivo, em suas peças a improvisação nunca é totalmente livre, mas está sempre baseada no contexto sonoro em questão. Dentre os artifícios usados para guiar seus músicos, Globokar prescreve cinco modos principais de interação: imitar, integrar-se, hesitar, opor-se, fazer algo diferente. Passamos a uma breve análise de cada um deles: •

Imitar - é a reação mais instintiva e direta podendo ocorrer com pequenas variações de alturas e tempo de resposta, dependendo da capacidade dos intérpretes.



Integrar-se - significa tomar as mesmas direções, porém com alguns desvios em relação a alguns parâmetros. O integrar-se pode reforçar, disfarçar ou adornar uma determinada estrutura.



Hesitar – Ao hesitar, o intérprete, estando ligado ao material, se utiliza de pequenos fragmentos do mesmo e intervém esporadicamente, criando paradas ativas, pausas vivas e tensas.



Opor-se – a oposição pode manifestar-se em diversos parâmetros simultâneos ou em somente alguns específicos. Após uma escuta analítica mais intensa do que nas três primeiras categorias, o performer optando pela oposição, enfatiza ações contrarias aos demais, para que os parceiros consigam perceber claramente sua posição antagônica.



Fazer algo diferente compreende a invenção de um outro caminho em relação ao que ouve e analisa do ambiente (portanto se faz necessária uma escuta analítica aprofundada como no opor-se).

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Estes modos de interação podem ser usados em associação com outros elementos da composição como o material, ou mesmo parâmetros do material, como por exemplo na peça Correspondences, onde o compositor prescreve imitações em alguns parâmetros somente, desvinculando os outros. Além destes modos de interação, em suas peças abertas Globokar também se utiliza de indicações mais gerais como variar ou desenvolver. Para o compositor é importante que se criem diferentes relações entre os intérpretes: jogos onde uns fiquem presos aos outros, interdependentes, ou que possam se influenciar mutuamente. Tais relações engajam e direcionam as ações criando um trabalho em colaboração entre intérpretes e intérpretes/compositor. No trabalho do grupo as ideias de Globokar serviram para alargar as maneiras de interagir, sendo que algumas delas como se opor, fazer algo diferente e hesitar pouco ou nunca tinham sido exploradas pelos músicos. O imitar e complementar, mais intuitivos, já eram usados por todos, porém agora tomavam uma outra dimensão quando combinados com a ideia de jogar com os parâmetros. O hesitar, apesar das tentativas de usá-lo, veio a fazer sentido para o grupo somente em 2014, quando colocado como oposição do modo intempestivo de tocar (v. item HINOX, p.90). Os exercícios de Miniaturas e Duplas e trios, já propostos desde o primeiro encontro, foram bastante alterados a partir do terceiro encontro, quando da exposição dos cinco modos de interação. O jogo das Miniaturas funciona da seguinte maneira: •

Um improvisador por vez propõe um objeto e os outros entram logo em seguida após ouvi-lo brevemente, complementando seus gestos. Todos tocam por aproximadamente 10-15 segundos, tempo suficiente somente para estampar aquilo que foi proposto e achar um fim, sem desenvolver. A cada rodada um novo improvisador propõe um objeto. Nas primeiras vezes que fizemos as miniaturas estávamos preocupados em

integrar-se, complementar, construir uma única estampa, conforme instrução do material deixado por Markeas. Depois de um tempo começamos a fazer miniaturas nas quais a resposta do grupo ao proponente deveria ser a mais heterogênea possível, ou seja, cada um deveria fazer algo o mais diferente possível daquilo que tinha acabado de ouvir. Fizemos

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também rodadas alternando entre respostas homogêneas e heterogêneas, e rodadas nas quais tínhamos de nos atentar especificamente a alguns parâmetros para imitar ou se opor. Pensando dessa forma definimos rodadas nas quais o registro seria sempre imitado enquanto os outros parâmetros seriam livres, ou que a dinâmica seria sempre a oposta, ou ainda que as alturas teriam que ser imitadas e a dinâmica teria que ser oposta, e outras combinações.



O jogo de Duplas e Trios consiste num jogo de revezamento de duplas e trios dentro de uma formação de base a partir de cinco participantes dispostos em círculo. Antes de jogar define-se um músico para começar e um sentido a ser percorrido (horário ou anti-horário). O músico escolhido apresenta uma proposta em improvisação livre, sendo a seguir acompanhado pelo próximo imediatamente a seu lado. Gradualmente, enquanto o primeiro músico se retira de sua intervenção, o terceiro assume seu revezamento, e assim por diante. Num dado momento, após terem concluído a totalidade de duos possíveis, um terceiro músico, deliberadamente qualquer um dos participantes, passa a entrar formando, então, um trio. Após a sucessão de alguns trios, todos os músicos podem entrar juntos em tutti. Este é o momento indicando que o fim do jogo se aproxima, e todos devem se preocupar em construir uma conclusão. Nos dois primeiros encontros não havíamos incluído ainda os trios, e o jogo se

dava somente em duplas. Começamos sem nenhuma restrição de material ou modo de tocar, deixando que os músicos improvisassem livremente nas duplas, porém já no terceiro encontro começamos a propor diferentes maneiras de interagir. Em algumas rodadas, estabelecemos que cada um que entrasse deveria se opor ao que estava acontecendo; em outras rodadas, que deveria integrar-se ao que estava ouvindo; e em outras, alternavam-se as entradas de integração e oposição. No exemplo de áudio 1 temos uma tomada de Duplas Oposição, na qual a oposição se dá de diferentes maneiras agindo sobre alguns elementos ou parâmetros específicos. Desde cedo percebemos a dificuldade em expressar uma proposta musical que se caracterizasse completamente como oposta a uma outra, mas procuramos criar antagonismos fazendo apelo a contrastes. Analisando a faixa observa-se algumas oposições bastante claras como no duo 1) entre saxofone e violão, onde há a oposição de uma melodia cantábile do saxofone com gestos

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mais pontiagudos do violão; no duo 4) entre piano e violão2, constata-se igualmente um forte contraste de registro, tendo o piano no grave e o violão no extremo agudo, além de modos de ataque, secos no violão e ressonantes no piano; e no duo 6), entre saxofone e violão1, observa-se oposição de intensidade, com o saxofone em fortíssimo e o violão em piano, com modos de ataque ressonantes no violão e secos no saxofone. Já no duo 3), entre clarinete e piano, apesar do primeiro tocar uma nota por vez em um registro mais agudo, e o outro acordes em um registro médio grave, percebe-se o estabelecimento de um diálogo e uma crescente agitação por parte de ambos, não configurando exatamente uma oposição ou antagonismo, fugindo um pouco, de certa maneira, à proposta do exercício. Por fim no duo 8), entre saxofone e piano, temos mais uma gradação de inarmonicidade do que uma oposição, o pianista batendo no corpo de madeira do piano, produzindo impactos inarmônicos (de altura indeterminada), enquanto o saxofonista toca sons rugosos e multifônicos de altura pouco determinável. Aspectos da percepção observados nos primeiros ensaios



Escuta reduzida Praticar a escuta de maneira diferente da habitual, no caso a escuta reduzida, nos

induziu a inovar nossa maneira de tocar. Direcionando a escuta de maneira consciente aos parâmetros físicos do som descobrimos novas maneiras de improvisar e interagir, e ampliamos nossa paleta sonora. Nessa experiência começamos a assimilar o conceito de objeto sonoro e escuta reduzida de Schaeffer. Os exercícios de oposição por contraste nos ajudaram muito no desenvolvimento da análise a partir da escuta, pois para chegar a obter uma oposição de fato era necessário identificar quais parâmetros estavam em jogo e imaginar de que maneiras a oposição poderia vir a se caracterizar. Uma atitude de escuta diferente da banal, associada a ações focadas em modos de interação específicos nos fez, como já nos alertava Globokar, diminuir nossos clichês pessoais.



Som e silêncio – prolixidade Porém nem sempre empreendíamos ações conscientes ou focadas, dando margem

à prolixidade. Nesse primeiro momento tínhamos a impressão de que tocávamos demais, praticamente o tempo todo. Na ânsia de interagir, de descobrir, muitas vezes não éramos generosos com os outros nem com o ambiente, e tocávamos em excesso coisas que talvez não

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precisassem acontecer, pois não havia uma direção ou um foco claramente estabelecido. Tocávamos primeiro e ouvíamos depois, tínhamos que brigar por pequenos momentos de silêncio, e certamente por isso acabávamos sendo prolixos. O abandono das improvisações modais é sintomático desta predisposição por tocar demais, pois não nos contentávamos com apenas uma nota de repouso, queríamos sempre várias. Percebe-se que em territórios já mapeados, como no modalismo, as linhas de fuga de nossos hábitos se tornam ainda mais difíceis.

2.

Música das Árvores Na quarta semana de encontros regulares propus o que consideramos ser nossa

primeira peça: Música das Árvores. Até então tínhamos nos empenhado em exercícios que focavam em aspectos específicos e relevantes envolvidos na prática da música improvisada, como as maneiras de interagir, o uso da escuta reduzida e a improvisação a partir da própria matéria sonora, que tinham por função nos ajudar a criar um repertório de ações de improvisação possíveis, sem a pretensão de chegar a uma finalidade artística. Já Música das Árvores foi a primeira peça composta enquanto obra musical com o intuito de ser apresentada. O que alavancou esta proposta foi uma conversa sobre composição por mimese, que tive com o prof. Mannis em uma tarde ensolarada de fevereiro na Praça do Coco, em Barão Geraldo10. Na ocasião conversávamos sobre como a composição musical sempre parte da imitação de algum princípio observado, seja este em outras músicas, na natureza, nas relações humanas etc. Falando sobre algumas músicas, compositores e performers, eu era sempre questionado por Mannis sobre o que eu via naquelas obras, qual era a minha análise. Após a resposta vinha a proposta: - “então faça uma música a partir destas ideias”. Até que em determinado momento eu fui questionado sobre o que eu via na paisagem à minha frente... Eram árvores bastante densas, com muitas folhas verde escuro e praticamente nenhuma flor. Atrás, em pequenos espaços entre as folhas, era possível ver alguns pedaços de céu, muito azul e limpo naquele dia. Quando batia o vento as folhas verdes se moviam em um movimento de pêndulo, deslocando os espaços onde se podia ver o céu azul atrás, dando uma mobilidade virtual a este fundo mais estático. Esta imagem foi meu ponto de partida para a composição de Música das Árvores.

10 Esta ideia foi posteriormente desenvolvida e apresentada por Mannis em seu artigo Processos Cognitivos de Percepção, Análise e Síntese Atuando no Processo Criativo: Mímesis de Mímesis (2014).

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A proposta da peça é bastante simples: uma música constituída de duas seções que se alternam, inicialmente sem que uma influencie a outra, e posteriormente se mesclando uma à outra. Cada seção tem sua cor e dinâmica de movimento próprias: os espaços azuis são mais estáticos, representados por sons delicados; já as folhas verdes descrevem movimentos de pêndulo cada vez mais agitados e de forte intensidade sonora. Segue a partitura proposta aos músicos:

Música das Árvores Lucas Zewe Uriarte Ao observar uma árvore de ramagem densa em uma tarde de verão pode-se enxergar duas “texturas”: uma de folhas verdes penduradas que descrevem um movimento pendular ao bater do vento; outra de espaços azuis do céu que aparecem entre elas. A partir dessa paisagem imagina-se uma música de duas seções contrastantes: os espaços azuis; e os pêndulos verdes, cada um com sua cor e seu jogo.

Os espaços azuis •

Seção de sons longos, ataques espaçados, dinâmica baixa. Os eventos musicais não devem ter uma direção clara, são estáticos.



É interessante deixar os sons soarem por bastante tempo e prezar pelos silêncios entre os ataques.

Material musical e modos de tocar – Espaços



Sopros (saxofones, flautas, clarineta) o Multifônicos o Notas com ar e sopro dento do instrumento



Cordas pinçadas (violão, viola caipira) o Harmônicos naturais ou artificiais o Sons de sino trançando as cordas

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Piano o Acordes sustentados no médio agudo o Tocar diretamente nas cordas agudas e deixar soar



Acordeon o Notas longas sustentadas em pianissimo.

Os pêndulos verdes •

Seção de sons mais ágeis, dinâmica maleável podendo ir de pianissimo à fortíssimo



Figurações musicais descrevendo o movimento de pêndulo.



Cada músico pode simultaneamente tocar pêndulos em diferentes velocidades, ou todos podem convergir em grandes pêndulos de mesma velocidade.

Material musical e modos de tocar – Pêndulos •

Sopros o Glissandos com a embocadura, sem mudar as chaves o “Cascata” de notas descrevendo movimentos pendulares o Chaves de microtons accelerando e ritardando em movimento de pêndulo o Ruídos de chaves accelerando e ritardando em movimento de pêndulo



Cordas pinçadas o Bends o Trinados, tanto de mão direita como de mão esquerda accelerando e ritardando em movimento de pêndulo o Cascata de notas descrevendo movimentos pendulares o Notas surdas pressionando as cordas na boca do instrumento o Acordes em tremolo



Piano o Trinados o Cascata de notas o Acordes em tremolo

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Acordeon o Cascata de notas o Acordes em tremolo o Accelerando e ritardando o movimento do fole

Estrutura da peça A peça consiste em uma alternância das duas seções, sendo que primeiramente as mesmas são apresentadas de maneira clara e limpa, sem misturar seus elementos, até que em determinado momento uma começa a influenciar e interagir com a outra. Pode-se tanto começar dos pêndulos quanto dos espaços. Uma vez escolhida a seção inicial os músicos devem estabelecê-la sem agregar elementos externos a ela. Depois de apresentada a primeira seção, a segunda deve ser introduzida aos poucos, primeiramente de maneira hesitante, até que, a partir de sua recorrência, predomine e se sobressaia à primeira. Tendo apresentado uma vez cada seção isoladamente o jogo se abre para quaisquer tipos de interação entre elas. Pode-se optar por mesclas no nível do material, do modo de tocar e do modo de jogo. As alternâncias entre arranjos texturais podem ser rápidas ou lentas, e podem também ocorrer sobreposições. Deve-se sempre criar a partir das características e sonoridades estabelecidas para cada seção. Uma vez apresentada aos músicos a partitura da peça, começamos a testá-la e construí-la coletivamente. Antes de tocar a peça inteiramente do início ao fim, tentamos estabelecer e detalhar as características de cada seção, atentando principalmente para os sons mais delicados em espaços e para os movimentos em pêndulo. Principalmente em espaços este processo foi muito importante para o grupo pois se apresentou como uma oportunidade de buscar e testar sistematicamente algumas sonoridades não convencionais nos instrumentos, usando alguns recursos de técnica estendida. Os sopros e multifônicos de saxofone, os sons de sino com corda trançada nos violões e as diferentes scordaturas, e os sons de cordas pinçadas no piano foram definitivamente incorporados no léxico do grupo após a exploração nesta proposta. Ainda em relação à sonoridade de espaços, combinamos acordes ou coleções de notas principalmente entre os violões e o piano, mesmo que tal indicação não constasse na partitura. Tais coleções de notas vinham principalmente de combinações de scordaturas dos

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dois violonistas, que afinavam o instrumento de maneiras diferentes de forma que os harmônicos naturais e cordas soltas pudessem constituir uma harmonia que os aprazia, esta sempre com resquícios de modalismo. Com as diferentes scordaturas buscávamos ainda batimentos e rugosidades afinando as cordas em alturas muito próximas. Em pêndulos a preocupação com a coleção de notas (a harmonia) não foi o foco principal, mas sim a construção da imagem de um pêndulo passando. Para tal nos utilizamos de uma rítmica bastante clara: saindo do repouso em sua elongação máxima, (com toda a energia potencial acumulada), o pêndulo parte lentamente, acelera exponencialmente e, após passar pela elongação nula, em velocidade máxima atingida (energia cinética máxima e potencial mínima), reduz progressivamente a velocidade até chegar novamente no ponto mais alto, atingindo novamente o repouso e também sua maior energia potencial. A variação de intensidade sonora de cada um dos participantes, oscilando periodicamente do seu ponto máximo a um mínimo, também contribuía para criar a imagem de um pêndulo. Na primeira vez que tentamos encadear a peça inteira decidimos começar por pêndulos, mas após diversas tentativas não conseguíamos fazer com que a peça adquirisse uma dinâmica interessante. Percebemos então que precisávamos partir do tempo de instalação (build up) de espaços, para, aos poucos, construir atmosfera e a densidade que nos conduziriam a pêndulos. Uma vez mudada a ordem das seções a peça passou a se desenrolar com mais fluência. Quanto a espaços, a primeira grande dificuldade se encontrava nos momentos de silêncio absoluto. Nossa prática musical até então nos havia preparado muito mais para tocar expressivamente do que a exprimir algo através do silêncio, principalmente se tratando de silêncios absolutos. Inicialmente, quando buscávamos fazer silêncio, alguém sempre mantinha algum pequeno som, um ppp, um pedal qualquer ínfimo. Somente mais tarde é que conseguimos fazer com que nossa mente penetrasse profundamente no silêncio, percorrendo e ocupando todo seu espaço. Em pêndulos tínhamos dois momentos distintos: um primeiro no qual cada um descrevia o movimento de seu pêndulo em velocidade distinta em relação aos demais, resultando em uma textura bastante densa e confusa; e outro no qual todos convergiam a um único movimento de pêndulo comum, construído conjuntamente, de grande energia. Os primeiros grandes pêndulos conjuntos foram para nós momentos de certo êxtase, pois todos se impressionaram com a força expressiva que conseguimos. Enquanto a transição gradual de uma seção à outra nunca apresentou problemas para os músicos, uma vez que podíamos identificar com clareza tais momentos e introduzir

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organicamente os elementos da próxima configuração textural, a mescla das seções teve de ser mais trabalhada, principalmente quando saíamos de pêndulos e mesclávamos com espaços. Nesse caso, ao retorno de espaços a textura se encontrava muito suja, com muitos gestos bruscos e de elevada intensidade sonora. Era necessário proceder a uma limpeza, de maneira que apenas resquícios de pêndulos permanecessem. A partir desse trabalho começamos a descobrir como fazer movimentos rápidos com pequena intensidade sonora, como pode ser observado na gravação da peça, onde ouvem-se pequenos e rápidos movimentos de pêndulo com notas surdas no violão ou com ruídos ppp de chaves no saxofone. A gravação de Música das Árvores disponível no trabalho como exemplo musical 2 foi extremamente importante para o grupo, sendo nosso primeiro registro amplamente divulgado e difundido, o cartão de visitas do grupo em 2013. Na gravação conseguimos construir belas sonoridades na seção dos espaços, instaurando uma atmosfera bastante introspectiva. Aos poucos passamos a executar pequenos pêndulos cada um a seu tempo, até que, a partir dos gestos dos saxofones, todos os instrumentos convergem para dois grandes pêndulos conjuntos de grande intensidade e expressividade. A seção vai se diluindo com pequenos pêndulos em baixa dinâmica, até que a sonoridade de espaços novamente se instaura. Acrescentamos ainda uma coda que se inicia a partir dos super agudos de saxofone, violão e acordeon, uma espécie de lamento acompanhado por harmônicos do violão, sons de sopro e notas graves do piano, que aos poucos se esvai. Aspectos da percepção observados em Música das Árvores



Som e silêncio Encarar o silêncio, dominá-lo e geri-lo é uma questão de extrema importância

para o grupo, sendo ainda atualmente objeto de trabalho, refinamento e discussões. Em Música das Árvores nos deparamos diretamente com essa questão, tendo em vista que uma das partes da peça, no caso espaços, requeria grande domínio do silêncio. Tenho a impressão de que por muito tempo durante a nossa formação musical convivemos com a ideia de que o silêncio seria uma mera pausa, ou ‘somente’ uma respiração, menosprezando sua grande importância estrutural e expressiva. No grupo, mesmo que todos já tivessem de alguma maneira, uma ideia sobre as funções e do valor do silêncio, ainda não conseguíamos conceber na prática momentos onde

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ele era plenamente protagonista. Sinto que tínhamos medo do silêncio, e que estávamos sempre procurando preenche-lo, como um espaço vazio que obrigatoriamente, ou compulsivamente, deveria ser ocupado. Creio que o começo do nosso respeito pelo silêncio se deu através de um hábito bastante simples, mas completamente fundamental, implementado desde os primeiros ensaios: ritualisticamente reservamos alguns instantes de completo vazio mental e silêncio antes e depois de tocar. Foi o jeito que encontramos para ‘trazer’ todos para o mesmo lugar, imersos no presente, se desligando do resto das coisas. Ao término, o silêncio se instalava naturalmente como o tempo necessário para deixar ressoar tudo o que tínhamos acabado de tocar, para então voltarmos ao mundo real.



Começar para valer, ou apreender para depois tocar No início das atividades do grupo notamos uma dificuldade em entramos de

maneira efetiva na plena dinâmica dos jogos, fato bastante evidenciado quando começamos a experimentar Música das Árvores pela seção dos pêndulos. Percebemos então que precisávamos nos apoiar nos pequenos gestos iniciais de espaços para conseguirmos nos soltar e, de forma mais descontraída, entender o que estava acontecendo para então poder agir com mais propriedade e segurança. O fato de que nesse momento contávamos com um repertório ainda insipiente de ações instrumentais e não muitas ideias de interação poderia estar influenciando nesta dificuldade de começar para valer, pois não tínhamos muita segurança do que fazer. Esse foi também um dos fatores que nos fez prestar muita atenção no outro, pois os gestos de um davam suporte aos outros, e assim tínhamos segurança para construir algo juntos.



Diferentes focos de escuta para espaços e pêndulos Em cada uma das seções a percepção focava em um elemento ou conjunto de

elementos, não exatamente ignorando os outros, mas com peso maior naqueles mais importantes. Em espaços estávamos mais preocupados com as sonoridades e as alturas, uma vez que estabelecíamos cores harmônicas a partir de coleções de notas. Em pêndulos focávamos o próprio movimento pendular, primeiramente observando as diferentes velocidades em cada um, sempre atentando para os momentos de convergência para realizar os grandes pêndulos tutti.

50

3.

Primeiras improvisações livres Somente a partir do segundo mês, após termos realizado quatro ou cinco

encontros, começamos a fazer sessões de improvisação livre, sem nenhuma regra preestabelecida. Para nos aventurarmos nesta prática tomamos contato com algumas referências importantes da área, dentre as quais destaca-se Derek Bailey (BAILEY, 1993). Em um primeiro momento foram apresentadas, estudadas e discutidas por todo o grupo algumas das ideias desse autor, que seguem até o presente em nossas reflexões. Nos parecia importante encontrar uma definição de improvisação livre, mesmo diante da sabida dificuldade em defini-la. Bailey nos ajudou a situa-la melhor e compreender algumas de suas características.

3.1 Derek Bailey e a Improvisação livre Um dos primeiros músicos a pensar e a escrever sobre a improvisação livre, Derek Bailey (1930-2005) foi um improvisador inglês dos mais influentes na área que, a partir da década de 1960, ajudou a disseminar essa prática e a inseri-la no contexto musical de sua época. Segundo Bailey, a improvisação livre, também podendo ser chamada de improvisação total ou simplesmente música improvisada, compreende tantas ideias, atitudes e personalidades musicais diferentes, que sua nomeação e definição tornam-se um problema. Sendo assim o autor tenta balizar esta atividade a partir de suas características: Diversidade é sua característica mais consistente. Não há comprometimento com estilos ou idiomas. Não há nenhum som idiomaticamente prescrito. As características da improvisação livre são estabelecidas somente pelas identidades sonoro-musicais daquele ou daqueles que estão tocando. (BAILEY, 1993, p. 83).

Para Bailey, muito do ímpeto que incitou o surgimento da improvisação livre vem de questionamentos acerca das regras que governam a linguagem musical, estas compreendendo a maneira como cada idioma musical se organiza em termos de alturas (harmonia, melodia), tempo (ritmo, durações, andamentos), estruturação e procedimentos composicionais etc. Estes questionamentos se evidenciam igualmente por exemplo, na prática do free jazz, contemporâneo ao surgimento da improvisação livre enquanto movimento, no qual a ideia motriz é a renovação da linguagem a partir da ruptura com algumas das regras preestabelecidas do jazz.

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Nesses encontros tivemos nossas primeiras experiências em uma situação de abertura total, onde poderíamos deixar aflorar toda nossa diversidade potencial seja enquanto músicos, seja enquanto indivíduos. Nesses primeiros passos a abertura atingida não foi exatamente total, mas ‘quase total’, pois no fundo tínhamos algumas regras implícitas. Queríamos expandir nosso universo de ações e possibilidades de interação na improvisação, e para isso buscávamos nos guiar pelos princípios, ideias e ferramentas encontrados nos exercícios de improvisação que vínhamos fazendo, pois nos pareciam um bom caminho para atingir nosso objetivo, e impediria que caíssemos em demasiado em lugares comuns de cada um. Ainda observávamos uma certa presença involuntária de maneiras e estilos musicais profundamente arraigados dentro de nós por nossa formação cultural e experiências passadas. Queríamos dominar, controlar e limitar o espaço da presença dessas referências arraigadas. Nesse momento tomamos contato com uma outra proposta que se somaria às nossas referências, vindo justamente no mesmo sentido de nossa busca de expansão de sonoridades e de interação criativa: a improvisação livre associada à ideia de desterritorialização, defendida pelo professor, compositor e improvisador Rogério Costa.

3.2 Rogério Costa: improvisação livre e desterritorialização (segundo a filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari) Rogério defende a improvisação livre como uma prática na qual as gramáticas abstratas das linguagens e os idiomas musicais deixam de se impor, dando lugar a uma música não hierarquizada, não linear, regida pela própria matéria sonora (COSTA, 2003, p. 15-16). O autor comenta que é inevitável não levar a sua experiência musical (familiaridade com idiomas) para a improvisação livre, porém espera-se que durante a prática os músicos passem por processos contínuos de desterritorialização, gerando ações que não mais se remetem a tal experiência. Para entender este processo examinemos mais de perto os conceitos envolvidos A desterritorialização é um conceito advindo da filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari, amplamente explorado pelos autores, sendo definido em primeira instância como um “movimento pelo qual ‘se’ abandona o território. É a operação de linha de fuga”. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 197). Um território, por sua vez, é definido por qualidades próprias que o delimitam (cor, odor, som, silhueta...), constituindo seus fatores territorializantes (idem, p. 129). Para os autores os territórios estão sempre em movimento a partir de forças em linhas de fuga, que, ao mesmo em que deixam de pertencer a algum deles operam na construção de outros: “um território está sempre em vias de desterritorialização, ao

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menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 144). A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323).

Para Rogério Costa, a improvisação segue a mesma dinâmica que os territórios, passando por processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Nesse contexto o autor passa a relacionar a ideia de idiomas de improvisação ao conceito de território (COSTA, 2012), e exemplifica esta relação ao empregar as superfícies delineadas por Deleuze para contar uma breve história da construção dos idiomas de improvisação no jazz. A primeira superfície é a de produção, onde só existe o plano, as matérias, energias e as forças não formadas. Não existem nela sistemas, ela não se define por qualidades, em sua dinâmica não há permanências. É nela que se dá a Fundação, ocorrendo a partir de elementos em linhas de fuga necessariamente vindas de um território anterior. “É Charlie Parker inventando o Bepop. O que ele faz, parece ser de outro mundo!” (idem, p. 7). A segunda superfície é a de captura (Fundamento), onde se dá o registro e controle, procedendo à sistematização e modelização. Aqui se explicita um território com as qualidades que o delimitam. “É o reino das cópias corretas. Todos querem tocar como Charlie Parker, aprender suas técnicas, seus padrões, seus procedimentos.” (idem, p. 7). A superfície de raspagem é aquela na qual as linhas de fuga novamente agem, desterritorializando o plano, conectando ideias vindas de diferentes territórios, procedendo por síntese cruzada, reterritorializando. “ É Miles Davis, discípulo de Charlie Parker, inventando o cool jazz.” (idem, p. 7) Em relação à improvisação livre o autor salienta que em sua dinâmica “parece só haver a primeira superfície. É a produção que gera territórios provisórios em um ambiente de desterritorialização constante.” (idem, p. 7)

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Para Rogério as ações nos idiomas de improvisação se dão a partir de modelos e padrões, compreendidos no “âmbito de um sistema claramente gramaticalizado, onde todas as intervenções remetem a uma estrutura abstrata colocada como referência” (COSTA, 2003, p. 17). Na improvisação livre, Rogério propõe que, através do processo de desterritorialização, os músicos continuamente busquem linhas de fuga dos idiomas presentes em sua memória, almejando ações descondicionadas que se remetem somente à própria matéria sonora em questão e não à sistemas musicais gramaticalizados. A ideia de desterritorialização foi aos poucos encontrando espaço no grupo, e com o tempo teve um impacto bastante forte, pois impulsionou a busca por novas maneiras de improvisar, nos tirando de nossa zona de conforto, desafiando nossa memória muscular e musical a não cair frequentemente em clichês e gestos característicos de idiomas já conhecidos, buscando evitar a reprodução compulsiva de nossos hábitos, frequentes em nossas primeiras improvisações livres. Percebíamos que o foco na desterritorialização era algo que nos levava a experimentar por caminhos insólitos e a improvisar cada vez mais a partir da escuta da própria matéria sonora, e com isso percebemos que, aos poucos, a incidência de hábitos passou a diminuir em nossas práticas. O exemplo de áudio 3 apresenta uma improvisação livre realizada no final de abril de 2013, com apenas algumas semanas desta prática. A partir da análise desse registro podemos identificar alguns aspectos relevantes sobre o comportamento do grupo na época, com impacto nas atividades ulteriores. 1) A improvisação começa com gestos rápidos de acordes paralelos ao violão, uma oscilação em torno de uma mesma nota no saxofone 1 e uma entrada progressiva de piano, acordeon e outro violão, todos com materiais de altura indeterminada. Os instrumentos se complementam e formam uma textura em tempo estriado11 com um pulso rápido, com exceção do saxofone 2 que a partir de 27’’ entra tocando notas longas, como se estivesse em outro tempo, criando um certo tipo de antagonismo ou oposição. A partir de 39’’ os saxofones

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As duas noções de tempo, concebidas por Pierre Boulez, foram apresentadas ao grupo na mesma época. Boulez relaciona suas categorias de espaço: liso e estriado, com categorias de tempo. Sendo assim, “no tempo pulsado, as estruturas de duração se referirão ao tempo cronométrico em função de uma referenciação, de uma balizagem – pode-se dizer – regular ou irregular, mas sistemática: a pulsação, sendo a menor unidade (mínimo múltiplo comum de todos os valores utilizados), ou um múltiplo simples desta unidade da medida. [...] O tempo amorfo não se refere ao tempo cronométrico senão de uma maneira global; as durações, com proporções (não valores) determinadas ou sem nenhuma indicação de proporção, se manifestam em um campo de tempo. [...] O tempo amorfo é comparável à superfície lisa, o tempo pulsado à superfície estriada, eis por que, por analogia, denominarei as duas categorias assim definidas tempo liso e tempo estriado.” (BOULEZ, 1986, p.87-88)

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propõem uma desaceleração brusca, convergindo na nota B, que é acompanhada por todos em 43’’. 2) Desse ponto em diante uma nova seção começa a se estabelecer, dessa vez mais lenta, e configura-se basicamente como figura e fundo. Enquanto figura identificamos pequenos desenhos melódicos sendo tocados primeiramente pelo violão 1, depois algumas figuras na mão direita do piano e violão 2 em diálogo com o violão 1. No fundo ouvem-se pedais graves de piano polarizando primeiramente a nota Eb e depois Db em pulso lento, e notas longas de saxofones. O acordeon começa no fundo e vai se impondo até chegar à frente. De 1’40’ a 1’55’’ observa-se uma aceleração marcando a transição para uma próxima sessão mais rápida. 3) Nessa seção o violão 2 executa um contínuo de gestos iterados que funciona como fundo ao qual o acordeon se junta com notas também iteradas em dinâmica piano em pulso mais lento. No plano da frente ouve-se um diálogo de gestos rápidos entre violão e piano, que vai em direção ao agudo. Neste trecho já não fica tão claro se a configuração global está em tempo estriado ou liso, uma vez que os pulsos no fundo, do violão e acordeon, são diferentes entre si, e por vezes fica difícil toma-los enquanto referência. De 2’27’’ a 2’40’’ uma nova transição é anunciada por acordes de violão que mais uma vez desaceleram a música, sucedendo então uma nova seção lenta. 4) Nesta seção ouve-se um coral de saxofones e acordeon em notas longas, acompanhado por arpejos do piano, de sonoridades modais. O violão 1 aparece com algumas intervenções relembrando os gestos da primeira seção. Esta seção é a que mais se aproxima do tempo liso, uma vez que não conseguimos estabelecer relações de periodicidade nos ataques do coral, pois nenhum instrumento nos serve de referência. Nem o piano pode ser tomado de referência, pois, mesmo atacando arpejos onde as notas têm a mesma duração, o faz espaçadamente e sem regularidade. Em 3’11’’ o saxofone 1 toca a nota F#, à qual os outros instrumentos convergem em 3’20’’, marcando uma nova transição, a mais gradual da improvisação. 5) Uma nova seção se estabelece gradualmente a partir de 3’33’’ partindo de um jogo de pontilhismo que acelera até chegar em um pulso regular a partir de 3’54’’. O violão 2 desde o começo da transição sustenta um contínuo de gestos iterados ao fundo. A seção é bastante densa e agitada, com gestos do piano e acordeon reforçando o pulso, oscilações dos saxofones, e ruídos de violão. A partir de 4’08’’ há uma abertura de espectro no fundo, que vai mais ao grave com acordes de violão. O piano desdobra suas notas no mesmo pulso e faz pequenos desenhos melódicos no agudo. A seção vai se dissolvendo gradualmente.

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6) A partir de 5’ as notas surdas do violão 1 são a única coisa que sobra da seção precedente, e aparecem em intervenções irregulares por vezes junto com ruídos de tecla do acordeon. Um jogo de imitação de saxofones e violão 2 ocorre a partir de fragmentos melódicos legato e não muito incisivos. O violão por vezes repete notas ao fundo em dinâmica baixa, criando uma espécie de halo que acompanha seus gestos. No trecho entre 5’ e 6’ não há uma noção clara e global de pulso, a impressão é de tempo liso. A partir de 6’ o violão 1 entra iterando notas em um pulso claro, em um pequeno momento de dissolução da textura, e estabelece o tempo estriado que marca a próxima seção. A seção assim como a 1ª não é construída a partir da noção de figura e fundo, uma vez que as intervenções instrumentais têm todas um caráter de figura. 7) Em cerca de 6’11’’ o violão 1 começa a tocar fragmentos melódicos em meio a seu próprio contínuo de notas repetidas em pulso regular, e poucos segundos depois o violão 2 entra em diálogo com o primeiro. Ao fundo ouvem-se acordes ressonantes do piano e notas longas da acordeon. Ambos, piano e acordeon, vão passando para o primeiro plano, formando com os violões uma textura com harmonias de caráter tonal, contendo principalmente acordes menores e diminutos. Assim como na terceira seção o violão 1 se dirige ao extremo agudo, desta vez junto ao piano, chegando ao limite do instrumento e anunciando o fim. A improvisação termina com notas surdas no extremo agudo do violão em ritardando. Nesta gravação alguns pontos chamam a atenção e refletem nosso momento no grupo em termos de escuta, de interação, de construção formal e de exploração sonora. As improvisações livres são importantes indicadores de ideias assimiladas, uma vez que não temos indicações de execução, e portanto aquilo que ouvimos é a expressão de ideias e ações compreendidas no repertório de cada um. Por conta disso as improvisações livres nos ajudam sobremaneira a analisar o comportamento do grupo e de seus integrantes, e pensar em implementações buscando a evolução em aspectos específicos, a fim de alcançar resultados mais expressivos. No que diz respeito à forma da improvisação identificamos basicamente uma sucessão de seções contrastantes alternando velocidade rápida e lenta, com exceção das seções 6 e 7. A mudança brusca de velocidade era uma das maneiras mais perceptíveis e intuitivas de criar contrastes, algo que vínhamos treinando nos exercícios de Miniaturas e Duplas. Ainda no âmbito formal observamos que a sucessão das sessões é sempre gradual, não havendo cortes secos. Porém, nesse sentido uma mudança pode ser apontada em relação à nossa atitude em Música das Árvores, na qual tínhamos dificuldades para começar o jogo com

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gestos mais enérgicos e dinâmicos. Nesta improvisação é justamente a primeira seção que começa de maneira mais abrupta, e sua transição, apesar de não ser um corte seco, ocorre também a partir da diminuição brusca da velocidade. De qualquer maneira observa-se uma certa inércia na resposta dos outros instrumentos, e mesmo o saxofone, que responde prontamente, o faz com gestos mais longos, preenchendo o espaço e não arriscando, em um primeiro momento, um diálogo com gestos intempestivos. Nas transições da seção 2 até a seção 6 os recursos são basicamente dois: acelerações indo em direção ao agudo, configurando uma espécie de saturação, e dissoluções. Em duas delas, na transição da seção 1 para a seção 2 e da seção 4 para a seção 5, a convergência nas mesmas notas também funciona como indicador de fim de seção. Da seção 6 para a seção 7, ambas lentas, a transição é bastante curta e sutil, onde observa-se um pequeno momento de rarefação da textura (uma espécie de dissolução) no qual o violão 1 toma o halo deixado pelo violão 2, e o enfatiza estabelecendo o tempo estriado, criando pequenos fragmentos melódicos. O final da improvisação também se dá a partir de uma dissolução. Não há nenhum silêncio significativo e os violões tocam incessantemente, quase sem respirar. Observam-se momentos de formação de pequenos grupos, algo que incentivávamos e buscávamos, para fugir da tendência geral a estar sempre em tutti. Quando isso acontecia, era um sinal de que pelo menos alguns de nós estávamos parando para ouvir os demais. As ideias são apresentadas e desenvolvidas em pouco tempo, sendo que a duração máxima de uma seção é de 1’37’’. Estávamos sob forte influência dos exercícios de improvisação, os quais sugeriam e indicavam pequenos desenvolvimentos. No Jogo dos Três Objetos, por exemplo, tínhamos como tempo máximo de seção 1’30’’, este que diminuía cada vez mais; nas Miniaturas tínhamos a indicação de não desenvolver, somente criar uma primeira imagem; e em Duplas e Trios não costumávamos ter grupos com duração longa, sendo que as ideias eram rapidamente transformadas. Com relação aos modos de tocar em cada instrumento temos uma variação já interessante, porém a maior parte dos sons executados são convencionais. Observam-se também entidades harmônicas de cor tonal no decorrer da improvisação. Estávamos ainda bastante condicionados pelos nossos instrumentos e nem sempre conseguíamos fugir de alguns gestos característicos. Dos modos de interação ouve-se principalmente o imitar e o integrar-se. Por serem os mais intuitivos os mesmos prevalecem na improvisação livre, onde não somos

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forçados a pensar em outros. Porém é interessante ver a clara incursão da oposição no saxofone a partir de 27’’, o principal responsável pela desestabilização da configuração vigente, a partir da qual se dá a transição para a seção 2. Apesar do conhecimento prévio de todos acerca das duas categorias de tempo propostas por Boulez, ainda que intuitivo e não formalizado, a familiaridade com o tempo estriado era muito maior que com o tempo liso. Por conta disso a exploração do segundo se colocou como algo relativamente novo e renovador da sintaxe musical, por se diferenciar da grande

maioria

das

práticas

dos

integrantes.

Portanto,

e

como

resultado

da

desterritorialização, há uma tentativa de fuga do tempo estriado nas nossas primeiras improvisações livres, que se estende também à outras propostas.

Aspectos da percepção observados em Primeiras Improvisações Livres



Como se colocar no ambiente de improvisação Em 2014, em aula na disciplina de Improvisação Generativa no Conservatório de

Paris, fiz uma pergunta ao Prof. Markeas sobre nossa atitude, particularmente como devemos nos comportar no ambiente de improvisação. Ele prontamente respondeu que o comportamento, antes de mais nada, passa pela questão da escuta, e nesse sentido devemos tentar compreender o que o outro apreendeu de nossas proposições, procurar escutar a escuta do outro, processo este no qual há sempre uma decalagem. Achei muito interessante e passei a olhar o grupo com esses olhos, inclusive perguntando para os integrantes o que achavam desta colocação. Na época das primeiras improvisações livres não tínhamos conhecimento dessa expressão, mas creio que o “escutar a escuta do outro” é algo que sempre esteve presente no grupo e que vem sendo cada vez mais valorizado. Nas primeiras improvisações ainda estávamos nos habituando e conhecendo uns aos outros, buscando entender como devíamos interagir, nos preocupando em escutar o outro e tentando entender o que faria. Tocávamos sempre juntos, ligados uns aos outros, olhares e ouvidos atentos, e a partir disso construímos nossos elos, nos entendendo cada vez mais, chegando quase a inferir o que cada um poderia fazer em determinadas situações.



Alargar a percepção para a gama de sons possíveis O emprego de sonoridades não convencionais surgiu gradualmente, e para que

fosse possível sua utilização com mais frequência se fazia necessário, sobretudo no começo,

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uma escuta aberta, sem preconceitos. Para conhecermos melhor essas sonoridades começamos uma pesquisa de referências sonoras no campo da música experimental, buscando por soluções sonoras imaginadas por outros compositores. Foram marcantes as audições conjuntas que fizemos das Peças para uma Nota Só do compositor italiano Giacinto Scelsi, atentando para o discurso a partir do próprio som em suas qualidades intrínsecas. Ouvimos ainda obras de compositores como György Ligeti, Karlheinz Stockhausen, e outros compositores contemporâneos. Discutimos largamente sobre uma famosa entrevista de John Cage na qual o compositor afirma estar completamente satisfeito com as ações do som na 6ª Avenida em Nova York (CAGE, 2013), o que identificamos como a ‘musicalização’ do ruído pela escuta.



Som e silêncio – prolixidade Não é à toa que o silêncio aparece em todos os itens até aqui, pois era de fato algo

complicado de entender, controlar e empregar com propriedade. Em nossas improvisações dificilmente parávamos de tocar, e se um músico silenciava um outro entrava em seu lugar, mesmo que não soubesse direito o que fazer, executando muitas vezes ações sem foco, prolixas. Na gravação não existe nenhum silêncio expressivo, tudo é emendado. Como já dito anteriormente, tínhamos um certo medo do silêncio, de deixar a ‘peteca cair’ ao emprega-lo.

4.

Interruptores e Cruzamentos (ou Semáforos) Em um dia de ensaio durante uma improvisação livre comecei a perceber um jogo

ocorrendo entre eu (violão) e Fernando (flauta transversal), no qual eu era uma espécie de interruptor do fluxo de seu som. Quando eu tocava ele ‘ligava’ e começava imediatamente a tocar. No meu próximo som, ele ‘desligava’, e assim por diante. Naquele momento associei esta ação ao funcionamento de um semáforo, com seus sinais verde e vermelho, controlando o fluxo dos carros. Na época estava lendo o trabalho de Fátima Carneiro dos Santos sobre escuta e composição a partir da paisagem sonora, que me instigava a imaginar a cidade como uma fonte inesgotável não só de sonoridades, mas também de ideias musicais em potência na sua dinâmica de funcionamento. Influenciado pelas ideias da autora e pela improvisação que acabara de acontecer, saí do ensaio já imaginando como recriar o ambiente de um cruzamento entre ruas com semáforos em forma de um jogo musical. Antes de passar ao jogo examinemos algumas ideias da autora:

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4.1 Fátima Carneiro dos Santos: escuta e composição da paisagem sonora – escuta como gesto poiético Fátima Carneiro dos Santos (2006) nos apresenta uma proposta de escuta e composição da paisagem sonora a partir dos sons da cidade. A autora se apoia na soundscape composition, poética adotada por Murray Schafer, Barry Truax e Hildegard Westerkamp, entre outros, na qual os sons ambientais são usados enquanto material para suas obras musicas. A Soundscape Composition surge em meio ao World Soundscape Project, projeto iniciado por Schafer, que tinha por objetivo estudar e agir sobre o ambiente sonoro da época, principalmente urbano, este que preocupava o compositor pela crescente poluição. Fátima comenta que “a Soundscape Composition, ao colocar o ouvinte-compositor numa relação íntima com o ambiente sonoro, sugere uma atitude composicional que opera basicamente através da escuta, respeitando a dinâmica sonora do material.” (SANTOS, 2006, p. 3). Portanto sua proposição de poética composicional parte da escuta das cidades, atentando para as ruas não só em função sonoridades que nela estão, mas também de seus movimentos, velocidades, dinâmicas, particularidades, como um ambiente que pode disparar ideias de música. Desta maneira a rua é: pensada como um espaço que vai além de buzinas, apitos e gritos, ou mesmo temas, melodias e ritmos, [e] possibilita-nos exercer uma escuta que concretiza um jogo de distinguir, realçar e inventar objetos sonoros, no limite entre o audível e o inaudível (ou aquilo que está para além do audível). (idem, p. 4-5)

Segundo a pesquisadora, de um modo geral “a atitude do homem ante a música parece estar diretamente relacionada aos sons ambientais de seu tempo” (SANTOS, 2002, p. 18), e portanto, acompanhando as mudanças radicais no ambiente sonoro do século XX podemos observar mudanças também no pensamento composicional. Como exemplo podemos citar Luigi Russolo e seus intona rumori, máquinas de fazer som criadas para os tempos modernos, nos quais homem e máquina passam a conviver e a dividir cada vez mais frequentemente os espaços urbanos. A música de hoje carrega também reflexos dos nossos sons ambientais e urbanos, utilizados enquanto material musical, por exemplo, na supracitada Soundscape Composition. Porém, para além da inclusão da gama de sons ambientais enquanto material musical, a evolução da poética e estética musical no século XX nos abriu a possibilidade de ouvi-los enquanto música, engajando-se em uma escuta que se configura enquanto gesto poiético (idem, p. 96). Para defender a ideia de uma escuta poiética, ou seja, uma escuta que compõe, a

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autora se reporta a três compositores e suas respectivas contribuições no campo da escuta: John Cage e as noções de silêncio e ruído; Pierre Schaeffer e a escuta reduzida; e Murray Schafer e o ouvido pensante. Para Fátima estas proposições contribuem no sentido de desterritorializar a escuta musical, afastando-a do papel que desempenha nos territórios da música tradicional: o de uma escuta receptora de uma música dada a priori, para então se tornar uma escuta criadora. A escuta reduzida de Pierre Schaeffer, ao se dirigir ao objeto sonoro em um momento de suspensão eidética (époché), cria uma nova condição de escuta desterritorializando-a dos hábitos musicais corriqueiros até sua época. Porém, fazendo-a reportar-se aos objetos sonoros em sua tipo-morfologia, Schaeffer reterritorializa essa escuta. Podemos entender essa dinâmica como uma estratégia do compositor para assegurar um campo de consistência em seu trabalho: para uma nova poética musical, a música concreta, desterritorializada em relação à música tradicional, se fez necessária também uma nova escuta desterritorializada em relação à escuta habitual anterior. As novas poética e escuta foram concebidas para se adequarem uma à outra, ou seja, ambas desterritorializadas em relação a um determinado contexto, confluindo em direção a reterritorialização na música concreta. Murray Schafer, em suas pesquisas sobre a paisagem sonora, dedicou-se a ouvir musicalmente o ambiente através de um ouvido pensante, ou seja, aplicar uma escuta musical já estabelecida procurando por significados musicais em sons considerados, na maioria dos casos, como não musicais. Já Cage propõe que se escutem os sons do ambiente tal qual eles são, pois não precisam de outro significado ou atribuição, podem ser objetos estéticos sem nenhuma intervenção humana. O compositor cria situações nas quais o ambiente pode ser ouvido como música, como por exemplo na peça 4’33’’, onde o silêncio da orquestra na sala de concerto promove os ruídos e intervenções da plateia à condição de obra de arte. Dessa maneira provoca a escuta para que, ao invés de receber algo enquanto música, esta dada a priori, procure no ambiente e crie a partir daquilo que se ouve, ou seja, se engaje em uma escuta que compõe. Para a criação do jogo Semáforos nos pautamos na ideia de uma escuta da cidade que dispara ideias de música, uma vez que não são os sons de um semáforo o material utilizado na criação, mas o jogo de fluxos de carros que trafegam e se cruzam, respondendo de maneiras diferentes para cada sinal luminoso indicado (verde, amarelo e vermelho). Assim imaginamos recriar este ambiente contando com dois ou mais músicos fazendo o papel de

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semáforos, ou seja, indicando os sinais através de códigos sonoros, e outros enquanto fluxos de carros, se movimentando de acordo com os códigos. Para além da dinâmica normal de um semáforo máquina, imaginamos um semáforo humano com “falhas” na programação, que libera fluxos de carros ao mesmo tempo, fazendo-os se chocar, ou fecha todos os sinais por tempo indeterminado, para desespero dos motoristas... A partitura segue abaixo, tal qual foi apresentada no começo, ainda com o nome de Cruzamentos. Após um tempo, porém, a peça passou a ser chama de Semáforos.

Cruzamentos Lucas Zewe Uriarte Em uma intersecção com um, dois, ou até três semáforos, o fluxo de carros responde atentamente aos sinais verde, amarelo e vermelho para que o sistema funcione. No sinal verde o fluxo é caracterizado pela convergência da velocidade dos carros, que arrancam, aceleram e desaceleram juntos. No amarelo alguns carros aceleram para passar o sinal antes de seu fechamento, enquanto outros começam a frear, gerando um fluxo instável e de diferentes velocidades. O sinal vermelho é caracterizado pelo cessar do movimento do fluxo. Em algum momento o sistema perfeito dos cruzamentos pode falhar, e mais de um semáforo pode se abrir ao mesmo tempo, gerando fluxos que colidem e interferem um no outro. Assim como em qualquer cruzamento urbano, sempre há a possibilidade de que alguém passe no sinal vermelho...

O jogo O sistema musical compreende músicos que indicam os sinais, ou seja, fazem o papel de semáforos, e outros que fazem o papel de fluxo de carros. Um semáforo comanda um fluxo, portanto o número de semáforos e fluxos deve ser igual. Para cada semáforo é necessário um músico apenas, diferente de cada fluxo que pode ter vários músicos engajados. Configuram-se então duas posições possíveis dentro do jogo: •

Semáforo - 1 músico por semáforo



Fluxo - número indeterminado de músicos em cada fluxo

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Semáforos Os semáforos tem a função de indicar as entradas ou o cessar do movimento através de materiais musicais/modos de tocar a serem estabelecidos que indiquem claramente os estágios verde, amarelo e vermelho. •

Para cada estágio indicado os fluxos responderão de maneira diferente (ver abaixo na explanação sobre os fluxos).



Uma vez indicado um estágio o mesmo vale até a próxima indicação do semáforo.



O semáforo 1 comanda somente o fluxo 1, o semáforo 2 o fluxo 2 e assim por diante.



Para que o ambiente funcione com fluidez recomenda-se no máximo 3 semáforos.



Existem diversas configurações possíveis para o jogo entre os semáforos: podem abrir ou fechar ao mesmo tempo, convergir nos mesmos estágios, ficar inoperante por algum tempo enquanto outros trabalham. Estas são escolhas dos músicos engajados na função de semáforo. Fluxos Os fluxos respondem ao semáforo correspondente através de materiais

musicais/modos de tocar a serem estabelecidos, respeitando o estágio indicado. •

Para cada estágio o jogo dos fluxos funciona de maneira distinta, como pincelado no primeiro texto ilustrativo: o Verde: o fluxo é caracterizado pela convergência da velocidade dos carros, que arrancam, aceleram e desaceleram juntos. O mesmo deve acontecer no jogo musical, onde os músicos engajados no fluxo devem convergir na velocidade com que tocam os seus materiais, acelerando, desacelerando, ou mantendo a mesma velocidade. o Amarelo: No amarelo alguns carros aceleram para passar o sinal antes de seu fechamento, enquanto outros começam a frear, gerando um fluxo instável e de diferentes velocidades. Os músicos devem tocar em diferentes velocidades, passando rapidamente de uma velocidade a outra. o Vermelho: O sinal vermelho é caracterizado pelo cessar do movimento do fluxo, neste caso, o silêncio.

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Os materiais indicados aos fluxos devem ter maleabilidade suficiente para que os músicos possam jogar dentro das regras de cada estágio do semáforo.



Como o próprio nome sugere, os fluxos devem ser tocados de maneira contínua, e só mudam quando o semáforo indicar o próximo estágio. Não quer dizer que não possam haver silêncios fora do sinal vermelho, mas os mesmos devem ser apenas pequenas interrupções e não o cessar completo do movimento. O elemento surpresa Como elemento surpresa sugere-se que um dos músicos engajados no fluxo tome

o posto de motoboy paulistano. Esta figura, sempre apressada, normalmente não tem muito apreço pelas regras de trânsito, e não raro é responsável por caotizar ainda mais o ambiente. No jogo o motoboy tem a possibilidade de atravessar os fluxos e costurar as ideias, não obedecendo a nenhum semáforo em específico, nem mesmo ao sinal vermelho. Ele é um improvisador que responde livremente àquilo que o próprio jogo suscita. O motoboy pode se revelar ao longo do jogo e não precisa fazer a função desde o começo, pode começar como fluxo de carros e esperar a hora certa de entrar.

Indicações gerais •

Antes de começar o jogo as posições de cada membro do grupo devem ser estabelecidas, assim como o material musical a ser utilizado em cada uma delas.



O início do jogo se dá sempre a partir da indicação de um semáforo, ao qual o fluxo correspondente deve responder respeitando o estágio indicado.



O final não está estabelecido, deve ser encontrado pelo grupo ao longo do jogo.



Anexo a estas indicações segue uma sugestão de tabela a fim de facilitar a visualização e organização. Este é um exemplo para 6 músicos participantes, com dois semáforos, dois fluxos, e um motoboy.

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Semáforo 1

Fluxo 1

Vermelho

material (a definir)

silêncio

Amarelo

material (a definir) material (a definir)

Verde

material (a definir) material (a definir)

Semáforo 2

Fluxo 2

Vermelho

material (a definir)

silêncio

Amarelo

material (a definir) material (a definir)

Verde

material (a definir) material (a definir)

Jogador 1

Jogador 4

Nome do jogador Semáforo 1

Nome do jogador Semáforo 2

Jogador 2

Jogador 3

Jogador 5

Jogador 6

Nome do jogador Fluxo 1

Nome do jogador Fluxo 1

Nome do jogador Fluxo 2

Nome do jogador Fluxo 2 + Motoboy

Figura 4: Tabela do jogo Semáforos (sem indicação de materiais) Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

Começamos a trabalhar com o jogo estabelecendo os materiais para os semáforos e fluxos. Nos semáforos a appoggiatura foi escolhida para o sinal verde, acordes destacados para o sinal amarelo, e oitavas no grave para o sinal vermelho. Ao tocar um desses materiais os músicos no papel de semáforo estariam indicando o respectivo sinal de fluxo, valendo até o momento em que decidisse mudar de sinal/material. Para os instrumentos de sopro decidimos que os acordes destacados poderiam ser multifônicos. Já nos fluxos demoramos um pouco mais para escolher, pois precisávamos pensar em materiais maleáveis, possibilitando variações principalmente no que diz respeito à velocidade. Procuramos também por algo que todos os instrumentos pudessem executar de maneira satisfatória, para não ter que constantemente adaptar os materiais de acordo com os instrumentos, tendo em vista que a cada rodada trocávamos de posição no jogo. Propusemos enquanto materiais possíveis primeiramente: glissando e staccato para o fluxo 1, sendo o primeiro para o sinal verde e o segundo para o amarelo; notas repetidas e cromatismo para o fluxo 2, igualmente o primeiro para o verde e o segundo para o amarelo. No sinal vermelho a própria partitura já estipulava que os fluxos silenciassem, indicação que decidimos manter. Porém tivemos problemas principalmente com os glissandos, tendo em vista que nem todos os instrumentos conseguiam executá-lo muito bem. Pensamos então em substituir este material, e escolhemos um gesto físico no qual os dedos descrevem um movimento contínuo alternando-se como se fosse uma centopeia caminhando, alternando entre as patas. As mãos poderiam também se mexer conjuntamente, direita e esquerda e todos os seus dedos em um

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movimento contínuo, mais rápido ou devagar de acordo com o jogo. A este gesto demos o nome de “mãozinhas”. Apesar de estar em aberto a possibilidade de mudar os materiais a cada execução, mantivemos os mesmos durante quase todo o ano de 2013, vindo a testar outras configurações somente no fim do ano. Nossa tabela então se estruturou da seguinte maneira:

Vermelho Amarelo Verde

Semáforo 1

Fluxo 1

oitavas grave

silêncio

Vermelho

acordes destacados

staccato

Amarelo

apoggiatura

mãozinhas

Verde

Semáforo 2

Fluxo 2

oitavas grave

silêncio

acordes destacados

cromatismo

apoggiatura

notas repetidas

Jogador 1

Jogador 4

a definir

a definir Semáforo 2

Semáforo 1

Jogador 2

Jogador 3

Jogador 5

Jogador 6

a definir Fluxo 1

a definir Fluxo 1

a definir Fluxo 2

a definir Fluxo 2 + Motoboy

Figura 5: Tabela do jogo Semáforos (indicações de materiais usados pelo grupo em 2013) Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

As primeiras sessões deste jogo foram marcadas por bastante confusão, causada pelo grande número de informações com que trabalhávamos. No papel de fluxos tínhamos que identificar claramente os materiais do semáforo correspondente, e decorar nossos materiais e modos de jogo específicos para os três estágios. Ainda era necessário prestar atenção nos integrantes atuando no mesmo fluxo que o seu, bem como no fluxo contrário, para poder interagir. Enquanto semáforos a tarefa era coordenar os fluxos, indicando os sinais correspondentes de maneira clara, e agindo no sentido de ordenar ou caotizar o ambiente. Fazendo uma analogia ao próprio trânsito, era como se tivéssemos chegado na autoescola para a primeira aula e fossemos levados direto para dirigir na Marginal Tietê... Foi necessário um bom tempo de prática para dominar todos os comandos, e aí sim prestar atenção e interagir com o trânsito a nossa volta. Estabelecemos que começaríamos a peça sempre de forma ordenada, como em cruzamentos normais: um semáforo abre enquanto o outro fecha, sem chocar os fluxos. Só depois de um tempo poderíamos indicar os sinais em qualquer ordem e liberar a passagem dos

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dois fluxos ao mesmo tempo. Começamos também sem o motoboy, este incorporado bom tempo depois. No papel de fluxo fomos aos poucos conseguindo interagir com o músico no mesmo fluxo, mas demoramos muito para conseguir interagir a valer com músicos de outro fluxo, na verdade creio que só chegamos neste estágio ao apresentar esta peça em 2015 no concerto Gramani joga badminton com as andorinhas (sobre esta performance falaremos mais adiante no item Semáforos versão II, p.118). Aos poucos fomos entendendo o papel de cada jogador em Semáforos, e aprendendo a jogar em cada posição. Os músicos no papel de semáforo eram os principais responsáveis pela macroforma da peça, pois são eles que indicam a sucessão dos eventos, tendo também influência decisiva na densidade da peça. Os músicos que estavam no papel de fluxo eram os principais responsáveis pela construção da microforma da peça, improvisando a partir das situações estabelecidas pelos semáforos. O papel do motoboy foi descoberto aos poucos, sendo que sua insubordinação precisava se destacar, caso contrário não faria sentido pois se confundiria com os demais. Era necessário costurar o trânsito, incomodar, e acima de tudo se fazer ouvir. Um dos recursos encontrados por nós foi o escárnio, onde o motoboy caricaturizava os gestos dos outros músicos para zombar deles. O motoboy virou o ‘fanfarrão’ da história. Foi este o primeiro jogo que desencadeou em nós algumas ideias performático/teatrais, que foram a partir de então exploradas em diversas outras propostas criativas do grupo. Segundo Villavicencio, Iazzetta e Costa (2014): para cada som corresponde um gesto instrumental específico, este com suas dimensões físicas, corporais e emocionais, sendo que “o tempo e a qualidade do gesto estão intimamente ligados à ‘história energética’ do som. Assim, poderíamos dizer que cada performance tem, num certo sentido, uma dimensão ‘coreográfica’ específica.” (p. 9). No grupo, a partir de Semáforos, passamos a atentar para coreografia por si só, e passamos a atentar para as ações corporais, e o gesto físico/corporal, extrapolando aquilo que normalmente se faz para a produção sonora, começou a nos suscitar ideias cênico musicais. Em Semáforos, por exemplo, imaginando que estávamos no trânsito, passamos a deliberadamente gesticular como motoristas, agregando essa informação gestual ao jogo. A partir de pequenos gestos de cabeça, mãos e olhares, começamos a instaurar uma cena. Os motoristas começaram a evidenciar a impaciência diante de seu semáforo quando este não abria, a pressa em partir assim que o sinal verde era acionado, e não demorou muito para começarem as rixas entre motoristas. O motoboy, quando começou a aparecer no jogo,

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nervosamente ‘costurava’ os carros e zombava dos semáforos passando no sinal vermelho, estes que se mostravam incomodados com a situação. O jogo foi gravado em áudio duas vezes em 2013, e nenhuma delas nos satisfez, pois não trazia junto a cena. Por outro lado, diante do público, Semáforos é um dos jogos que mais envolve as pessoas, talvez por transportar para o palco de maneira bem humorada e sem risco de acidentes, uma cena cotidiana e bastante hostil, muitas vezes já banalizada. A ação cênica faz parte da performance invariavelmente, e sem ela o jogo perde muito de sua força. Somente depois de quase dois anos praticando este jogo, em maio de 2015 tivemos a oportunidade de gravar uma performance em vídeo (v. item Semáforos versão II, p.118). Aspectos da percepção observados em Semáforos



Escuta corporal Em Semáforos as tensões e relaxamentos não dependem somente da construção

sonora mas também do corpo e dos gestos físicos, e por conta disso estávamos sempre muito atentos uns aos outros globalmente. Como mencionado acima, esse foi o primeiro jogo no qual os gestos físicos despontaram conscientemente enquanto elemento expressivo para além da função de produzir sons, o que teve desdobramentos diversos no grupo. Veremos nos próximos itens como a relação entre música e cena foi cada vez mais se intensificando no decorrer de nosso trabalho, inclusive em relação ao próprio Semáforos, que em sua segunda versão apoia-se ainda mais nos gestos físicos.



A escuta e os gatilhos Uma vez que as indicações dos semáforos servem de gatilho para outras ações, a

atenção estava sempre voltada às mesmas, e o jogo só começou a ter fluência quando todos já podiam identificar com precisão cada sinal. A ideia de ações que funcionam como gatilhos é um dos pilares do jogo, e foi usada também em jogos posteriores criados pelo grupo.

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5.

RVC No começo de agosto de 2013, alguns dias antes do nosso primeiro concerto,

fizemos vários ensaios intensivos, e nesse tempo que passamos juntos criamos o primeiro jogo completamente fundamentado na performance cênica: a abertura RVC. O jogo nasce da confluência de duas ideias: os random vocal chords, consistindo em uma brincadeira musical completamente despretensiosa; e a dissociação entre gesto e som. Quando estávamos juntos, nós do Obra Aberta e também alguns amigos próximos brincávamos de improvisar vocalmente cantando acordes aleatórios, normalmente atacando todos juntos, sem nenhuma referência de nota, só para ouvir os acordes que se formavam. Às vezes conseguíamos batimentos interessantes e ficávamos muitos minutos em roda cantando e ouvindo, outras vezes formávamos sem querer acordes mais ou menos tonais que tentávamos encadear. As ocasiões em que essas brincadeiras eram mais regradas (pelo menos no começo) eram aquelas nas quais tentávamos improvisar uma fuga vocal: alguém inventava um tema, o outro tentava imitar à 5ª, e depois disso a música se transformava em uma grande confusão de vozes e risadas. Era uma brincadeira completamente despretensiosa - que ao mesmo tempo nos divertia e levava os vizinhos ao desespero - à qual demos o nome de Random Vocal Chords, inspirando o nome do jogo. Em algum momento de um ensaio pré-concerto, ao ver Henrique tocar piano, começamos a cantar junto com ele a partir de seus gestos, e pedimos para que ele gesticulasse sem apertar a tecla do piano, assim o instrumento não faria nenhum som, este seria produzido somente por nossas vozes. Henrique começou ‘tocando’ acordes no meio do piano, estes que fazíamos soar através das nossas vozes, não se preocupando em acertar as notas, somente o registro e a intensidade. Se suas mãos se encontravam no registro médio cantávamos no registro médio, se fossem para o agudo algum de nós ia para o agudo, se Henrique gesticulava como se fosse um acorde em fortíssimo nós assim o entoávamos, a mesma coisa para os gestos em piano. Começamos a testar quais possibilidades de jogo teríamos, nos limitando, no começo, aos gestos convencionais do piano, respondidos de acordo com o que víamos. A comicidade do jogo quase que falava por si só, estava na própria situação um tanto quanto bizarra, porém nós a evidenciávamos ainda mais teatralizando os gestos ao piano e as respostas das vozes. O pianista se comportava cenicamente como um pianista clássico, as vozes como um respeitável coro. Associamos nossa brincadeira com algumas animações cômicas como por exemplo no vídeo The Pianist de Rowan Atkinson (Mr. Bean), e Tom and

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Jerry in the Hollywood Bowl, onde orquestra e piano são controlados por gestos dissociados dos sons12, em situações e performances cômicas. Primeiramente encaramos apenas como brincadeira, uma extensão dos Random Vocal Chords mesclados à dissociação entre som e gesto. Mas depois entendemos que poderíamos usar a ideia a nosso favor, de maneira que ela teria grande força expressiva: como abertura de nosso primeiro concerto. Discutíamos (e continuamos discutindo) o papel das instituições e das categorias do mundo da música, que por vezes nos parecem mais rígidas do que deveriam ser. No grupo tentávamos justamente ser flexíveis, combinando ideias de diversas origens, sem nos importarmos com categorias ou nomenclaturas. Isso gerou alguns questionamentos na produção pré-concerto. O primeiro deles surgiu logo nas primeiras discussões sobre nos apresentarmos em público: Vamos fazer um concerto? Apresentação? Performance? A questão não dizia respeito somente ao nome, evidentemente, mas sim ao que este carregaria de informação a priori, e como nos colocaríamos perante isso. Um concerto carregava para nós algo de muito formal, uma apresentação talvez fosse muito sui generis, performance parecia nos remeter a algo essencialmente corporal, pelo uso que se faz da palavra no nosso entorno artístico. Não nos víamos totalmente compreendidos nem excluídos de nenhuma das denominações. Optamos finalmente por concerto, e foi aí que o RVC encaixou perfeitamente aos nossos propósitos, pois enxergávamos nele um potencial crítico/cômico que poderia justamente brincar com as tradições dos concertos de música ocidental. Queríamos diminuir a distância entre público e plateia, tornando o ambiente o mais interativo, confortável e descontraído possível sem que se perdesse a concentração e o momento do jogo13. Resolvemos que começaríamos o concerto de uma maneira diferente, usando a memória e as expectativas das pessoas em relação a um concerto. Os músicos entrariam junto com as pessoas e sentariam na plateia, exceto Henrique, que esperaria todos se acomodarem e então entraria normalmente, em trajes de concerto14, agradeceria as palmas e sentaria ao piano para tocar. Até então tudo ocorria normalmente, porém, ao primeiro ‘acorde’ do piano o som viria da própria plateia e não do instrumento, causando certo espanto nas

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Disponíveis respectivamente em https://www.youtube.com/watch?v=e7L0wDfSU-U e https://www.youtube.com/watch?v=ShBoil1RPfw 13 Queríamos envolver também a plateia no espaço/tempo do jogo, o mais próximo possível de um ambiente de imersão. 14 O figurino também foi alvo de discussão na preparação para o primeiro concerto. Queríamos algo vivo e leve, que não nos remetesse ao ambiente do concerto tradicional, nem ao “cada um veste o que quer” que muito se vê em shows. Escolhemos camisetas lisas coloridas (combinando as cores a cada apresentação), calça tom pastel e descalço, e esse se tornou nosso figurino oficial. No primeiro concerto, para melhor compor a abertura, entramos todos de paletó e sapato e somente os tiramos na frente do público, antes da segunda música, quando nos sentamos nas cadeiras.

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pessoas (principalmente naquelas que não nos conheciam e não sabiam que os integrantes do grupo estavam na plateia). Logo no primeiro gesto deslocaríamos o concerto de lugar, ou melhor, deslocaríamos as pessoas do lugar convencional do concerto. A plateia, meio atônita, teria frustrada a expectativa de ver um concerto nos seus moldes tradicionais, e não saberia muito bem o que esperar, e por isso precisávamos que o RVC acima de tudo despertasse curiosidade nas pessoas sobre o que poderia vir em seguida. Elas precisavam ser surpreendidas positivamente. Creio que conseguimos atingir essa meta no nosso primeiro concerto, e também em outras vezes que usamos o RVC (não em todas...). Até hoje o jogo só foi executado como abertura, nunca no meio dos concertos, pois o efeito se perderia. O melhor resultado foi atingido no concerto que realizamos na XXIII Congresso Nacional da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música), ocorrido em agosto de 2013 em Natal – RN. Nos apresentamos depois do belíssimo concerto da pianista Catarina Domenici, que executou peças do repertório do século XX para piano solo. Na plateia estavam importantes nomes da música no Brasil, na sua maioria acadêmicos, esperando pelo concerto do Grupo Obra Aberta, ainda desconhecido de todos. Por conta do nome do grupo, bastante icônico, creio que todos esperavam um concerto de música contemporânea, porém em formato normal, como os outros que vinham se sucedendo. Em dia inspirado, Henrique subiu ao palco, simpaticamente agradeceu os aplausos, e muito concentrado se sentou ao piano. Os primeiros gestos foram marcantes, decididos, respondidos da mesma forma pelos outros integrantes na plateia. A performance se deu sob risadas do início ao fim, e teve inclusive pequenas participações de espectadores empolgados que, junto conosco, entoavam os gestos de Henrique. É uma pena não termos gravação em vídeo dessa performance. Já na última vez que apresentamos, em dezembro de 2014, justamente no recital de formatura de Henrique, protagonista da peça, obtivemos nosso resultado menos satisfatório. Saímos com a sensação de que não conseguimos envolver a plateia, que agiu da mesma forma ao ouvir nossa performance e as peças de cravo do período barroco executadas logo em seguida. Curiosamente a recepção foi melhor ao tocarmos a peça People are all the same15 mais para o final do concerto, que consideramos um pouco mais “difícil de ouvir”, especialmente para um público não habituado com a música contemporânea. Para nós foi ao

15

Peça do repertório composta por Fernando Sagawa em 2013 não apresentada neste trabalho.

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mesmo tempo uma realização e uma frustração, pois foi nossa melhor execução da segunda peça e a pior recepção em relação à primeira. No RVC a cena é a protagonista, e a atuação teatral é mais importante que o resultado sonoro. Não que o segundo seja negligenciado, mas o jogo se baseia muito na atuação e no envolvimento do público a partir da mesma. Nesse sentido observamos que a comicidade se mostra essencial, uma vez que age diretamente no envolvimento do público. O RVC foi o primeiro jogo no qual utilizamos nosso lado cômico quase que indiscriminadamente, o que até já rendeu discussões, pois em algumas performances talvez tenhamos “passado do ponto” neste sentido. Outros jogos além do RVC se utilizam da comicidade, esta que sempre fez parte do grupo de maneira muito natural, surgindo das nossas relações pessoais. No exemplo musical 4 temos um registro da performance RVC gravada no dia 09 de maio de 2014, no Teatro Lara Abraão da Faculdade Santa Marcelina - SP. Nesta época, quase um ano depois da composição do jogo, Henrique já não se limitava mais aos gestos convencionais do piano. Em alguns momentos ocorrem ataques fora das teclas, gestos de cabeça que controlam a dinâmica, a inércia do próprio pianista, uma corda “tirada do piano”, teclas imaginárias em torno do piano... Não só mais o tocar piano foi sonorizado, mas praticamente todos os gestos do pianista. A ideia de dissociação entre som e gesto foi explorada também em outros momentos no processo criativo do grupo, notadamente no HINOX com o mute (v. item HINOX, p.90) e no Staff Soundpainting no concerto Gramani Joga Badminton com as Andorinhas (v. item Staff Soundpainting, p. 119).

5.1 A escuta e o corpo Pela primeira vez nossa escuta estava primordialmente voltada ao gesto físico, e não aos sons produzidos pelos gestos. Tínhamos que “escutar” os sons dos gestos do pianista, ou seja, simular internamente como seriam aqueles sons para então executa-los com nossas vozes. Essa aproximação entre percepção e simulação é tratada na Teoria Motora da Percepção de Alain Berthoz, introduzida por Mannis (2014). Berthoz afirma que “a percepção não é apenas uma interpretação das mensagens sensoriais: ela é forçada pela ação, é simulação interna da ação, é julgamento e tomada de decisão, é emancipação das consequências da ação” (BERTHOZ, 2013, p. 15 apud MANNIS, 2014, p. 211). Tomando a percepção dessa forma, Mannis observa que a mesma depende de uma espécie de mimese fisiológica, onde, “para que o processo cognitivo se cumpra é necessário que o efeito percebido estimule o corpo” (MANNIS, 2014, p. 211).

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Dessa maneira podemos pensar que toda percepção é uma ação, pois ao perceber nos colocamos na ação, a simulamos internamente. Quando percebemos um objeto, uma poltrona, por exemplo, acreditamos que não estamos fazendo nenhuma ação nesse momento, pois permanecemos em pé, imóveis, enquanto a percebemos. Mas isso é uma ilusão, pois na realidade já temos em nós o ato característico da poltrona, o que denominamos como um esquema perceptivo: no caso, o de sentar de uma maneira particular nessa poltrona. (JANET, 1935, p. 54 apud MANNIS, 2014, p. 211)

No caso do RVC, a cada gesto do pianista nos colocamos em sua situação e, levando em conta os atos característicos de tocar piano que temos na nossa memória, “ouvimos”, ou percebemos os sons resultantes sem que eles se efetivem enquanto matéria. Sendo assim, ao vermos que o pianista gesticula com bastante tônus recriamos mentalmente um som mais forte, se o pianista toca mais para a direita recriamos um som agudo, e assim por diante. Porém, para além de perceber e executar a ação interna de simular os sons, executamos também uma ação externa dando vida a esses sons através da nossa voz. Aspectos da percepção observados em RVC



Escuta corporal Para executar o jogo a atenção deve estar totalmente focada nos gestos do

pianista, sendo que a ação dos músicos na plateia não compreende somente uma imitação literal dos mesmos, mas sim uma interpretação. Registro, intensidade e velocidade estão subentendidos nas ações do pianista, porém há várias aberturas para interpretação, como elementos de expressão (lírico, giocoso, soturno...), de articulação, e gestos para além dos convencionais na execução do piano.

6.

Rituais sonoros e música intuitiva Em meados de outubro de 2013 tomamos contanto com a série de peças textuais

Aus den Sieben Tagen de Karlheinz Stockhausen, e com escritos e entrevistas do próprio compositor acerca da chamada música intuitiva, na qual se inserem as peças. Pela primeira vez tomamos a iniciativa de experimentar algumas peças não autorais, e as ideias que emergiram deste contato reverberaram no processo criativo do grupo dali em diante, conforme veremos a seguir. Antes de relatarmos nossas experiências com a música intuitiva

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vamos apresentar algumas ideias acerca desta prática a partir de entrevistas do próprio Stockhausen (STOCKHAUSEN, 2009).

6.1 Stockhausen e a música intuitiva Em 1968 o compositor alemão Karlheinz Stockhausen publicou uma série de 15 partituras textuais intituladas Aus den Sieben Tagen, compreendidas em uma poética musical que Stockhausen chamou de música intuitiva. O termo intuitivo, segundo o compositor, foi introduzido propositadamente, “não apenas para deixar claro que tenho algo específico em mente, mas também para excluir outras coisas” (STOCKHAUSEN, 2009, p.94). Dentre essas coisas está o termo improviso, que, segundo o compositor, sempre que empregado significa que há algum tipo de regra em jogo, algo a ser evitado na música intuitiva. Os textos de Aus den Sieben Tagen contém apenas ideias bastante subjetivas e de certa maneira místicas, sugestionando a ação musical mas não a restringindo em nenhum elemento específico. Dentre as peças textuais está Ilimitado:

Ilimitado

toque um som com a certeza de que você tem uma quantidade infinita de tempo e de espaço

Segundo o compositor, aproximar-se do estado de “certeza de ter uma quantidade de tempo e espaço infinitos” pode levar às ações musicais mais incríveis: Você não pensa quando terminou, ou se alguém está escutando ou não: você não se importa se morrer nesse tempo, ou se o som pode ser longo demais para você acabar de tocar, ou se o espaço de que precisa é maior do que o salão, ou se seu instrumento, ou seu próprio corpo pode conter. (idem, p.97)

Stockhausen argumenta que a intuição acontece no momento em que não estamos pensando, e para atingir este momento é necessária uma reflexão e um esforço que os músicos normalmente não estão acostumados a fazer, muitas vezes porque nem sequer se questionaram a respeito. Na partitura de ISSO essa ideia está explícita:

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ISSO

pense em NADA espere até que esteja absolutamente parado dentro de você quando tiver atingido isso comece a tocar assim que você começar a pensar, pare e tente reatingir o estado de NÃO PENSAR então continue tocando - e assim em diante. O compositor relata uma história bastante interessante sobre uma das primeiras experiências com a partitura, ocorrida durante o Curso Internacional de Música Contemporânea em Darmstadt no ano de 1968. Na ocasião Stockhausen mostrou aos alunos de composição a partitura de Verbindung (Conexão), na qual consta a frase “Toque uma vibração no ritmo do seu pensamento”, e percebeu que nenhum deles sabia o que ele queria dizer. Então propôs que todos pegassem um lápis, fechassem os olhos e batessem na mesa toda vez que o pensamento mudasse de direção. No começo todos batiam rápido demais, e então o compositor sugeriu que bloqueassem os pensamentos, ou tentassem se manter em um só. Foram identificados grupos de ataques, uma vez que normalmente uma ação (uma batida) levava a reações dos outros. Em relação à intuição, Stockhausen a descreve como algo difícil de se atingir e de controlar, e se propõe a imaginar como fazê-lo de maneira consciente, quando bem entender. Uma vez proficiente em atingir este estado, surge então a questão da diferença de tempo da intuição e da composição, alegando que para se fazer música intuitiva é preciso encontrar uma forma completamente nova de compor que leve em consideração o seu tempo, pois não é possível fazer música intuitiva nos mesmos moldes em que se escreve música “pensada”, sentando-se à mesa para escrever ao papel.

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6.1.1 Breves considerações sobre a intuição Quando Stockhausen nos fala de intuição, ele a contrapõe ao pensar, porém em seu texto não fica claro exatamente o que o compositor entende por intuição e mesmo por pensar. Por conta disso trazemos aqui algumas definições de intuição que poderão nos ajudar a interpretar as ideias propostas pelo compositor. Jeff Pressing, em seu trabalho Improvisation: Methods and Models (1987), nos apresenta algumas ideias e noções relacionadas à improvisação para embasar os métodos e modelos propostos, sendo a intuição uma das noções apresentadas. Segundo o autor, a visão do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) acerca do tema é a que se relaciona mais diretamente com a improvisação. Para Bergson a intuição “é uma maneira de fazer contato com uma realidade primeira [prime reality] ordinariamente mascarada do conhecimento humano” (PRESSING, 1987, p. 15). Esta realidade é um fluxo, um movimento contínuo, um acontecer perpétuo que se difere do conhecimento intelectual, uma vez que este opera pela decupagem do fluxo contínuo em objetos, eventos e processos discretos, enquanto que na intuição os mesmos estão unificados. Bergson no entanto defende que “o intelecto pode interagir livremente com os frutos da intuição a fim de desenvolver uma perspectiva pessoal mais rica” (idem, p. 16). Portanto as duas instâncias, intuição e conhecimento intelectual, apesar de lidar com a realidade de uma maneira diferente - no primeiro caso enquanto fluxo contínuo e no segundo a partir de decupagens - se relacionam e interagem. Pressing também nos apresenta duas visões de intuição vindas da psicologia. A primeira define a intuição como “um caso de inferência que se baseia em pistas e associações não ordinárias” (idem, p. 16). A segunda, proposta por Bastick, vê a intuição como um processo combinatório que opera a partir de conexões preexistentes entre elementos de diferentes ordens emocionais/sensoriais (atividades intelectuais, emoções, movimento, imagens...). A primeira peça de Aus den Sieben Tagen que tentamos executar foi Ilimitado. Ao tomar contato com a peça conversamos um pouco sobre as ideias de Stockhausen para podermos nos situar, tomando cuidado para não acordar nada sobre a peça anteriormente. Tocamos muito pouco e por muito tempo, o que se repetiu também nos próximos ensaios ao executar novamente a peça. Nós, que estávamos acostumados a fazer sessões de improvisação entre 8 e 12 minutos, passamos a tocar às vezes por mais de uma hora. Passamos também a economizar os materiais, tocando menos, não usando todos os recursos, e a maior parte de nossas ações eram grandes e lentas. Mesmo que não tenhamos interpretado o texto juntos, a

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indicação de ter uma quantidade infinita de espaço e tempo gerou ações muito longas por parte de todos os músicos. Nos chamou a atenção também a concentração de todos, totalmente absortos e imersos no ambiente como ainda não tínhamos conseguido observar. Começamos a imaginar estas sessões de Aus den Sieben Tagen como rituais sonoros, momentos onde esquecemos todo o resto para estar em total conexão uns com os outros e com o som. O exemplo musical 5 é o registro de um dia de ensaio no qual executamos a partitura de Nachtmusik (Música da Noite). Música da Noite toque uma vibração no ritmo do universo toque uma vibração no ritmo do sonhar toque uma vibração no ritmo do sonhar e vagarosamente a transforme no ritmo do universo repita tão frequentemente quanto puder.

Nos quase 20 minutos de peça construímos uma textura serena que se move devagar e gradualmente, totalmente contínua, sem cortes e silêncios, com dinâmica praticamente o tempo inteiro abaixo de mezzo forte. A música começa com sopros, quase imperceptíveis, confundindo-se com o fundo. Após 1’ temos também voz, e somente depois de 3’ os violões e o piano. O violão 1 é o único que insiste em algumas figuras um pouco mais rápidas (talvez vindas de um sonho agitado) desde os 6’15’’ em diante. O piano executa acordes repetidos praticamente o tempo todo, desde aproximadamente 4’45’’ até 19’. Há momentos nos quais todos giram em torno de algumas notas, destacando-se a nota D. Temos um pequeno pico de dinâmica por volta dos 16’30’’, sendo este o último momento em que todos tocam juntos. A este momento sucede o trecho final no qual os instrumentos vão aos poucos sumindo no ar, confundindo-se com os sons do ambiente assim como no começo.

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6.2 Pauline Oliveros – Deep Listening Associamos a nossa prática da música intuitiva às improvisações da compositora e improvisadora norte-americana Pauline Oliveros, figura de destaque na música improvisada desde a década de 1960. Pauline é conhecida por suas obras fazendo uso de longos pedais e uma constante interação com os sons do ambiente criando uma situação de imersão. Para descobrir esses sons Pauline propõe a deep listening (escuta profunda), uma escuta quase meditativa através da qual procura ouvir o ambiente sonoro em sua totalidade. A compositora descreve suas primeiras experiências com a deep listening a partir de gravações do ambiente: Eu simplesmente colocava um microfone na minha janela e gravava o som do ambiente até a fita acabar. Quando eu tocava a fita percebia que, embora eu estivesse ouvindo cuidadosamente enquanto gravava, não tinha ouvido todos os sons que estavam na fita. Eu descobri pela primeira vez o quão seletiva foi a minha escuta, e que o microfone discriminou coisas muito diferentes em relação a mim. Daquele momento em diante eu determinei que deveria expandir minha consciência sobre todo o campo sonoro. Dei a mim mesma a aparentemente impossível tarefa de escutar tudo o tempo todo. Através deste exercício eu comecei a ouvir o ambiente sonoro como uma grande composição.16 (TOTE, 2010, p.71-72)

Ao procurar ouvir o som do ambiente como uma grande composição, Pauline se aproxima da definição de Luciano Berio, para o qual música é “tudo aquilo que se ouve com a intenção de ser música” (BERIO, 1981, p. 8). Para Pauline os longos pedais possibilitam ao ouvinte um mergulho nas atividades internas dos sons, colocando-os em um estado de observação-contemplação imprescindível para a deep listening. Em seu texto Some sound observations (OLIVEROS, 2006) a compositora narra diversos momentos onde se detinha próximo a máquinas, motores e outros objetos de som constante a fim de ouvi-los atentando principalmente para os harmônicos de cada som No disco Deep Listening, disco gravado pela Deep Listening Band, composta por ela, o trombonista Stuart Dempster e o vocalista Panaiotis em 1988, podemos ouvir e mergulhar nos grandes pedais e na música de transformações lentas e graduais de Pauline. Este disco foi gravado em uma enorme cisterna no Fort Worden, na cidade de Port Townsend,

16

Nossa tradução do inglês. O texto original é o que segue. “I simply put a microphone in my window and recorded the sound of the environment until the tape ran off the reel. When I replayed the tape, I realized that although I had been listening carefully while I recorded, I had not heard all the sounds that were on the tape. I discovered for the first time how selectively I listened, and that the microphone discriminated much differently than I did. From that moment on, I determined that I must expand my awareness of the entire sound field. I gave myself the seemingly impossible task of listening to everything all the time. Through this exercise I began to hear the sound environment as a grand composition.”

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com uma reverberação de 45 segundos, sendo portanto um ambiente bastante interessante para a exploração sonora, e propício à criação de pedais e sons reverberantes. A prática da deep listening defendida por Oliveros tornou-se mundialmente famosa, e conta inclusive com um instituto17 no qual a compositora, já com 83 anos de idade, e outros músicos ministram cursos e palestras e desenvolvem projetos acerca do tema. Em uma noite quente de dezembro fomos para a Praça da Paz na UNICAMP, uma grande praça aberta coberta por grama, com muitas árvores e um teatro de arena em uma das pontas. Eram quase nove da noite de uma quinta feira, poucas pessoas passavam por ali. Decidimos executar mais uma vez a peça Nachtmusik (Música da Noite). Começamos a música todos juntos, no mesmo ponto da praça, tocando poucos materiais, em ritmo muito lento, dinâmica baixa. Depois de algum tempo, sem combinar, fomos nos separando, caminhando em diferentes direções, dando voltas pela praça. Ouvíamos os outros instrumentos fazendo parte da paisagem sonora, alguns mais perto, outros mais longe, confundindo-se com outros sons. Dali mais um tempo nos encontramos de novo, a improvisação continuava calma como a praça. Nesse ponto eu já havia esquecido a partitura, e me deixava levar pelos sons do ambiente e dos outros músicos. Depois de mais uma volta ocorre um terceiro encontro, e então começamos a caminhar juntos tocando já de maneira mais agitada até encontramos um fim. Ficamos pelo menos duas horas na praça, em um ritual no qual tentamos nos colocar em harmonia entre nós mesmos e com o ambiente que nos cercava. Aspectos da percepção observados em Música Intuitiva/Rituais Sonoros



Ritual sendo incorporado ao repertório compartilhado18 do grupo As execuções das peças de Stockhausen normalmente tinham enquanto

características um tempo dilatado, baixa intensidade sonora e economia de materiais. Após passarmos por essa experiência começamos a observar momentos com essas características também em meio às improvisações livres. A partir de suas recorrências esse momento foi se estabelecendo no grupo enquanto um comportamento global conhecido por todos, passando a

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Endereço do Deep Listening Institute na internet: http://deeplistening.org/site/ Usamos repertório aqui no mesmo sentido que Mannis, como o reservatório onde se encontam objetos desmembrados em material, estrutura e forma, podendo ser empregados em diversos contextos. 18

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fazer parte do nosso repertório sendo empregado em outras propostas criativas. Posteriormente nomeamos esse momento, passando a chama-lo de mantra. Em HINOX usamos o momento do mantra enquanto marcador a fim de balizar a forma, dando-lhe o nome de Pilar 2: mantra (v. item HINOX, p.90). Criamos um gesto específico para indicar o momento Pilar 2 na performance, sendo que tal gesto foi mantido para uso no Soundpainting.



Deep Listening Depois de ler e discutir sobre o Deep Listening fizemos sessões de escuta do

ambiente assim como Pauline Oliveros, imersos, de olhos fechados, perscrutando todo o espaço acústico. Estas experiências nos auxiliaram a uma escuta do ambiente em maior profundidade e também em maior abrangência de eventos, acarretando em uma consciência diferenciada em relação aos espaços onde tocamos. Muitas sonoridades e particularidades dos ambientes sonoros foram redescobertos e passaram a nos chamar a atenção a partir da prática do deep listening.

7.

Improvisação livre 2 Decidimos fazer uma segunda gravação em dezembro de 2013 a fim de registrar a

nossa produção do ano. Optamos por realizar uma gravação “caseira”, assim como da primeira vez que gravamos, que ocorreu na sala 22 do Instituto de Artes da UNICAMP, contando com equipamentos do próprio instituto além de alguns microfones alugados. Escolhemos os jogos C4 e Semáforos pois não havíamos ainda gravado nenhum deles a não ser em ensaios, e também o jogo Duplas e Trios. Como última tomada fizemos uma grande improvisação livre de cerca de 1:15h de duração, um ritual sonoro influenciado pelas leituras de Stockhausen e sua música intuitiva com a qual estávamos em contato no último mês. Na maior parte do tempo a improvisação apresenta um caráter introspectivo, com economia de materiais, tempo dilatado e baixa intensidade sonora, com pequenas passagens mais intempestivas e de maior intensidade sonora. Foram feitos três recortes da tomada, um deles disponível neste trabalho, o exemplo musical 6, que será analisado a seguir. Este trecho, parte do última realização do grupo em 2013, de certa forma sintetiza o trabalho desenvolvido no ano de 2013, pois compreende diferentes ideias significativas discutidas, trabalhadas e assimiladas pelos músicos. 1) A primeira seção da improvisação começa com diversos tipos de ruídos: chaves nos saxofones, botões e mecanismos no acordeon, notas surdas no violão, sons de batidas no

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corpo de madeira do piano e também da viola caipira. Desta última ouve-se também a ressonância de suas cordas a cada batida, característica da técnica estendida Tambora, normalmente empregada no violão, onde a batida se dá nas cordas próximo ao cavalete do instrumento, fazendo soar tanto as cordas quanto o estampido no corpo do instrumento. A primeira textura é construída pela sobreposição desses ruídos e da ressonância de cordas, ao que se soma oscilações em notas longas do saxofone. No espaço observam-se vários planos, regulados principalmente pela distância de cada músico do microfone, sendo que nesta tomada tínhamos à disposição um microfone condensador ajustado para cada integrante. Alguns sons delicados ganham bastante presença por conta da proximidade do instrumento em relação ao microfone, como os ruídos do acordeon e os sons da viola caipira, criando uma espécie de espaço onde estes sons delicados são ouvidos como se o ouvinte estivesse colado nos instrumentos. Já outros sons, notadamente as batidas no corpo do piano são percebidos mais ao fundo, em menor intensidade sonora. Gradualmente outros sons tônicos além do saxofone vão entrando a partir de 43’’, primeiramente piano, depois acordeon e violão. Também outros ruídos são ouvidos: um corpo sonoro sendo raspado, uma folha de papel sendo rasgada e batidas em corpos sonoros de metal. Por mais de dois minutos o que se ouve é um arranjo textural de caráter contemplativo, com pequenas variações de densidade e intensidade, onde os instrumentos se complementam. Em 2’05’’ uma mudança se anuncia através de uma pequena figura cromática tocada pelo saxofone, que é imitada em seguida pelo violão. O que vem a seguir pode ser considerado como um desdobramento do primeiro trecho, como se as estrelas do cosmo ganhassem mobilidade em relação ao espaço das alturas, os pontos virassem linhas em movimento. Até então nenhuma figura com contorno melódico claro havia aparecido, mas logo na primeira aparição da figura cromática prontamente a escuta se direciona para as alturas e o modo de interação mais intuitivo é acionado: a imitação, que é a força motriz dos próximos dois minutos da improvisação. As figuras cromáticas são executadas pelo saxofone, piano, viola caipira e violão, porém depois de algum tempo destacam-se as vozes de piano e saxofone dialogando em primeiro plano. O fundo continua ruidoso, com raspados, barulhos de metal e de botões do acordeon, e depois de um tempo viola caipira e violão passam também a fazer parte deste fundo. A textura se densifica na medida em que os instrumentos do fundo aumentam a velocidade e a regularidade de suas ações, estabelecendo o tempo estriado. A convergência na nota D de piano e saxofone em 3’59’’ é o indicador de fim desta seção, que perde sua velocidade a partir de então. A situação de convergência em uma nota diminuindo a velocidade e a densidade e funcionando como indicador de fim de sessão, pode

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também ser observada no fim da primeira seção da Improvisação Livre I (v. item Primeiras Improvisações Livres, p.50). A seção se dilui aos poucos terminando na ressonância grave do piano, nos botões do acordeon e nos ruídos de metal. 2) Em 4’24’’ a viola executa um som super agudo e ressoante, que é em seguida composto pelo som rugoso das cordas agudas raspadas do piano, e por harmônicos agudos do violão. Os três juntos formam sonoridades que parecem ter sido sintetizadas ou manipuladas eletronicamente, lembrando a música eletroacústica. A escuta se direciona para o timbre, o jogo é a construção dessa sonoridade composta por mais de um instrumento, que leva a música à um outro lugar. A sensação de unidade entre as seções se dá pela recorrência dos ruídos de metal e dos botões da sanfona que desde o começo da improvisação compõem a textura. É o momento de menor intensidade sonora da peça. 3) O acordeon é o instrumento responsável pela transição para o último trecho da improvisação, quando em 5’30’’ produz pela primeira vez um som tônico, e a partir de 5’47’’ executa frases melódicos a partir das quais a música mais uma vez se dissolve. Após um breve silêncio o acordeon volta em 6’12’’ com notas longas, e o piano a partir de 6’17’’ propõe uma figura de acompanhamento em tempo estriado, à qual se soma a viola em 6’23’’. Em 6’29’’ o acordeon começa uma melodia que se estende por quase um minuto, enquanto o piano estabelece uma cor harmônica modal frígia a partir de Eb, e o saxofone 1 executa um contracanto nas notas Eb e Db que vai se intensificando a cada vez. A escuta vai em direção à harmonia, e a textura que se constrói configura-se como uma melodia acompanhada. Uma grande convergência ocorre em 7’26’’, após o rallentando e a descida do piano ao Eb mais grave, onde o contracanto vem à primeiro plano e é executado em oitavas pelos saxofones 1 e 2. O acordeon colore a harmonia com notas sustentadas no agudo, e é acompanhado pelo violão e viola caipira, encobertos pelos outros instrumentos. Em termos de intensidade sonora é o ápice do trecho, e um dos ápices de toda a tomada da improvisação livre. Após uma espécie de quadratura nessa configuração (podemos considerar quatro compassos de 4/4 entre 7’26’’ e 7’45’’) a música mais uma vez se dissolve, finalizando este recorte. Aspectos da percepção observados na Improvisação Livre II



Diferentes momentos – diferentes focos de escuta Em um recorte de aproximadamente oito minutos podemos observar mais de um

foco de escuta, que guiam as ações por caminhos diferentes em cada seção. No começo

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observa-se a formação de uma textura, onde a escuta está voltada à matéria sonora e orienta o integrar-se. A partir do momento em que a primeira pequena figura melódica é ouvida, automaticamente a escuta se direciona para a mesma, e a reação intuitiva é o imitar. Na segunda seção temos uma escuta que se direciona fortemente ao timbre, procurando pelas características do material sonoro, e observa-se um jogo de sonoridades não convencionais lembrando sons manipulados eletronicamente. Por último temos uma escuta orientada pela harmonia e contraponto, buscando por notas e padrões rítmicos que melhor se encaixam no entorno que as cerca.



Marcadores e gatilhos Alguns elementos musicais parecem funcionar quase que automaticamente

enquanto marcadores de fim de seção ou gatilho para nós, como é o caso da convergência em uma nota e das oitavas. Neste recorte de improvisação livre observa-se o uso das duas coisas, assim como na Improvisação Livre I. Em outros jogos também observa-se o uso destes recursos, como no jogo Semáforos onde a oitava tem o importante papel de criar silêncios. Já a convergência em uma nota é o ponto de partida do jogo C4, onde a música sempre parte do C central e à ele retorna. Além disso ambas as coisas tem este uso cadencial na música erudita, e estão na nossa memória musical enquanto pontos de articulação. Porém na Improvisação Livre II existe um outro marcador importante que não é harmônico, mas diz respeito à estrutura formal, que é a quadratura, sendo que o ápice do trecho ocorre exatamente durante quatro compassos de 4/4 (de 7’26’’ a 7’45’’). Podemos afirmar que essa periodicidade quaternária está incorporada à nossa memória musical, por conta do vasto repertório que a usa enquanto elemento estrutural. Dessa forma mesmo intuitivamente acabamos usando a quadratura no âmbito formal.



Som e silêncio Depois de um ano de trabalho e de discussões finalmente conseguimos melhor

equilíbrio entre som e silêncio. Neste registro observamos que as seções são balizadas por silêncios, o que ajuda a melhor delineá-las. Destacamos ainda que já não existem mais instrumentos tocando incessantemente, todos estão mais conscientes dos momentos mais oportunos de se colocar.

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Relatos da produção do grupo no ano de 2014

8.

Experiências no Conservatório de Paris e novos exercícios de

improvisação De janeiro a junho de 2014 tive a oportunidade de realizar um intercâmbio à França, onde estudei Improvisação Generativa com os professores Alexandros Markeas e Vincent Le Quang, e Análise Musical Aplicada com o professor Claude Ledoux no Conservatório de Paris (Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse da Paris CNSMDP). Foi uma experiência muito enriquecedora não só para mim, mas também para o grupo, uma vez que tive a oportunidade de apresentar e comentar sobre nosso trabalho com pessoas de um outro meio musical, recolhendo críticas e ideias para aplicação prática em jogos e exercícios realizados no âmbito de nossas atividades no 2º semestre de 2014. Na disciplina de análise tive a oportunidade de apresentar um seminário sobre o grupo, falando de seu processo criativo, ocasião na qual tive a oportunidade de analisar mais a fundo nossa produção. O professor Ledoux direcionou meu seminário me fazendo as seguintes perguntas: O que é o grupo? Onde se insere? É um grupo do século XXI? Qual o objetivo de fazer uma análise acerca de seu próprio grupo? Dentre todas as questões a que mais me inquietou foi a nossa relação com o século XXI, com os dias atuais, pois ao mesmo tempo em que questionamos a sociedade e o mundo musical atual, boa parte das nossas referências e até algumas de nossas ferramentas se remetem ao século XX. Ao apresentar o seminário comecei falando um pouco sobre o ambiente no qual estamos inseridos, respondendo a uma das questões do professor Ledoux, e para nos apresentar fiz ouvir duas faixas: Música das Árvores e Improvisação Livre II. As duas abrangem um escopo já razoável de ações e de referências, sendo que principalmente a segunda é uma mistura de referências e ideias (conforme apresentado no item Improvisação Livre II, p.79). Comentei sobre nosso processo de criação coletiva, no qual todos tem total liberdade para opinar e agir em qualquer etapa, sendo que não haviam claras distinções entre intérpretes e compositores. Tive a sensação de causar boa impressão e certa estranheza ao mesmo tempo, uma vez que a produção do grupo foi bem recebida tanto pelos alunos quanto pelo professor, porém as sonoridades e principalmente o ambiente criativo não eram muito familiares àqueles. A maioria da classe era formada por instrumentistas que em sua formação praticamente não haviam tomado contato com a música experimental, e muito menos com a

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ideia de aproximação entre compositor e intérprete e criação coletiva. Foi justamente sobre este último ponto que o professor Ledoux se disse entusiasmado em relação ao grupo, pois identificava que os processos criativos colaborativos como ocorrem no Obra Aberta são na sua opinião um dos caminhos mais interessantes e férteis para a criação no século XXI. Para mim foi maravilhoso ouvir do professor tal elogio, ele que havia questionado sobre a relação do grupo com a atualidade, me assegurou com suas próprias palavras que existem elementos contemporâneos que chamam a atenção no nosso trabalho. Desde que cheguei nas aulas de improvisação comentei com o professor Markeas que fazia parte de um grupo no qual um dos referenciais mais fortes era a Improvisação Generativa, com a qual já havia tomado contato a partir das aulas dele mesmo em 2008 e 2009 na UNICAMP. O professor logo se interessou por ouvir o grupo, e em um dia no meio do semestre aproveitamos que estávamos somente os dois na sala e ouvimos juntos quatro músicas gravadas pelo grupo. Markeas elogiou bastante as sonoridades e a sintonia do grupo, reconhecendo que tocávamos muito atentos uns aos outros. Porém nos fez uma crítica bastante importante: faltava um certo radicalismo nas ideias, um foco maior, além de alguns momentos de descontrole e intempestividade espontânea. Para ele tudo era desenvolvido gradualmente e de maneira muito controlada, e para nós faltava um pouco da ‘folia da improvisação’. Nas improvisações livres realizadas em sala o prof. Markeas pedia sempre por uma espontaneidade que deixasse aflorar elementos inerentes ao próprio ato de improvisar. Afirmando a espontaneidade como algo importante para a prática, em uma discussão durante a aula o professor comentou: “na improvisação pensamos antes e depois, e tocamos sem pensar” (MARKEAS, 2014). Dentre os elementos inerentes à própria improvisação Markeas destacou a folia improvisativa, uma atitude intuitiva associada à expansividade e até a uma certa insensatez (no sentido de ser um pouco desmedido, não pensado), um tipo de “excesso de energia” que acarreta em ações agudas, radicais. Em muitas improvisações no CNSMDP eram instaurados momentos de folia entre os músicos, onde a interação se dava de forma expansiva, normalmente com perguntas e respostas bastante rápidas e contundentes. Ao voltar do Conservatório trouxe na bagagem alguns jogos e exercícios que imaginei serem de grande valia para o grupo, pois lidavam com questões que no meu entender ainda poderíamos desenvolver, e algumas que nem sequer tínhamos tomado conhecimento. Os exercícios trabalhados foram os seguintes:

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Tocar a nota do outro o Este é um exercício de preparação para improvisação e trabalha especificamente com o reconhecimento de alturas. Os músicos devem estar dispostos em roda e deve-se escolher previamente em qual sentido o jogo irá rodar. Para essa explicação suponhamos que seja no sentido horário. Após uma respiração conjunta cada músico ataca, simultaneamente aos demais, uma única nota escolhida, sem que um saiba previamente a nota do outro. Enquanto seguram a nota por alguns segundos, cada músico atenta para a nota do colega à direita: o músico 2 deve atentar para a nota tocada pelo músico 1, o músico 3 para a nota do músico 2, o músico 4 para a nota do músico 3 e assim por diante (v. Figura 6). Depois de um curto silêncio os músicos novamente respiram juntos e, seguindo a rotação em sentido horário, o músico 2 deve agora tocar a nota que o músico 1 havia tocado na rodada anterior, o músico 3 a nota do músico 2, e assim sucessivamente. Cria-se assim um acorde que vai passeando pelos vários instrumentos, mudando de cor a cada rodada, com suas notas constituintes passeando por entre os músicos no sentido horário.

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2

5

3 4

Figura 6: Diagrama do exercício Tocar a nota do outro Fonte: Figura construída pelo autor

Este é um exercício que lida com a escuta de intervalos, sendo um bom aquecimento para os ouvidos no campo das alturas, nos ajudando em momentos nos quais queremos rapidamente e com precisão tocar exatamente a mesma nota dos outros.



Mixagem o Neste exercício propõe-se a construção de sons mixados/montados por mais de um instrumento, tendo como referência a noção de mixagem e

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montagem vinda da música eletrônica. Os músicos devem construir conjuntamente um som articulando seus gestos, começando com um músico e passando pelos outros. Pensando na ideia de envelope sonoro temos um/alguns músicos que compõem o ataque do som, outros se responsabilizam pela sustentação e outros pelo seu fim. Em diversos outros jogos a ideia de mixagem pode estar presente, funcionando como uma ferramenta para a construção de sons complexos e não habituais. Não foi muito fácil entender e realizar o exercício de mixagem no começo, mas aos poucos conseguimos interpretá-lo e realiza-lo à nossa maneira. Começamos pensando em gestos como ondas, ou ataque e ressonância, ou crescendos que executávamos a mais de duas mãos. Depois imaginamos o som em seu envelope, e assim passamos a agir tentando esculpir tal envelope nos seus momentos de ataque, sustentação e decaimento. Criávamos muitas vezes sons onde um músico executava o ataque, outros dois prolongavam e um terceiro o terminava, por exemplo. Para tal era necessária uma atenção muito grande e uma resposta bastante rápida. Este exercício gerou sons bastante diferentes daqueles que tínhamos anteriormente na nossa palheta.



Forma concerto o Na forma concerto um dos instrumentistas é o solista e os outros são a orquestra. O solista deve tomar as iniciativas, dar as entradas e instaurar os climas, e a orquestra deve segui-lo atentando para seus sons e gestos e cuidando para nunca encobri-lo. Podem haver momentos de cadência onde o solista toca completamente sozinho, ou momentos onde a orquestra continua tocando mesmo sem o solista, sustentando o acompanhamento para que este possa entrar quando lhe convier. Apesar de se reportar aos concertos clássicos e românticos com relação à estrutura, o material musical utilizado não precisa necessariamente se reportar a tais períodos.

Apesar de algumas tentativas anteriores, foi somente no segundo semestre de 2014 que a possibilidade de usar gestos coordenando sons foi bastante explorada. Uma particularidade deste jogo é que não existem gestos preestabelecidos, e portanto o resultado final depende muito de um tipo de escuta corporal, que possibilita a leitura dos gestos físicos

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e sua reinterpretação na forma de som. Este tipo de escuta, ou percepção, também se faz necessário em jogos como RVC e Gramani joga badminton com as andorinhas. Um outro aspecto bastante interessante e bem vindo suscitado por este exercício é a formação de solista e grupo acompanhador, algo que praticamente não fazíamos até então. Conseguíamos esporadicamente apenas criar subgrupos, pois em nosso primeiro ano de atividades o mais comum era que todos tocassem juntos.



Morton Feldman intempestivo o Este é um exercício transformado a partir de proposições do Prof. Markeas, que por sua vez se inspirou na obra do compositor americano Morton Feldman. Markeas nos propôs uma improvisação onde tínhamos grandes trechos de silêncio recortados por curtos momentos de som, algo identificado na obra Piano & Orchestra de Feldman. Preocupado com a questão do radicalismo nas ideias, propus que fizéssemos a mesma improvisação, só que os blocos de som deveriam todos ser construídos a partir de gestos intempestivos, curtos e contundentes. Nesta tentativa de instaurar mais momentos de mudanças radicais e um pouco de

folia, proibimos o tempo de espera para agir. Assim, quando alguém começava todos imediatamente entravam, sem pensar. Além dos exercícios, através da disciplina de improvisação gerativa tomei contato também com um novo referencial teórico no que diz respeito à escuta, que de certa forma complementa a escuta reduzida de Schaeffer: as escutas micro, meso e macrofônicas, categorias inventadas pelo fundador da disciplina de Improvisação Generativa, Alain Savouret.

8.1 Alain Savouret e as escutas micro, meso e macrofônica Alain Savouret em seu livro Introduction à un solfège de l’audible (2010) traça as linhas fundamentais do trabalho de improvisação generativa, iniciado por ele em 1993 no CNSMDP, afirmando que o curso é um espaço de descoberta e de experimentação, onde a improvisação está relacionada às inovações da música no século XX tanto no campo da música em suportes convencionais como em suportes eletrônicos (SAVOURET, 2010). Porém, para que seja possível uma renovação dos modos de pensar e fazer música, Savouret coloca como condição a “regeneração do auscultar (entendre), que corresponde à aquisição de

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um saber-entender que os saberes do solfejo usual não podem oferecer” (idem, p.1). Em seu capítulo sobre a teoria do solfejo, o compositor apresenta a hipótese da tripla escuta (triple écoute), dividida em três planos: microfônico, mesofônico e macrofônico, cada qual com um funcionamento específico, respondendo e se ajustando à medida em que são solicitados pela matéria sonora. A tripla escuta é uma ferramenta que tem por objetivo facilitar e refinar a análise a partir da escuta. Segundo Savouret, “refinar os planos de escuta em postura analítica é, a longo prazo, refinar os comportamentos posteriores ao fazer e escutar musical em tempo real”19 (idem, p.99). Importante esclarecer que esta teoria foi formulada para uma escuta analítica, fora do tempo de ação (hors-temps).



A escuta microfônica (um tipo de auscultar instantâneo): É a escuta da matéria, da substância, de maneira muito próxima como se estivéssemos dando um zoom. Há a ideia de congelar a substância, de fazê-la permanente, de modo que tempo e espaço se tornem negligenciáveis e a memória usada seja a instantânea. É a escuta mais recente na história da percepção e está relacionada ao nascimento e desenvolvimento das técnicas de captação do som durante o século XX.



A escuta mesofônica (auscultar dinâmico): A escuta mesofônica é solicitada no momento em que a matéria sonora se desloca no espaço e no tempo. Ela vai em direção ao que Savouret chama de ‘formasenvelopes-temporais’, articulando a forma (a aparência de uma determinada configuração), e o envelope (que contém a substância), com o tempo, uma vez que forma e envelope estão em movimento. Ela cria a história das formas-envelopestemporais, com começo meio e fim, e quando atenta para um contexto temporal mais longo ela as relaciona se utilizando da memória de trabalho. É a nossa escuta mais habitual.



A escuta macrofônica (compreender) É a atitude de escuta na qual entram em jogo aspectos culturais, suscitada pelas referências portadas pelos sons ou atribuídas a eles. O conhecimento e o reconhecimento são os pontos de apoio desta escuta, que se utiliza da memória episódica (de nossas experiências pessoais) e da memória semântica (de nossos

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Ao se referir ao “fazer e escutar em tempo real” o autor está se referindo à improvisação.

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conhecimentos e referências culturais). É uma escuta influenciada por toda experiência passada do ouvinte, sua bagagem cultural, seus conhecimentos e toda sorte de imagens e informações armazenadas em sua memória. Para cada uma dessas escutas Savouret cria um léxico provisório possibilitando uma incursão no mundo audível a partir desta ferramenta de análise. O autor propõe ainda alguns exercícios de improvisação a partir de cada escuta, exercitando os aspectos cruciais de cada plano.

9.

Improvisação livre 3 – Folia Ao final de um ensaio de outubro resolvemos gravar uma improvisação livre,

para a qual convidamos nosso amigo flautista Gabriel Rimoldi, um dos moradores da casa onde ensaiávamos. Estávamos diretamente influenciados pelas ideias dos exercícios que vínhamos fazendo, a maioria com a intenção de incitar a intempestividade e a folia. Sendo assim, mesmo sem falar a respeito das nossas ações antes de tocar, observam-se na performance diversos momentos com essas características, e por isso demos a esta improvisação o nome de Folia, disponível enquanto exemplo musical 7. Percebe-se nessa improvisação uma constante tensão, onde todos os músicos estão em estado de alerta, em prontidão, agindo muitas vezes no puro reflexo. As respostas são rápidas, não há tempo para pensar e formular uma ação. Os gestos são incisivos na maior parte do tempo. Observam-se diversas incursões de silêncio, sendo que nenhum instrumento se destaca por tocar incessantemente, todos esperam o momento de se colocar. Os cortes bruscos aparecem com frequência, não só balizando seções mas enquanto maneira de interagir, guiando o discurso em alguns trechos. Os instrumentos são bastante explorados pelos músicos em suas possibilidades sonoras, a partir de técnicas convencionais e estendidas, resultando em uma paleta sonora diversa. De maneira geral Folia se difere das Improvisações Livres I e II, apresentadas neste trabalho, por conta de sua agitação, tensão, prontidão e radicalismo nas ideias, justamente os pontos que estávamos trabalhando na época em função das indicações do Prof. Markeas. Enquanto artifícios comuns às três improvisações destacam-se a saturação e a dissolução como elementos de condução do discurso, e a convergência na mesma nota enquanto um marcador, contendo o movimento.

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Aspectos da percepção observados em Folia



O momento folia incorporado ao repertório compartilhado do grupo Os momentos de folia passaram a ser mais frequentes em nossas improvisações

livres, e a partir de sua recorrência foram se delineando e se configuraram como um comportamento global conhecido por todos, incorporado ao repertório compartilhado do grupo. O momento folia foi posteriormente utilizado no jogo Portais (v. item Portais (Os números e a Caverna), p.122).

10.

HINOX Em julho de 2014 recebemos a proposta do professor Mannis para criar em

parceria uma performance para o dia 7 de setembro, dia da proclamação da República Federativa do Brasil. O convite foi feito pelo Centro Cultural São Paulo ao professor e por ele estendido a nós, que prontamente o aceitamos. Já nos primeiros contatos Mannis nos deu algumas ideias e direções para o trabalho, e nos propôs o Hino Nacional Brasileiro (HNB) como material. Segue um dos primeiros e-mails: Proponho que o Grupo Obra Aberta faça a performance com improvisações a partir de uma base de elementos extraídos do Hino Nacional Brasileiro - HNB, no limite do identificável ou desfigurados, sob diversos aspectos: 1) Games sonoros a partir de células musicais e figurações rítmicas do HNB. 2) Jogos criativos a partir de Gestos musicais identificados no HNB; 3) Entonação interna (muda) do HNB simultânea por cada musico – desencadeando uma ação qualquer a cada vez que a entonação interna passar por um fragmento específico préestabelecido para cada um dos instrumentistas; 4) Entonação interna (muda) do HNB com execução simultânea de uma voz instrumental heterofônica; 5) Jogo com Mantras sonoros instrumentais pré-estabelecidos individualmente por cada instrumentista a partir de excertos não identificáveis do HNB; 6) A partir de palavras ou pequenas frases da letra do HNB, pronunciadas mentalmente em velocidade muito lenta ou muito rápida, moldar uma entonação gestual instrumental dando

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origem a elementos musicais que em seguida seriam desenvolvidos numa sistemática de jogo musical interativo. (MANNIS, 2014b) O processo de criação da performance se deu em aproximadamente um mês de trabalho intenso e se norteou pelas propostas acima citadas. Nas primeiras três semanas o grupo criou diferentes jogos partindo do HNB, explorando ideias e ferramentas diversas, a maior parte delas usadas em nossas produções anteriores. Uma semana antes do concerto fizemos encontros intensivos com o Prof. Mannis, que nos ajudou a lapidar os jogos e organizar a performance no tempo, pensando em estratégias para que a mesma pudesse manter uma coerência formal. Iniciamos com o estudo e análise do hino, para que tivéssemos muito claro seus aspectos básicos (melodia, harmonia e letra), e a partir desta familiaridade atentássemos também para algumas particularidades. Fizemos diversas sessões onde todos tocavam e cantavam o hino em uníssono, depois em arranjos onde alguns instrumentos faziam melodia, outros faziam harmonias e linhas de baixo, e alguns músicos cantavam. As primeiras sessões de improvisação que sucederam ao estudo do HNB foram realizadas a partir de algumas células marcantes: o grupeto; ritmos pontuados; e fragmentos da melodia, principalmente do começo. Nos preocupamos desde o início em não sermos literais demais em relação ao HNB, queríamos estar no limite do reconhecível e por isso tomávamos cuidado para não citar com frequência fragmentos muito reconhecíveis. Rapidamente percebemos que ao usar os grupetos e os ritmos pontuados conseguíamos levar a improvisação para longe do HNB, mesmo que partindo de citações literais, o mesmo ocorrendo com alguns fragmentos melódicos após serem desfigurados. Além das improvisações instrumentais fizemos também improvisações vocais com o texto do Hino. Em um primeiro momento as improvisações eram totalmente livres e compreendiam leituras em diversas velocidades, fragmentos melódicos, fragmentos de palavras e sílabas, reconstrução do texto a partir da permuta de frases e palavras etc. Nestas improvisações percebemos que algumas frases e palavras específicas nos remetem diretamente ao HNB, porém ao trocar a ordem de algumas palavras e usar somente algumas sílabas conseguíamos chegar ao ponto ideal do limite do reconhecível. Para este trabalho com texto tínhamos como referências a Poesia Concreta dos brasileiros Haroldo e Augusto de Campos (CAMPOS, 2011) e Décio Pignatari, em especial o livro Galáxias de Haroldo de Campos (CAMPOS, 2004) e a obra Beba Coca Cola de Gilberto Mendes sobre o texto de Décio Pignatari, por conta do jogo de sonoridades das palavras, e das continuidades e

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descontinuidades do texto. Também enquanto referência no que diz respeito ao modo de ler e à exploração vocal a partir do texto, se destaca a obra Récitations do compositor grego George Aperghis (APERGHIS, 2000). Criamos também uma seção com trechos do HNB manipulados e difundidos eletronicamente, com os quais nos propusemos a dialogar com nossos instrumentos. Para esta seção Fernando Sagawa criou e propôs um patch PD que difunde amostras de áudio preestabelecidas em um espaço de tempo e ordem aleatórios. As amostras escolhidas foram trechos curtos, de até 7 segundos, alguns facilmente reconhecíveis compreendendo cadências, fragmentos de frases instrumentais e melodia com texto e alguns ataques isolados. Todas as amostras foram manipuladas no software Ableton G-Live a partir de operações de mudança da velocidade de leitura, distorções e simulações de reverberação. Cada uma é disparada separadamente, sendo que o tempo de disparo pode ser de 3 a 20 segundos após o término da leitura da amostra anterior. Tivemos dificuldades nas primeiras vezes ao tentar improvisar livremente junto com o patch, principalmente por conta da imprevisibilidade causada pelo disparo aleatório de amostras. Não conseguíamos estabelecer um fluxo, por mais que tentássemos desenvolver algo a partir de uma amostra existia uma grande chance da próxima apontar para outras direções. Pensamos então em usar as amostras de forma pontual, como um gatilho para o começo e/ou fim de ações curtas, e estabelecemos alguns tipos de resposta: (1) Intempestividade: na época estávamos trabalhando, através de exercícios acima citados, a ideia de intempestividade, que foi a primeira resposta estabelecida para o jogo. Sendo assim, quando a amostra era tocada improvisávamos a partir de gestos intempestivos, e quando a mesma tocava novamente parávamos bruscamente o que estávamos fazendo. (2) Hesitar: para contrapor o intempestivo resgatamos uma ideia que há tempos não usávamos: o hesitar, vindo dos cinco modos de interação de Globokar. Era a maneira de interagir que menos usamos no decorrer do nosso trabalho por não

conseguirmos

entendê-la

e

empregá-la

satisfatoriamente

nas

improvisações, por mais que racionalmente estivesse clara sua definição. Ao associar o hesitar com o intempestivo enquanto um par em oposição conseguimos finalmente dar a nossa leitura para o primeiro, mais de um ano depois de tomarmos contato com o texto de Globokar. Passamos então a alternar as respostas entre intempestivo e hesitar, sempre tendo as amostras enquanto interruptor.

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(3) Mixagem: transpusemos a ideia do exercício de mixagem, o qual vínhamos realizando na época, para a seção com eletrônica, tentando construir um único objeto tendo como ponto partida as amostras difundidas pelo computador. Estas eram, portanto, o gesto inicial de um som que seria complementado pelos instrumentos. (2) Imitação: a partir da figura da amostra. Normalmente adotávamos um tom caricatural ao imitar, como que zombando da máquina. Após ter elencado as possibilidades de resposta testamos também improvisar deixando a cada um a escolha de qual usar, sem combinar previamente nem mesmo quando atacar ou silenciar. Com relação à parte eletrônica fizemos duas alterações importantes: inserimos algumas amostras de maior duração e também mais reconhecíveis e claras, uma vez que no começo todas eram bastante curtas e compreendiam principalmente ataques muito distorcidos. Também mudamos o controle do tempo de disparo criando três categorias de densidade: uma mais densa com 5 segundos como tempo máximo de espera entre um disparo e outro; outra com 13 segundos; e outra com 20 segundos, dando um pouco mais de controle ao performer que operava o computador. Depois de duas semanas tínhamos levantado três possibilidades: improvisação a partir de algumas figuras marcantes; improvisação com o texto; improvisação a partir de amostras eletrônicas, e tínhamos somente mais dois ensaios antes de mostrar ao Prof. Mannis o que havíamos feito. Sucedemos então ao aprimoramento e sistematização de algumas ideias em cada uma das possibilidades. Na improvisação instrumental a partir de figuras marcantes resolvemos partir de um jogo que nos acompanhou durante todo o percurso: o Duplas e Trios. Porém no ano de 2014 o jogo foi bastante alterado após um encontro do grupo com o professor Mannis no primeiro semestre, onde foi trabalhada a improvisação a partir da ideia de movimento virtual do som. Tal ideia é bastante comentada e trabalhada pelo professor em suas aulas de composição, das quais participei por vários anos enquanto aluno e PED.

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10.1 Mannis e o ensino de improvisação na UNICAMP Em suas classes de composição na UNICAMP, o compositor e professor José Augusto Mannis desenvolve um trabalho de improvisação com seus alunos, pautado pelas ideias de gesto sonoro, trajetória, carga energética e movimento virtual do som. É um trabalho que proporciona aos alunos uma experiência heurística de criação enquanto “método de investigação e criação objetivando a descoberta e o achado através do fazer pensando, do pensar com gestos e ações expressivas; pensar a música com o fazer musical” (MANNIS, 2012, p.236). Para Mannis a improvisação se dá a partir dos gestos sonoros, que são aqui entendidos como a intersecção entre as ações físicas que produzem sons, e as imagens mentais que construímos ao nos apropriarmos destes sons (DELALANDE, 1988). Os gestos sonoros descrevem uma trajetória no tempo e no espaço e tem uma representação mental de caráter plástico. As imagens construídas a partir da trajetória dos sons recebem o nome de movimento virtual dos sons. Este som em movimento é dotado de uma carga energética, cuja alterações estão sujeitas à sua inércia e às energias adicionais que a impulsionam. Tendo por base estas ideias, a improvisação é um jogo de construção plástica20 onde o movimento virtual do som deve ser percebido e desenhado por todos, mantendo sempre sua carga energética até que a mesma se dissipe, seja interrompida ou redirecionada. Para auxiliar os improvisadores a imaginar este jogo, Mannis faz uso da imagem de uma bexiga que vai percorrendo seu caminho entre seus improvisadores, que nunca a deixam cair até que resolvam terminar o jogo. Os movimentos possíveis para o som pensado enquanto objeto descrevendo um movimento virtual são vários: pode ser arremessado com força para qualquer um dos lados, pode ser levantado e suspendido no ar por um tempo, pode cair e ricochetear em alguém, pode correr rapidamente entre todos ou deter-se por mais tempo em um determinado ponto etc. A fisicalidade é um elemento indispensável para este jogo, pois a energia necessária para produzir os sons vem do corpo, que deve estar sempre atento e em prontidão para recebê-la de volta. Muitas vezes as ideias de movimento virtual do som são representadas pelo professor através de gestos corporais, imitados pelos alunos antes que os mesmos toquem seus instrumentos ou corpos sonoros, ‘sonificando’ o movimento imaginário.

20 A ideia de uma composição plástica dos sons encontra paralelos na pintura abstrata, onde a composição pictórica é construída a partir dos elementos inerentes à mesma: pontos, linhas, cores e formas.

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10.2. I-son: François Bayle e a releitura de Rodolfo Caesar Imaginar um movimento virtual do som, como descrito acima, aponta para a percepção do som enquanto imagem, ideia proposta por François Bayle e formulada no conceito de Imagem-de-som (ou I-son). Bayle é um dos mais importantes compositores de música eletroacústica, reconhecido por sua vasta obra musical e também por seus escritos teóricos. Nestes se destacam duas ideias: a nomeação do gênero acusmático e de uma forma escuta aplicável a este, a imagem-de-som. Assim como Pierre Schaeffer, seu mestre, ao criar ferramentas que se complementam e se adequam à uma nova poética musical, como na formulação dos conceitos de objeto sonoro e escuta reduzida, Bayle formula o conceito de música acusmática e o associa a uma nova ferramenta de escuta aproximando os sentidos da audição e da visão. O circuito eletroacústico, a partir de uma matéria real produz matérias ‘transformadas’: as imagens. Nós as escutamos por elas mesmas, sem as seguranças da vista. Sua única coerência: aquela de suas próprias morfologias; em qualquer contexto: sua própria retórica de imagem. Esta é a situação acusmática.21 (BAYLE, 1993, p. 80)

Segundo Denise Garcia, a escuta acusmática de Bayle amplia a escuta reduzida de Schaeffer, não se atendo somente à qualidade do sonoro, mas se ocupando das “formas sonoras, das ocorrências, dos acidentes, das imagens que elas suscitam e das viagens que essas imagens constroem” (GARCIA, 1998, p. 40). Estas imagens estão compreendidas em um vocabulário de imagens constituído de formas selecionadas por sua eficácia funcional, que surgem enquanto resíduo de experiências senso-motoras. (BAYLE, p. 81) Bayle trata o I-son enquanto um modelo reduzido, tornando-se um objeto manipulável e maleável, permitindo transformações (idem, p. 85), que podem ser de três tipos: •

Anamorfose: transformações como torsões, deformações e inversão;



Metamorfose: a criação de uma terceira imagem híbrida a partir de outras duas;



Morfogênese: a síntese de imagens a partir da análise de uma imagem primeira.

21 Nossa tradução do francês. No original lê-se: La chaîne életro-acoustique, à partir d’une matière réelle produit des « transformées » : des images. On les écoute pour elles-mêmes, sans le secours de la vue. Leur unique cohérence : celle de leurs propre morphologies ; pour tout contexte : leur propre rhétorique d’image. C’est la situation acousmatique. (BAYLE, 1993, p. 80)

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O compositor observa que a emergência das imagens-de-som pode ocorrer somente em um ambiente acusmático, onde o suporte eletroacústico permite que se descartem os aspectos indiciais e simbólicos. Bayle coloca como condição à escuta de imagens-de-som a dupla disjunção do som, “uma causada pela substituição da fonte original pelo suporte [eletroacústico] e outra entre o som e seu provocador.” (GARCIA, 1998, p. 45) Assim, a imagem se estabelecerá a partir da noção central de dupla disjunção: aquela fisicamente produzida pelo agenciamento de outras causas, segundo uma lei de simulação - e aquela psicológica que distingue o índice de um simulacro, uma interpretação, um signo. (Bayle, apud GARCIA,1998, p. 45)

Rodolfo Caesar, em seu artigo O Som como Imagem (CAESAR, 2013), propõe um desdobramento do conceito de I-son, ampliando seu escopo a sons que fogem à música acusmática, ou seja, que não são disjuntos de seus indícios nem de sua fonte. O i-son proposto por François Bayle implica nessa dependência de um suporte (ou dispositivo da ordem das arts-relais). O resgate que proponho, não. Gostaria apenas de restituir ao som sua imagética, independentemente de sua mediação por registro em suporte ou por dispositivo de amplificação extra-corporal. O som é imagem mesmo quando o único suporte disponível é o cérebro, e quando se transmite de boca à orelha, ou das coisas soantes para a orelha. (CAESAR, 2013, p. 6)

A ideia de trabalhar o movimento virtual do som, de desenha-lo em conjunto, foi aplicada por Mannis com o grupo, que a incorporou no jogo de Duplas e Trios, o transformando em Solos e Duplas (exemplo musical 8). Neste jogo a música começa com um integrante, que constrói seu som, o molda, e quando achar que deve o passa a outro integrante. A passagem de um para o outro é como se fosse a passagem da bexiga, que pode descrever diversos tipos de movimento. No grupo usamos bastante os arremessos com mais ou menos peso e em várias velocidades; levantadas e suspensões no ar; passagem gradual como se as mãos que dão tocassem as mãos que recebem; e também enganar para quem passar. O segundo integrante recebe este som com sua carga energética e seu desenho no espaço e o esculpe a sua maneira, podendo alterar seu peso, sua velocidade, sua cor, densidade etc. Uma vez satisfeito com a sua parte do desenho, passa à um terceiro. Assim a música é como se fosse um único objeto descrevendo um movimento plástico no ar. E quando começam as duplas os dois podem esculpir o mesmo objeto, ou ainda há a possibilidade de jogar mais um objeto no ar. O jogo vai se encaminhando para uma alta densidade quando mais de dois

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integrantes entram, e a ideia de movimento virtual, mais clara com um ou dois músicos tocando, vai se tornando cada vez mais difusa. No HINOX usamos o Solos e Duplas na parte da improvisação instrumental, porém partindo das figuras que identificamos e escolhemos no HNB. Para as improvisações vocais tivemos a ideia de cantar e tocar o HNB todos no mesmo ritmo e respeitando a sucessão das notas e texto originais, porém definindo alguns trechos específicos nos quais cantamos, outros nos quais silenciamos, e ainda outros nos quais tocamos a melodia com os instrumentos. Para tal criamos uma partitura coletiva, comum à todos, ressaltando algumas sílabas, palavras e frases instrumentais que gostávamos, e tentando equilibrar os silêncios com as partes entoadas e instrumentais. Para conseguirmos seguir a parte e entrar nos tempos certos era necessário que estivéssemos entoando mentalmente o Hino o tempo inteiro. Depois de testar a partitura comum procedemos à criação de partituras individuais, onde cada integrante poderia fazer as suas escolhas, atentando para as partituras dos outros a fim de completar palavras, sílabas, reforçar algumas escolhas dos colegas ou dar luz para trechos não contemplados, e deixar alguns silêncios em comum. A execução com as partituras individuais criava um tipo de heterofonia, onde cada um tinha a sua variação em torno da referência comum, o HNB, que integralmente só podia ser escutada na mente de cada músico. No ensaio seguinte pensamos também em diferentes tipos de leitura além da entoação no mesmo ritmo. Elencamos enquanto possibilidades: leitura do texto em diversas velocidades começando em pontos diferentes; leitura sem inflexão na voz, o mais reto possível; leitura corrida pensando no som das palavras e na sua variação a partir de parâmetros musicais (alturas, durações, dinâmica, timbre); e a improvisação a partir de sílabas. Neste mesmo dia Henrique Cantalogo propôs uma seção de improvisação com apitos, flautas e pequenas percussões brasileiras principalmente indígenas. Sua ideia era evocar um Brasil primitivo, conectado com a terra e com a natureza, anterior ao próprio descobrimento, existindo ainda escondido em alguns cantos do país. A seção consistia em uma espécie de ritual, em tempo dilatado, com poucos gestos e muito silêncio.

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Figura 7: Partitura 1: Comum de HINOX, trecho com texto Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

Foi no próximo ensaio que apresentamos nossas ideias ao professor Mannis, começando pela seção com texto. Fizemos a leitura conjunta da partitura comum, e das partituras individuais. Mannis achou a partitura comum literal demais, com muitos trechos

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cantados e tocados tal qual o HNB convencional, e sugeriu que colocássemos mais silêncios, que diminuíssemos as frases, que pensássemos mais em palavras, partes de palavras e em sílabas. Refizemos a partitura, mas mesmo um pouco mais desfigurada ainda estava bastante explícita, pois ainda entoávamos muitos trechos do HNB em sua versão original. Então o professor propôs que guardássemos esta leitura mais explícita como final do espetáculo, uma vez que é a que chega mais perto do original, que deixa o HNB claro o suficiente para as pessoas poderem entoar mentalmente junto conosco. Mannis trabalhou conosco as diferentes formas de leituras para que deixássemos somente pistas, pequenos traços do HNB, a fim de criar uma gradação do mais abstrato para o mais literal, para a última leitura da partitura comum. Ainda neste ensaio tivemos a ideia de criar gestos para indicar os tipos de leitura, para controlar a velocidade das leituras, para criar subgrupos, para controlar a dinâmica e para começar e parar. Os gestos foram baseados na plataforma Soundpainting, com a qual tive algum contato no Conservatório de Paris através do Prof. Vincent Le Quang, que a utilizava nas aulas de Improvisação Generativa. Desta forma podíamos coordenar as leituras em tempo real sem precisar combinar previamente, sendo possível também desvincular os integrantes uns dos outros, e fazer com que leituras diferentes ocorressem ao mesmo tempo com integrantes diferentes. Tal ação nos permitiu uma maior precisão do resultado textural, uma vez que podíamos escolher o como ler, quantos leem, qual velocidade e qual dinâmica. Esta ferramenta nos permitia a composição em tempo real no nível da macro forma, sem que fosse necessário estabelecer previamente a sucessão das leituras. Porém esta liberdade era dada somente a quem controlava os gestos, não estava aberta a todos. Foi uma escolha em favor da precisão, para que todos pudessem seguir uma só indicação. As figuras a seguir demonstram o gestual definido pelo grupo.

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Figura 8: Indicações de execução - gestos - HINOX Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

No dia seguinte, em um segundo ensaio com Mannis, apresentamos a ele uma primeira ideia de espetáculo completo, articulando as 4 seções: (1) Brasil Primitivo, (2) Solos

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e Duplas a partir de materiais do HNB, (3) Eletrônica e (4) Texto. Nos encontramos antes para pensar em como colocar juntas as ideias que tínhamos levantado, e em um primeiro momento definimos os momentos formais de maneira estrita, fechada, pensando numa sucessão que mantivesse o interesse do espetáculo. Estabelecemos que o início seria o Brasil Primitivo, prosseguindo com Solos e Duplas, Eletrônica, e por último a seção com Texto. Mas ainda nos sentíamos um tanto engessados, tínhamos a impressão de que esta sucessão poderia funcionar como uma espinha dorsal, mas que no meio poderiam ocorrer voltas e mesclas de seções. Decidimos então criar gestos também para indicar as seções e algumas possibilidades de jogo dentro de cada uma, como já tínhamos feito na seção com o texto. Desta maneira as voltas e mesclas poderiam ocorrer de maneira precisa, nos momentos em que nossa escuta clamasse. Para a apresentação do CCSP o grupo achou melhor que um só assumisse a responsabilidade pelos gestos, e o escolhido fui eu, por apresentar um pouco mais de familiaridade com os mesmos. Portanto, era bastante importante que eu estivesse o tempo inteiro escutando, e por isso passei a maior parte do espetáculo sem tocar, ouvindo e gesticulando. Asseguramos também um gesto para tocar livremente, sem nenhuma restrição. Quando Mannis chegou ao ensaio tocamos pela primeira vez a performance do começo ao fim, articulando todas as seções. O compositor elogiou as seções separadamente, enquanto construção plástica, porém identificou alguns problemas no aspecto formal. Na sua avaliação a peça por vezes perdia o interesse por não ter pontos claros de articulação, o que a deixava um tanto amorfa. Sendo assim sugeriu a criação de alguns pontos de referência, pilares para balizar a escuta, colocando um ponto final naquilo que estava acontecendo e preparando os ouvidos para o que viria. Os pilares tinham que ser fortes o suficiente para de fato marcar (criar uma estria) a macro forma, e deveriam também ser facilmente identificáveis e distinguíveis entre eles. Não eram pensados enquanto seções, mas enquanto eventos com uma “cara” específica, que não poderiam ser desenvolvidos até a perda de sua identidade. Rapidamente o compositor estabeleceu um primeiro pilar: a corda bamba, oriundo da improvisação com os grupetos. Sem falar nada pediu para que ficássemos de pé em uma roda fechada, com um pé na frente do outro. Depois nos pediu para imaginar que estávamos todos na mesma corda bamba, e que qualquer instabilidade para um lado era compensada para o outro, se alguém ia para frente os outros tentavam se equilibrar para trás, se um caia um pouco o outro subia um pouco... Fizemos este jogo primeiramente com o corpo, como se fossemos um só corpo tentando se equilibrar com um pé na frente e outro atrás, respondendo aos desequilíbrios da forma mais orgânica possível. Depois Mannis nos

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pediu para testarmos o mesmo jogo com nossos instrumentos utilizando os grupetos característicos do HNB. O Pilar 1: Corda Bamba estava pronto, e para ele criamos um gesto.

Figura 9: Pilar 1: Corda Bamba Fonte: Grupo Obra Aberta

O segundo pilar escolhido foi o mantra, de tempo extremamente dilatado, poucas ações, dinâmica baixa, contemplativo. Este momento mantra começou a aparecer nas nossas improvisações após o contato com as peças de música intuitiva de Stockhausen, as quais normalmente consistiam em espécies de mantras. Criou-se assim o Pilar 2: Mantra

Figura 10: Pilar 2: Mantra Fonte: Grupo Obra Aberta

O terceiro pilar escolhido foi o momento groove, que nos acompanha em praticamente todas as nossas improvisações livres, ainda que de maneira moderada, e surgiu também nos ensaios onde improvisamos a partir de figuras do HNB. É um momento enérgico, de caráter bastante pulsante, tempo estriado, inserido em contexto harmônico tonal/modal.

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Figura 11: Pilar 3: Groove Fonte: Grupo Obra Aberta

Neste encontro trabalhamos também a seção com eletrônica. Mannis queria que algumas vezes os instrumentos engolissem as amostras, e em outras as amostras engolissem os instrumentos. Para conseguir colocar a eletrônica em primeiro plano implementamos um botão de disparo imediato de amostra, permitindo disparar várias delas seguidas umas das outras, na tentativa de ocupar todo o espaço cobrindo os instrumentos. Também na seção eletrônica decidimos acrescentar uma possibilidade de jogo bastante cênico, com a qual já brincávamos há tempos no grupo. Trata-se do mute, que consiste em simular que estamos tocando porém sem emitir sons, ou seja, realizando a ação física de tocar um instrumento ou cantar, mas não deixando soar. Assim, uma vez que a amostra era ouvida, parávamos de fazer som mas continuávamos com os gestos, e na próxima amostra voltávamos com os sons. Uma das coisas mais interessantes neste jogo era a variação “sonora” na parte somente gestual. Enquanto só estávamos gesticulando íamos mudando de forma perceptível nossos gestos instrumentais, e assim todos tinham que imaginar também o som mudando a partir disto. Nestes casos, quando o som voltava, era bastante diferente da última vez que apareceu, sendo que o caminho entre uma e outra entradas era desenhado pelos gestos físicos.

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Figura 12: Exemplo de Partitura 2: Individual de HINOX Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

No nosso último ensaio começamos por ajustar pequenos detalhes na parte com Texto, para a qual Mannis deu a ideia de duas implementações: (1) criamos para cada músico um marcador, que consiste em um ponto específico do texto que aciona algum som marcante destoando da leitura. Os sons eram diferentes para cada integrante: um usou a parte metálica da enxada, outros usaram apitos, outros usaram percussões. Assim, ao passar pelo ponto escolhido o músico deveria tocar o seu som destoante em fortíssimo. (2) Criamos uma entrada

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escalonada na última vez que falamos todos juntos a palavra Brasil. Assim o músico sentado mais a esquerda entoava “br”, o próximo entoava “ra”, o próximo “as”, depois “si” e por último “il”. Era um último Brasil construído por todos, assim como a performance em si. Estabelecemos ainda o fim da performance, que coincidia com o fim do HNB usual, só que nós terminaríamos um acorde antes, e deixaríamos que o acorde final fosse ouvido na cabeça de cada um. Com todos os detalhes ajustados sucedemos ao último ensaio geral, este que nos agradou bastante. Dois dias depois, 7 de setembro, apresentamos a performance completa no Centro Cultural São Paulo (exemplo musical 9 – excerto do final da performance, seção com Texto). Percebemos que o HINOX é, de certa forma uma síntese de elementos do nosso trabalho até então, que se articulam a partir de um material escolhido: o HNB. Neste espetáculo observamos então o emprego de modos de interação (Primeiros Ensaios); a ideia de movimento virtual do som (explicitado neste item, mas já presente no grupo desde o primeiro semestre de 2014); o uso dos exercícios de mixagem e a ideia folia (CNSM e Impro Livre III); os rituais sonoros (Rituais Sonoros e Música Intuitiva, Impro Livre II); o groove (Obra Aberta Versão Groove e improvisações livres); o trabalho com eletrônica (que estava no começo mas já presente no exemplo dos Solos e Duplas, e que seria melhor explorado mais para frente em realizações como a Mixagem Improvisada); alguns gestos cênicos (RVC, Semáforos e mais pra frente no Gramani joga badminton com as andorinhas e Portais); e o trabalho com texto (já presente na Abertura ABRAPEM)22. Mannis trabalhou conosco em dois momentos: dando as ideias iniciais, e lapidando as ideias que tinham sido desenvolvidas pelo grupo. O “start” do trabalho foram ideias já baseadas no seu conhecimento do grupo, sabendo que tipo de realizações poderíamos concretizar. O compositor agiu também lapidando nossa execução no nível do detalhe, e criando estratégias para que mantivéssemos o interesse da peça através de uma estrutura formal mais clara, equilibrando variedade e unidade. Para ele são duas as ideias fundamentais que guiaram a realização do HINOX: a antropofagia, e o jogo com a percepção da plateia e seu inconsciente coletivo. Mannis vê HINOX como uma performance antropofágica pela maneira como usamos o HNB, sendo este assimilado pela grande maioria da população brasileira, e por nós mastigado, decupado e representado a partir de nossas próprias percepções e idiossincrasias.

22 Abertura do concerto do grupo no II Congresso Nacional da Associação Brasileira de Performance Musical em Vitória – ES. Atividade não relatada neste trabalho.

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Oswald de Andrade falaria em deglutir o legado cultural europeu e digeri-lo sob a forma de uma arte tipicamente brasileira (ANDRADE, 1928), no nosso caso deglutimos um patrimônio brasileiro já assimilado para digeri-lo sob a forma de uma performance do século XXI. Com relação à percepção da plateia podemos dizer que a escuta de quem está tocando é o negativo de quem está ouvindo, é o branco no preto, preto no branco. Os músicos que executam a performance partem do HNB e deste destacam alguns fragmentos. Já a plateia se coloca em posição contrária, uma vez que percebe fragmentos e tenta aplicar um sentido e uma coerência que una todas as peças, ou seja, tenta reconstruir ou reinventar o HNB à sua maneira. Em sua página do facebook, ao divulgar o concerto, o compositor lança luz a tais ideias: 7 SETEMBRO - Meio Dia - CCSP - Sala Jardel Filho Convido-@s à uma apresentação incomum: ouvir o Hino Nacional Brasileiro mastigado, digerido, assimilado, ressignificado e ressintetizado, ou seja, numa versão oswaldianamente antropofágica na qual os participantes estarão mentalmente entoando-o enquanto delineiam uma performação conjunta. No insólito resultado, qualquer semelhança é mera citação. As impulsões, metáforas, associadas pelos músicos do Grupo Obra Aberta ao HNB e a seus excertos e fragmentos, refletem uma imagem adquirida pela representação desses elementos no inconsciente coletivo dos brasileiros, sendo, portando, uma expressão sincera de nossos sentimentos em relação a nossos valores culturais. O palco torna-se espelho da plateia e os sentidos inferidos por cada ouvinte serão produtos de suas próprias associações e dependerão do grau de percepção e da direção atribuída à atenção em cada escuta individual. A escuta é aberta. Abram as orelhas e aproveitem! Feliz 7set! HINOX proposta de leitura criativa e invenção sobre o HNB de Lucas URIARTE e J. A. MANNIS concebida e realizada pelo Grupo Obra Aberta (Campinas, SP). Neste domingo 7 de setembro às 12hs no Centro Cultural São Paulo23

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Publicação disponível em: https://www.facebook.com/jaugusto.mannis/posts/10202626482400167

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Aspectos da percepção observados em HINOX

• Groove e Um objeto incorporados ao repertório compartilhado do grupo Como mencionado acima, os momentos de groove foram ganhando espaço no grupo desde o seu começo, chegando inclusive a ser o elemento principal de algumas performances (v. item Obra Aberta Versão Groove, p.136). Em HINOX pela primeira vez usamos o groove como um comportamento global de uma seção, neste caso um pilar com a função de ajudar a balizar a forma. No jogo Portais este comportamento foi também utilizado (v. item Portais (Os números e a Caverna), p.122). A ideia de improvisar a partir de um único objeto e seu movimento virtual foi primeiramente aplicada ao jogo Solos e Duplas, adaptada ao HINOX, e posteriormente passou a fazer parte de nossas improvisações livres, vindo a se constituir como um comportamento global conhecido por todos. O jogo Gramani joga badminton com as andorinhas é também baseado na mesma ideia (v. item Gramani joga badminton com as andorinhas, p.115).

11.

Mixagem Improvisada No segundo semestre, Fernando, Theo e eu, cursamos a disciplina Improvisação,

Novas Tecnologias e a Estética da Sonoridade, ministrada pelo Prof. Dr. Rogério Costa no Programa de Pós Graduação da ECA – USP. Como trabalho final da disciplina o professor propôs que desenvolvêssemos em pequenos grupos um projeto envolvendo improvisação e novas tecnologias. Neste semestre Fernando estudava com afinco o software Pure Data, e propôs para o trabalho que utilizássemos uma plataforma de improvisação operando no software, na qual poderíamos manipular em tempo real amostras de áudio com algumas ferramentas de edição e mixagem. Resolvemos acatar a ideia e conceber uma performance na qual improvisamos com o instrumento musical digital (IMD) 24 criado por Fernando, alimentado por amostras também improvisadas e gravadas por nós anteriormente com nossos instrumentos acústicos.

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Conforme apresentado por WANDERLEY (2006), um instrumento digital (IMD) é o resultado do acoplamento entre uma interface ou controlador – responsável por transformar o gesto do performer em informação digital – e um sistema de geração sonora que, a partir dos comandos recebidos da interface, manipula sons preexistentes ou os sintetiza. No caso do IMD construído para a Mixagem Improvisada (IMDMI), a interface utilizada coincide com os controladores padrão do computador – mouse, teclado e tela. A geração sonora é processada por um computador (laptop) sendo que tanto o mapeamento funcional (mapping) como a parte visual da interface foram programados em Pure Data24 (PD).

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O interesse e desafio do projeto para nós estava justamente em descobrir como improvisar com o IMD - com o qual não tínhamos nenhuma familiaridade - já que não havíamos imaginado nenhuma forma específica de operá-lo no ambiente de improvisação. A realização da performance se dividiu em duas etapas, sendo que a primeira consistiu na geração dos materiais – amostras de áudio – a partir de instrumentos acústicos, e a segunda consistiu em improvisações com instrumentos digitais tendo como material musical as amostras gravadas na primeira etapa. Na etapa de criação das amostras foram feitas gravações de miniaturas de livre improvisação, executadas por dois ou mais músicos se utilizando de instrumentos acústicos. Nestas gravações, além de mim, Fernando e Theo, contamos também com a participação de Henrique. As miniaturas não seguiram nenhuma predeterminação em relação ao material musical, instrumentação ou modo de interação, no entanto seguiram duas restrições estruturais definidas arbitrariamente: duração limite de 90s; e gravação necessariamente anterior à segunda fase da performance. A primeira restrição tem a intenção de limitar a quantidade de materiais sonoros de cada amostra, visando uma maior coesão no resultado sonoro da segunda fase. A segunda restrição se alinha com a intenção de isolar a interação no meio acústico, característica da primeira parte, da interação no meio digital, característica da segunda. Tendo as amostras gravadas passamos para a segunda etapa: a improvisação com o IMD, este que funciona da seguinte maneira: O IMDMI (Instrumento Musical Digital para a Mixagem Improvisada) disponibiliza para cada performer uma única amostra de áudio que pode ser executada por dois leitores independentes, um deles associado ao canal esquerdo (ChL) e outro ao direito (ChR). As ferramentas de mixagem e edição de áudio estão disponíveis também de forma independente para cada leitor e se dividem em três categorias: edição, equalização e espacialização. Dentro das ferramentas de edição temos: (1) iniciar a reprodução da amostra (play) e interromper a reprodução (pause); (2) seleção e reprodução de uma parte menor da amostra; (3) reproduzir seguidas vezes uma parte selecionada (loop); (4) acrescentar curvas logarítmicas de amplitude (fade in/fade out) em partes selecionadas da amostra; (5) um controle de amplitude para o canal esquerdo e outro para o direito; e (6) velocidades de leitura da amostra. Na categoria de equalização temos um comb filter com uma frequência central variável (de 40Hz a 30kHz) e o controle de largura de banda (Q factor). Dentro das ferramentas de espacialização temos (1) uma simulação de reverb e (2) o controle

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panorâmico. No caso do reverb três parâmetros são alteráveis: razão entre sinal direto e reverberante (dry/wet), simulação do tamanho da sala e nível de absorção sonora pela superfície das paredes. Em relação ao controle panorâmico, a interface permite dois acoplamentos entre o par de leitores de áudio e os canais direito e esquerdo. Na primeira, um leitor ocupa o ChL e o outro o ChR de forma independente e simultânea. Na segunda, um dos leitores é desligado e o outro passa a ocupar os dois canais (ChL+ChR) em proporção variada (amplitude panning).

Figura 13: Visualização do Patch PD desenvolvido para a Mixagem Improvisada Fonte: print screen do Patch PD desenvolvido por Fernando Sagawa

Em nossas sessões improvisávamos em pares, cada um de nós manipulando um IMDMI idêntico e de funcionamento independente. Cada IMDMI, por sua vez, enviava um sinal estéreo para uma mesa de som, e a soma desses sinais era difundida em estéreo por monitores de áudio. Dentro deste sistema envolvendo performers / instrumentos eletrônicos / difusão, a comunicação ficava restrita ao meio acústico, isto é, interagíamos a partir da escuta do que é difundido, não sendo possível a troca de informações diretamente entre os IMDMI. No começo enfrentamos problemas para improvisar, associados à falta de domínio técnico do instrumento pelo performer, e também à predisposição em utilizar ideias e ações na improvisação que já tínhamos assimilado, e que por vezes iam contra o próprio funcionamento do instrumento. Mergulhamos então na experiência de descobrir a que se

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prestava aquele instrumento, e o que poderíamos fazer com o mesmo ao aplicar nossa maneira de improvisar. Depois de seguidas sessões de improvisação, notamos que as estratégias de interação, como a folia improvisativa, os modos de interação de Globokar, e o jogo com o objeto sonoro a partir da escuta reduzida, foram sendo reinventadas pelas funcionalidades do instrumento. No caso da folia improvisativa, a necessidade de resposta rápida para a utilização desse modo de interação tornou-a pouco presente nas primeiras performances da Mixagem Improvisada, tendo em vista a falta de domínio do IMDMI por parte dos performers, no entanto, com a prática a estratégia se fez mais presente. Mais do que isso, sua implementação no meio digital se deu a partir da variação rápida e contundente de parâmetros como a espacialização, e filtro de frequência, mais difíceis e menos explorados quando o grupo improvisa com instrumentos acústicos. Podemos afirmar que o IMDMI não favorece uma música baseada em sistemas abstratos regulando alturas e ritmo, pois suas ferramentas não estão configuradas para estas funcionalidades. As ferramentas de controle de dinâmica, velocidade de leitura (alterando a duração e as alturas) e filtro de frequência favorecem em maior grau a variação paramétrica e a ideia de improvisar aplicando a escuta reduzida e pesando em objetos sonoros. Mesmo as ferramentas de espacialização e edição, na experiência do grupo com o instrumento, foram empregadas normalmente para deformar, aglutinar, isolar, ou variar um objeto. Em relação aos modos de interação de Globokar, a oposição em um primeiro momento foi a mais favorecida e mais facilmente empregada. Oposições podem ser executadas com muita contundência principalmente com as ferramentas da velocidade de leitura, espacialização, filtro de frequência e controle de dinâmica. Se considerarmos por exemplo velocidades de leitura no extremo oposto manipulando o mesmo trecho, teremos um trecho com duração muito maior e muito mais grave, em oposição a outro muito mais rápido e mais agudo. Ou se pensarmos em relação ao espaço, podemos facilmente ter objetos muito próximos e outros muito distantes. Por vezes essas ações extremas acarretam inclusive no não reconhecimento de que o que estamos ouvindo é o mesmo recorte manipulado, o que faz essa ação se aproximar do fazer algo diferente. Algumas oposições no instrumento digital podem ser muito mais radicais que em instrumentos acústicos. A partir das funcionalidades do IMDMI, e da associação de suas ferramentas com as referências em improvisação no meio acústico, conseguimos alcançar alguns resultados sonoros bastante interessantes e praticamente impossíveis de ser executados por instrumentos

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acústicos, pois são em certo grau condicionados pelo meio digital. Nesse sentido podemos citar as seguintes descobertas: O integrar-se foi diversas vezes empregado na construção de texturas, a partir da utilização da ferramenta de loop e do excesso de reverb, fazendo por vezes com que os sons percam sua identidade e se fundam por conta da grande ressonância, gerando um efeito de massa. Já a imitação foi sendo empregada principalmente na medida em que as amostras foram se tornando reconhecíveis por seu tempo de utilização, sendo assim, cada performer, ao ouvir a ação do outro, tinha clareza do trecho em questão e poderia também selecioná-lo e dispará-lo. O reconhecimento dos trechos se dava também pelo desenho das ondas no Patch Pd, o qual era associado ao som. Algumas funcionalidades foram descobertas sem que estivessem diretamente relacionadas às referencias em improvisação apresentadas. Tal situação vai de encontro à afirmação de Iazzetta, onde o autor comenta que a técnica submetida ao jogo, nesse caso à improvisação com um instrumento não familiar, “deixa de apoiar-se em procedimentos estruturados e sedimentados para emergir da própria experiência com os materiais” (2012, p.229), e nesse caso também com as funcionalidades do instrumento. Citemos alguns exemplos: Com pouco tempo de uso do instrumento descobrimos um tipo de ‘problema’ do sistema que foi usado como possibilidade sonora: o efeito de glitch. Este ocorre quando, com o player ligado, fazemos passar a seta de seleção de fim do trecho pela seta de seleção de começo. Tal efeito foi amplamente utilizado nas performances. Outro recurso descoberto quase sem querer durante uma performance foi a possibilidade de se fazer sons sem ataque, somente com ressonância. Em um determinado momento começamos a ouvir o que parecia ser um canto de baleia, e todos começaram a procurar onde estava aquele som na amostra, até que o ‘inventor’ do som nos mostrou que aquele som nada mais era que o recorte de um trecho sem ataque, somente com a ressonância do instrumento. Podemos dizer que esta experiência nos possibilitou uma redescoberta e expansão de alguns modos de interação conhecidos por nós, a partir das ferramentas disponíveis no IMDMI e da técnica desenvolvida para operá-lo. Para além disso suscitou também outras ideias para utilização e construção de instrumentos eletrônicos e interação com tecnologia, que se coloca como um dos mais importantes caminhos de expansão do grupo em termos de possibilidades criativas.

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O exemplo musical 10 consiste em uma performance da Mixagem Improvisada executada por Fernando Sagawa e Lucas Uriarte. Nela observamos o uso contundente da ferramenta de loop, sendo que boa parte do discurso está pautada na variação paramétrica de um objeto repetido, principalmente a partir das ferramentas de

dinâmica, controle

panorâmico e reverberação. No que concerne o arranjo textural temos um equilíbrio entre construções mais rarefeitas com diálogos pontuais e por vezes intempestivos, e massas sonoras mais densas, sendo que há durante toda a peça uma preocupação com o silêncio, dando contorno à forma. Podem ser observados ainda alguns efeitos como glitch e a construção de massas sonoras a partir da realimentação do sistema, quando todos os controles de reverb estão todos no máximo da capacidade.

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Relatos da produção do grupo no ano de 2015

12.

Concerto cênico – Gramani joga badminton com as andorinhas

Figura 14: Cartaz de divulgação do concerto Gramani joga badminton com as andorinhas Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta – desenho de Deni Lantzman

Passamos todo o ano de 2014 sem fazer nenhuma gravação da nossa produção, e por isso em 2015 colocamos essa atividade como primeiro item do nosso planejamento. Ao examinar o que já tínhamos gravado sentimos falta principalmente de registros em vídeo de nossos jogos performáticos, ou cênico-musicais. Decidimos então que ainda no 1º semestre de 2015 gravaríamos os jogos: Gramani joga badminton com as andorinhas, Semáforos, Soundpainting e Portais, pois nenhum deles havia sido registrado em vídeo. Para realizar a gravação tivemos de revisitar os jogos, prepará-los para serem gravados, e achamos que poderíamos aproveitar a preparação para também apresentá-los em concerto. Assim planejamos a gravação no dia 14 de maio e o concerto com as mesmas peças no dia seguinte, 15 de maio.

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Era a primeira vez que realizaríamos um projeto somente com jogos performáticos, exigindo uma preparação específica sobretudo em relação ao nosso corpo. Por conta disso em todos os ensaios tivemos momentos dedicados à preparação cênica, contando com exercícios de expressão corporal e improvisação teatral. Em alguns momentos tivemos a ajuda da atriz Beatriz Coimbra nesse processo. O processo de preparação para a gravação/concerto se deu em aproximadamente um mês e meio, o que se mostrou pouco tempo para tudo que almejávamos. Notamos durante o processo que todos estavam bastante críticos com relação ao trabalho do grupo, discutindo ideias, procurando sempre por melhores soluções, não aceitando qualquer resultado. A priori nada estava garantido, tudo estava em vias de ser testado e colocado a prova. Em vários ensaios saímos insatisfeitos com a nossa produção, e nos próximos trazíamos outras ideias, repensávamos e retrabalhávamos os jogos. Foi sem dúvida nosso processo de criação mais difícil. Uma das nossas principais preocupações em relação ao concerto era criar unidade, pois estávamos trabalhando com peças bastante diferentes e que nunca tinham sido tocadas em uma mesma apresentação. Em Gramani joga badminton com as andorinhas, jogo que deu nome ao concerto, apresentamos uma versão de um jogo de badminton em um parque de Campinas, a partir de uma série rítmica de José Eduardo Gramani. Semáforos consiste em uma recriação musical de um ambiente urbano, uma metáfora de um cruzamento congestionado no qual se encontram motoristas não muito bem humorados. A performance de Staffsoundpainting consiste em uma cena na qual o staff que está arrumando se torna o regente/compositor, protagonizando a performance. Em Portais temos um jogo que se dá a partir de partituras gráficas guiando a improvisação, dispostas em diferentes lugares, possibilitando trajetórias diversas aos músicos. Tínhamos narrativas muito diferentes, difíceis de serem concatenadas, por isso para dar unidade ao concerto nos valemos de gestos físicos e elementos de cenário e luz recorrentes, ressignificados a cada jogo. Resolvemos também trabalhar o Portais como uma espécie de síntese do concerto, colocando-o como último jogo apresentado, e construindo-o a partir de elementos importantes das peças anteriores. Ainda acrescentamos um 5º jogo ao concerto, o C4, jogo antigo no qual tínhamos bastante fluência, sendo nosso porto seguro em meio a desafios bem maiores. É o jogo menos performático entre os apresentados no concerto e não será analisado neste trabalho pois daremos prioridade aos jogos cênico-musicais. Porém vale dizer que para colocá-lo no concerto pensamos em uma disposição de palco e luz que condissesse com os outros jogos.

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Neste jogo também é interessante ressaltar que a luz era improvisada a partir de guias e elementos dados pelo som e, portanto, nossa operadora de luz, Beatriz Coimbra, também fazia parte da improvisação. Abaixo examinamos o processo de composição de cada jogo com mais detalhe, na ordem em que foram colocados no concerto.

12.1 Gramani joga badminton com as andorinhas Fomos convidados pelo Prof. Mannis para realizar uma pequena apresentação na abertura do XXV encontro da SOBRAC (Sociedade Brasileira de Acústica), que ocorreu em Campinas nos dias 20, 21 e 22 de outubro de 2014, e para a ocasião nos foi feita a encomenda de um jogo musical que falasse sobre a cidade de Campinas. Começamos a pesquisar particularidades da cidade buscando pontos interessantes e curiosos, levando em conta nosso próprio envolvimento com a mesma, uma vez que se trata da cidade onde o grupo se situa. Dessas pesquisas duas informações curiosas saltaram aos nossos olhos: Campinas é a Capital Brasileira de Badminton, e é considerada a cidade das andorinhas. A essas duas acrescentamos ainda uma terceira referência, esta da área da música e bastante conhecida por nós e por músicos em todo o Brasil: o trabalho acerca do ritmo desenvolvido pelo exprofessor da UNICAMP José Eduardo Gramani. O Badminton é um esporte similar ao tênis, jogado com raquetes, em uma quadra com uma rede ao meio, individualmente ou em duplas, porém ao invés das bolinhas usa-se uma peteca. O objetivo do jogo é fazer com que a peteca caia no chão da quadra adversária, sendo assim, os atletas devem rebatê-la tentando fazer com que seu adversário não consiga alcançá-la. Enquanto a peteca está no ar o jogo continua até que alguém a deixe cair. Havíamos recém trabalhado com o Prof. Mannis no HINOX o jogo Solos e Duplas, no qual nos utilizamos da ideia de movimento virtual do som, exemplificada pelo professor a partir da imagem de uma bexiga que vai passando pelos integrantes e sendo moldada pelos mesmos. No badminton, ao invés da bexiga tínhamos uma peteca, e aplicamos o mesmo princípio de passá-la de um ao outro, ou melhor, de jogá-la um ao outro como se estivéssemos de fato jogando badminton. Porém em nosso jogo o golpe da raquete e trajetórias da peteca seriam descritas pelo som e pelos olhares. As andorinhas nos sugeriram um parque, um espaço a céu aberto onde os pássaros cantam, as pessoas caminham, conversam e jogam. Já tínhamos a cena na nossa cabeça: um jogo de Badminton em um parque de Campinas, e para transportar essa cena para música nos utilizamos do trabalho do violinista, rabequeiro, compositor e ex-professor da UNICAMP

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José Eduardo Gramani (1944-1998). Em nossos estudos de rítmica na Graduação em Música da UNICAMP usamos como referência básica o livro Rítmica (GRAMANI, 1992), no qual Gramani propõe uma abordagem musical do ritmo, procurando desenvolver no músico uma maior capacidade de concentração e uma ramificação (independência) da atenção, a fim de perceber as várias camadas existentes em uma música. (GRAMANI, 1992, p. 11-12). Tínhamos muitas memórias dos anos que passamos estudando Gramani na graduação, e resolvemos usar uma de suas estruturas de pulsação enquanto base para o jogo de Badminton. A estrutura de pulsação escolhida foi a primeira estrutura de pulsação em 7 (base em 4-3), na qual, na voz superior os acentos se deslocam uma semicolcheia a cada célula.

Figura 15: Trecho da série das estruturas de pulsação 7 (4-3), usado no jogo Badminton Fonte: GRAMANI, 1992, p. 62

Estabelecemos que as batidas da raquete na peteca seriam representadas por batidas sonoras executadas no tempo dos acentos da voz de cima, alternando as batidas entre os dois jogadores. Sendo assim: o jogador 1 bate na peteca (faz um som) no primeiro acento localizado na primeira semicolcheia; o jogador 2/adversário rebate no próximo acento na quinta semicolcheia; o jogador 1 bate novamente na primeira semicolcheia do segundo compasso e assim por diante. Cada compasso é lido uma vez sem os ritornelos indicados, e completando o sexto compasso o jogo volta em loop para o primeiro. Aos músicos não basta produzir um som no tempo certo, eles devem também simular com o corpo que estão de fato jogando badminton, ou seja, cada batida sonora é representada como se fosse uma batida na peteca. Criamos ainda um sistema de pontos onde o músico que bater fora do acento cede o ponto ao adversário. Começamos então a testar o jogo, simulando com gestos e sons instrumentais a batida na peteca, tentando criar a imagem da peteca em sua trajetória ao ‘visualizá-la’ no ar em direção ao outro campo. Criamos o personagem do árbitro, ao qual cabia dar as entradas, ou melhor, os saques, e apitar quando percebia algum erro, portanto o músico com esse papel

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deveria estar atento aos ataques. Nas primeiras vezes os erros eram constantes pois, ainda que já tivéssemos decorado a série, não a tínhamos assimilado no nosso corpo, mas depois de um tempo de ensaio o jogo melhorou e os rallys passaram a acontecer. Desenvolvemos também uma melhor noção da trajetória da peteca, esta podendo ser mais longa ou mais curta uma vez que distância entre os acentos, ou seja, entre as batidas, é variável (de 1 a 6 semicolcheias). Tentávamos tornar o jogo mais factível simulando que lançávamos a peteca mais longe quando sabíamos que iria demorar para que o próximo jogador rebatesse, ou mais perto quando sabíamos que seria rebatida já nas próximas semicolcheias. Para ambientar o jogo em um parque com andorinhas resolvemos construir e difundir essa paisagem sonora por computador. Também através do computador difundimos um metrônomo marcando as semicolcheias e os acentos, ajudando o árbitro em sua função. Passamos a jogar sets de três pontos, sendo que a velocidade do metrônomo ia aumentando a cada set, dificultando o jogo. Depois de certo tempo nossas partidas de badminton se tornaram bastante disputadas. Para apresentar o Badminton no concerto pensamos em uma estrutura que ia além da competição em si. Começávamos com as andorinhas soando pelo lugar, e entrávamos em quadra como se estivéssemos no parque para jogar. O jogo começa e um primeiro set é disputado. No segundo set os músicos trocam de raquete, ou seja, de instrumentos, e a velocidade das colcheias é aumentada. No meio do segundo set os sons de andorinhas começam a distorcer e o ambiente parece sair do normal. Os jogadores se deparam com este ambiente estranho e aos poucos vão abandonando o jogo, improvisando livremente em relação com as andorinhas. Depois de um tempo a peteca volta ao jogo mas também já não é mais a mesma, parece também distorcida, e passa a descrever trajetórias cada vez mais altas e longas, até que em uma última batida se perde de vista no espaço. Na performance de Gramani joga Badminton com as andorinhas no concerto, exemplo musical 11, usamos a mesma estrutura descrita acima, porém começando de uma maneira diferente. Era a primeira peça do concerto, enquanto a plateia entrava no auditório já se ouviam as andorinhas difundidas pelo computador. Entramos no palco como se fôssemos realizar um concerto normal, de paletó e calça social, assim como fazíamos ao apresentar o RVC. Nos dispusemos em fila com Henrique como regente à frente e começamos a executar a estrutura de pulsações de Gramani, com a eletrônica marcando as semicolcheias, como se aquilo fosse de fato a peça que apresentaríamos. Passados alguns instantes forçamos alguns erros, para desespero do regente, e a partir daí passam a ocorrer desentendimentos entre regente e músicos e também entre os próprios músicos que se dividem em dois duos, ou

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melhor, em duplas adversárias. Os desentendimentos vão tomando proporções maiores até que os músicos esquecem a apresentação e querem apenas competir entre si. É nesse ponto que os músicos viram atletas, e o regente se torna o árbitro da partida. Aspectos da percepção observados em Gramani joga badminton com as andorinhas



Acompanhando a peteca Neste jogo os sons descrevem a trajetória espacial de uma peteca que vai de um

lado a outro conforme é rebatida pelos jogadores. Para que o jogo realmente se estabeleça é necessário acompanhar com o olhar a peteca em sua trajetória, para realmente convencer de que há um objeto virtual em movimento, caso contrário o objeto se perde de vista e a performance se restringe à execução de uma célula rítmica. A direção, intensidade e profundidade do ‘golpe’ de raquete precisam ser claros o suficiente para que todos possam acompanhar a peteca, incluindo a plateia, gerando maior interesse ao jogo.

12.2 Semáforos versão II A versão II do jogo Semáforos, apresentada no concerto, difere da primeira versão em alguns sentidos: mudam os materiais dos fluxos; o papel de motoboy é abolido; e uma cena final é adicionada ao jogo. Em 2013 utilizávamos materiais diferentes para os sinais verde e amarelo no fluxo 1 (respectivamente mãozinhas e staccato), e ainda outros materiais para os sinais verde e amarelo no fluxo 2 (notas repetidas, cromatismo), sendo que o sinal vermelho indicava silêncio para ambos os fluxos. Já para os semáforos 1 e 2 o material era o mesmo, consistindo em appoggiatura para o sinal verde; acordes destacados para o amarelo; e oitavas para o vermelho. (v. Figura 5, p.65). Ao ensaiarmos para o concerto começamos a perceber que os materiais que utilizávamos anteriormente para os fluxos se confundiam muito, e por conta disso não conseguíamos ter clareza de qual sinal estávamos tocando. Primeiramente tentamos resolver este problema mudando os materiais para o fluxo 2, o mais problemático, mas mesmo assim não ficamos satisfeitos. Depois de discutir e testar sem sucesso algumas soluções decidimos ser mais radicais e estabelecemos para o fluxo 2 dois materiais bem distintos: som tônico para o sinal verde; e ruído para o sinal amarelo. Nossa solução passou a funcionar e o jogo ficou mais claro, porém tínhamos agora materiais bastante abertos para fluxo 2 e mais fechados para o fluxo 1. Fizemos então uma outra tentativa: usar som tônico e ruído para os dois

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fluxos, e depois de realizar o jogo algumas vezes gostamos do resultado e decidimos manter dessa maneira. Em 2013, quando executávamos a primeira versão do jogo, as interações se davam principalmente entre fluxo e semáforo correspondente, e entre músicos que estavam no mesmo fluxo, porém não conseguimos alcançar muito bem o estágio de interagir com os músicos tocando no outro fluxo. Nossa meta para esta nova versão era tentar assegurar essa interação entre fluxos diferentes, e ter materiais mais abertos e iguais para os dois passou a nos ajudar. Outra mudança estrutural importante foi a abolição do motoboy, pois para executá-lo um dos músicos deveria deixar de ser fluxo, e desfalcando-o passávamos a ter um fluxo com dois músicos e outro somente com um, o que atrapalhava a interação entre fluxos. Tendo o mesmo número de motoristas em cada fluxo instigamos uma espécie de rixa entre os mesmos, mais um duelo de 2X2 assim como já havia ocorrido no Badminton. Em Semáforos Versão II, disponível como exemplo musical 12, a cena foi melhor explorada do que na versão anterior, uma vez que usávamos com mais consciência alguns trejeitos e gestos de motoristas, estes que no desenrolar do jogo iam se tornando cada vez mais hostis. O jogo foi construído de modo que a hostilidade entre os motoristas fosse crescente, acompanhada também por um adensamento da textura sonora, chegando no ápice que nada mais poderia ser do que uma grande colisão de carros. À batida segue um corte seco e um momento de tensão e paralisação, seguido de uma franca discussão entre os motoristas que largam seus instrumentos e não querem saber de mais nada a não ser culpar uns aos outros pelos prejuízos.

12.3 Staff Soundpainting No espetáculo HINOX usamos pela primeira vez alguns gestos indicando seções, modos de tocar, intensidades, velocidades e outros elementos, tendo por base rudimentos do Soundpainting. Tal implementação foi essencial para o espetáculo, pois nos permitiu indicar com precisão e em tempo real informações importantes, coordenando a performance. Curiosos em relação a essa linguagem gestual, procuramos conhecer melhor suas funcionalidades no intuito de usá-la para projetos futuros. O Soundpainting é uma linguagem de sinais para composição em tempo real criada pelo compositor americano Walter Thompson em meados da década de 1970. Sendo utilizada não somente para a música, mas também para dança, teatro e formações

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multidisciplinares, esta linguagem compreende sinais que indicam, em maior ou menor grau de precisão, o material a ser utilizado, os modos de jogo, os intérpretes escolhidos para cada parte, além de gêneros, estilos, ideias abstratas etc. No Soundpainting fazem parte do jogo (1) o soundpainter, que atua enquanto “condutor/compositor” da improvisação, operando o fluxo sonoro a partir dos gestos preestabelecidos; e (2) os intérpretes, que obedecem os comandos e improvisam a partir dos mesmos. Utilizamos o Soundpainting pela primeira vez em uma oficina de música improvisada fazendo parte do FEIA 15 (Festival do Instituto de Artes da UNICAMP), que ministramos em setembro de 2014. Decidimos usar algumas ferramentas básicas com os alunos inscritos na oficina a fim de montar uma performance. A ferramenta se mostrou bastante interessante e de fácil aprendizagem, uma vez que em duas oficinas os alunos já estavam atuando enquanto soundpainters. Com pouca prática já podíamos utilizar ferramentas que nos permitiam coordenar em tempo real operações relativamente complexas, como por exemplo, a divisão em diversos grupos com atividades completamente diferentes, com controles de dinâmica e velocidade independentes. Fizemos uma performance no final da oficina com os alunos e o grupo em uma praça aberta da UNICAMP no horário do almoço, por onde circulavam muitas pessoas. Nos primeiros 40 minutos todos os envolvidos regeram. Depois disso abrimos para pessoas do público nos regerem. Duas pessoas se habilitaram, sendo que nenhuma conhecia a plataforma, e portanto nossas ações estavam totalmente baseadas na escuta corporal e na interpretação que fazíamos dos gestos. Os dois soundpainters do público eram roqueiros, e não foi difícil identificar o que eles queriam de nós. Ambos indicaram precisamente andamentos, algumas entradas, e como bons roqueiros sempre pediam mais som, nunca menos... Para o concerto pensamos em uma narrativa usando o Soundpainting como ferramenta para executá-la, e então imaginei que poderia aliar uma antiga ideia à esta nova ferramenta. Já há algum tempo imaginava um concerto para staff, alguém que tanto trabalha e pouco aparece. Tinha na cabeça a cena de um staff que, em meio a arrumação de palco, tomasse algum instrumento e o executasse com primor, se revelando enquanto virtuose para o público. Comentei com o grupo sobre esta cena que tinha na cabeça, pois imaginei que o staff em nosso concerto poderia em algum momento virar o compositor, o soundpainter. Uma vez aceita pelo grupo, a ideia começou a ser desenvolvida e foi chamada de Staff Soundpainting. A performance foi pensada para uma das transições, e a primeira proposta funcionava da seguinte maneira: o soundpainter, arrumando o palco para a próxima cena, inesperadamente tem alguns de seus gestos corriqueiros como varrer o chão, ou se abaixar e

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levantar, respondidos por sons. Atônito com a situação, o staff tenta repetir seus gestos para entender da onde vem aqueles sons, porém, ao tentar controlá-los intencionalmente o personagem não é respondido. Não entendendo muito bem a lógica o primeiro staff volta ao seu trabalho e um segundo staff aparece, até que em determinado momento os gestos deste segundo são respondidos novamente por sons. Os dois se olham e se assustam, porém, sem entender o que está acontecendo, voltam ao trabalho. Um terceiro staff entra no palco e, tendo visto o que sucedera aos outros dois, vai ao meio do palco e começa a reger o ‘grupo imaginário’ através do soundpainting. O grupo, escondido na coxia, dessa vez reconhece seu mestre e passa a responder prontamente a seus gestos. Os outros dois staffs finalmente compreendem a situação, e juntamente com o terceiro dividem a regência, assim, enquanto um dos personagens rege os outros dois arrumam o palco (que efetivamente precisava ser arrumado para a próxima peça), e os três se alternam entre as duas funções. Ao testarmos essa configuração nos deparamos com alguns problemas. Primeiro sentíamos que enquanto performance musical não conseguíamos resultados interessantes por contarmos somente com três músicos tocando enquanto outros três regiam, o que comprometia várias ferramentas do soundpainting que funcionavam melhor com uma massa sonora mais densa. Além disso encontrávamos bastante dificuldade em coordenar e compor conjuntamente em tempo real a seis mãos, e ainda arrumar o palco, eram muitas informações. Identificamos também um problema de cena, uma vez que não conseguíamos dar uma dinâmica interessante para a mesma, e achamos que da maneira como pensamos exigia mais do que poderíamos dar. Na verdade as primeiras tentativas foram tão frustrantes que quase desistimos da performance, porém pensando com um pouco mais de calma conseguimos encontrar algumas soluções. Começamos escolhendo um só staff para ser soundpainter, o que resolvia os problemas de coordenação entre três regentes e da falta de intérpretes no grupo que estava na coxia. Depois passamos a pensar em como o staff poderia se comportar no palco, pois mesmo com um soundpainter a ação de reger no meio do palco ainda não nos satisfazia pois não conseguíamos manter o interesse durante toda a cena, e foi então que, por acaso, surgiu a ideia do espelho. Disporíamos um espelho coberto por um pano em dos cantos do palco, como se fosse um objeto de cena, que o staff descobriria em meio a arrumação de palco. Após descobrir o espelho aproveitaria a oportunidade também para se olhar, e ao fazer um gesto de coçar a barba ou arrumar a sobrancelha teria o mesmo respondido por sons. O personagem se vira para o outro lado e gesticula novamente sem nenhuma resposta, então tenta outra vez mais ao fundo do palco e tudo continua em silêncio. Tentando entender a situação percebe

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que o espelho pode ser a chave para tudo aquilo, e ao gesticular em frente ao mesmo afirma sua hipótese e passa então a deliberadamente reger através do ‘espelho mágico’. Com esta estrutura apresentamos a performance de Staff Soundpainting, cuja gravação está disponível neste trabalho como exemplo musical 13.

12.4 Portais (Os Números e a Caverna) Os Números e a Caverna é o terceiro jogo musical da série Números, composta por Fernando Sagawa. A série acompanha o grupo desde o seu começo, uma vez que o primeiro Números foi a segunda peça composta para o grupo, logo após Música das Árvores, em abril de 2013. Números II foi composta dois meses depois, em junho do mesmo ano, e a terceira versão, usada nesse concerto, foi composta em agosto de 2014. Números I foi a primeira peça proposta por Fernando e consiste em uma partitura associando números e letras, estes indicando os instrumentos a serem tocados e aquelas indicando ações instrumentais. Cada instrumento corresponde a um número, neste caso: (1) violão 1; (2) sax tenor; (3) piano; (4) acordeon; (5) violão 2 e; (6) sax alto, e tem suas ações instrumentais específicas indicadas na partitura por letras. As ações compreendem notas descendentes e ascendentes; acordes; nota mais grave do instrumento; cascata de notas; notas acentuadas; notas longas em forte piano, dentre outra, sendo que cada ação recebe uma letra correspondente. Para cada número é estabelecida uma sequência de uma a três letras que devem ser tocadas uma após a outra, por exemplo: se ao número (1) for indicado as letras [B], [C] e [D] o instrumentista deve executar as ações nesta ordem. Tendo estabelecido as sequências de letras para cada número cria-se então uma partitura de execução que se consistindo em sequências numéricas, lidas da esquerda para a direita, indicando a sucessão dos instrumentistas. Na partitura há ainda a indicação de solos, pausas e ritornelos. Em Números II (ou Números, o retorno), proposta dois meses depois, mais uma vez os números indicam os músicos que devem tocar, porém a cada performance os mesmos podem ser trocados, e todos os improvisadores podem passar por todos os números. As ações possíveis também não são mais específicas de cada instrumento, e se resumem a duas categorias bastante abrangentes: figura de duração curta representada pela letra [A]; e fundo, representada pela letra [B]. Como em Números I há também indicações de solos e ritornelos. A notação está em forma de partitura gráfica, onde os números vêm sempre acompanhados de letras, indicando quem toca e o que toca. Lê-se a partitura normalmente da esquerda para a direita, de cima para baixo, sendo que o tempo está representado no eixo “x”.

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Sobre o tempo Fernando indica que a notação proposta não se refere a um tempo quantitativo, em que distâncias iguais representam uma mesma duração, mas a um tempo qualitativo que permite ordenar a sucessão dos eventos, por exemplo: no começo da peça (v. Figura 15) os músicos 1 e 2 executam a letra [A], e somente depois de terminarem os músicos 5 e 6 podem entrar também executando a letra [A], conforme indicado. O eixo “y” indica as sobreposições, porém as diferenças de posição em relação ao eixo “y” não correspondem a diferenças nas alturas, sendo este parâmetro deixado totalmente em aberto, por exemplo: no começo da peça os músicos 1 e 2 tocam juntos a letra [A] conforme indicado, mas não necessariamente o 2 toca mais grave que o 1 por estar embaixo, e o mesmo se aplica com 5 e 6 que vem em seguida (v. Figura 15). As setas indicam direções e sucessões, por exemplo: na parte 1 os músicos 3 e 4 começam em [B] e se encaminham para [A], chegando em [A] somente após a segunda entrada de [1A+2A]. Já na parte 2 a indicação de [6B] segue até ser interrompida pela entrada de [1B], como indicado pelas setas (v. Figura 15). Na parte 3 observa-se uma bifurcação na parte circunscrita por colchetes, onde o músico número 6 é o responsável por escolher se a música segue pela parte que está acima ou abaixo da linha. Se o mesmo executar uma figura [A], todos se encaminham para a parte de cima, se executar algo identificado como fundo [B], todos se encaminham à parte de baixo. (v. Figura 15)

124

Figura 16: Primeira página da partitura de Números II Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

125

Em Os Números e a Caverna cada músico novamente corresponde a um número, mantem-se as letras [A] indicando figura e [B] fundo, e observam-se mais uma vez alguns quadros com ritornelos. Nesta versão o compositor propõe dois novos tipos de ações instrumentais: o alfa [α], indicando um único ataque curto; e o beta [ß] indicando um único som longo. Porém a maior novidade da peça em relação às anteriores é a disposição gráfica e o modo de leitura da partitura. Fernando nos propõe uma partitura gráfica que não mais se lê da esquerda para a direita, de cima para baixo, mas sim através de setas que indicam a sucessão dos eventos. Para exemplificar os recursos utilizados tomamos a primeira página da peça e seu percurso como exemplo (v. Figura 16): o jogo começa no colchete [1A]

do qual

saem três flechas, todas apontando para colchetes envolvendo o músico 2, que deve escolher um dentre os colchetes [2A], [2ß] e [2α] para continuar o jogo. Ao começar sua execução o músico 2 toma a frente do jogo e o músico 1 cessa sua ação, assim como sucede com todos os colchetes: o anterior só interrompe sua ação na entrada do próximo. Suponhamos que o músico 2 optou pelo colchete [2A] e assim começa a executar uma figura. Ligado a este colchete estão outros dois: [5B], para o qual a flecha aponta; e [3B+4B], ligado a [2A] por uma linha pontilhada. Na peça os colchetes ligados por linhas pontilhadas devem ser tocados simultaneamente, nesse caso juntamente ao colchete [2A] deve também ser executado o colchete [3B+4B], e quando o primeiro cessar, ou seja, a música caminhar de acordo com as setas para o próximo colchete, o segundo também cessa (v. Figura 16). Na primeira página observam-se ainda outros exemplos de colchetes ligados por linhas pontilhadas, como o [6A] ligado ao [1B+6B] no canto inferior direito, e outro colchete [2A] ligado a [4B+5B] do lado esquerdo (v. Figura 16). O próximo passo do jogo deve ser do músico número 5 uma vez que a seta seguindo a linha que sai de [2A] se dirige à [5B]. Porém, do colchete [3B+4B], executado simultaneamente ao colchete [2A], há igualmente uma seta seguindo a linha pontilhada apontando para o colchete [3A+4A]. Nesse ponto deve-se seguir a indicação das duas setas e, quando o músico número 5 executar [5B], os músicos 3 e 4 passam a executar o colchete [3A+4A]. Revela-se então um aspecto interessante da partitura: sua leitura pode seguir em mais de uma direção (v. Figura 16). O caso ocorre também na estante 3 (v. Figura 18), onde o colchete [5A] está ligado por linha pontilhada ao colchete [4B+6B], e portanto ambos são tocados simultaneamente. Quando a música caminha para [1A] por indicação da seta que segue a linha saindo de [5A] do lado esquerdo, caminha também para [4A+6A] por indicação da seta que segue a linha pontilhada saindo de [4B+6B] do lado direito.

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Os números e a Caverna (Portais)

Fernando Sagawa

Estante 1

[2A]

[5B] 2

[] 3B 4B

[ ] [2A] 3A 4A

[] 4B 5B

[2 ] 1

[1A]

3

[2ß]

1

[3 ] [4 ] [5 ] [6 ]

[] 1B 2B

[3A] [6A]

[6A]

Figura 17: Primeira estante da partitura de Portais, posteriormente determinada Estante 1: Folia Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

Nesse ponto do percurso executam-se simultaneamente os colchetes [5B] e [3A+4A], e ao observar as linhas que seguem dos mesmos percebemos que suas setas apontam para uma convergência no colchete [6A], ou seja, os dois colchetes simultâneos devem cessar quando o músico 6 entrar no jogo. Continuando a leitura temos mais uma vez o

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colchete [6A], agora acompanhado pelo colchete [1B+2B] ao qual está ligado por linha pontilhada, e em seguida passamos ao colchete [3A] . Na próxima ação entramos em uma caixa com ritornelo, onde os músicos devem executar um único ataque curto [α], seguindo a sequência de músicos estabelecida da esquerda para a direita, ou seja, primeiro o músico 3, depois 4, 5 e 6. O quadro deve ser repetido quantas vezes se desejar até que o músico 2 interrompa e siga o jogo com o colchete [2A], que é acompanhado pelo colchete [4B+5B] ao qual está ligado por linha pontilhada. Ao chegar novamente em [1A]

demos uma volta completa na primeira estante e chegamos

novamente na trifurcação onde o músico 2 deve escolher uma entre as opções [2A], [2ß] e [2α] . Caso escolha novamente a opção [2A] o percurso será o mesmo que acabou de realizar, mas se a escolha for alguma das outras opções, as que tem potências do lado direito do colchete, revela-se mais uma possibilidade da partitura: a conexão e passagem de uma estante (página) à outra. Os colchetes com potências são os responsáveis por conectar as estantes, funcionando como portais com um ponto de saída e um ponto de chegada. As potências circunscritas por triângulos indicam um ponto de saída, sendo que o número da potência indica em qual estante está o ponto de chegada correspondente. Já as potências circuladas indicam pontos de chegada, e o número da potência indica a estante em que se encontram. Na estante 1 temos dois pontos de saída: [2α] ; e [2ß] , o primeiro vai à estante 2 como indicado pela potência, chegando em seu colchete correspondente [2α] ; e o segundo vai à estante 3 chegando no colchete correspondente [2ß] . Também na estante 1 temos dois colchetes com potências circuladas: [1A]

e [3A] , estes que indicam pontos de chegada,

sendo que seus pontos de saída correspondentes estão espalhados em outras estantes. Todas as estantes tem pontos de saída e chegada, sendo que o percurso da peça depende das escolhas dos intérpretes e pode variar a cada execução. O final tem lugar em colchetes específicos localizados nas estantes 2, 4 e 5 e indicados com a palavra fim em letras maiúsculas. Cada estante tem características bastante específicas, em algumas predominam as letras A e B, outras α e ß, algumas tem grupos grandes que atacam juntos, em outras predominam os colchetes individuais e assim por diante. Além de diferenciá-las pelas características musicais, Fernando as imaginou fisicamente distantes umas das outras, espalhadas pelo espaço. Assim passamos a imaginar cada estante como um lugar no universo conectado aos outros por portais, e por isso acabamos por batizar a peça justamente com este nome.

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Ao incluir Portais no concerto pensamos primeiramente na disposição de cada estante no espaço. Não queríamos dispô-las uma ao lado da outra, pois justamente a ideia de ser transportado para outro lugar era central à peça, e gostaríamos de deixar isso claro para o público tanto fisicamente quanto na sonoridade e maneira de tocar de cada estante. Pensamos em dispor as estantes em diferentes pontos do palco e também na plateia, na coxia, e até fora do auditório. Mas ao ensaiar a peça pelas primeiras vezes nos deparamos com um problema anterior: a dinâmica do próprio jogo. Já faziam seis meses que não tocávamos a peça, e esse tempo sem contato com a mesma fez com que praticamente voltássemos à estaca zero. Facilmente nos perdíamos nas partituras, demorávamos muito para passar de uma estante à outra, não sabíamos direito quais os caminhos possíveis. Portanto, antes de pensar em como apresentar precisávamos ganhar fluidez no jogo, que só pôde ser alcançada com o estudo individual e ensaios coletivos passando de estante em estante, analisando suas possibilidades, executando repetidas vezes cada um. Depois de alguns ensaios começamos a ganhar maior fluidez no jogo, nos preocupando mais com a interação do que com a partitura, com a qual tínhamos novamente nos habituado. Porém, apesar das especificidades de cada estante ainda achávamos que todas soavam muito parecido, e passamos a procurar formas de diferenciá-los: começamos utilizando instrumentos diferentes e preestabelecendo comportamentos globais específicos para cada uma. Primeiramente trabalhamos com a estante 3, que, com seu desenho de círculo, nos remeteu a um ritual de uma tribo com seus integrantes sentados em círculo. Portanto estabelecemos como comportamento que todos deveriam pensar e tocar como se estivessem em um ritual tribal zen, usando como instrumentos as vozes, flautas e apitos, viola caipira e charango. A ideia de ritual sonoro/mantra fazia parte das realizações do grupo desde as nossas leituras de Stockhausen, e já havia sido utilizada no HINOX como pilar 2: mantra e posteriormente incorporado ao Soundpainting. Testamos também no mesmo dia uma estante baseado na ideia de folia, em contraposição à estante zen. Nele utilizamos instrumentos que poderiam alcançar maior intensidade sonora como o contrabaixo, guitarra, clarineta e sanfona. A estante escolhida para a folia foi a número 1. Depois de testar esses dois e discutir sobre os resultados obtidos com essas implementações, decidimos estabelecer especificidades para cada uma das estantes compreendendo obrigatoriamente ideias já visitadas pelo grupo, assim como o zen/tribos e a folia. Dessa maneira o jogo se tornaria uma espécie de viagem pela própria produção do

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grupo, com características e ideias expressas em cada estante. Dois integrantes ficaram responsáveis por analisar as estantes e trazer sugestões de comportamentos para cada uma. No próximo ensaio estabelecemos as especificidades de cada estante, mantendo aquilo que já havíamos imaginado para a Estante 1: folia e a Estante 3: zen/tribos, e discutindo acerca das ideias trazidas para as outras. Os comportamentos imaginados compreendiam a estante groove, a estante esportes, a estante gestos, o estante máquinas e a estante trânsito, dentre os quais precisávamos escolher mais três. A primeira e unânime escolha foi pela estante groove, na qual usaríamos basicamente tempo estriado, dançante e harmonias modais, tal qual fazíamos no Obra Aberta Versão Groove (v. item Obra Aberta Versão Groove, p.136). Não sabíamos exatamente quais instrumentos utilizar, até que surgiu a ideia de que esse fosse o momento Piano groove, com todos os integrantes em volta do piano de cauda, tocando não só nas teclas mas nas cordas e no corpo do piano. A estante escolhida foi a número 5, na qual os músicos 4 e 6 executam na maior tempo figuras, o que ressignificamos como solo, e os músicos 1, 2 e 3 executam fundo, que agora se tornava acompanhamento. E assim estabelecemos a Estante 5: Groove. As outras duas escolhas foram mais difíceis de se fazer. Por se tratar de um concerto bastante performático estávamos também preocupados com as cenas, sendo que todos os jogos exigiam de nós uma interpretação teatral ainda que em pequeno grau. Por conta disso escolhemos definir uma estante que se constituiria somente de gestos mudos sem os instrumentos. Apesar de ser uma ideia bem aceita, sua execução nos assustava um pouco, uma vez que não teríamos os sons para nos ajudar a manter o interesse e tudo ficaria a cargo dos nossos corpos. Já tínhamos experimentando pequenas passagens de mute tanto no HINOX quanto no Soundpainting, onde somente simulávamos o som sem o tocar, porém caso estabelecêssemos uma estante exclusivamente com gestos levaríamos a ideia à outro patamar. Decidimos testar o comportamento na estante 4, que nos parecia a mais interessante para tal. Interpretamos o alfa (α) como um movimento staccato que imediatamente após executado se congela em uma pose, e o beta (ß) como uma ação que se desenrola. Contamos com a ajuda da atriz Beatriz Coimbra que nos ajudou a procurar e lapidar alguns gestos que executávamos no próprio concerto, como aqueles compreendidos no Soundpainting, Badminton, e aqueles que realizamos ao tocar nossos instrumentos, para que constituíssem o material corporal para a estante. Assim surgiu a Estante 4: Gestos. Para a última estante nos inspiramos no jogo Semáforos para estabelecer um comportamento de máquina nos utilizando tanto de sons quanto de gestos físicos. Na estante

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estão dispostos diversos gestos concatenados, o que interpretamos como uma engrenagem rodando, e portanto nossa máquina deveria ser uma só construída por várias peças, que eram os colchetes individuais. Para chegar à ideia de engrenagem fizemos exercícios com movimentos e sons repetitivos, concatenados e precisos, sendo mais uma vez ajudados por Beatriz Coimbra. Estava estabelecido o comportamento da Estante 2: Máquinas.

Os números e a Caverna (Portais) Fernando Sagawa

Estante 2

[3ßFIM]



3

3A

6 2 4



1 4 5

3ß 6ß 1ß



4ß 5ß Figura 18: Estante 2: Máquinas Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta





131

Os números e a Caverna (Portais) Fernando Sagawa

Estante 3

5

4





5

3

5A

3A

4A 6A

1A

5A Figura 19: Estante 3: Zen/Tribos Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

4B 6B

132

Os números e a Caverna (Portais)

Fernando Sagawa

Estante 4

1A

1

2

5 1 2ß 3 2ß 4 2ß 5 2ß 6 2ß 2ß

Figura 20: Estante 4: Gestos Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

1 2ß 2ß 2 4 2ß 2ß 5 6 2ß 3ß

2

4ßFIM

4

2 3 4 5 1ß 6ß

133

Os números e a Caverna (Portais)

Fernando Sagawa

Estante 5

1B 2B 3B 4A 6A

4A 6A 5ß

1A

4A 6A 5

1



4 6 FIM

3

Figura 21: Estante 5: Groove Fonte: Acervo Grupo Obra Aberta

3A

1

5

4

134

Portais foi o jogo que fechou o concerto justamente por combinar elementos dos jogos anteriores e condensá-los em uma única proposta, sendo assim foi o principal elemento dando unidade ao concerto, costurando todas as partes. Nesse sentido se assemelha ao HINOX, onde da mesma maneira diversos materiais e procedimentos já utilizados foram combinados para a realização de uma única performance. No exemplo musical 14 temos a gravação em vídeo da performance de Portais realizada no concerto. Para a ocasião estabelecemos previamente os números para músico, sendo [1] Theo; [2] Lucas; [3] Henrique; [4] Fabio; [5] Marcelo e [6] Fernando. Decidimos que começaríamos a peça na Estante 3: Zen/Tribos, pois esse momento mais introspectivo nos dava a oportunidade de respirar, concentrar e imergir completamente no jogo. Já para o final, que, de acordo com a partitura poderia ocorrer nas estantes 2, 4 e 5, pensamos em dois cenários possíveis: um na estante 2 e outro na estantes 5, excluindo a possibilidade de terminar na estante 4. O final da Estante 2: Máquinas consistia em uma pane e espécie de morte das máquinas, ou fim de sua útil por assim dizer. Já o final na Estante 5: Groove seria um final ‘apoteótico’, terminando em um grande crescendo com um corte súbito. Ambas as possibilidades estavam em aberto no jogo. O jogo começa no silêncio, já antes de tocar há o ritual de chegar no espaço, se olhar, mergulhar no universo da Estante 3: Zen/Tribos. Uma vez sentados, eu, o músico [2] toco o colchete [2ß] , fazendo soar um acorde de 4ª e 2ª com a viola caipira. Após o terceiro acorde repetido, Marcelo, o músico [5], ataca [5A] com uma flauta pan, e assim a partitura em formato de círculo começa a rodar ao som de flautas, vozes, charango e viola. Os gestos são lentos, na maior parte do tempo em dinâmica baixa, e forma-se cores harmônicas modais. Após uma rodada na partitura Marcelo executa o colchete [5ß] , o portal para a estante 5. Já na transição de um à outro os corpos começam a denunciar para onde a música se encaminha. Na Estante 5 todos se colocam em volta do piano, e após a execução do colchete [5ß]

o groove é puxado pelos músicos [6] Fernando e [4] Fábio, sendo logo em seguida

acompanhados pelos músicos [1] Theo, [2] eu e [3] Henrique. Após um breve desenvolvimento Marcelo mais uma vez toca o colchete [5ß]

, este que tem várias

possibilidades de saída. Rapidamente Fernando e Fabio voltam com o colchete [4A+6A] para mais uma rodada de groove, dessa vez mais frenética. Na segunda interrupção de Marcelo no colchete [5ß] , Henrique se antecipa e executa o colchete [3A] , portal para a Estante 1: Folia. Todos se posicionam em frente à partitura em prontidão total, se preparando para começar a execução da Estante 1, a mais dinâmica no que diz respeito à passagem de um

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colchete ao outro. Um fato curioso e engraçado ocorre nessa passagem: na passagem da Estante 5 para a Estante 1 Henrique não consegue achar seu instrumento e na hora do desespero acaba pegando o primeiro que vê pela frente, a viola caipira, instrumento que nunca havia tocado (uma performance tipicamente cageana, eu diria...). A estante começa no colchete [3A] , dá uma volta completa e continua até que decido voltar para a Estante 3: Zen/Tribos ao executar o colchete [2ß] . A segunda vez na Estante 3: Zen/Tribos ocorre mais uma vez com vozes, flautas e a viola caipira entoando melodias com cores modais. Porém dessa vez a execução se dá de forma mais rápida que a primeira, e após uma rodada Marcelo aciona o portal para a Estante 4: Gestos ao executar o colchete [5α] . Todo se posicionam em frente ao espelho mágico, o mesmo usado no jogo Staffsoundpainting que acabara de ser apresentado, onde os gestos indicavam sons. Dessa vez os gestos soavam somente na imaginação de cada um. A estante consiste basicamente em três quadros, onde a maior parte dos integrantes tem a indicação de [α] e um ou dois tem a indicação de [ß]. O [α] consistia sempre em um gesto já feito no concerto que se congelava, enquanto que o [ß] foi ressignificado para cada quadro. No primeiro quadro o colchete [2ß] foi interpretado por Lucas com gestos decorrentes do soundpainting, recém utilizados naquela mesma posição do palco. No segundo quadro Henrique executou o colchete [3ß] brincando com a pose estabelecido pelos outros músicos. No último quadro Fernando e Theo estabeleceram um jogo de badminton ao interpretar o colchete [1ß+6ß]. Após uma rodada na Estante 4 executo o colchete [2α] e a música é transportada à Estante 2: Máquinas. Cada quadro da Estante 2 foi interpretado como uma máquina, uma engrenagem construída pelos músicos participantes. Havíamos previamente combinado que, caso o fim ocorresse nesta estante, terminaríamos simulando uma pane na grande máquina coletiva envolvendo todos os músicos, no quadro onde todos tem a indicação de [ß]. E assim, sentindo que poderíamos acabar, aos poucos fomos desmontando a máquina, enferrujando os corpos, chegando ao fim da vida útil do nosso concerto cênico. Aspectos da percepção observados em Portais



Diversos materiais – diversas escutas Por tratar com diversos materiais, Portais exige também diferentes focos de

escuta. Na Estante 1: Folia, a escuta é atenta e está em prontidão, e as ações são intuitivas. Na

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Estante 2: Máquinas e Estante 4: Gestos a escuta se volta para o gesto físico. Na Estante 3: Zen/Tribos a escuta é imersiva, meditativa, se aproximando do Deep Listening. Na Estante 5: Groove a escuta se volta para os elementos de sistemas abstratos. Pensando globalmente a percepção corporal e da cena é extremamente importante em todos as estantes, uma vez que em nenhum momento estamos com o corpo neutro tocando um instrumento, nossos gestos físicos acompanham as características de cada portal.



Dissociação entre imagem e gesto - percepção como simulação da ação Foi em Portais onde de fato emancipamos os gestos em relação ao som que

produzem, usando-os como elementos de linguagem em si de maneira contundente. Este caminho começou a ser traçado desde os primeiros jogos performáticos como RVC, passou pelo espetáculo HINOX a partir da ferramenta do mute, se fortaleceu com o uso Soundpainting e chegou ao ápice na Estante 4: Gestos. Apesar de não emitirmos nenhum som acreditamos que é possível “ouvir” através de nossos gestos, uma vez que as imagens que formamos são bastante sonoras, e portanto acreditamos que os sons podem ser simulados e interpretados pelo público.

13.

Obra Aberta versão groove Em setembro de 2013 recebemos um convite para fazer a abertura de uma jam

session de jazz que aconteceria em um bar de Barão Geraldo – Campinas, o Bar do Zé. Como banda de abertura tocaríamos por volta de uma hora antes de abrir para a jam session propriamente dita, onde o palco se abre aos músicos que quiserem tocar. O convite veio de um amigo que ainda não tinha visto o grupo tocar (até o presente momento tínhamos tocado somente uma vez em Campinas e uma vez em Natal), mas tinha ouvido falar de sua existência, inclusive por alguns de nós, tendo em vista sua proximidade conosco. Nem ele e nem nós sabíamos exatamente o que iria acontecer ao colocarmos o Obra Aberta, um grupo de música experimental, tocando em uma jam session, mas todos se animaram com a ideia. Apesar de algumas experiências individuais dos integrantes com improvisação idiomática no ambiente específico da jam session, nunca tínhamos feito algo desse tipo juntos, e a proposta era bem diferente daquilo que estávamos fazendo enquanto grupo naquele momento. Nos perguntamos então de que maneira nos comportaríamos, como nos relacionaríamos com o ambiente e entre nós.

137

A primeira decisão foi a de não seguir a maneira convencional de se apresentar em um jam session, consistindo em tocar temas de jazz ou música brasileira, executando uma vez a melodia e posteriormente reservando seções para improvisos individuais (chamados de chorus no linguajar do jazz). Queríamos fazer algo menos rígido, sem temas conhecidos enquanto estrutura básica, saindo da fórmula tema + seções de improvisos individuais, e sem a divisão da performance em diversas músicas com agradecimentos e palmas entre uma e outra. Pensamos então em uma grande improvisação transitando por sonoridades e estilos conhecidos daquele público, porém sem se ater a estruturas rígidas de músicas já compostas. Passaríamos por diversos estilos de música, incluindo jazz, música popular brasileira, rock n’ roll, funk, e outras músicas do mundo, emendando uma ideia à outra. Assim a nossa improvisação consistiria na criação de territórios provisórios com informações conhecidas e compartilhadas, onde nos reportaríamos a idiomas de improvisação ao utilizar harmonias, ritmos, “levadas” características dos mesmos. Uma vez explorados os territórios procederíamos por linhas de fuga em direção a outros territórios, sempre de maneira improvisada, sem nenhum acordo prévio. Diferente das performances mais habituais em jam sessions, nenhum de nós teria suas funções pré-determinadas na improvisação 25 , estando em aberto as funções de acompanhamento, solo, fundo, figura, criação de texturas ou silêncio. Estava em aberto também o efetivo instrumental, ou seja, qualquer formação instrumental era possível. Ainda em relação aos instrumentos, na versão groove pela primeira vez usaríamos instrumentos elétricos como guitarra, contrabaixo e piano digital. Tendo por base essas ideias fomos ao bar para apresentar pela primeira vez o Obra Aberta Versão Groove, performance que viria a ser apresentada em outras oportunidades em 2014 e 2015. Na versão groove, por estarmos atrelados momentaneamente a idiomas específicos de improvisação, notamos que nossas ações e nossa escuta estão fortemente baseadas em elementos da gramática desses idiomas, principalmente no que diz respeito à harmonia e ritmo. Assim, a cada novo território que surgia nos preocupávamos em estabelecer/encontrar a tonalidade, modo, ou notas polares e também as métricas, pulsações e padrões rítmicos. Para o desenrolar da improvisação nos apoiávamos em nosso conhecimento

25

Tradicionalmente nas performances de jam session observam-se instrumentos acompanhadores e solistas, sendo que cada função tem seus instrumentos mais comuns. Como acompanhamento normalmente estão a bateria, o contrabaixo, e piano e/ou guitarra fazendo a harmonia. Enquanto solistas são comuns os saxofones, trompetes, vozes, por vezes outros instrumentos de sopro (flauta, clarineta, trombone), e também guitarra e piano fazendo a melodia.

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acerca dos idiomas, e quanto mais sabíamos sobre cada um deles maior era nossa liberdade e fluidez ao improvisar. Para explicar melhor como usamos essas informações na criação de uma performance de improvisação nos reportaremos ao cognitivista Jeff Pressing e suas ferramentas de improvisação: Referent e Knowledge base.

13.1 Referent e Knowledge base: ferramentas para a consistência no ambiente da improvisação idiomática e não idiomática O pesquisador Jeff Pressing, em suas pesquisas acerca da improvisação musical, identifica limites cognitivos do ser humano em relação a esta prática. Segundo o autor, ao improvisar o músico está desempenhando processos de [...] “codificação sensorial e perceptual em tempo real, distribuição otimizada da atenção, interpretação de eventos, tomada de decisões, prognóstico (das ações dos outros), armazenamento e uso de dados da memória, correção de erros, e controle de movimento, e além disso deve integrar esses processos em um otimizado e fluido conjunto de enunciações musicais que reflitam tanto a sua perspectiva pessoal quanto a sua capacidade de afetar os ouvintes.”26 (PRESSING, 1998, p. 51)

Ao desempenhar tantos processos cognitivos simultaneamente, o autor identifica limites em relação a capacidade e velocidade para processar as informações, e para que seja possível superar esses limites, em alto nível de pensamento musical e interação, propõe duas ferramentas: o referent e o knowledge base27. O referent é definido por “um conjunto de estruturas de cunho cognitivo, perceptual e emocional, que guiam e ajudam na produção dos materiais musicais” (Idem, p. 52). Como exemplos de referent podemos citar um tema, um motivo, uma forma musical (estrutura de compassos), uma sequência de acordes, e até dados extramusicais como um excerto de texto, uma imagem, etc. É um dado compartilhado entre os improvisadores, que opera em uma performance específica reduzindo a quantidade de informações para processamento, auxiliando na fluidez do discurso, uma vez que vários elementos da improvisação já estão sugeridos.

26

Nossa tradução do inglês. No texto original lê-se: [...] “real-time sensory and perceptual coding, optimal atention allocation, event interpretation, decision-making, prediction (of the actions of others), memory storage and recall, error correction, and movement control, and further, must integrate these processes into an optimally seamless set of muiscal statements that reflect both a personal perspective on musical organization and a capacity to affect listeners.” (PRESSING, 1988, p. 51) 27 Optamos por manter os termos em inglês tendo em vista sua utilização nessa forma em diversos textos brasileiros.

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O knowledge base está intimamente relacionado ao referent, e diz respeito à base de dados construída na memória a longo termo de cada improvisador, incluindo “materiais musicais e excertos, repertório, estratégias perceptuais, rotinas de solução de problemas, esquemas e estruturas hierarquizados da memória, programas motores generalizados, entre outras coisas” (Idem, p. 53). Nessa base de dados convivem não somente conhecimentos adquiridos na prática da improvisação, mas em toda a vivência artística do improvisador. Esses conhecimentos armazenados estão à disposição dos músicos e podem ser conectados a qualquer momento. Imaginemos uma jam session onde os músicos executam um standard de jazz ou de música brasileira. Em um primeiro momento executa-se o tema, com alguns instrumentos acompanhando, outros fazendo a melodia, e posteriormente começam os improvisos. O próprio standard configura-se enquanto referent, coordenando não só as ações de cada improvisador mas do grupo como um todo. Os elementos do standard (harmonia, melodia e estrutura formal) tal como executado naquele momento, configuram-se enquanto referent para aquela performance em específico, fornecendo ao músico diversas pistas e caminhos possíveis para o desenvolvimento de seu discurso. Porém, se faz necessário um conhecimento prévio para poder articular os elementos do referent e usá-los de maneira criativa. Esse conhecimento, armazenado na knowledge base, compreende, dentre outras coisas, elementos do idioma no qual se está tocando; padrões melódicos e rítmicos conhecidos; gestos característicos do próprio instrumento; excertos de outras músicas que podem ser utilizados; maneiras de utilizar os sistemas harmônicos etc. Os pesquisadores Rogério Costa e Stephan Schaub, ao examinar os conceitos de Pressing, propõem uma expansão dos mesmos, visando inclusive sua aplicação na improvisação livre (COSTA; SCHAUB, 2013). Os autores associam ainda mais as duas ferramentas ao questionarem o escopo e os limites das mesmas, alegando que o que as distingue nem sempre está claro (Idem, p. 2). Sendo assim, situam referent e knowledge base enquanto pontos em uma mesma linha, uma vez que, as ferramentas e aspectos do referent usados em um determinado momento podem vir a se incorporadas pela knowledge base no futuro, a partir da codificação e fixação na memória. Ao imaginar o referent na improvisação livre, os autores o identificam não enquanto informações gramaticalizadas, como uma melodia ou uma sequência de acordes, mas sim como “qualquer estratégia local ou específica estabelecida pelos músicos durante ou no começo de uma performance” (Idem, p. 5), tais como uma partitura gráfica, imagens, palavras, ou até olhares e gestos trocados entre os músicos. Mesmo em improvisações onde

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nada é explicitamente dado enquanto guia, Costa e Schaub defendem a ideia de que o acabou de se passar, de ser tocado e percebido na improvisação, pode ser pensado enquanto referent para articular as próximas ações da performance. A imagem de caminhar para trás no futuro pode ser usada para evocar essa ideia: todos os performers compartilham da experiência do passado sonoro daquela performance em particular, que foi construído coletivamente. Assim, no fluxo contínuo da performance, o passado se torna um tipo de reservatório em expansão contínua de recursos, formas, figuras, gestos, sons, texturas, procedimentos, etc., prontos a ser usados para a criação, recriação, transformação, variação, desenvolvimento etc.28 (Idem, p. 5)

Já em relação ao knowledge base, para se engajar em uma improvisação livre é importante que o mesmo seja desenvolvido buscando ferramentas para: lidar com o tempo (passado e presente); interagir com os outros; ouvir e conhecer o fenômeno sonoro em suas qualidades acústicas e em seus parâmetros (Idem, p. 6). Porém o aspecto mais essencial do knowledge base nesse contexto é justamente a capacidade de tomar o passado da improvisação, aquilo que acabou de acontecer, enquanto um referent. Esse dinamismo de uma escuta que apreende o que acabou de acontecer enquanto referent é também bastante importante na improvisação idiomática, com a diferença de que nesse contexto as ações normalmente estão mapeadas no idioma ao qual se está momentaneamente ligado. Em julho de 2015 nos apresentamos no Echos Bar, em Barão Geraldo – Campinas, e contamos com a participação especial do baterista Kiko Sebrian, que já tocou conosco outras vezes. O exemplo musical 15 consiste em um trecho desta performance, que se estendeu por quase duas horas ininterruptamente. O trecho começa com vozes polarizando a nota D, explorando harmônicos, enquanto a bateria sustenta um ritmo constante ao fundo. Guitarra e acordeon introduzem e estabelecem o modo frígio a partir de D, oscilando entre 3ª maior e menor. Nesse momento um território momentâneo começa a se estabelecer, delineado pela cor modal a partir da nota D e o ritmo regular e constante. Cria-se uma atmosfera de música árabe a partir das cores modais, e gradualmente a textura se densifica ao mesmo tempo que a intensidade aumenta.

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Nossa tradução do inglês. No original lê-se: “The image of walking backwards into the future could be used to evoke this idea: all performers share the experience of the sonorous past of that particular performance, which has been constructed collectively. Then, in the continuous flux of the performance, the past becomes a kind of ever growing reservoir of resources, forms, figures, gestures, sounds, textures, procedures etc., ready to be used as material for creation, re-creation, transformation, variation, development etc.” (COSTA, SCHAUB, 2013, p. 5)

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A partir de 4’20’’ os saxofones passam a executar um gesto de ataque e sustentação em dois tempos, que se instala como o elemento motriz dos próximos quatro minutos. A bateria aumenta ainda mais a intensidade e se encaminha para o rock’n roll em 6’33’’, após uma pausa abrupta em 6’31’’ acompanhada por todos os músicos. Na segunda entrada de rock’n roll em 7’08’’ temos o ápice do trecho no qual alcançamos a maior intensidade sonora e densidade. A partir de 7’50’’ o rock’n roll vai se diluindo e a guitarra propõe um ritmo mais dançante, já não mais em modo frígio, mas sim em dórico, lembrando música pop. Rapidamente os outros músicos complementam a ideia iniciada pela guitarra, estabelecendo um segundo território momentâneo. Em 9’ inicia-se um jogo de gestos imitativos, e sua variação através de transposições dissolve a textura vigente, funcionando como uma linha de fuga agindo para levar a música a outro lugar. Aspectos da percepção observados em Obra Aberta Versão Groove



Escuta orientada para elementos de sistemas abstratos Neste trecho da Versão Groove, uma improvisação idiomática, nossa escuta está

direcionada à elementos de sistemas abstratos como a harmonia e os padrões rítmicos. Usamos do nosso conhecimento adquirido e assimilado no knowledge base para nos ajudar a improvisar nesse contexto. Porém, apesar de estarmos ligados provisoriamente a um idioma, não temos como referent um tema, ou uma estrutura formal como um blues, ou qualquer outro ponto de apoio que nos diga exatamente o que virá em seguida. É claro que podemos prever o que vai acontecer nos próximos tempos, mas não passa de uma previsão, sendo que a estrutura formal é livre, ou seja, a sucessão e o agenciamento dos territórios provisórios a serem estabelecidos está totalmente em aberto. Para conseguir lidar com essa situação e coordenar a performance empregamos nosso knowledge base de improvisar a partir do que se ouve no ambiente, ou seja, tomamos o que acabou de acontecer enquanto referent, assim como nos propõe Costa e Schaub.

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Discussão Neste momento propomos uma reflexão acerca das influências da escuta no processo criativo do Grupo Obra Aberta, levando em consideração as implementações, buscas e resultados obtidos na produção descrita nos relatos. Tomando como base as ideias de José Augusto Mannis sobre o processo criativo, vamos partir da ideia que a escuta age em vários ciclos durante o processo, e assim podemos falar não só de uma escuta no tempo real da ação, mas também da escuta na construção de objetos, processos e territórios a longo prazo.

A escuta no tempo real da ação Logo no início do processo, nos propusemos a implementar a escuta reduzida para a improvisação, direcionando nossa atenção às qualidades intrínsecas dos sons que percebíamos. Buscávamos por ferramentas para improvisar a partir da própria matéria sonora, conforme nos propunha a prática da improvisação generativa. Nos forçamos à essa escuta já nos primeiros exercícios de improvisação, nos quais tínhamos que trabalhar a partir da variação de parâmetros específicos. No jogo dos quatro objetos (v. item Primeiros Ensaios, p.33), por exemplo, no qual usávamos um objeto por vez para interagir, tínhamos de pensa-lo em termos de parâmetros decompostos para, então, poder agir para promover sua variação. Os cinco modos de interação de Globokar (v. item Primeiros Ensaios, p.33) foram empregados de forma a reforçar esses princípios. No Jogo das Miniaturas e Solos e Duplas (v. item Primeiros Ensaios, p.33), por exemplo, começamos a aplicar princípios de imitação e oposição diretamente sobre parâmetros, indicando aos músicos ações como: num mesmo jogo: (1) (a) imitar o parceiro quanto à dinâmica de sua intensidade sonora; e (b) se opor ao registro que ele escolheu; ou (2) (a) imitar no registro e (b) tentar se opor nas durações, e outras inúmeras combinações. Ao começar a improvisar livremente, sem indicações quanto ao modo de agir e de escutar, tínhamos a atitude da escuta reduzida como um recurso de percepção atenta em curso de assimilação pelo grupo. Por um outro lado, haviam as estratégias perceptuais presentes no knowledge base de cada músico, que poderiam dirigir a atenção à todo tipo de elemento, desde indícios até referências culturais, e não exatamente às qualidades sonoras. A escuta reduzida nos serviu basicamente como uma guia a balizar nosso caminho nos liberando dos hábitos de escuta aos quais estávamos arraigados. Com esse novo recurso em mãos pudemos

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renovar significativamente nosso repertorio de ações em termos de exploração instrumental, ampliação da paleta de recursos de variação, renovação de sonoridades, sendo que todas estas aquisições foram imediatamente incorporadas ao repertório de ação do grupo. Uma vez atingido este estágio de amadurecimento pudemos nos lançar a outras propostas e desafios. O Deep Listening (v. item Pauline Oliveros – Deep Listening, p.77) foi proposto ao grupo e empregado pela primeira vez na execução de algumas peças de Aus den Sieben Tagen. O Deep Listening leva a uma atitude de escuta imersiva, a fim de perscrutar o na sua totalidade o espaço físico no qual o grupo está inserido. Nessa situação o grupo pôde desenvolver uma sensibilidade em apreender a resposta acústica dos locais de performance, bem como os sons externos, que, ao acaso, incidem sobre o jogo musical em curso. A percepção do som em seu movimento virtual, associado ao I-son, foi proposto ao grupo por Mannis, e aplicado primeiramente ao jogo Solos e Duplas. Neste jogo imaginamos o som e sua energia como um objeto cuja trajetória espacial é construída coletivamente. Cada integrante, ao lidar com o objeto, o modifica em relação a sua plasticidade, o tomando como uma imagem sendo desenhada. Perceber o som dessa maneira implicou na atitude de esculpi-lo, pensando na variação de sua trajetória e de seu espaço, o que desencadeou novas ações e modos de jogo. Podemos descrever trajetórias de arremesso, queda, salto, retomada, rebote, faze-lo flutuar etc. Podemos ainda faze-lo crescer, ficar mais leve, mais pesado, com menos ou mais movimento, ocupando menos ou mais espaço. A percepção do gesto físico enquanto elemento expressivo foi uma descoberta ocorrida ao acaso, quando executávamos o jogo Semáforos. A partir de então passamos a usar os gestos físicos como recurso expressivo, tanto em outros jogos como nas improvisações livres. Em RVC por exemplo, o gesto físico é dissociado do som, sendo que a realização sonora do gesto do pianista se dá por outros músicos na plateia. Em Portais (na Estante 4: Gestos) os gestos são mudos e apenas sugerem sons, que podem ser percebidos e interpretados pela plateia. Os gestos físicos enquanto elementos de linguagem abrem toda uma nova paleta de possibilidades performáticas, e são usados no grupo muitas vezes com a intenção de instaurar uma cena. A escuta voltada a elementos de sistemas abstratos, tais como harmonia e padrões rítmicos, é também aplicada pelo grupo em trechos das improvisações livres e principalmente na Versão Groove. Trata-se de uma escuta que acessa referências e experiências no domínio dos idiomas tradicionais de improvisação presentes no knowledge base de cada músico, e pode ser comparada à instância do compreender de Schaeffer, bem como à escuta macrofônica de Alain Savouret.

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No início das atividades do grupo a escuta voltada a elementos de sistemas abstratos foi empregada com parcimônia pois acreditávamos que iria inibir a renovação de ações que pretendíamos. Porém, aos poucos, esta atitude de escuta acabou se instalando como um recurso viável quando nos deparávamos em um contexto de improvisação idiomática. Na Improvisação Livre II, por exemplo, temos duas seções iniciais nas quais a atenção dos performers se dirige principalmente às qualidades da matéria sonora (escuta reduzida), e, em seguida, uma terceira seção na qual a escuta se orienta justamente a elementos da harmonia, contraponto e ritmo. O retorno à improvisação com escuta de elementos abstratos após a experiência com improvisação livre não idiomática, fez com que a tratássemos com novos ouvidos, novas atenções e mais refinamento. Portanto, podemos dizer que esta escuta se depurou quando foi retomada, tornando-se mais sutil e enriquecida por diversas soluções e conduções de ideias próprias às improvisações não idiomáticas. Agora, dominando esta escuta de maneira renovada, ganhamos a possibilidade de nos inserir em territórios idiomáticos de maneira mais aberta e inventiva, chegando a dominar sua inserção, mesmo efêmera, nas improvisações livres e jogos, ou ainda permitindo articular toda a performance em um dado momento, como no caso da Versão Groove. Observamos que a evolução do Grupo Obra Aberta em termos de capacidade de imersão, coerência musical, atenção ao detalhe, e controle da condução das improvisações com maior margem de antecipação ocorreu paralelamente a um progressivo aprofundamento, aprimoramento e controle consciente da escuta. Acreditamos que ambos os aspectos estão correlacionados, uma vez que as ações na performance passam inevitavelmente pela escuta e, portanto, se esta se desenvolve aquela também pode tomar outros caminhos. A capacidade de imersão em performance requer atenção total, ou seja, uma intenção deliberada em mergulhar nos fenômenos percebidos. Esse domínio potencializou nossa capacidade de interação entre músicos e nos proporcionou uma maior e mais rica dinâmica nos jogos. Essas melhorias contrastam com a falta de objetivo com a qual por vezes nos deparávamos nas primeiras improvisações, nas quais todos estavam envoltos em seus próprios pensamentos e seus próprios, portanto isolados uns dos outros. A escuta sistemática e atenta foi determinante para esses resultados. Assim, com total atenção ao jogo, nos colocamos mais adequadamente no ambiente, intervindo sempre em momentos oportunos e em ações focadas, que por sua vez, nos permitem delinear com mais clareza nosso intento musical. A falta de clareza foi um dos pontos sobre o qual Markeas nos advertiu ao ouvir algumas gravações do grupo em 2014, comentando justamente sobre um amorfismo que por

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vezes se instaurava em nossas improvisações. A partir deste comentário empreendemos exercícios buscando, sempre com o controle estreito da escuta, descrever caminhos mais claros, bem como um percurso mais definido no desenvolvimento de nossas ações. A atenção ao detalhe foi trabalhada desde o início do grupo através de diferentes exercícios que nos forçavam a escuta de cada parâmetro, decupando os sons em vários componentes. Em um segundo momento, no exercício de Mixagem (v. item Experiências no Conservatório de Paris e novos exercícios de improvisação p.83), começamos a auscultar os sons em seu envelope, procurando construir um macro som de maneira conjunta. Esses exercícios nos ajudaram a desenvolver recursos buscando pequenas variações no interior do som. Mesmo nas improvisações idiomáticas a atenção ao detalhe foi importante, pois suscitou, além do controle de notas em função da harmonia e contornos melódicos, intenções e ideias musicais levando em conta registros, perfil dinâmico, timbres, incluindo ainda sons não convencionais. Ao nos preocuparmos em ‘escutar a escuta do outro’, ou seja, tentar perceber o que o outro está percebendo e como poderia eventualmente agir, passamos a identificar as ações e comportamentos mais característicos de cada um. A partir desse conhecimento podemos fazer escolhas com estratégias prevendo e antecipando possíveis desdobramentos, baseados naquilo que conhecemos um do outro.

A escuta na construção do repertório compartilhado Como mencionado no capítulo 1, a construção do repertório, segundo Mannis (2014), se dá através da observação e análise de objetos, que, uma vez apreendidos e assimilados passam a fazer parte da nossa memória constituindo nossa bagagem de recursos aplicáveis. Lá estão os objetos apreendidos em sua totalidade e suas partes constituintes, material estrutura e forma, desmembradas no processo de análise, podendo ser utilizadas separadamente. Percebemos no desenrolar do trabalho criativo do grupo a criação de um repertório comum de situações, do qual fazem parte (1) ações pontuais específicas, estas situadas no nível do detalhe do fluxo sonoro e (2) outras de comportamento global, situadas num nível mais geral e abrangente de situações, configurações, grandes processos, transformações, constituindo, portanto, novos territórios. No primeiro caso podemos destacar gestos instrumentais adquiridos em situações de exploração instrumental, tendo esta sido uma das principais diretrizes do grupo. No começo de nossas atividades cada músico buscava enriquecer seu repertorio incorporando

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maneiras de tocar que surgiam nos ensaios. Por exemplo, nos violões tiramos um jogo notas surdas próximo a boca do violão (Música das Árvores), silvos, hesitações frenéticas e chuvas pontilhistas em glisssandi com raspadas e fricções nas cordas (Folia); e cortes súbitos provocados por pizzicato Bartók (Improvisação livre I e Folia). Nos sopros podemos citar super agudos em pianississimo lembrando silvos (Música das Árvores), guinchos laminares e cortantes atravessando massas sonoras dos demais instrumentos, (Versão Groove, Folia [com a tin whistle]), jogo de multifônicos com arcos de complexidade gradativa (Música das Árvores), e nuvens de barulhos de chaves em acelerando e ralentado (Folia). No acordeon, ruídos dos botões e mecanismos criando uma linha permanente de iterações de sons de altura indeterminada de cores variáveis (Improvisação livre II); e o jogo e ações diretamente nas cordas do piano explorando rugosidades e ressonâncias (Música das Árvores, Improvisação Livre II). Como essas ações aconteceram e foram adquiridas em ambiente coletivo de criação, acabaram sendo assimiladas por todos, seja nas suas técnicas pessoais seja no reconhecimento da identidade de um outro instrumento com o qual se estabelece um diálogo, instalando uma rede de trocas de sonoridades caraterísticas entre todos os membros do grupo. Alguns desses diálogos de sonoridades aconteceram de maneira recorrente, criando automatismos de conexão desencadeados a partir do momento que se percebem determinados gestos executados pelos companheiros. Como exemplo podemos citar o saxofone mordendo a palheta executando um super agudo em pianissíssimo, aguardando o violão fazer o mesmo friccionando suas cordas. Ou o acordeon executando ruídos percussivos de seu mecanismo procurando suscitar um tambora no violão ou o barulho de chaves nos saxofones; ou ainda o violão entrando com pizzicatos Bartók em alta intensidade, ao que todos reagem compreendendo ser um gesto de corte de fluxo sonoro. Uma vez na memória dos músicos, a resposta a esses automatismos pode ser subvertida, consistindo em ações que quebrem a expectativa. Nessa perspectiva, por exemplo, ao invés de responder pizzicato Bartók com um corte podemos simplesmente ignora-lo ou incorpora-lo à textura em curso Deixando agora a observação sobre ações situadas no nível do detalhe do fluxo sonoro, passamos aos comportamentos globais, portanto num nível mais geral e abrangente. Depois de um tempo tocando juntos começamos a observar e identificar a emergência de momentos recorrentes, determinados por comportamentos globais específicos, que, através de suas permanências (recorrências), acabam por cristalizar seus próprios códigos criando uma representação mental compartilhada.

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Das simultâneas e variadas cristalizações percebidas, e da relação entre os participantes, surge a predominância de uma cristalização mais forte que as demais, que após ser reconhecida por todos, estabelece um novo território. Uma vez estabelecidos os territórios, passamos a visita-los com mais frequência durante improvisações livres e também em alguns jogos. O primeiro desses comportamentos globais observados foi o groove, consistindo em um momento de tempo estriado, de caráter pulsante, em um contexto harmônico tonal/modal temporariamente estabelecido. O groove surgiu já em meio às primeiras improvisações livres como um ponto fora da curva, pois estávamos tentando não tingir nossos jogos com referências tonais. Porém não chegávamos a ser radicais a ponto de proibi-lo, e em algumas situações passamos a incorpora-lo enquanto possibilidade. Em HINOX estabelecemos um sinal indicando para o momento groove, o Pilar 3: groove, que poderia aparecer em qualquer trecho da peça. Este sinal foi em seguida incorporado ao soundpainting usado na performance Staff Soundpainting. Também em Portais, o momento groove ocorre na Estante 5: Groove, com cinco participantes ao piano. O contato com a música intuitiva de Stockhausen desencadeou um outro comportamento global identificado e incorporado pelo grupo, ao qual denominamos como mantra. Observamos nas peças intuitivas de Stockhausen uma espécie de ritual sonoro no qual usávamos poucos gestos, tocávamos com baixa intensidade, em tempo dilatado e em escuta atenta ao ambiente (reforçando a escuta orientada ao Deep Listening, com o qual tomamos contato na mesma época). Associamos essas nossas execuções a meditações, que por sua vez nos remeteram a uma interiorização através da execução vocal de mantras. Transcendendo a entonação vocal, passamos a realizar mantras também com outros instrumentos, em um jogo conduzido por notas longas, tempo liso e dilatado. A partir de então esse comportamento passou a integrar nosso repertório de situações. Em HINOX o momento mantra é indicado pelo sinal Pilar 2: mantra, que foi mantido no Soundpainting. Já em Portais o momento mantra é a ideia que conduz a Estante 3: Zen/Tribo. A ideia de improvisar a partir do movimento virtual do som, tomando o som como imagem, foi utilizada no jogo Solos e Duplas. Uma vez assimilada, a situação de improvisar a partir de um único objeto sonoro/visual passou a ser um comportamento global. Este começou a aparecer em momentos das improvisações livres e posteriormente foi utilizado em HINOX. Tal comportamento global foi o ponto de partida para o jogo Gramani joga badminton com as andorinhas, no qual o objeto sonoro esculpido por todos simula um objeto real: a peteca.

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Um último comportamento global percebido e identificado foi a folia. No grupo a folia foi interpretada como um momento de gestos muito enérgicos, rápidos, respondidos prontamente. É um momento de grande intensidade e instabilidade. A Improvisação Livre III: Folia conta com vários momentos desse tipo, lembrando por vezes uma discussão acalorada. A folia foi incorporada ao jogo Portais como Estante 1: Folia. Após identificação e assimilação, os comportamentos globais puderam ser usados enquanto material29 para outros jogos, como demonstrado acima. Enquanto outros materiais importantes para o grupo podemos citar a paisagem sonora e o Hino Nacional Brasileiro. Um dos mais significativos estímulos externos foi para nós a paisagem sonora, considerada não só por suas sonoridades, mas também como um ambiente potencialmente capaz de disparar ideias musicais, conforme proposto por Fatima Carneiro dos Santos (v. item Fátima Carneiro dos Santos: escuta e composição da paisagem sonora – escuta como gesto poiético, p.59). Em Música das Árvores, a paisagem observada e analisada foi decupada em duas partes, (1) espaços e (2) pêndulos, com características distintas. Não foram exatamente as sonoridades da paisagem observada que foram empregadas, mas dessa paisagem tomamos as cores, a textura e o movimento transformados em propostas musicais. Semáforos surge igualmente a partir da observação e análise da paisagem sonora de um cruzamento de ruas, inspirando ideias composicionais a partir da sua dinâmica da movimentação dos veículos e do comportamento de condutores observados nessa situação. Podemos dizer que a composição de Música das Árvores, primeiro de nossos jogos usando recurso à paisagem sonora, suscitou uma escuta poiética dos sons do ambiente, como proposto por Fatima Carneiro dos Santos (v. item Fátima Carneiro dos Santos: escuta e composição da paisagem sonora – escuta como gesto poiético, p.59) e logo a seguir, munidos das aquisições desta experiência, criaríamos outros jogos, como o próprio Semáforos, bem como o Jogo das Canoas30, Explorando possibilidades de tocar a partir de uma referência ou leitura simultânea interna e silenciosa de outra música não ouvida pela plateia que assiste ao grupo, utilizamos como material o Hino Nacional Brasileiro, ponto de partida para a composição da performance HINOX, uma das realizações mais importantes do grupo. Usar o HNB, especialmente no último trecho com vozes, implicou em um jogo de percepção entre

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Nesse contexto usamos o termo Material segundo a concepção de Mannis (v. item O Processo Criativo na Abordagem de José Augusto Mannis, p.23) 30 Jogo proposto por Marcelo Chacur, tendo como material o movimento do navegar das canoas em um lago. Este jogo foi brevemente trabalhado pelo grupo em 2013, porém não seguiu fazendo parte de nossas propostas criativas.

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intérpretes e público, no qual o substrato da performance e pequenos detalhes apontam efemeramente para uma memória coletiva, cujo jogo lança recurso da ambiguidade de um jogo velado. Conforme mencionado no item HINOX (p.90) a escuta de quem toca é o negativo de quem ouve, já que que os intérpretes destacam (tornam audíveis) somente fragmentos do HNB a partir de uma entonação mental de sua totalidade, enquanto a plateia tenta entrever onde estaria o HNB a partir dos fragmentos que ouve. O HNB funciona em HINOX como um elemento unificador, mantido num compartimento oculto da performance, perpassando toda a peça, tingido e transformado por outros materiais em cada seção da peça. Destacamos também nesse contexto o uso do gesto físico enquanto elemento expressivo, desencadeando ações performáticas. Começamos a perceber sua potência em Semáforos, e pouco tempo depois criamos o RVC, onde os gestos físicos são protagonistas na performance. A partir daí vieram outros jogos performáticos exigindo uma expressividade corporal teatral: Badminton, Staff Soundpainting e Portais.

Considerações Finais A partir da reflexão apresentada podemos dizer que o aprofundamento e aprimoramento da escuta atenta, analítica e crítica teve impacto direto na renovação de ações e recursos de improvisação, na construção de repertório individual e compartilhado, e no surgimento de novas propostas musicais. Observamos que as diferentes estratégias de escuta (escuta reduzida, deep listening, movimento virtual do som, percepção do gesto físico, escuta de elementos abstratos) contribuíram com sua especificidade nesse processo, suscitando recursos e desenvolvimentos incorporados ao knowledge base de cada músico, podendo ser empregados de maneira cruzada nas propostas. As próprias estratégias de escuta podem variar e se somar em uma única performance, sendo que no segundo caso uma grande concentração é exigida, devido ao maior número de aspectos aos quais a escuta se dirige. Enquanto resultado do trabalho de prática de conjunto e da aplicação de diferentes escutas se consolidaram objetos e processos que passaram não somente a integrar o repertório individual de cada músico, como também foram incorporados ao repertório compartilhado do grupo. Podemos dizer que esses objetos fazem parte da identidade do grupo, uma vez que são frutos de recorrentes ações coletivas no curso da improvisação, baseadas em nossas

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predileções e escolhas. Cada um dos objetos do repertório compartilhado nos ajudou a construir a própria imagem que fazemos do grupo. Observamos que, no decorrer do trabalho criativo do grupo, cada integrante passou por um processo de transformação no qual o desenvolvimento da escuta foi o agente chave para a ampliação da gama de sonoridades, gestos, ideias e processos que podem vir a se tornar material para posteriores criações. Identificamos nesse processo um alargamento gradual do campo de atuação da escuta poiética, incitada a perceber enquanto elementos estéticos ambientes e objetos que antes não tinham esse valor. Diante do apresentado podemos considerar nossa hipótese inicial dizendo que a escuta atenta e analítica agiu em contínuos processos de renovação, construção e ampliação, influenciando tanto no controle e refinamento da ação em tempo real quanto a longo prazo na criação de jogos e outras propostas. Seu efeito no processo criativo foi percebido de maneira global, influenciando em todos os ciclos de ciclos pelos quais passa uma obra de arte em construção. Na continuação deste trabalho almejamos ainda o aprofundamento e refinamento das estratégias de escuta em curso. Temos interesse em explorar outras possibilidades de cruzamento entre estratégias de escuta distintas e objetos de nosso repertório para a criação de novos jogos. Atualmente buscamos melhor desenvolver as possibilidades performáticas através do contato direto com o teatro, sendo que alguns integrantes estão buscando formação na área. Visamos também aprofundar o nosso conhecimento e domínio acerca de ferramentas tecnológicas aplicáveis tanto à criação de novas propostas quanto à performance, uma vez que enxergamos um grande potencial de expansão das possibilidades criativas através de seu emprego. Ainda enquanto desdobramentos destacamos a preparação de um espetáculo construído a partir dos Modelos de Improvisação de Hans-Joachim Koellreutter, em curso nesse momento, que será apresentado este ano em comemoração aos 100 anos de nascimento do compositor. Paralelamente a este espetáculo trabalhamos também na criação de uma performance com suporte tecnológico, fazendo uso de smartphones, que questiona a negligência das relações pessoais em virtude do grande alargamento das relações virtuais estabelecidas através destes aparelhos.

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Discografia APERGHIS, Georges. Récitations. CD, Paris: Montaigne Naïve: 2000 CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Cid. Poesia é risco. CD, São Paulo: Selo Sesc: 2011

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OLIVEROS, Pauline. Deep Listening. CD, São Francisco: New Albion: 1988. STOCKHAUSEN, Karlheinz. Stimmung. Copenhagen: Harmonia Mundi: 2007.

Apêndice Um DVD contendo as gravações realizadas pelo grupo das propostas relatadas e analisadas se encontra disponível como apêndice desta dissertação. Segue abaixo a lista de exemplos musicais com informações sobre cada faixa.

Exemplos musicais 1. Duos Integração/Oposição • Item Primeiros Ensaios • Gravação de ensaio realizada no dia 15 de março de 2013 • Formato de áudio wave 2. Música das Árvores • Item Música das Árvores • Faixa gravada no dia 26 de abril de 2013 na Sala 03 do Departamento de Música da UNICAMP • Formato de áudio wave 3. Improvisação Livre I • Item Primeiras Improvisações Livre • Faixa gravada no dia 26 de abril de 2013 na Sala 03 do Departamento de Música da UNICAMP • Formato de áudio wave 4. RVC • Item RVC • Filmado no dia 09 de maio de 2014 no Teatro Lara de Abraão na Faculdade Santa Marcelina - SP • Formato de vídeo MP4

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5. Nachtmusik (Karlheinz Stockhausen) • Item Música Intuitiva e Rituais Sonoros • Gravação de ensaio realizada no dia 14 de novembro de 2013 • Formato de áudio wave 6. Improvisação Livre II • Item Improvisação Livre II • Faixa gravada no dia 12 de dezembro de 2013 na Sala 22 do Departamento de Música da UNICAMP • Formato de áudio wave 7. Improvisação Livre III – Folia • Item Improvisação Livre III – Folia • Gravação de ensaio realizada no dia 21 de agosto de 2014 • Formato de áudio wave 8. Solos e Duplas – excerto • Item HINOX • Filmado no dia 09 de maio de 2014 no Teatro Lara de Abraão na Faculdade Santa Marcelina – SP • Formate de vídeo MP4 9. HINOX – trecho final • Item HINOX • Filmado no dia 7 de setembro de 2014 na Sala Jardel Filho – Centro Cultural São Paulo • Formato de vídeo MP4 10. Mixagem Improvisada • Item Mixagem Improvisada • Faixa gravada no dia 2 de dezembro de 2014 • Formato de áudio wave 11. Gramani joga badminton com as andorinhas • Item Gramani joga badminton com as andorinhas • Filmado no dia 15 de maio de 2015 • Formato de vídeo MP4 12. Semáforos versão II • Item Gramani joga badminton com as andorinhas • Filmado no dia 14 de maio de 2015 • Formato de vídeo MP4

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13. Soundpainting • Item Gramani joga badminton com as andorinhas • Filmado no dia 15 de maio de 2015 • Formato de vídeo MP4 14. Portais • Item Gramani joga badminton com as andorinhas • Filmado no dia 14 de maio de 2015 • Formato de vídeo MP4 15. Versão Groove no Echos Bar • Item Obra Aberta Versão Groove • Filmado no dia 8 de julho de 2015 • Formato de vídeo MP4

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