\'A Espiã\' tem triângulo complicado de entreter, narrar e edificar

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ilustrada FOLHA DE S. PAUO – 06 / 12 / 2016 CRÍTICA 'A Espiã' tem triângulo complicado de entreter, narrar e edificar JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA

A Espiã permite caracterizar os pontos cardeais da escrita de Paulo Coelho. Tal deve ser a tarefa de uma crítica que se deseje contemporânea: enfrentar os desafios do aqui e agora. O romance ficcionaliza a vida e, sobretudo, os últimos momentos de Mata Hari, executada na França em 15 de outubro de 1917 sob a acusação de auxiliar a Alemanha na I Guerra Mundial. Destaquemos a própria narrativa, cuja arquitetura atesta um domínio técnico ausente nos títulos iniciais do autor. A Espiã principia com uma reportagem, na forma de prólogo, que descreve os momentos finais de Mata Hari. A primeira e a segunda parte dão voz à protagonista. Numa longa carta, endereçada a seu advogado, a dançarina reflete sobre sua vida. Na terceira parte, numa estrutura contrapontística, emerge a voz do advogado, além de outra reportagem. Contraponto que amplia a perspectiva do relato, não mais limitado às memórias da protagonista. No epílogo, surge a voz do narrador, rematando a trama e esclarecendo os desdobramentos da história. Ampliação última do relato, agora não mais reduzido à época da execução de Mara Hari. Mencione-se ainda o recurso visual, aqui e ali empregado na reprodução de fotografias e documentos.

Vale dizer: por que ler o escritor de A Espiã como se ele estivesse aprisionado ao autor de O Diário de um Mago e O Alquimista? É grande a diferença entre esses títulos e a produção recente de Paulo Coelho. Caminho desimpedido, podemos caracterizar sua escrita, um dos exemplos mais bem-sucedidos do que se convencionou denominar ficção comercial. Dois elementos definem o gênero. Em primeiro lugar, a associação bem resolvida de entretenimento e narrativa. Tal opção favorece a redundância como forma, patrocinando a fluência da leitura na resolução antecipada de possíveis dúvidas. Um exemplo: a mãe de Mata Hari oferece à filha “sementes de girassol”, adicionando à guisa de lição de vida:

Por mais que queiram, jamais poderão transformá-las em rosas ou tulipas, o símbolo de nosso país. Se quiserem negar a própria existência, terminarão passando uma vida amarga e morrendo.

Por que revelar a uma holandesa que a tulipa é “o símbolo de nosso país”? Porque, no fundo, a informação é dirigida ao leitor. A ficção comercial atualiza o princípio horaciano: entretém e, ao mesmo tempo, instrui! A passagem ainda singulariza a escrita de Paulo Coelho, estabelecendo uma ponte entre o letrista e o romancista. Sua ficção acrescenta ao dístico horaciano a edificação, própria das fábulas – e isso em qualquer tradição literária. Daí, sua escrita busca atar os vértices de um peculiar triângulo, que pretende narrar, entreter e edificar. Por fim, o autor projeta, anacronicamente, temas contemporâneos na trama. Em A Espiã, flerta com o feminismo, sem contudo aprofundar a discussão – claro está.

Rematamos assim a caracterização inicial da escrita de Paulo Coelho; salvo engano, passo necessário para tentar entender o êxito global de sua ficção.

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