A Estrutura do Desejo de Françoise: Uma análise do primeiro capítulo de “A Convidada”, o “romance metafísico” de Simone de Beauvoir, a partir das teorias de Hegel e Lacan

October 17, 2017 | Autor: Thiago Lion | Categoria: Hegel, Jacques Lacan, Simone de Beauvoir, Teoría Literaria
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A Estrutura do Desejo de Françoise: Uma análise do primeiro

capítulo

de

“A

Convidada”,

o

“romance

metafísico” de Simone de Beauvoir, a partir das teorias de Hegel e Lacan1. Thiago Ferreira Lion2

São duas horas da manhã e Françoise e Gerbert - os únicos personagens deste primeiro capítulo - estão a sós no escritório do teatro terminando de trabalhar na preparação de uma peça que em breve estreará. Françoise deixa a cena para buscar mais uma garrafa de uísque, atravessando o teatro rumo ao camarim de Pierre, seu companheiro que retornará de viagem no dia seguinte. Lá apanha a bebida e volta ao escritório no qual Gerbert continua trabalhando. Os dois conversam enquanto bebem e Françoise reflete com algum pesar sobre o fato de que esta é a última noite dos dez dias nos quais eles têm trabalhados juntos e a sós, e que começando a peça sua relação perderá esta proximidade. Vários temas estão presentes na conversa, que de constante revela certa resistência de Gerbert face ao contido desejo de Françoise,

Seminário apresentado no contexto do curso “Formas de reversibilidade: Merleau-Ponty, leitor da Fenomenologia do Espírito” pelo Prof. Sílvio Rosa, na Universidade Federal de São Paulo. 2 Doutorando em Filosofia pela UNIFESP, Mestre em Direito e Membro do Conselho Editorial da Revista Crítica do Direito (www.criticadodireito.com.br). 1

resistência que em certo ponto torna-se espécie de crítica, permitindo então uma maior expansão daquele que até o momento aparecia como objeto e não sujeito. Pela janela se vê que a carroça do leite passa anunciando o amanhecer. Bebem um pouco mais e Gerbert vai dormir no sofá enquanto Françoise termina o trabalho. Ela o observa a dormir e logo vai se aconchegar junto a ele, que acaba por repousar a cabeça no ombro dela. Françoise lida com a contenção de seu desejo, se indagando até finalmente adormecer. Este é o resumo do enredo que iremos analisar, principalmente a partir do desenvolvimento da consciência na Fenomenologia do Espírito de Hegel, mas também com auxílio da teoria de Lacan, que entendemos se manter em um registro muito próximo e que nos faculta mais diretamente penetrar nos personagens. Nesta análise deixaremos de lado o foco diretamente existencialista, principalmente nas figuras de Sartre e Merleau-Ponty, que comumente acompanham as obras da autora.

O Narrador e a Forma O narrador se apresenta de maneira bastante característica neste romance, o que se testemunha com clareza desde o primeiro capítulo. Ele começa como um narrador Outro, uma voz externa que nos conta sobre a cena dos dois trabalhando para instantaneamente transformarse na Françoise percebente do cansaço de Gerbert. Logo após, ocorre a mesma inversão da narrativa, indo da ambientação do teatro para a frase que dá a tônica do capítulo: “Eu estou aqui, o meu coração bate. Hoje, o teatro possui um coração que bate”3.

BEAUVOIR, Simone de. A Convidada. Trad. Sílvio Ramos, Ed. Nova Fronteira, p. 9. 3

Esta frase sintetiza tanto a estrutura narrativa formal do capítulo, seu “texto manifesto” quanto o tema que nele é desdobrado, seu “conteúdo latente”, a ser tratado no próximo tópico. Quanto à estrutura narrativa, notamos que tal frase vem como se surgisse de fora, e na versão em português chega mesmo a ganhar aspas4, como que citada de outro lugar – a consciência de Françoise - que habita entre a própria personagem e o seu contexto, seu dasein em meio ao teatro, ao mesmo tempo em que seu coração bate também fora da personagem. A subjetividade transborda para o ambiente do qual recebe influxo e desse modo interior e exterior aparecem como um só. O narrador é assim tanto Françoise quanto um outro encarnado pelo Teatro e então a narrativa pode transitar livremente entre a descrição objetiva da terceira pessoa para o subjetivismo da primeira, sem ter de passar pela boca de Françoise. Este recurso estilístico é, no entanto, utilizado com alguma moderação. Se ele possibilita reunir sujeito e objeto num mesmo todo essencial, ao mesmo tempo sua utilização não tão frequente permite nos demais momentos manter a separação que caracteriza o narrador como diferente de Françoise. Ainda que este narrador externo ocupe-se primordialmente dos pensamentos dela, entrando em seu íntimo, estes por sua vez tendem a novamente remeter aos objetos, humanizando-os por meio da exteriorização da personagem. O narrador objetivo da terceira pessoa converte-se em narrador subjetivo da primeira que, no entanto, se vê identificado com objetos. Esse jogo de comunicabilidade entre interior e exterior ocorre com frequência, com destaque para outra passagem: “Eu estou aqui”, pensou. “Para mim, que estou aqui, a praça existe, assim como o trem que corre, Paris e toda a terra

Não presentes no original em francês. Cremos, no entanto, que a utilização da aspas pelo tradutor para o português atende a uma lógica implícita no texto, que assim é explicitada. Este recurso da tradução acaba assim por repetir no nível da representação escrita a comunicabilidade entre exterior e interior presente na narrativa. 4

contida na penumbra rósea deste escritório. No minuto presente estão contidos todos os longos anos de felicidade. E eu estou aqui, no coração da minha vida”5

O coração novamente aqui aparece, o coração que batia também pelo teatro, mas agora como centro de sua vida, um centro geográfico representado no aqui e também temporal representado no presente, no agora. O sujeito se encontra com o mundo, um como critério de validade

do

outro,

diretamente

a

partir

das

abstrações

mais

fundamentais: o tempo e o espaço, que dão o enquadramento de nossa experiência sensível, como demonstra Hegel no primeiro capítulo de sua Fenomenologia do Espírito. Para ela, Françoise, deste ponto espaçotemporal em que está, as demais coisas existem, inclusive o futuro. A temática da vida e do objeto que existe para o sujeito e viceversa retorna, novamente, na próxima utilização do recurso: “Gostaria de saber o que ele pensa de mim... O escritório, o teatro, meu quarto, os livros, os papéis, o trabalho. Uma vida muito ordenada”.6

Este retorno se dá com sinal trocado. Indagando sobre o que o outro pensa sobre ela, Françoise encontra a verdade de sua vida numa coleção de objetos, coleção esta que aparece como expressão da ordem em sua vida, como fatos mortos que a compõe. Esse elencar termina justamente com a mais reificante de todas as atividades, aquela que se apresenta sob o nome de trabalho. O narrador aparece assim como uma espécie de “esfera da essência” hegeliana, uma unidade que, no entanto, é cindida em dois termos

ora

aparecendo

como

terceira

pessoa

que

percebe

os

personagens “de fora” e ora como sujeito interno que percebe os objetos exteriores.

5 6

Op. cit., A Convidada, p. 13. Op. cit., A Convidada, p. 14.

O Conteúdo ou o Motor do Desdobramento da Forma “Eu estou aqui, o meu coração bate. Hoje, o teatro possui um coração que bate”7

Dissemos antes que esta frase sintetiza também o conteúdo tratado, que, na realidade não difere da forma a não ser por meio das palavras, isto é, é uma diferenciação imanente ao pensamento que se debruça sobre o texto, ao analisar. O coração bate no peito e no teatro, no sujeito e no objeto, conforme já dissemos. Resta indagar: por quem ou pelo que este coração bate? No plano do “conteúdo latente” que se torna cada vez mais explícito conforme o capítulo se aproxima da conclusão, percebemos que Françoise deseja Gerbert ou então, para falar com Lacan, deseja o desejo de Gerbert. No entanto, do mesmo modo que Françoise excede sua posição determinada e retorna como narradora “externa”, seu desejo também não se fixa exclusivamente em torno de Gerbert. Ele excede o outro determinado e seu desejar rumo à forma objetiva em geral, que lhe prende a atenção. Logo que sai do escritório para buscar a garrafa de uísque, quando passeia pelos “corredores negros” do teatro vazio e escuro que a “atraía” o narrador reflete que “quando não estava presente (...) nada daquilo existia para ninguém” e que assim ela “possuía o poder de arrancar, graças à sua presença, as coisas ao estado de inconsciência”8. As coisas só existiam por seu olhar, por sua visão, do mesmo modo que no saber fenomenológico hegeliano o objeto não é Em si e para si, mas somente em-si-para-um-outro. Do mesmo modo, se poderia dizer da famosa frase de Marx que diz que o homem é a natureza conhecendo-se a si mesma, pois não só é necessário a natureza existir para ser conhecida e nem o homem existir para conhecê-la, mas que um e outro só podem existir nesta dualidade que se referencia em si mesma, e que 7 8

Op. cit., A Convidada, p. 9. Op. cit., A Convidada, p. 10.

justamente pela necessidade dos dois termos estar conjuntamente colocados, ambos são uma unidade. Para Françoise, mais que uma mera possibilidade das coisas ganharem vida com sua presença, isso se tornava uma espécie de obrigação, uma “missão que recebera”. Note-se aqui que quem expressa isso que se passa em Françoise não é ela como narradora, mas a terceira pessoa, a exterioridade que fala dela pensando no mundo exterior. Dentro dela este pensamento não toma a forma de linguagem, a forma de um significado universal que pudesse compartilhar com outros9, afinal: “Sentia que era a única pessoa a compreender o significado desses lugares abandonados, desses objetos adormecidos; enquanto ali estivesse, eles lhe pertenciam. O mundo lhe pertencia”10

Eis que então surge o tema subjacente, o que estava enraizado mais fundo e que funciona como uma espécie de causa do desejo latente: “Neste momento não lamentava que Pierre não se encontrasse ao seu lado, pois existiam alegrias que não poderia gozar na sua presença: todas as alegrias da solidão, que perdera oito anos antes. Por vezes sentia essa perda como um remorso.”11

É como se o desejo de Françoise pelos objetos (Gerbert entre eles) tomasse sua forma apenas contra o plano de fundo da negação que sua relação com Pierre representava. Negação da possibilidade de estar só consigo, negação de estar a sós com Gerbert, negação de experimentar os outros tantos mistérios que o mundo guardava. A relação com Pierre, por mais liberal que fosse, era a relação mais profunda que tinha com o mundo, a que fornecia o modelo pelo qual as outras eram medidas.

Permanece, como grande parte de nossas vivências, no registro que Lacan chamou de imaginário. 10 Op. cit., A Convidada, p. 10. 11 Op. cit., A Convidada, p. 10. 9

Nesta condição de determinação essencial vale, como para outras, a lição spinoziana do “determinatio negatio est”. Agora, longe de Pierre, Françoise poderia inclusive afastar-se de si mesma, como no texto onde se lê que “Já não existia nem mesmo a própria Françoise; ninguém existia em parte alguma”. Como a consciência que se fixando nos objetos não percebe a si mesma e com isso não sofre, como o sujeito racional que não olha para dentro de si, mas apenas para a objetividade e assim procura distanciar-se de sua angústia. Quando volta “a ser alguém” separado do todo por conta do trabalho que a chama, retorna também a culpa, a traição, o abandono das coisas e de si a elas fundidas, que marca o retorno à realidade social puramente humana: “Já renunciara há muito a esse sentimento de nostalgia pelas coisas perdidas. Nada era real, além de sua própria vida”12

O retorno ao que experienciamos como “realidade”13, esse ambiente simbólico do trabalho e da relação com outros sujeitos, pressupõe um recalcamento: é necessário não só negar o que é nostálgico, mas inclusive a própria nostalgia que é sentida, de forma a se

integrar.

Não

se

procura

recalcar

apenas

o

desejo,

mas

principalmente o desejo de desejar. Mas o desejo mesmo se funda no que escapa desta tentativa de escapar, esse algo a mais indizível, o Real lacaniano que não pode ser simbolizado e se afirma justamente na negação de sua simbolização. Temos então o tema geral do capítulo, o desejo de Françoise por objetos, mas que só pode tomar esta forma a partir de algo que é anterior aos objetos em si (ao menos em relação aos que aparecem no Op. cit., A Convidada, p. 10. Que não se confunde com o Real lacaniano, na verdade seu oposto no sentido de que esse Real é justamente o que escapa à simbolização enquanto a realidade é a realidade simbólica de nosso dia a dia. 12 13

capítulo) que é a relação que ela tem com Pierre. Em Hegel poderíamos talvez dizer que, para além da consciência que se perde procurando o conteúdo dos objetos e por vezes o encontra no vazio do sagrado (que também é uma forma de religação com a unidade natural rompida) faz se

perceber

um

Outro,

as

relações

humanas

constituintes

do

suprassensível que media toda nossa experiência sensível. Parece ser este o papel de Pierre como principal feixe de relações de Françoise, esta representação do Outro, esse “nome do pai”, que mesmo quando permite, acaba proibindo. Até agora esbarramos diversas vezes na figura de Gerbert, o segundo personagem do capítulo e o objeto privilegiado para o qual se direciona o desejo de Françoise. Ele é mais novo dos dois e por vezes visto como infantil, um jovem digno de cuidados. Ele parece não desejar, mas é desejado, passivo como um objeto visto por uma consciência ativa que deseja penetrar em seus segredos. No entanto, este objeto é também um humano e assim também oferece resistência. Vemos por diversas vezes ele negando o desejo de Françoise, que por vezes finge para si mesma não se importar: quando ele prefere a atuação da peça ao trabalho a sós com ela; quando ele não tem pena de ir dormir e perder o momento com ela, mas apenas de não se sentir dormir; quando ele se recusa a falar do tema “ambos únicos vivos sobre a terra”14 e foge para a lua etc. Ela mesma percebe com clareza que quando “conversava com Gerbert, por vezes sentia surgir certa resistência de sua parte”15. No momento seguinte esta série de negativas, formas do objeto-Gerbert se esconder, se transforma no contrário: “- Pena de quê? Perguntou Gerbert. - De morar apenas em minha pele, enquanto o mundo é tão vasto. 14 15

Op. cit., A Convidada, p. 13. Op. cit., A Convidada, p. 14.

Gerbert fixou Françoise e disse: - Principalmente se você leva uma vida muito ordenada.”16

A inversão da posição de Gerbert, que vai para o “ataque”, é a inversão da posição de sujeito/objeto. Agora Françoise não quer mais penetrar no “objeto” Gerbert, mas antes volta-se para si mesmo, objetifica-se perante o olhar do outro e se questiona. Sua vida é muito ordenada, sua relação com Pierre, seu trabalho. No que o objeto se torna consciência independente e “devolve” para a consciência de Françoise sua própria reificação evidencia-se este Outro que a determina. Esta relação absolutamente contraditória com o Outro que foi escolhido por necessidade, como ela diz: “Compreendi, a certa altura, que é preciso escolher (..) No começo foi difícil; agora já não lamento: as coisas que não existem para mim, parecem não existir realmente”17.

A escolha sacrifica a possibilidade que é reprimida a favor da contingência da vida ordenada: as coisas só existem dentro desta escolha, não há nada fora do que vejo e nada fora deste Outro que determina o que vejo. Gerbert nesse meio a questiona “como assim?” ao que ela não pode responder e volta à lua. O narrador impessoal, no entanto, fala por ela “Françoise hesitou. Sentia o que acabara de dizer de uma forma tão concreta...”18. Ela não pode explicar o que sentia, exatamente como antes quando “Sentia que era a única pessoa a compreender o significado desses lugares abandonados”19. Mas por que não podia explicar? Porque o que é diretamente „visado‟ (sentido) não pode ser transmitido

16 17 18 19

Op. Op. Op. Op.

cit., cit., cit., cit.,

A A A A

Convidada, Convidada, Convidada, Convidada,

p. p. p. p.

14. 14. 15. 10.

para outra pessoa senão por meio da linguagem20, como no imaginário lacaniano que só pode adquirir alguma forma pelas bordas do simbólico. Na linguagem, no ambiente simbólico, a opção que poderia tentar explicar o porquê o que ela não via parecia não existir estava bloqueada, recalcada pela opção necessária de sua vida e trabalho com Pierre. A consciência ao tentar penetrar no objeto se vê, ou seja, percebe o vazio do objeto que é na realidade o seu vazio, mas que também não é apenas seu, mas também de um Outro que a determina. “Se eu tivesse querido... Ainda não é tarde demais”21, tem que ser lido como não sendo que ela não queira, ela quer, mas é castrada pelo Outro, do mesmo jeito que após o “ataque” de Gerbert ela perde momentaneamente a posição de sujeito: “É... Nunca podemos pensar que os outros são consciências que têm um sentimento de si próprios, como nós – disse Françoise. – Quando descobrimos isso, é terrível: temos a impressão de que não passamos de uma imagem refletida no cérebro de alguém.”22

Ao que Gerbert diz: “É talvez por isso que não gosto que falem de mim, mesmo quando falam amavelmente; tenho a impressão de que as pessoas, dessa maneira, adquirem certa superioridade em relação a mim.”23

Como no exorcismo e nos rituais xamânicos nos quais o ato de descobrir o nome dá poder sobre o espírito. É o caminho básico para a consciência se apoderar de um objeto, lhe atribuir um nome, uma primeira significação que permite se aproximar da “coisa” e trazer para “O mais verdadeiro é a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso „visar’, e porque o universal é o verdadeiro da certeza sensível, e a linguagem só exprime este verdadeiro, está pois totalmente excluído que possamos dizer o ser sensível que „visamos‟” Hegel. Fenomenologia do Espírito. Parágrafo 97. 21 Op. cit., A Convidada, p. 15. 22 Op. cit., A Convidada, p. 15-16. 23 Op. cit., A Convidada, p. 16. 20

dentro da consciência um objeto que até então é Em-si, externo e negativo. Quando alguém fala de nós ele nos trata a partir da linguagem, com a abstração de nós mesmos, nos torna palavras, abstrações objetivas enquanto comunicáveis. É essa formulação das palavras de Gerbert “vida muito ordenada” que evidencia o Outro que prende Françoise e mostra sua realidade não como consciência livre, não como Sujeito, mas como objeto determinado por este Outro. Quando Gerbert dorme, a posição de Françoise como sujeito retorna, mas agora ela está sozinha e tem de se haver consigo mesmo e com seu desejo insatisfeito. “Nada mais possuirei dele”24, diz ao se aconchegar com ele no sofá, evidenciando sua intenção, possuir. É justamente no momento em que ela nega este desejo do objeto, o desejo de alcançar seu suposto conteúdo, que ela se vê a si mesma como fonte da negação, afinal “ela não poderia desejar que ele a amasse”25 e assim “nada lamentava; nem sequer tinha direito à melancolia que lhe entorpecia”. Esse “si mesma”, no entanto, é o Outro em si, sua relação com Pierre e seu trabalho, àquela entre as relações que neste estágio de sua vida é a mais fundamental constituinte do seu próprio Eu. Aqui a subjetividade encontra parte de sua verdade como objeto, como determinação que ultrapassa sua própria vontade não por negá-la, mas justamente por formá-la – o que assim retira sua aparência de liberdade ao mostrar sua determinação. Nesta visão que temos de nós próprios como uma unidade, como abstração dos diversos momentos, circunstâncias e relações, no entanto, algo escapa, algo falta. Este é o desejo, uma vacuidade que pede sempre preenchimento com algum objeto, mas que, no entanto, jamais pode ser preenchido, pois seu fundamento não é o objeto e sim o espaço que ele vem a ocupar. Esta incompletude estruturante é que dá o caráter de subjetividade, o ponto ao redor do qual se moldam as vivências. O Eu, segundo Hegel a abstração pura, corresponde ao 24 25

Op. cit., A Convidada, p. 17. Op. cit., A Convidada, p. 18.

imaginário e postula uma unidade em oposição à totalidade física, química e biológica do mundo. Mas este Eu só pode ser imerso neste mundo do qual é parte dependente, enquanto a unidade da consciência de si é justamente a abstração desta continuidade do universo e seu foco no Eu. Esta continuidade negada na constituição da consciência de si é o ponto cego que estrutura o próprio Eu, a falta que lhe faz todo o resto do qual ele brotou, a totalidade da natureza do qual se separou e a qual há de retornar. O apego de Françoise à unidade imaginária de seu próprio Eu tenta excluir a incompletude sobre a qual deveria se fundar, tenta reprimir justamente seu desejo. Buscava justificar esta supressão da falta dizendo a si mesma que “Amava Pierre. Em sua vida não havia lugar para outro amor”26. Acaba sendo uma espécie de “inconsciente insinceridade consigo mesma”, a repressão do desejo e do devir como constituinte de si a favor do que já está dado idealmente. O primeiro capítulo do romance, assim, já anuncia a possibilidade de um violento “retorno do reprimido” pelo fato de que tudo aquilo que poderia ter sido simbolizado é negado, mantido como Em-si, como Real que deve retornar. O mesmo se pode dizer de um ponto que aparece apenas en passant no texto do capítulo, aparentemente sem maior importância para a trama, mas que só pode assim ser considerado se for reprimido: “Françoise nunca acreditara na possibilidade de uma guerra; um conflito armado era como a tuberculose ou os desastres ferroviários: só acontecem com os outros”27.

26 27

Op. cit., A Convidada, p. 18. Op. cit., A Convidada, p. 9.

Conclusão Podemos agora, segundo o que foi exposto, sintetizar logicamente o primeiro capítulo. Françoise é a consciência, a protagonista-narradora da história. Pierre, que não está positivamente presente, mas nas sombras, é o representante do Outro, o lastro do ambiente simbólico por fornecer ao mesmo tempo um modelo de identificação positiva e a figura de castração. Françoise só é nessa relação sua com Pierre, mas também ela só é ela mesma, um sujeito que deseja, justamente no que “escapa” a esta relação em direção a outros objetos, como Gerbert. Este lhe devolve de maneira invertida, como num espelho, a forma do desejo projetado: sua vida muito ordenada, sem graça, que por isso deseja tão desesperadamente possuir objetos como forma de fugir do confronto com sua própria verdade. Na Fenomenologia do Espírito, o caminho sinuoso pelo qual a consciência se desdobra, vemos a consciência se debatendo, tentando encontrar o conteúdo do objeto a todo custo. Mas sempre que ela vai olhar “por detrás das cortinas”, lá encontra a si mesma em sua limitação auto imposta. Hegel analisa a “consciência social”, o espírito que anda por detrás de cada consciência individual, o Outro. Seu traçado, no entanto, ajuda a entender também a individualidade de Françoise. Lacan, em nosso ver um grande herdeiro de Hegel, completa esta passagem para uma análise da subjetividade. O contexto todo que forma este desdobrar da consciência por fora e também por dentro dela, nos sujeitos e no mundo exterior do mesmo modo que na relação de Françoise com Pierre, é dada na análise da mercadoria por Marx, que aqui não pudemos desenvolver. As formas de relação amorosas instituídas com base no intercâmbio de equivalentes, mesmo quando tentam ser negadas pelos indivíduos, constituem o ponto de partida que estrutura esta negação como um reflexo invertido.

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