A Europa \"vendeu a alma ao diabo\"

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: European Union, União Europeia, Turquía
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A Europa "vendeu a alma ao diabo" João Pedro Simões Dias - 2015.12.01

No passado domingo os chefes de Estado e de governo dos EstadosMembros da União Europeia voltaram a reunir-se em cimeira de Conselho Europeu por ocasião da realização de mais uma cimeira entre a União e a Turquia. Como venho anotando, vão longe os tempos em que cada reunião do Conselho Europeu era um momento histórico e de relevo na vida da União Europeia e da cidade europeia que, rotativamente, recebia os chefes de Estado e de governo. Eram os tempos em que cada cimeira europeia ficava associada ao nome da cidade que a recebia – que se engalava para receber os altos dignitários europeus, num processo que contribuía para aproximar os cidadãos dos diferentes países da União da vida das suas instituições, particularmente da vida da sua mais importante instituição: o Conselho Europeu. Desde o início deste século, porém, em mais uma decisão incompreensível pelo que possui de centralista e de burocratizada, essa prática da rotatividade terminou e ficou assente que todas as reuniões cimeiras do Conselho Europeu se passariam a realizar na burocratizada cidade de Bruxelas. Foi um ponto final no princípio da rotatividade, foi mais uma pedra no muro que separa os europeus das instituições europeias. E, sobretudo, uma decisão nunca suficientemente explicada que nem motivos económicos pode invocar – ou não é esta União Europeia que se dá ao luxo de ter um Parlamento Europeu que, todos os meses, reúne três semanas em Bruxelas e uma semana em Estrasburgo, como todas as mudanças que, mensalmente, isso supõe? O certo é que, a partir do momento em que o Conselho Europeu se sedeou definitivamente em Bruxelas e que o ritmo das suas sessões aumentou de forma exponencial, que tais cimeiras deixaram de ser momentos relevantes no processo europeu e, na maior parte das vezes, passam totalmente despercebidos ao comum do cidadão

europeu, a elas permanecendo atentos, apenas, aqueles que, por dever de ofício, permanecem obrigados a dar-lhes atenção. É que o hábito retira importância às coisas.... Foi, na prática, o que se passou no passado domingo. Poucos deram pela realização desta cimeira europeia a qual, uma vez mais, se ocupou quase exclusivamente da questão dos refugiados sírios e, por acréscimo, das relações com a Turquia. Ambos os assuntos têm entre si um profundo nexo de ligação e dificilmente se consegue abordar um deles esquecendo o outro. Desta feita, a União voltou a convocar a Turquia para as suas responsabilidades no processo de suster nas suas fronteiras aqueles que, provenientes da Síria, pretendem demandar território da União em busca de um amanhã melhor e de uma paz que não encontram no seu território e que lhes possibilite levar uma vida minimamente decente. Como contrapartida, o Conselho Europeu ofereceu à Turquia o que os turcos pretendiam obter: um cheque de três mil milhões de euros e a promessa de relançamento do processo de adesão de Ancara à União Europeia. Face a este preço que a União Europeia assumiu pagar à Turquia, muitos eram aqueles observadores e comentadores que, em Bruxelas, na noite de domingo, sentiam que a União Europeia tinha “vendido a alma ao diabo”. Talvez não estejam muito errados. É verdade que a Turquia é parceiro da maioria dos estados-membros da União que são simultaneamente membros da Aliança Atlântica no quadro desta mesmo NATO. Mas também não deixa de ser menos verdade que, conforme temos vindo a notar é, de entre os aliados e parceiros, o menos confiável e o mais suspeito. Aquele que, face a opções de natureza verdadeiramente estratégicas e geopolíticas, tem revelado um comportamento dúbio e dúplice. Que tanto se aproveita 2

do apoio ocidental para combater o regime sírio de Damasco como, de passagem, aproveita para insistir na limpeza étnica do martirizado e sofrido povo curdo, um dos poucos povos sem pátria e nação sem Estado que subsiste nos nossos dias. Que tanto condena o Daesh como não se livra de estar envolvido em negócios de venda de petróleo que lhe permitem faturar largos milhões de dólares a cada dia que passa, contribuindo, indiretamente, para que o terrorismo se possa financiar. Que anuncia empenho em reter os migrantes sírios mas abundantes provas demonstram que lhes franqueia as fronteiras e facilita a sua romagem para a Europa. Em síntese – dos diferentes aliados euro-atlânticos, Ancara é, indubitavelmente, o que mais reservas deve suscitar pelas práticas reiteradas que vem assumindo. Ora, foi justamente com esta Turquia de duvidosa fiabilidade que a União Europeia decidiu, no passado domingo, aprofundar o seu relacionamento. Por um lado através de um cheque de três mil milhões de euros que, teoricamente, deverá servir para criar condições em solo turco para que os migrantes com origem na Síria não atravessem o Mediterrâneo e fiquem retidos enquanto não puderem retornar ao seu país de origem. Compreende-se este apoio e, de certa forma, será difícil equacionar modo diferente de estimular a retenção que se pretende. Mas o Conselho Europeu foi mais além – decidiu relançar, politicamente, as negociações de adesão da Turquia à União Europeia. Percebe-se que a Turquia tenha querido aproveitar o momento para forçar esta decisão; não se percebe que o Conselho Europeu tenha sufragado tal pretensão. Sobretudo sabendo-se que, dos diferentes dossiers que faltam negociar e concluir, em vista da eventual adesão de Ancara à União, estão os mais relevantes e politicamente mais sensíveis: o respeito pelo Estado de direito democrático, a respeito pelos direitos humanos, o respeito pelo princípio da igualdade entre

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homens e mulheres, a harmonização da legislação sobre liberdades civis e políticas – vários outros, também. Parece evidente que não será este o momento adequado para o relançamento dessas negociações. Sobretudo numa altura em que a posição de Ancara suscita as dúvidas atrás expostas e o relacionamento euro-turco está longe de se poder considerar normalizado. Foi, inquestionavelmente, uma decisão precipitada que, como quase sempre acontece, equivale a uma má decisão. A uma decisão em que, a troco de uns trocos e de uma promessa política, a União Europeia aquietou a sua consciência e pretendeu relegar para longe das suas fronteiras a resolução de um problema humanitário que continuará longe de ser e estar resolvido. Mesmo que para isso tenha tido necessidade de “vender a alma ao diabo”.

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