A experiência imersiva do 3D no cinema contemporâneo

June 28, 2017 | Autor: Erika Savernini | Categoria: 3D Cinema, Werner Herzog, Martin Scorsese, Wim Wenders, Ang Lee, estereoscopia 3D
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A experiência imersiva do 3D no cinema contemporâneo

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The immersive experience of 3D in contemporary cinema Erika Savernini2 (Doutora – UFJF)

Resumo: No momento atual, é possível uma reflexão sobre o 3D como um recurso ainda em construção aplicável à ampliação da experiência espacial e à potencialização das camadas de significação da narrativa, a partir de duas vertentes: a do cinema documental e a da narrativa ficcional fantasiosa. Para tal, discutimos o potencial inventivo da tridimensionalidade a partir dos filmes Pina (Wenders), Cave of forgotten dreams (Herzog), As aventuras de Pi (Ang Lee) e A invenção de Hugo Cabret (Scorsese).

Palavras-chave: Cinema 3D; Narrativa e tecnologia; Documentário 3D; Ficção 3D.

Abstract: At the moment, we can reflect on the 3D as a feature under construction applicable to the expansion of spatial experience and the potentiation of the narrative layers of meaning, from two aspects: the documentary film and the fanciful fictional narrative. To this end, we discuss the inventive potential of three-dimensionality from the movies Pina (Wenders), Cave of forgotten dreams (Herzog), Life of Pi (Ang Lee) e Hugo (Scorsese).

Keywords: 3D Cinema; Narrative and technology; 3D Documentary; 3D Fiction.

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Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: ASPECTOS DE LINGUAGEM E EFEITOS VISUAIS. 2 Profa. Adjunta – Dep. Comunicação e Artes (FACOM); colaboradora no PPGCOM. Autora de Índices de um cinema de poesia, co-editora Reflexões sobre a montagem cinematográfica, de Eduardo Leone (Ed. UFMG).

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Primeira aproximação: conceitos e resumo histórico O cinema 3D parece ter ganhado novo vigor, a partir do final da primeira década do século XXI. No entanto, não é uma novidade na história do cinema. A criação fílmica da representação do espaço tridimensional pela estereoscopia remonta ao pré-cinema. Segundo Dickson e Dickson (2000), Thomas Edison e Dickson, assistente na invenção do kinetoscópio e, posteriormente, nas primeiras produções do estúdio, já haviam testado diversos aparelhos de captação da imagem em movimento, mas com baixa definição, quando, em 1889, conseguiram qualidade bastante para testes com imagem e som (pela integração com o fonógrafo) e também de estereoscopia. Chama-se estereoscópica toda técnica pela qual se cria uma imagem com qualidade tridimensional a partir de duas imagens com pontos de vista ligeiramente diferentes, simulando a binocularidade humana. A binocularidade (olhos frontais que constituem pontos de observação diferentes pela distância pupilar, que é, em média, de 6 cm) é a qualidade fundamental da visão humana que permite a percepção da profundidade. Por conta disso, a binocularidade e a imagem resultante disso estão relacionadas à experiência espacial de estar no mundo. A percepção de profundidade é que nos permite localizar objetos no espaço circundante, bem como integramo-nos a esse espaço – ou seja, para o homem, o estar no mundo é grandemente definido pela percepção do seu corpo no espaço, que, por sua vez, está diretamente relacionada à visão binocular. Ilustração 1: Esquema da binocularidade humana

Fonte: http://iappucsp.blogspot.com.br/

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O efeito 3D na imagem cinematográfica é alcançado, como para nossos olhos, pela convergência de duas imagens ligeiramente diferentes sobre a tela (correspondentes ao olho direito e ao olho esquerdo). Essa convergência gera três tipos de paralaxe: normal (convergem sobre a tela); negativa (convergem antes da tela); positiva (a convergência acontece “depois”, para dentro, da tela). Ilustração 2: Tipos de paralaxe

Fonte: ABCINE http://www.abcine.org.br/artigos/?id=80&/peter-anderson-asc-no-festival-do-rio-2008

Os primeiros aparelhos estereoscópicos, segundo Wade (1989), foram inventados por Charles Wheatstone, no século XIX – mas os estudos que descreveram a binocularidade e a formação da imagem pelo olho humano remontam à Grécia Antiga. No cinema, como relatam Dickson e Dickson (2000), os primeiros experimentos ocorreram ainda no final do século XIX – certamente herdeiros do que já se fazia na fotografia estática. Consta que o primeiro filme em longa-metragem em 3D foi The Power of Love (1922), dirigido por Nat G. Deverich e Harry K. Fairall. A produção de filmes 3D, no entanto, só se tornou moda nos anos 1950; justamente no contexto de experimentação que o cinema empreendeu para fazer frente à televisão, que se popularizou nos Estados Unidos nessa década e estava rivalizando com (e vencendo) o cinema na conquista do público. É o período também no qual os sistemas de captação de cores foram largamente empregados (e o cinema colorido se tornou padrão), bem como as telas largas (o widescreen – que passa agora a ser padrão uma vez que também a televisão, agora em high definition, o adota) e a estereofonia (som estereo). Elsaesser (2013) indica, inclusive, que o 3D digital seria uma forma de atualizar a imagem em relação ao som, uma vez que esta ficou “para trás” 482

do som no cinema, que já adotou a espacialidade faz tempo. Os sistemas THX, o Dolby Digital 5.1 e o SDDS, por exemplo, foram adotados pela indústria e pela rede de exibição nos anos 1990; ao passo que o cinema 3D digital só ganhou novo fôlego, depois do modismo dos anos 1950, no final da primeira década do século XXI – sendo Avatar, de 2009, um marco. Pretende-se, portanto, estimular a discussão de experiências de imersão que se configuram inventivamente no cinema contemporâneo; produções polarizadas entre a narrativa documental e a fantasia ficcional que apontam o 3D não apenas como um recurso tecnológico atrativo, mas uma nova ferramenta a serviço da sensibilidade do realizador e uma nova dimensão da narrativa, literal e figurativamente. Duas vertentes do 3D no cinema contemporâneo O 3D esteve, desde o primeiro boom de produção nos anos 1950, muito associado a um cinema de ação e de aventura, ou mesmo do gênero de terror e suspense, principalmente por conta do emprego da paralaxe negativa - responsável pela projeção de objetos e de criaturas para fora de tela, em direção ao espectador. O que se vê profusamente também na produção atual – em maioria, o 3D é uma atração a mais por si só, que acrescentaria unicamente o susto e o impacto do “saltar da tela”. Por outro lado, percebe-se e aponta-se um potencial de alteração da linguagem e da experiência fílmica, potencial ainda pouco explorado na produção audiovisual em 3D digital. Atualmente, o 3D digital tem sido experimentado por grandes nomes do cinema mundial, que relatam o repensar o cinema que a experiência de filmar em 3D propicia, bem como a crença que algo inovador possa surgir daí – algo que podemos apenas vislumbrar nesse momento. São diretores como Ang Lee, Martin Scorsese, Win Wenders, Werner Herzog, Jean-Luc Godard que filmaram em 3D, ao mesmo tempo em que refletiram sobre seu emprego no cinema. Em consonância com o depoimento desses diretores, Henriques (2010) ressalta que a filmagem 3D exige que se repense toda a linguagem empregada. O enquadramento, o ângulo, o movimento e a própria dramaturgia alteram-se diante do 3D. Lembrando-se, inclusive, que a espacialidade tridimensional na tela plana do cinema não é alcançada apenas pela estereoscopia, mas também por fatores de composição bidimensionais como linhas e disposição de elementos que reforçam a perspectiva e pela iluminação (que aumenta a profundidade de campo). Esses outros 483

fatores concorrem grandemente para a ampliação do efeito tridimensional da estereoscopia – e devem ser concebidos em função dela. Wenders e Herzog, respectivamente em Pina e Cave of forgotten dreams, utilizam o 3D para criar uma experiência de imersão no espaço filmado e de sua integração com o espaço ocupado pelo espectador.

O

caráter

de

imagem

objetivamente

construída

do

cinema

associado

à

tridimensionalidade, que faz com que a tela possa ser um prolongamento do espaço ocupado pelo corpo do espectador, cria uma experiência de real. Wenders (2011), logo após o lançamento do filme Pina (Alemanha, França e Reino Unido – 2011), declarou, em conferência em Toronto, sua convicção de que o 3D estaria sendo subaproveitado em sua qualidade de aproximação do público em relação ao real. Ao testar diversas formas de filmar o grupo de Pina Bausch, Wenders sentia que algo como uma parede separava a câmera das performances. O 3D, em sua qualidade essencialmente espacial, surgiu como a solução ideal – só então a parede se desfez, segundo Wenders, por ser a dança também essencialmente uma arte no espaço. O que se pode perceber, então, é que a câmera, como um ponto de vista localizado fora da tela, passaria a comungar, de forma mais sensível, do mesmo espaço projetado na tela (para dentro dela, como é o efeito produzido pela paralaxe positiva). Wenders enfatiza a potencialização dos detalhes no 3D (no caso de Pina, particularmente, nos depoimentos dos companheiros de Pina Bausch, momentos em que o 3D poderia criar a sensação do compartilhar do mesmo espaço). Ele ainda critica a distorção desse potencial do 3D de criar a experiência do real em função de um uso maciço para a narrativa fantasiosa; desse modo, não se reconhece como recurso para representação da realidade. “Human reality. Our planet. Our existence. Our concerns” (WENDERS, 2011). Werner Herzog, em Cave of forgotten dreams (Canadá, Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido – 2010), também emprega o 3D na narrativa documental, de forma a criar uma experiência espacial. Se nos primórdios do cinema já se produzia vistas de lugares exóticos (na visão eurocêntrica de mundo), propiciando a experiência mediada do mundo (não é mais preciso o deslocamento do corpo para o conhecimento de lugares distantes, perigosos, caros...), Herzog nos explica que as cavernas que serão mostradas estão inacessíveis ao público, que a equipe teve acesso, mas com restrições. O 3D cria para o espectador a experiência restrita às equipes científica e cinematográfica. A iluminação precária, por outro lado, gera um senso de real e cria movimento nas 484

pinturas rupestres – dá vida àquela caverna, descrita como uma “cápsula do tempo”; anima, portanto, essas imagens estáticas de milhares de anos. Além disso, o 3D também produz sentidos. Há um momento, por exemplo, no qual a colocação da câmera constrói uma narrativa. Em primeiro plano, numa saliência de rocha, há uma pintura rupestre de um tipo de felino, ao fundo, na parede da caverna, pinturas de um tipo de bovino, no plano em 3D, cria-se uma cena de caça. Por outro lado, na vertente experimental da narrativa fantasiosa, em A invenção de Hugo Cabret (Hugo – Estados Unidos – 2011), Martin Scorsese homenageia Georges Méliès não apenas por toma-lo como personagem da história (adaptada do livro de Brian Selznick). Como Méliès, Scorsese apresenta uma fábula bastante simples, mas que permite uma grande complexidade na composição da imagem. Em Méliès, há uma grande heterogeneidade de materiais organizados em camadas (os planos justapõem atores, objetos cenográficos, objetos reais, molduras em primeiro plano, cenários pintados etc.), que Scorsese emula com o 3D. O filme de Scorsese pode ser tomado como a versão contemporâneo do estilo de Méliès. Ang Lee, em As aventuras de Pi (Life of Pi – Estados Unidos, Taiwan, Reino Unido e Canadá – 2012), configura uma fábula (narrativa que guarda uma lição por sob a narrativa superficial, geralmente encarnada por animais antropomorfizados) narrativa e tecnicamente, pois que há camadas de interpretação da história e de constituição da imagem em 3D. Destacam-se, por isso, as formas de transição entre cenas do presente da narração com o flashback por camadas dentro do plano – uma reinvenção da transição, similar ao que Welles e Toland fizeram com as fusões por iluminação em Cidadão Kane (SAVERNINI, 2014). Considerações finais No momento atual, a exploração técnica da estereoscopia pelo cinema industrial parece estar repetindo, com maior qualidade técnica, o modismo que representou o 3D nos anos 1950. Naquele momento, como atualmente, com a profusão de filmes de aventura e de ação, buscava-se o impacto visual monumental dos grandes espaços e o susto (muitas vezes, pela paralaxe negativa – momentos nos quais os objetos projetam-se como que para fora da tela, em direção ao público). Entretanto, Elsaesser (2013) propõe que, diferentemente da maioria da produção dos anos 1950, nos filmes atuais, o 3D é um efeito visual para não ser percebido (invisível ou transparente) – como também as técnicas de animação empregadas como efeitos visuais no cinema digital, a estereoscopia tende a 485

ser incorporada ao hiper-realismo imperante no cinema contemporâneo em sua vertente espetacular (mais comercial). Percebemos, empiricamente, que há um cambiar entre os tipos de paralaxes normal, positiva e negativa com um emprego mais sistemático da paralaxe positiva, que reforça a imersividade – uma vez que as imagens convergem como se para dentro da tela. O cinema 3D atual, portanto, se adequaria mais ao momento atual da sociedade em rede, da virtualização das experiências, do desejo de maior interação ou interatividade com os produtos que são não apenas consumidos, mas também produzidos (uma vez que, cada vez mais, potencialmente, lidamos com prosumers). Daí, esse universo hiperrealístico do cinema que emprega profusamente efeitos visuais incorporar tão bem mais uma dimensão de envolvimento desse novo espectador; o 3D de caráter imersivo.

Referências AS AVENTURAS DE PI. De Ang Lee. Brasil: 20th Century Fox. Blu-ray 3D. CAVE OF FORGOTTEN DREAMS. 2010. De Werner Herzog. USA: Picturehouse Entertainment e Revolver Entertainment. Blu-ray 3D. DICKSON, W.K.L.; DICKSON, Antonia. History of the Kinotograph, Kinetoscope and Kinetophonograph. New York: Museum of Modern Art, 1895 (facsimile edition 2000). ELSAESSER, Thomas. “The ‘Return’ of 3-D: On Some of the Logics and Genealogies of the Image in the Twenty-First Century” Critical Inquiry: Chicago, n. 39, winter 2013. Disponível em: < http://criticalinquiry.uchicago.edu/uploads/pdf/Elsaesser.pdf>. Acesso em: 22 ago 2014. GOMIDE, João Victor Boechat. Imagem digital aplicada; uma abordagem para estudantes e profissionais. São Paulo: Elsevier, 2014. HENRIQUES, Carlos A.. A invasão do 3D no cinema e na televisão. Prefácio de José Alberto Carvalho. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2010. HUGO. 2011. De Martin Scorsese. USA: Paramount. Blu-ray 3D. PINA. 2011. De Wim Wenders. USA: The Criterion Collection. Blu-ray 3D. SAVERNINI, Erika. “O uso experimental do 3D em As aventuras de Pi”. In: AVANCA | Cinema 2014, 5, Avanca, Portugal, 2014. Anais… Avanca: Cine-clube Avanca Edições, 2014. WADE, Nicholas J.. A natural History of Vision. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1998.

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WENDERS, Wim. “Keynote speech by Wim Wenders”. In: TORONTO INTERNATIONAL STEREOSCOPIC 3D CONFERENCE, Toronto, 2011. Disponível em: . Acesso em: 07 jul. 2013.

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