A falta de lugar da pobreza e atenção às celebridades no jornalismo: sentidos produzidos a partir da campanha da ONG TETO

May 30, 2017 | Autor: Jonas Pilz | Categoria: Journalism, Social Networks, Poverty, Advertising, Computer-Mediated Communication (CMC)
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A falta de lugar da pobreza e atenção às celebridades no jornalismo: sentidos produzidos a partir da campanha da ONG TETO1 Jonas Pilz2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil RESUMO

Em 2015 a ONG TETO promoveu uma campanha publicitária, que criticava o grande interesse pelo cotidiano das celebridades e a invisibilidade da pobreza nos meios de comunicação, com o texto e o conceito “o problema não é o que vira notícia, mas o que deixa de ser”. Este artigo pretende identificar os sentidos oriundos das conversações em rede nas oito publicações da página da ONG TETO no Facebook sobre a campanha. Parte-se do questionamento de quais sentidos emergem através da conversação em rede desta campanha, onde percebe-se que os atores sociais, além dos meios, também responsabilizam a sociedade e a esfera política neste contexto. O artigo também contempla uma reflexão teórica sobre a falta de espaço da pobreza e a atenção às celebridades nos meios de comunicação em torno de conceitos de jornalismo, notícias e critérios de noticiabilidade e acontecimento.

PALAVRAS-CHAVE: jornalismo, produção de sentidos, redes digitais. ABSTRACT ou RESUMEN:

In 2015 NGO TETO promoted an adversiting campaign criticizing the great interesest that media has on celebrities daily news and the invisibility of extreme poverty with the sentence and the concept "it doesn't matter what becomes news, it matters what doesn't". This paper aims to identifiy the creation of meaning from computermediated communication around eight update status on TETO's fanpage on Facebook, through the questioning of which meanings rise through the computer-mediated communication about this campaign, where it is noted that besides the media, social actors also claim responsability from politics and society around this cenario. The paper also intends to do a theoretical reflection about the lack of space of poverty and the interest about celebrities in media by concepts of journalism, news and news valeus and journalistic events.

KEYWORDS: journalism, creation of meaning, social newtworks. 1 Introdução Em abril de 2015, a ONG3 TETO e a agência Leo Burnett produziram uma campanha

publicitária com o objetivo de dar visibilidade para a realidade de extrema pobreza em que

vivem milhões de brasileiros. Com a chamada e o conceito “O problema não é o que vira notícia, mas o que deixa de ser”, a ação criticava, ao mesmo tempo, o grande interesse dos veículos

Trabalho apresentado no GT 2: Comunicação, linguagens e narrativas do I Simpósio Internacional de Comunicação, realizado de 22 a 24 de agosto de 2016, UFSM, Campus Frederico Westphalen. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. E-mail: [email protected]. 3 Organização não-governamental 1

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pelo cotidiano das celebridades e o esquecimento, ou a invisibilidade, da realidade diária das

famílias que vivem em situação precária. As peças mostram moradores da comunidade de Malvinas (Guarulhos/SP) segurando cartazes com frases que fazem alusão às manchetes de

notícias sobre situações cotidianas de pessoas famosas, como passear ou fazer compras, vistas diariamente nos meios de comunicação. De fato, além de dar visibilidade a uma realidade social do Brasil, a campanha também teve outro propósito: divulgar uma ação da ONG, que seria

realizada em maio. Chamada de Coleta, a ação pretendia divulgar a ONG e elucidar a pobreza,

nas cidades em que já tem atuação (São Paulo, ABC paulista e Campinas/SP, Rio de Janeiro/RJ, Curitiba/PR e Salvador/BA). De acordo com as informações do site da ONG, a “Coleta 2015” tinha a intenção de arrecadar voluntários e recursos para dar continuidade ao trabalho realizado nas comunidades carentes.

Apesar do espalhamento (JENKINS, FORD e GREEN, 2014) nos sites de redes sociais,

a campanha não teve grande repercussão nos meios que intentava problematizar. Desta forma, o debate em torno da campanha ocorreu, sobretudo, nas redes digitais, assim como os sentidos oriundos destas conversações em rede (RECUERO, 2014). Este artigo pretende identificar os

sentidos projetos nas conversações em torno das publicações da página da ONG TETO no

Facebook com as peças da campanha. Parte-se do questionamento de que sentidos emergem através da conversação em rede entre atores em torno destas publicações. Para tanto, utiliza-se a proposta metodológica de análise de construção de sentidos em redes digitais, elaborada e

ainda em desenvolvimento pelo Laboratório de Investigação do Ciberacontecimento (LIC), instalado no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos.

Além disso, o artigo também pretende compreender a crítica da campanha a partir de

conceitos teóricos em torno do jornalismo, da notícia e critérios de noticiabilidade, o acontecimento e o espaço dado às celebridades. Essa reflexão parte não só da campanha, mas a partir da análise dos sentidos nas conversações, onde cristaliza-se uma intensa crítica aos meios,

à sociedade e às instituições públicas diante da invisibilidade da pobreza e da existência da pobreza.

2 O lugar do jornalismo: quem e o que a campanha critica A campanha da ONG TETO (Figura 1) estabelece um estado comparativo de valores e

interesses sociais, sobretudo no polo produtivo de informações da mídia hegemônica, através

das representatividades distintas nos veículos de comunicação das realidades da miséria e do 2

cotidiano de celebridades. As peças apresentam cidadãos em estado de pobreza ironizando (mas com a expressão facial séria), através de cartazes, que a sua situação é menos interessante de se publicar do que frivolidades de pessoas famosas. Na frase da campanha, “O problema não é o

que vira notícia, mas o que deixa de ser”, embora haja um claro julgamento de valores, a crítica não é essencialmente voltada para as notícias de celebridades, e sim para a falta de notícias de problemas sociais, a partir da disparidade desses temas nos meios.

Figura 1 – Peças da campanha da ONG TETO Em seu site, a TETO explica a campanha com tom crítico, porém sem a ironia. O que está sendo noticiado? A realidade de pobreza existente no país está esquecida? [...] o TETO lança uma campanha com o objetivo de dar visibilidade para a realidade de extrema pobreza em que vivem milhões de brasileiros. A ação busca refletir que, ao mesmo tempo em que milhares de notícias sobre o mundo das celebridades são divulgadas, diariamente, nos meios de comunicação de todo o Brasil, a realidade diária das famílias que vivem em extrema pobreza fica esquecida e, dificilmente, ganha destaque nos noticiários.

Até aqui, e consonante com o texto da TETO, utiliza-se a referencialidade da crítica

para com os meios de comunicação. Contudo, especificamente, entende-se essa crítica como

sendo ao jornalismo, embora na conversação em rede (RECUERO, 2014) originada pela TETO haja equivalências e interseções operadas pelos atores sociais. O texto presente em todas as

peças “O problema não é o que vira notícia, mas o que deixa de ser.” explicita a notícia, o produto do jornalismo. A intenção da campanha, de chamar a atenção para uma realidade do Brasil, também faz referência que se está criticando o jornalismo.

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A ideia do jornalismo como retrato fidedigno da realidade social já foi amplamente

desconstruída entre profissionais e pesquisadores. A própria realidade social, em si, também é discutível, posto que não é encarada como um elemento dado, mas constituído de sentidos compartilhados, é extremamente complexa. Para Berger e Luckman (1966), o jornalismo é visto como apenas um dos elementos que ajudam o indivíduo a reconhecer a realidade. Os autores também alertam para que não se entenda a realidade apenas a partir de definições científicas ou teóricas, mas também para o que os integrantes da sociedade conhecem e compreendem como

real. A realidade cotidiana equivaleria à realidade, pois “não requer maior verificação, que se

estenda além de sua simples presença. Está simplesmente aí, como facticidade evidente por si mesma e compulsória.” (BERGER E LUCKMAN, 1966, p. 41). Alsina (2009) entende o jornalismo como responsável pela construção da realidade socialmente relevante.

A atividade jornalística se estabelece como a “conversação contemporânea da

sociedade” (BETH e PROSS, 1987), um meio ou um interlocutor dessa realidade. Os próprios acontecimentos sociais, para Verón, “só existem na medida em que esses meios os elaboram”

(1995, p. II). Não estariam, como objetos, prontos ou determinados, para que os meios de comunicação os reproduzissem. O jornalismo é o mediador que possui e traz os acontecimentos

exteriores para a interioridade do texto (PONTES E SILVA, 2010) e está presente em uma cadeia ampla de sentidos (MOUILLAUD, 2002).

A partir da noção de Nora (2006, apud DOSSE, p. 245), onde “o acontecimento

midiatizado deixou de ser uma garantia de real uma vez que é a mediatização que o constitui”, Quéré (2010) questiona se em algum momento houve uma garantida do “real” em relação ao

acontecimento midiatizado. Nesta discussão, o lugar do jornalismo volta à questão prática e produtiva, quando se coloca como leitor da realidade socialmente relevante, e escritor da mesma para o seu próprio público leitor.

De fato, desde os estudos pós-guerra de Merton e Lazarsfeld, os meios estão situados

nessa função de definir o que é relevante e o que pode ser descartado e esquecido enquanto conhecimento. Os autores também compreendem um movimento circular da mídia: ela

evidencia sujeitos e acontecimentos importantes, e eles são importantes por estarem na mídia (MERTON E LAZARSFELD, 1971). Contudo, é prudente não se colocar jornalismo e mídia como equivalências. Na perspectiva de Benetti (2012), é perceptível que as qualidades de

“ficção” (mídia) e “realidade” (jornalismo), como possível e fundamental, respectivamente, são diretrizes que, por si só, já estão situadas em lugares diferentes.

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O jornalismo se distingue de outros discursos midiáticos, e é também por isso que jornalismo e mídia não se confundem e não podem ser tomados como sinônimos. O discurso midiático é muito mais amplo do que o jornalístico e contempla modalidades que incluem a ficcção. A ancoragem na realidade, no que de fato aconteceu - embora a produção da notícia e da narrativa seja subjetiva -, é vital ao jornalismo. (BENETTI, 2012, p. 151-152)

No que diz respeito à campanha do TETO, a crítica, apesar de extensiva à mídia, é

direcionada à práxis jornalística, sobretudo pela problematização sobre o que torna-se e não torna-se notícia.

3 O que é notícia: critérios de noticelebridade Os critérios de noticiabilidade surgem dentro da metodologia de produção jornalística

como instrumentos para auxiliar, agilizar e regimentar seus processos. São estabelecidos diante

das limitações físicas, temporais, financeiras, de recursos humanos, entre outras, de um veículo dar conta da quantidade de acontecimentos do dia-a-dia. O poder de selecionar é considerado por Lippmann (1922) uma das principais características da imprensa..

Wolf (1995) faz uma ressalva, apontando divisórias, entre os valores de noticiabilidade

que se referem ao entendimento de um fato como notícia e aos valores de noticiabilidade do

que deve conter no texto noticioso. A campanha da TETO não critica o conteúdo dos textos, mas justamente a falta de produção destes. Desta forma, os critérios que interferem na falta de espaço da miséria na imprensa são os valores-notícia de seleção, e não de construção (WOLF, 1995; TRAQUINA, 2013).

Entre as diversas nomeações dos critérios de seleção, dadas por Traquina, (2013), Wolf

(1995) e Galtung e Ruge (1965), pode-se destacar alguns denominadores comuns, como os níveis hierárquicos entre os envolvidos nos acontecimentos, sua amplitude (local, nacional,

internacional), ligação com acontecimentos já noticiados, ocorrência de morte, violação de regras e valores da sociedade, proximidade do fato com o "leitor imaginário" ou o público-alvo

do jornal, o que não é esperado, negatividade. Nestes elementos, é possível reconhecer a

validade das notícias do cotidiano de celebridades. A pobreza se encaixaria apenas no critério

de negatividade que, de acordo com Galtung e Ruge (1965), tende a não gerar ambiguidade, é de fácil compreensão e consensual. A consensualidade, contudo, dá uma ideia de continuidade, assim, não atendendo ao critério de "o que não é esperado".

Os valores-notícia sofrem alterações ao longo do tempo, através das mudanças da

sociedade, em uma possível relação recíproca: a sociedade se transforma, e transforma o 5

jornalismo, assim como a práxis jornalística transforma a sociedade. Desta forma, pode-se

pensar que “o que é notícia?” também passe por esta transformação. Sobre esta pergunta

corriqueira, na visão de Traquina (2013), as respostas são construídas mais através do instinto do que da ciência. Há uma espécie de senso comum em atribuir o que é notícia a considerações

subjetivas como “interesse do público” ou “o que é importante”. Há um problema quando é

percebido que a inversão dos polos de pergunta pode ser realizada, com “o que é importante?” ou “o que é interesse do público?” e a resposta: “é notícia”.

A demanda por notícias de celebridades elucidada pela campanha está inserida no que

se pode chamar de pseudo-acontecimento, provocados pelas próprias celebridades ou criados pela mídia para ter o que publicar (PONTES E SILVA, 2010). Em março de 2011, o portal Terra publicou, sob uma perspectiva de “flagra”, uma série de fotografias do cantor Caetano

Veloso com o título “Caetano estaciona carro no Leblon nesta quinta-feira”. Entre as legendas

das imagens, uma delas informa que “Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do

Leblon” 4 . A notícia foi espalhada por sites de redes sociais como signo do jornalismo contemporâneo, atento aos passos (literalmente) de celebridades, em situações sem relevância. Centralizadas

pela

hashtag #CaetanoEstacionaNoLeblon,



diversas

narrativas

e

ressignificações desta notícia em uma espécie de “comemoração de aniversário” a cada dia 10 de março, data de sua publicação em 2011. Em 2015, o próprio Terra fez uma mea culpa em

relação à notícia de Caetano Veloso, reconhecendo o erro e legitimando as críticas e a perenidade da hashtag5.

Gabler (1999, p. 15), ao refletir sobre a presença e os valores das celebridades

transmitidos pelos meios midiáticos, entende que elas estão “entranhadas tão profundamente

em nossa consciência que muitos indivíduos se dizem mais próximos, mais apaixonadamente apegados a elas do que aos próprios parentes e amigos”. Assim como Alsina (2009), Benetti

(2010, p. 160) entende que uma sociedade em determinado período histórico pode ser definida pelos acontecimentos produzidos pelo jornalismo que a reporta, “pois através dele é possível avaliar o sistema de valores hegemônico naquela sociedade e naquele momento histórico”. 4 A falta de lugar da pobreza como acontecimento

4 5

http://bit.ly/2a9liWi https://www.facebook.com/TerraBrasil/posts/10153846771033849

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A desatenção dos meios em relação a pobreza faz questionar se a pobreza é ou não um

acontecimento e por quê está ausente nos noticiários. O acontecimento é compreendido aqui

como algo que provoca um desequilíbrio no mundo que, a partir da sua percepção por sujeito(s),

é inserido em uma rede de significações (CHARAUDEAU, 2006). Ele só existe para alguém

por quem e para quem tem sentido (RANCIÈRE, 1995) e só tem sentido poque afeta sujeitos, no campo da experiência (QUÉRÉ, 2005). O acontecimento não significa em si, requer um

discurso que o compreenda (CHARAUDEAU, 2006). É assim que Verón (1995) entende que os acontecimentos só existem quando elaborados pelos meios.

Sobre esta afetação, a experiência cotidiana com pessoas em situações precárias nos

espaços potencialmente cria uma espécie de legitimação da pobreza como parte integrante da

sociedade, reduzindo este poder afetação que teria sobre ambos, em co-relação, sujeitos e jornalismo. Contudo, ainda que exerça uma grande influência e uma quase hegemonia

construída ao longo do tempo, o jornalismo não é o único discurso presente na sociedade. No que tange os acontecimentos, Charaudeau propõe que “relatar o acontecimento tem como

consequência construí-lo midiaticamente” (2006, p. 152). O que a TETO faz é, essencialmente, uma construção midiática, chamando a própria mídia para esta construção sobre a pobreza.

Para Rebelo (2006), uma ação ou ocorrência só é acontecimento se houver potencial de

atualidade (produção do acontecimento no tempo e espaço) e pregnância (capacidade de provocar uma ruptura no quadro de vida), já que nem toda ação ou ocorrência é um

acontecimento. “A ocorrência tem mais probabilidades de ser considerada um acontecimento quando nos incita a reconstruir esse nosso quadro de vida momentaneamente perturbado pela ocorrência inesperada” (REBELO, 2006, p. 17). Se nessa perturbação do quadro da vida, como

entende Rebelo, é que está a característica do acontecimento de romper com a ordem e com a normalidade, fica claro que a pobreza não rompe com a ordem, porque faz parte dela.

Na construção do acontecimento, e junto aos critérios de noticiabilidade, “o

acontecimento será selecionado e construído em função de seu potencial de atualidade, de socialidade e de imprevisibilidade” (CHARAUDEAU, 2006, p. 101). Sem fatos novos, a

pobreza poderia perder, especialmente, a sua atualidade. Seria, como qualquer acontecimento

de longa duração, dependente de novas histórias. Como situação perene de muitas famílias, também não é imprevisível.

Como fenômeno social que é, a miséria, salvo exceções, não possui a variação de que

fala Alsina (2009), como índice prioritário de notabilidade pelos sujeitos que percebem e

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transformam em narrativa um acontecimento. Ela é estável, um fenômeno que se repete. "Por

exemplo, o afundamento progressivo da cidade de Veneza foi um acontecimento quando foi

descoberto. Na atualidade, o afundamento é a norma. O novo acontecimento seria o que demonstrasse que Veneza não afunda mais. Essa seria uma variação" (ALSINA, 2009, p. 140).

Assim, a pobreza, entre outros fenômenos, por si, não se encaixa nas narrativas diárias que o jornalismo intenta produzir, como destaca Benetti (2010, p. 146):

A perversidade dessa lógica, que contra qualquer argumento plausível mantém-se como estruturante do discurso jornalístico, é que grandes fenômenos sociais, cujo interesse público não poderia ser questionado sem constrangimento, geralmente não têm lugar no jornalismo porque se estabeleceram, historicamente, como invariantes. São os casos da fome, das desigualdades e das injustiças sociais, que contemporaneamente costumam ser percebidas como "parte do sistema".

A campanha praticamente não teve repercussão em veículos de comunicação de grande

expressão. Em pesquisa em sites de buscas e em sites de redes sociais, apenas a revista Exame e o jornal El País (edição online no Brasil) fizeram publicações a respeito. Contudo, a campanha teve êxito em reverberar em veículos midiáticos genuinamente inseridos na cibercultura, como

Hypeness, Brasil Post e Sensacionalista. Parece lógico que o jornalismo não vá atender à demanda de crítica sobre sua práxis, sobretudo os portais que investem nesse segmento de publicações tensionadas pela campanha. A falta de mea culpa, entretanto, em relação aos sentidos constituídos a partir da campanha enquanto acontecimento, pode disparar ainda mais

críticas ao campo. O jornalismo, ao não produzir sentidos com a veiculação da crítica aos seus processos, deixa este espaço aos atores sociais em rede.

5 Os sentidos oriundos da campanha nas conversações em redes digitais Entre os dias 22/04 e 21/05 de 2016, a TETO fez oito publicações em sua página no

Facebook com imagens das peças da campanha “O problema não é o que vira notícia, mas o que deixa de ser”. Os sentidos oriundos da conversação em rede (RECUERO, 2014) são observados a partir dos comentários nestas publicações e compartilhamentos, onde pode-se atribuir novos sentidos ou simplesmente replicar o conteúdo das peças. Adota-se neste

momento a proposta metodológica de análise de construção de sentidos em redes digitais, em

desenvolvimento pelo LIC, que desdobra-se em três etapas indissociáveis: 1) mapeamento e identificação, 2) categorização e 3) inferências.

Na primeira etapa, a partir da delimitação de um observável, os comentários nas

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publicações e compartilhamentos das mesmas são observados, com atenção aos

desdobramentos dessas conversas em torno da campanha e outras possíveis referencialidades.

Aqui, alguns sentidos já são percebidos, embora ainda não estejam organizados sob a forma de categorias. A etapa de categorização justamente procura delimitar estes núcleos de sentidos,

agregando mensagens próximas em designações abrangentes. É uma etapa considerada

subjetiva, contudo, pertinente ao observado. Como etapas indissociáveis, a terceira é

essencialmente reflexiva e inclui os demais processos, além da discussão teórica em torno do objeto, incitada após a observação e durante a reflexão.

De forma que as categorias possuem interseções, percebidas na segunda etapa e

refletidas na terceira, propõe-se a representação dos sentidos através de um diagrama de sentidos, e a diferenciação entre esferas de sentidos e sentidos específicos. As esferas de sentido

são as referências das mensagens, os destinatários dos comentários, os endereçamentos

elaborados pelos atores sociais. Os sentidos específicos são as atribuições de sentido propriamente dadas nessas mensagens. Esta proposta surge a partir do reconhecimento de que

em conversações em rede, as mensagens carregam não apenas sentidos, mas seus endereçamentos, mesmo que não se tratem especificamente de pessoas. As esferas de sentido,

contudo, já estão carregadas de significação, e contribuem para a demonstração das interseções entre as categorias. Dentro dessa proposta, são identificadas quatro esferas: a) Campanha, que agrega as mensagens direcionadas em torno dos esforços da TETO de campanha publicitária e

campanha de ação da Coleta; b) Meios, onde compreendem-se os sentidos atribuídos aos meios de comunicação, suas lógicas, estruturas, práticas e implicações; c) Política, com referência ao

Estado, organizações públicas e seus administradores e d) Sociedade; onde estão os sentidos

atribuídos aos processos sociais, aos próprios atores sociais e seus comportamentos. Quanto aos sentidos específicos, são encontrados nove: 

Crítica aos meios e práxis: este núcleo agrega as mensagens que reforçam a crítica aos

meios de comunicação quanto à invisibilidade da pobreza em prol da visibilidade de notícias cotidianas de celebridades dada pela campanha da TETO. Aqui encontram-se críticas ao jornalismo, critérios de noticiabilidade, contrastando o que deveria ser seu propósito com sua atuação e como se configura na atualidade.

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Figura 2 - Crítica aos meios e práxis Defesa dos meios: nesta categoria estão as mensagens que reconhecem problemas nas

práticas dos meios de comunicação, mas que asseguram a sua importância e atuação legitima diante de outros problemas e situações cotidianas, sobretudo em relação aos atores sociais políticos.

Figura 3 - Defesa dos meios 

Legitimidade e pertinência da campanha: aqui estão as conversas que conferem caráter

de legitimidade e pertinência à campanha da TETO em relação às impressões que os atores sociais têm das notícias cotidianas de celebridades. Inicialmente, estas mensagens

encontravam-se nas categorias de Crítica aos meios e práxis e Apoio e parabenização pela campanha e Coleta, mas em virtude de algumas particularidades, como a criação

de textos criativos reproduzindo as lógicas das notícias que a campanha expõe, entendese como uma atribuição de sentido específica.

Figura 4 - Legitimidade e pertinência da campanha 10



Apoio e parabenização pela campanha e Coleta: encontram-se aqui as manifestações

de congratulação à campanha e ação da Coleta organizadas pela ONG, além da demonstração de interesse em participar e convocar outros atores a fazer parte.

Figura 5 - Apoio e parabenização pela campanha e Coleta 

Outras demandas: nesta categoria estão as mensagens que mencionam outros problemas sociais, dispondo a miséria em um contexto de outras demandas, que seriam tão ou mais relevantes e invisíveis quanto a pobreza



Figura 6 - Outras demandas Discursos falsos de erradicação da pobreza: nesta categoria estão as mensagens que

entendem que o Estado teria proliferado, com o suporte dos meios de comunicação, discursos de erradicação da pobreza no Brasil, que agora teriam sido provados falsos

com os dados levantados pela campanha da TETO, de 16 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza.



Figura 7 - Discursos falsos de erradicação da pobreza Críticas a programas sociais: inicialmente pensada dentro da categoria Discursos falsos

de erradicação da pobreza, esta categoria representa as críticas feitas especificamente

aos programas sociais elaborados para dar assistência a famílias carentes e com menor poder aquisitivo, como insuficientes ou ilegitimos.

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Figura 8 - Críticas a programas sociais 

Responsabilização da corrupção e mau uso de dinheiro público: aqui estão mensagens

com caráter denunciativo onde a corrupção na política e o uso considerado indevido de dinheiro público são apontados como causa, se não da existência, da perpetuidade e não solução da pobreza no Brasil.

Figura 9 - Responsabilização da corrupção e mau uso de dinheiro público 

Desumanidade: aqui estão as mensagens onde aflora um sentido de percepção de falta

de desumanidade nas pessoas ao terem consciência e presenciarem situações de extrema necessidade de outras pessoas e não tomarem atitudes para reverter este quadro.

Figura 10 - Desumanidade Desta forma, propõe-se a representação dessas categorias, no intuito de visualizar as

interseções entre eles, o diagrama de sentidos:

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Figura 11 – Diagrama de sentidos Embora não analisadas de forma quantitativa, percebe-se que as categorias de sentidos,

em relação às esferas e às interseções, constituem-se em maior quantidade, cinco categorias,

em Meios e Política, quatro em Sociedade e três em Campanha. Entende-se esta potencialidade pelas responsabilizações políticas em relação à situação da pobreza e a dos meios de

comunicação em não oferecer a devida importância a ela, ambos agentes fundamentais na mudança deste quadro. Considerações finais A reflexão em torno da visibilidade e invisibilidade do cotidiano das celebridades e da

pobreza, respectivamente, no jornalismo não tenta justificar este status quo, mas entendê-lo e 13

contextualizá-lo. Neste artigo, ela opera como fundamentação para entender a campanha e

analisar as conversações em rede e os sentidos que emergem do seu espalhamento. Alguns

sentidos muito próximos aos estabelecidos pela TETO, como a crítica aos meios e a pertinência da campanha, são desdobrados e apropriados para produzir estranhamentos, como o

entendimento de que a pobreza já havia sido erradicada, e justificativas para tal ambiência midiática.

A complexidade dos sentidos produzidos por atores sociais em rede sobre esta

campanha é entendida, também, a partir da afetação e experiência individual com os dois elementos principais destacados pela TETO. A legitimidade da campanha, em algumas

mensagens, é comparada como uma superação de lugar de fala de uma publicidade “vilanizada” historicamente e um jornalismo que, com o tempo, passa a se distanciar de certas demandas

sociais e se ater no que não deveria. Contudo, a publicidade, utilizada pela TETO, é, também, um processo comunicacional, responsável por visibilidades e invisibilidades tal qual o

jornalismo. Tanto a campanha quanto os sentidos observados nas conversações parecem convergir para o apontamento de falhas sociais, políticas e midiáticas. Referências ALSINA, R. A construção da notícia. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BENETTI, M. O jornalismo como acontecimento. In: BENETTI, M.; FONSECA, V. Jornalismo e Acontecimento: Mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular, 2010. BENETTI, M. A apropriação discursiva da morte pelo leitor. In: MAROCCO, B.; BERGER, C.; HENN, R. Jornalismo e Acontecimento: Diante da morte. Florianópolis: Insular, 2012. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. BETH, H. e PROSS, H. Introducción a la ciencia de la comunicación. Barcelona, Anthropos, 1987. CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006. DOSSE, F. Renaissance de l'événement. Paris: PUF, 2010. GABLER, Neal. Vida, o filme : como o entretenimento conquistou a realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. GALTUNG, Johan e RUGE, Mari Holmboe. The Structure of Foreign News. In: Journal of Peace

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