A feira Nova de Véio desembarca na Bienal de Veneza

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n° 36 - Ano XIII - Dezembro de 2015 Artigos

A feira Nova de Véio desembarca na Bienal de Veneza. Lilian Cristina Monteiro França Acássia Araújo Barreto Uma cena impressiona o viajante que passa pela rodovia Engenheiro Jorge Neto, em Feira Nova, Sergipe, pois quem chega ao ateliê de Cícero Alves dos Santos, o Véio, no sítio Soarte, depara-se com uma paisagem típica do sertão (Figuras 1), mas quebrada pela presença marcante de um conjunto de obras instaladas em meio à vegetação e que aparentam ter a função de guardiãs e recepcionistas do espaço.

Fig. 1: Ateliê de Véio, em Feira Nova, Sergipe (Foto: Acássia Barreto – 05/15)

O artista batizou o lugar de "Museu do Sertão", pois além de criar, preocupa-se em contar a história do sertanejo, em especial a das tecnologias desenvolvidas, tais como fornos, ferramentas e outras engenhocas que se perderam no tempo e que ele resgata e apresenta ao visitante, orgulhoso da sapiência do homem do campo, destemido e arrojado, capaz de superar as adversidades sem destruir a natureza (Figura 2).

Fig. 2: Véio em seu "Museu do Sertão" (Foto: Lilian França – 05/15)

Não é à toa que seu nome artístico é Véio, herança dos tempos de criança em que trocava a algazarra fugidia dos meninos pela conversa tranquila com os mais velhos, colhendo informações que iriam alicerçar seu temperamento e sua obra. Vivendo de maneira simples, em harmonia com o meio ambiente, considera cada peça esculpida na madeira como "um filho", tanto que não gosta de vender suas obras e, quando o faz, é para captar recursos para a sua sobrevivência e dar andamento ao projeto do museu. Em um momento em que o mercado "fala mais alto", encontrar um artista tão apegado ao que produz é, no mínimo, surpreendente. Mas Véio sempre foi conhecido por essa característica – viver com menos e viver mais feliz. Escolhido para integrar a 56ª. Bienal de Veneza, expondo na Abadia São Gregório, com a curadoria de Stefano Rabolli Pansera, Véio passa a merecer o olhar e o interesse de colecionadores, críticos e pesquisadores de todo o mundo. Integrando as comemorações dos 20 anos da marca italiana Marni, que viu no trabalho de Véio semelhanças estéticas – a preocupação com a forma pura – e filosóficas – a transformação da matéria bruta em arte –, cerca de 100 de obras permanecerão expostas em Veneza até novembro de 2015. Ao responder à pergunta “O senhor achou Veneza uma cidade linda?”, afirmou: “Lindo é o Sertão!”. Véio não voltou deslumbrado com a visibilidade, o reconhecimento ou o sucesso. Mantém a serenidade e a certeza de que o mais importante

é

contar

a

história

de

um

povo.

Mas essa não foi a sua primeira exposição internacional. Em 2012 e 2014, expôs na Fondation Cartier, em Paris, eventos que reafirmaram o caráter contemporâneo de sua produção. Com uma trajetória de exposições em importantes espaços artísticos de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Natal, Aracaju, livros publicados sobre a sua obra (Véio – Esculturas, de Rodrigo Naves; Teimosia da Imaginação – Dez Artistas Brasileiros, publicado em parceria pela Editora Martins Fontes e a Fundação Tomie Othake; Véio, organizado por Hortência Barreto; e Nação lascada: arte e metáfora de Véio, de Rafael Neves Ulisses) e cinco documentários (Véio – Tradição e Contemporaneidade; Nação Lascada de Véio; A Glória do Sertão; Véio – O filme; O Universo Simbólico de Véio; e Cavalhada de Poço Redondo), Véio tem consolidado a sua produção mantendo o princípio de preservação do meio ambiente, utilizando apenas matéria-prima já "morta", árvores já retiradas do solo, cuja estrutura vai sendo ressignificada para dar origem ao seu mundo pessoal (Figura 3).

Fig. 3: Obras de Véio no sítio Soarte, em Feira Nova, Sergipe (Foto: Lilian França, 2015)

Se, em alguns momentos, as peças assumem um caráter antropomórfico ou zoomórfico, alusão ao cotidiano do sertanejo e às figuras que povoam o imaginário de quem vive na região – como, por exemplo, o Curupira – em outros a madeira é arranjada em composições abstratas, marcadas pelo predomínio das cores primárias em contraste com o branco, o preto e os tons de cinza (Figura 4).

Fig. 4: Composições abstratas de Véio (detalhes) (Foto: Lilian França, 2015)

Para ele, cada uma das obras tem um tempo de vida e de morte. Expostas ao tempo, cumprem sua sina e, quando chega a hora, morrem, reintegrando-se à natureza: “Morre peça e nasce peça”, diz o artista. Procurando interferir o mínimo possível, mantém a forma rústica e natural da madeira e evita lapidar além do necessário a matéria-prima. Assim, como escreveu a artista plástica Hortência Barreto (2009), "Suas formas parecem totens, máscaras, almas penadas, onde a jurema vira gente, bicho e assombração; onde o sol, a poeira e as trezentas e sessenta e cinco noites estreladas, guardam, como um relicário, num céu povoado de caburá, juriti e carcará...histórias de sua gente". Cada uma das obras de Véio tem uma história e se liga às demais, inserindo-se na família na qual o artista cria: "Cada peça dessas é uma pessoa, é um filho, é um irmão, é uma família”. Tal valor, não "precificável", estabelece uma relação tensa com o mercado, o qual, ávido por atender à demanda, encontra em Véio outros princípios para além da lógica capitalista, fundamentados em sua luta pela dignificação do sertanejo e de sua rotina contemplativa (Figura 5).

Fig. 5: Obra de Véio, 2015 (Foto: Lilian França, 2015)

Lilian Cristina Monteiro França Pós-doutora em História da Arte. Doutora em Comunicação e Semiótica. Professora da Universidade Federal de Sergipe/UFS. Membro da ABCA e da AICA. Acássia Araújo Barreto Mestre em Educação. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Tecnologia/UFS.

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