A Figuração de Personagens Históricas ao Serviço da Sátira

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A FIGURAÇÃO DE PERSONAGENS HISTÓRICAS AO SERVIÇO DA SÁTIRA1 Inês Fonseca Marques2 CLP - Universidade de Coimbra

Introdução O presente artigo constitui-se como uma reflexão acerca da personagem, enquanto categoria narrativa, na crónica e na série. Sendo este um objetivo ambicioso, tanto para quem, como nós, está a dar os primeiros passos no vasto universo dos Estudos Narrativos, como para um trabalho com a dimensão que aqui se deseja, vamos desenvolver essa problematização com base num estudo de caso. Propomos, assim, uma análise de duas personagens específicas: D. Pedro I em dois episódios da minissérie O Quinto dos Infernos, produzida pela TV Globo, entre 2001 e 2002; e D. Pedro II na crónica Fastos da Peregrinação de Sua Majestade o Imperador do Brasil por Estes Reinos, publicada em fevereiro de 1872 n’As Farpas de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Dois séculos separam os objetos que nos propomos estudar. Contudo, consideramos, como à frente explicaremos, que há aspetos que tocam a ambos e que justificam o estudo comparativo, dos quais os mais significativos são aqueles que fundamentam o título deste trabalho: o facto de estarmos perante duas personagens históricas, trabalhadas em função de intuitos satíricos e humorísticos. Antes, porém, de avançarmos para o estudo de caso, faremos uma incursão breve sobre a figuração da personagem histórica, em que recorreremos a alguns contributos teóricos sobre esta categoria, e analisaremos as diferenças entre a factualidade do registo histórico e a ficcionalidade dos registos cronístico e televisivo, a que se seguirá um capítulo sobre a importância histórica das figuras em análise.

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Artigo realizado no âmbito do seminário “Estudos Narrativos”, ministrado pelo Professor Doutor Carlos Reis ao Mestrado em Comunicação e Jornalismo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Janeiro de 2015 2 Inês Fonseca Marques é estudante de Mestrado em Comunicação e Jornalismo, na FLUC, estando a desenvolver a dissertação “A construção da personagem nas narrativas do jornalismo digital”, sob orientação da Professora Doutora Ana Teresa Peixinho. Licenciada em Jornalismo nesta faculdade com média de 16 valores, em 2014, recebeu, ao longo do seu percurso académico, vários prémios de mérito curricular. Integra, desde janeiro de 2015,o grupo de investigação "Figuras da Ficção" do CLP (membro em formação).

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1. Figuração da personagem histórica 1.1. Teoria da personagem “Eixo em torno da qual gira a ação e em função do qual se organiza a economia da narrativa” (Reis e Lopes, 1990: 306), a personagem é a “categoria central da narrativa” (ibidem). Isto explica-se, entre outros fatores, pelo caráter humanista que a narrativa assume (Reis, 2006: 138), já que “experienciamos e organizamos as nossas vidas narrativamente” (Ankersmit, 2010: 36) e que a narrativa “é a forma única e exclusiva de alcançar o autoconhecimento” (ibidem).3 Esta é, talvez, a categoria da narrativa com a qual o leitor mais se identifica, já que “as personagens podem induzir sentimentos fortes aos leitores, um facto frequentemente discutido sob o conceito de ‘identificação’” (Jannadis, 2009: 24), o que “implica (…) quase um esforço suplementar para que ela seja lida como figura ficcional significativa tão familiar e, por assim dizer, ‘lexicalizada’ que ela se tornou” (Reis, 2006a: 19). Apesar de hoje o estudo da narrativa consagrar a esta categoria da personagem um papel de destaque, na antiga teoria narrativa, a mesma estava diluída, chegando até ao ponto de se conotarem as personagens como meros “seres de papel”, numa “conceção funcionalista e imanentista” (Reis 2006a: 15). Foi então com as teorias sugeridas por Bakhtine (apud Reis, 2006a: 16) que se começou a considerar que “a teoria geral da narrativa pode subordinar-se ao princípio genérico do dialogismo”, já que aquela necessitava de projetar o ‘outro’, mesmo que esse se configurasse como um ‘eu desdobrado’. Assim, segundo Fotis Jannadis (2009: 15), são três os fatores que justificam esta relação “fortemente influente” entre o leitor e as personagens, nomeadamente as perspetivas que o autor transfere, através das personagens, para o leitor; a afetividade com que o leitor aceita (ou não) as emoções e posições das personagens e, por último, a avaliação que delas faz. Embora o mesmo autor defina a personagem como “o termo (…) usado para referir os participantes em mundos diegéticos, criados por vários media, em contraste com as ‘pessoas’ como os indivíduos do mundo real” (Jannadis, 2009: 14), a verdade é que “para perceber as

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Todas as citações de artigos cujo original seja em inglês ou francês serão neste artigo apresentadas em português e resultarão de uma tradução livre feita por nós.

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personagens, os leitores tendem a recorrer ao seu conhecimento sobre as pessoas reais” (ibidem: 16). A relevância da audiência foi já, nas últimas décadas do século XX, perspetivada por James Phelan e Peter Rabinowitz (apud Reis, 2006a: 17), que, ao encarar a “personagem como categoria narrativa translinguística”, consideram as respostas de leitura como elemento fundamental para a progressão da narrativa. Essas respostas podem ser, segundo Phelan (ibidem: 17), de três ordens: Ordem do mimético (no quadro de uma funcionalidade genericamente realista do universo ficcional e das suas personagens), (…) ordem temática, tendo que ver com o leque de ideias e de valores que a personagem permite evocar, (…) de ordem sintética, sendo ela, então, encarada como constructo, ou seja, como artefacto que integra um universo postulado como autónomo e internamente coerente.

Por tudo o que até agora referimos, parece-nos correta a conclusão de Jenifer Devresse (s.d.: 4), segundo a qual “uma das chaves fundamentais dos mecanismos que presidem à constituição das identidades poderá, com efeito, residir na noção de personagem, mediadora entre a diegese mediática e o mundo vivido do espetador”. Este pressuposto ajuda a explicar, na nossa opinião, a importância do processo de figuração de personagens. Diz-nos Fotis Jannadis (2009: 14) que, para ler as personagens, o leitor deverá convocar algumas formas de conhecimento: o conhecimento básico da estrutura daquelas entidades ficcionais, o conhecimento de modelos específicos de personagens e o próprio conhecimento dos seres humanos, pois este fornecer-lhe-á informação importante para o processo de caraterização. Segundo o mesmo autor (ibidem: 15), a caraterização pode ser de dois tipos: direta, quando o autor atribui explicitamente uma caraterística a determinada personagem, ou indireta, isto é, quando o leitor convoca as referidas formas de conhecimento para, a partir delas e com o que lhe é dito no texto, inferir os traços de determinada personagem. Passíveis, como se depreende, de interpretação, segundo Umberto Eco (2012: 76), as personagens podem ser entendidas como “objeto semiótico”, isto é, Antes de mais como totalidade que logo podemos analisar nos seus elementos constitutivos: usualmente a personagem tem nome que não só identifica como, por vezes, desde logo sugere atributos; para além disso, a personagem resulta da conjugação de caraterísticas físicas, psicológicas, morais, etc., realçadas por específicos procedimentos de caraterização; e normalmente a personagem enuncia um discurso que, em conjunto com os restantes elementos mencionados, estabelece uma rede de correlações temáticas e ideológicas com outras personagens e com o universo semântico da história (Reis, 2006: 138).

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Se quisermos, então, enquadrar este conjunto de propriedades na semiologia de Saussure, a qual tem do signo uma conceção dual, diremos que as mesmas se constituem como o significado. Contudo, se nos remetermos para a semiótica pierciana, as caraterísticas de uma personagem dizem respeito ao interpretante, sendo que, como nos relembra Eco (2011:77), “a maioria das personagens partilha um importante atributo: têm um possível referente. Por outras palavras, têm a possibilidade de serem existentes (…) ou de terem existido”. É aqui que surge um dos problemas associados à questão da narrativa, mais precisamente, à categoria personagem: A questão (incontornável, em contexto, digamos, realista) da ténue linha divisória entre verdade e verosimilhança e dos equívocos que gera, quando conjugada com os nexos entre pessoa e personagem; a questão da recognoscibilidade de certas figuras típicas ou até dos seus modelos reais, quando manifestamente existam (Reis, 2006: 134).

Estes “equívocos” podem ainda ser acentuados pelo facto de muitos “leitores ingénuos pouco familiarizados com as convenções literárias” serem ou acabarem por se tornar “incapazes de distinguir entre ficção e realidade” (Eco, 2012: 56). Na verdade, para se ler ficção, é necessário que “segundo um acordo narrativo, comecemos a viver no mundo possível da sua história como se fosse o nosso mundo real” (ibidem: 58), já que “por definição, os textos ficcionais falam claramente de pessoas e acontecimentos inexistentes (e, por esse motivo, pedem-nos que suspendamos a nossa crença)” (ibidem: 61). Deste modo, estamos perante a necessidade de, no momento da leitura, abandonar o mundo ontológico para entrar num “mundo possível ficcional (…) em que tudo é semelhante ao nosso mundo real, à exceção das variações explicitamente descritas no texto” (ibidem: 63). No momento em que estamos a falar de ficção, mundo ficcional e mundo ontológico no mesmo encadeamento de ideias, surge outra questão pertinente: o problema da verdade, decorrente da verosimilhança entre ambos os mundos referidos. O que acontece é que, “ao contrário das pessoas que existem no mundo real, que são completas, só podemos falar significativamente sobre aqueles aspetos da personagem que foram descritos no texto ou que nele estão implícitos” (Jannadis, 2009: 17), logo, tudo o que é descrito é automaticamente verdadeiro’, dentro do mundo possível ficcional, já que é um caso de “legitimidade textual interna (o que significa que não podemos sair do texto para [a] provar)” (Eco, 2012: 69). Concluindo, 4

As personagens ficcionais são insuficientemente determinadas – isto é, conhecemos poucas propriedades suas – ao passo que os indivíduos reais são completamente determinados e deveríamos conseguir afirmar cada um dos seus atributos conhecidos. No entanto, embora isto seja verdade de um ponto de vista ontológico, de um ponto de vista epistemológico, é exatamente o contrário: ninguém pode afirmar todas as propriedades de um determinado indivíduo ou de uma determinada espécie, que são potencialmente infinitas, ao passo que as propriedades das personagens ficcionais são fortemente limitadas pelo texto narrativo – e os atributos mencionados contam para a identificação da personagem (ibidem: 64).

1.2. Da factualidade do registo histórico à ficcionalidade dos registos cronístico e televisivo Se, como vimos, na ficção a fronteira entre personagem e pessoa é muitas vezes pouco precisa, quando falamos de personagens que têm um referente real, isto é, construídas com base numa pessoa realmente existente, esta controvérsia é agravada (Reis, 2006: 139). É o que acontece com as personagens históricas que são criadas em mundos ficcionais ou com as personagens jornalísticas, por exemplo. A propósito desta questão comentava Dumas (apud Eco, 2012: 57): “É privilégio dos romancistas criar personagens que matam as personagens dos historiadores. A razão é que os historiadores evocam meros fantasmas, ao passo que os romancistas criam gente de carne e osso”. Tomemos como exemplo as personagens que serão objeto da nossa análise: os Imperadores D. Pedro I e D. Pedro II. Para aqueles que os leem nas narrativas dos historiadores (partindo do princípio de que objetividade do discurso historiográfico se concretiza), são vistos como personagens do passado, agentes de determinadas ações relevantes, enquadradas em contextos precisos e tratadas segundo preceitos profissionais adequados às metodologias de um historiador. Pelo contrário, por todos os mecanismos que operam na ficção, principalmente a liberdade criativa e o processo de identificação, os Imperadores ganharão uma nova vida e uma forte presença na mente, tanto dos seguidores do seriado O Quinto dos Infernos, onde D. Pedro I é personagem principal, como nos leitores de Eça de Queirós, que escreve a D. Pedro II uma carta sobre a sua passagem por Portugal, em 1872. Isto acontece “porque, segundo um acordo narrativo, começamos a viver no mundo das personagens como se fosse o nosso mundo real” (Eco, 2012: 58). No fundo, aquilo que Dumas explica de modo muito expressivo diz respeito às capacidades humanísticas da narrativa de ficção que, ao criar um mundo próprio, edifica um universo com vida, em que ações, espaços, tempos e, sobretudo, personagens necessitam de aparecer como seres reais, de “carne e osso”, desencadeando sentimentos no leitor. 5

Na verdade, uma personagem é sempre uma representação em que “o representado não se refere ou denota uma coisa individual: ele é, como vimos, um aspeto de uma coisa” (Ankersmit, 2010: 41). Contudo, quando falamos da criação de personagens históricas por um historiador ou por um escritor de ficção, estamos perante diferentes compromissos com a verdade implicitamente presentes nos pactos de leitura e que implicarão diferentes atitudes por parte do leitor: O historiador não vai “mostrar” o passado, vai apenas “dizer” o que, no seu ponto de vista, tem sido; ele vai ser o mais explícito possível sobre tudo isso e nunca deixará os seus leitores em dúvida sobre as suas intenções autorais. O romancista histórico – como um romancista – irá saber que isto não resulta no romance e que o seu romance (histórico) deve ser tão aberto e multi-interpretável como a própria realidade o é (ibidem: 45).

Além disso, se a personagem assume, além de todas as funções a que já nos fomos referindo, o “lugar preferencial de afirmação ideológica” (Reis, 1990: 310), parece-nos que será comum que, quando se criam personagens históricas em narrativas de caráter ficcional, o seu autor vincule à personagem as suas ideologias, salientando nela as caraterísticas que melhor servem as ideias que quer transmitir. No jornalismo, de que a crónica é um género4, também “a criação de personagens é uma atitude estruturante das práticas e do discurso” (Mesquita, 2004: 124). Segundo o mesmo autor (ibidem: 131), O interesse da categoria ‘personagem jornalística’, na perspetiva da análise literária e da imprensa, relaciona-se com a tripla função que lhes atribui Yves Reuter: sinal tipológico, que permite identificar não só o narrativo, mas também os diversos tipos (ou ‘subgéneros’) de narrativa; organizador textual, na medida em que as personagens se constituem o fio condutor das ações narradas; e, por último mas não em último, lugar de investimento do autor e do leitor no plano psíquico, ideológico e axiológico.

Contudo, se “na ficção, o escritor é o senhor absoluto da personagem criada, enquanto o historiador ou o jornalista se referem a alguém que tem existência no ‘real’” (ibidem: 132), quando se fala da crónica enquanto género jornalístico, as regras do jogo alteram-se ligeiramente, já que ela é, por excelência, o género híbrido do jornalismo, pois permite que se misture opinião com informação, reportagem com editorial e jornalismo com literatura (Mesquita, 1984: 209-210). Assim, “a crónica surge (ou poderia surgir) como espaço de 4

Consideramos, por agora, a crónica como género jornalístico, embora, como se explicará mais à frente, ela seja um género híbrido, com grandes ligações à literatura.

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divagação e desenvoltura, de interação do rigor jornalístico e da criatividade literária” (ibidem: 202). Deste modo, conclui-se que a factualidade que se exige aos relatos histórico e jornalístico não faz sentido quando falamos de mundos ficcionais criados pela literatura ou mesmo pelos formatos ficcionais televisivos, de que a série é um exemplo; mais, mesmo quando, dentro da narrativa jornalística, é sobre a crónica que nos queremos debruçar, devemos acautelar-nos, dadas as fronteiras ténues que fazem dela um género permeável à criatividade, à literatura e, com elas, à ficção. Assim sendo, o processo de figuração da personagem, isto é, o “resultado de um trabalho trans-retórico, tendo em vista também os efeitos desse trabalho no plano de receção” (Reis, 2006: 131), é também afetado, pois há que acautelar as diferenças genológicas decorrentes do suporte em que essas personagens se inserem. 2. Importância histórica de D. Pedro I e de D. Pedro II Vejamos, agora, o que nos diz o registo historiográfico sobre as duas figuras em análise. Forçada por ocorrências decorrentes das Invasões Francesas, nomeadamente a ameaça de entrada das tropas napoleónicas em Portugal, a 27 de novembro de 1807, a família real portuguesa – a Rainha D. Maria I, seu filho, o Príncipe Regente D. João VI e sua família – sua esposa, D. Carlota Joaquina, e filhos, Príncipe D. Pedro, Infante D. Miguel e as outras quatro Infantas – embarcam rumo ao Brasil, transferindo com ela toda a corte (Ramos, 2009). Embora os relatos da partida não sejam unânimes (ibidem: 169), sabe-se que a família real viajou em naus separadas, tendo ido numa embarcação D. Maria, D. João, D. Pedro e D. Miguel e noutra D. Carlota Joaquina e as quatro infantas, e que, antes de desembarcar no Rio de Janeiro, onde a corte esteve instalada até 1821, quando D. João a devolve a Portugal, a corte aportou em S. Salvador da Baía (Ramos, 2009: 61). Chegado, então, ao Brasil com apenas 9 anos, é nessa idade que o príncipe herdeiro D. Pedro é “indicado como candidato político à mão de várias princesas europeias” (Jaca, 2008a: 18), acabando por ser “ordenado a Rodrigo Navarro de Andrade, Encarregado de Negócios de Portugal na capital austríaca, que iniciasse as negociações para o ajuste de casamento de D. Pedro com D. Leopoldina” (ibidem: 19). O casamento acabou por ser celebrado por procuração, na presença do 6º Marquês de Marialva, D. Pedro de Menezes Coutinho, e era do agrado da noiva: “Acho-o agradável e a sua fisionomia exprime bondade e espírito. Todos asseguram que ele é bom, querido pelo povo e muito diligente” (apud Jaca, 2008a: 23). A 7

fisionomia, ao que parece, era traço apreciado não só pela futura Imperatriz, já que “a garbosa pessoa do noivo (…) era conhecido como um ‘galã’, pois já em 1803, a duquesa de Abrantes, Laura Junot, a tal verrinosa, dizia ‘ser a única cara bonita num concurso monstro de fealdades’” (ibidem: 20). Na verdade, D. Pedro foi, desde novo, muito dado a aventuras amorosas. Fisicamente, era ‘desempenado como um pinheiro novo, saudável e destro’, bonito, com uma farta cabeleira, não menos farto bigode comprido, que lhe dava um ar sedutor, e patilhas ruivas, como se usava na época. O clima tropical apelava aos sentidos que latejavam à flor da pele. Quantas vezes o jovem príncipe, iludindo os criados e os responsáveis pela sua educação, não terá escapado da residência real, corrido para longe, tirado a roupa e mergulhado feliz nas águas de qualquer rio? Por mais protocolar que fosse a vida na corte portuguesa, era sempre possível fugir para qualquer campo cheio de vegetação e encontrar uma saborosa jovem com quem se deitar e deleitar-se sob o calor do Sol ou os raios prateados da Lua! (Bolé, 2000: 32).

Esta vertente amorosa, fez com que o príncipe, além dos filhos que teve de D. Leopoldina, sua primeira esposa e, após a morte desta, dos de D. Amélia, tivesse, “dos seus amores fora do casamento”, outros filhos (ibidem: 34), dos quais se destacam os de Domitila, Marquesa de Santos, já que são “cerca de uma dúzia de filhos” (ibidem). Em 1815, o Brasil torna-se reino e, com a morte de D. Maria I, em 1816, D. João é coroado, no ano seguinte, Rei de Portugal, Brasil e Algarves, num clima de descontentamento do povo brasileiro face à administração portuguesa. A agravar esta situação vem a Revolução Liberal de 1820, em Portugal, que origina uma reação popular no Brasil, que desejava usufruir das mesmas liberdades. É aqui que surge a oportunidade de D. Pedro: D. João, preocupado, ou mesmo assustado (lembrando-se, talvez, dos acontecimentos de Paris), que até aqui sempre mantivera o primogénito afastado dos conselhos do governo, resolveu apelar para a popularidade que o príncipe desfrutava, encarregando-o de ir serenar os ânimos (Jaca, 2008a: 68).

Aceitando as exigências do povo, esta “hábil intervenção política (…) inicia verdadeiramente” a atividade política de D. Pedro (ibidem: 68). No ano seguinte, por ocasião da transferência da corte para Portugal, D. João passa para o filho alguns dos seus poderes: a administração da justiça, fazenda e governo económico; a resolução dos problemas de administração pública; a possibilidade de ocupar lugares nos setores da justiça e da fazenda e de dar empregos civis ou militares; o poder de comutar e perdoar a pena de morte e o de fazer guerra em prol da defesa do Brasil contra os inimigos e, por último, a possibilidade de atribuir 8

ordens militares (Jaca, 2008a: 70-71). Contudo, a ação pela qual todos conhecem D. Pedro, dá-se quando, em 1822, D. Pedro IV de Portugal, Primeiro do Brasil, lançou o célebre “Grito do Ipiranga”, clamando pela independência ou morte, as bases para a emancipação da colónia estavam finalmente lançadas. Proclamado Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, D. Pedro opunha-se assim às pretensões portuguesas representadas por D. João VI, seu pai, que acabaria por reconhecer a independência da nação brasileira, embora exigindo para tal fortes contrapartidas económicas (Lemos, 2008: 1).

Apesar de tudo, D. Pedro mantém as discórdias com “as alas mais liberais da sociedade brasileira”, que decorriam da “dificuldade em ouvir os seus opositores e as atitudes de força do Imperador” (ibidem), o que o leva, no dia 7 de abril de 1831, a abdicar do trono a favor do seu filho, D. Pedro II do Brasil. As discórdias de D. Pedro, desta vez com as ideias da mãe, D. Carlota Joaquina, que se recusou a jurar a nova constituição liberal portuguesa, e do irmão, D. Miguel, que, após a morte inesperada de D. João VI, deveria casar com D. Maria II, filha de D. Pedro, para assumir a regência até a sobrinha completar a maioridade, conduzem à Guerra Civil. Na verdade, D. Miguel não cumpre com o acordo, aclamando-se como rei absoluto, após dissolver a Câmara dos Deputados (Silva, 2010.: 24-25). Face à tentativa de reinstauração do regime absolutista, dá-se “o regresso de D. Pedro IV à Europa, para lutar pela Constituição Liberal e para entregar o trono português à sua filha D. Maria” (ibidem: 25). Este acaba por vencer o exército miguelista, levando o irmão ao refúgio e, mais tarde, após a garantia da capitulação do seu exército, à extradição (ibidem: 26). Assim sendo, quando D. Pedro abdica do trono, D. Pedro II, seu filho, tinha apenas 6 anos, ficando o Brasil a ser administrado por uma regência. Esta situação durou 6 anos, até aos 15 anos do Imperador. Na verdade, a maioridade devia ser-lhe concedida apenas aos 18 anos, mas a grande agitação política que se vivia antecipa a proclamação (Real, Rocha e Castro, 1872: XXIV-XXVII). Em 1841, D. Pedro II foi sagrado e coroado Imperador do Brasil, iniciando-se assim um reinado que fica na memória pelos factos positivos que lhe estão associados, por exemplo: “foram perdoados os chefes revolucionários, que promoveram as revoltas dos últimos anos da menoridade, e as dos primeiros anos da maioridade” (ibidem: XXVII), “seguiu-se em 1845 a 9

pacificação da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, assolada com dez anos de guerra civil” (ibidem: XXVIII) e “foi no seu memorável e humanitário reinado decretada a abolição da escravatura” (ibidem: XXXI) . Em documento histórico datado de 1872, ano da visita do Imperador a Portugal, dizia-se que o Brasil vivia um espírito de paz (ibidem: XXIX) com um “monarca liberal, chefe d’um povo livre, [que] não quiz sob o seu governo senão cidadãos livres” (ibidem). Contudo, a História encarregou-se de perpetuar D. Pedro II como um poderoso moderado e de explicar que era “sobretudo, um personagem incompreendido. Ou compreendido apenas em parte” (Aldé, 2012), já que era uma Figura impávida e inatacável, afeita mais às letras e às ciências do que ao contacto social, mais às leis e às normas do que às relações afetivas e parentais, D. Pedro II contrariava a brasilidade festiva e manemolente enaltecida por Freyre. Seus valores puritanos seriam alienígenas à cultura nacional (ibidem).

Na verdade, esta incompreensão de que sofria levou mesmo a que fosse destronado pelo povo em 1889 e que se mudasse para Portugal, país que conhecia por já por ele ter viajado: “passaram por Lisboa algumas vezes para estar com a família ou para D. Pedro II se tratar da diabetes” (Boléo, 2000: 40). Aliás, o Imperador e sua esposa, D. Teresa Cristina, “viajaram muito por todo o Brasil”, bem como para outros países (ibidem). 3.

Contextualização do corpus 3.1. As Farpas Data de maio de 1871 a primeira de um conjunto de crónicas da autoria de Ramalho

Ortigão e Eça de Queirós, que representaram, entre outras coisas, uma estratégia de afirmação pública dos objetivos da chamada “Geração de 70”. Gerada em Coimbra, à volta da célebre Questão Coimbrã, os textos de alguns elementos desta Geração assumiram-se como “a primeira manifestação pública das discordâncias existentes entre formas de se conceber a literatura e, em sentido amplo, a produção do conhecimento em Portugal” (Brito, 2013: 47). O grupo de intelectuais que constituíam a “Geração de 70”, a que os autores de As Farpas pertenciam, foi responsável por outro importante marco de viragem da cultura portuguesa, as “Conferências do Casino”, pensadas para iluminar a opinião pública sobre a necessidade de uma transformação do país aos níveis social, político e cultural (ibidem: 51). 10

Parece-nos relevante, antes de mais, recuperar uma parte da definição queirosiana de crónica, num tempo em que o género estava a ganhar a sua autonomia, “dedicando-se a aspetos da realidade política, social e cultural, e conquistando um espaço próprio dentro do jornal” (Peixinho, 2008: 215). Diz Eça de Queirós numa das crónicas do Distrito de Évora: A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o lêem: conta mil coisas sem sistema, sem nexo: espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela cidade: fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites: fala em tudo baixinho (…).

Com a possibilidade de falar de tudo, as crónicas de As Farpas abraçam essa liberdade genológica para produzir um discurso crítico, com recurso à sátira, ao humor e à ironia; aliás, como afirma Maria Antonieta Cruz (2004: 184), referindo-se a Eça de Queirós, “as ironias e os exageros próprias de quem quis de forma frontal e empenhada enobrecer o país, usando o estilo literário que o caraterizava”. As Farpas assumem, portanto, um “caráter de denúncia, exigente, daquilo que ia mal em Portugal, mas não são o fiel repositório da vida política nacional” (ibidem). Isto pode explicar-se, entre outros aspetos, pelo intuito assumido pelos seus autores, de “causar uma reflexão através do riso” (Brito, 2013: 66), sendo que, para isso, era necessário convocar mecanismos próprios, de entre os quais a criação de personagens, como aquela que iremos estudar. Terminemos esta breve contextualização com uma auto-caraterização deste conjunto de crónicas, empreendida pelos próprios autores: as nossas Farpas no fim de contas são isto sempre: uma pequena quantidade de ferro que ordinariamente não servimos em forma de punhal, como se dá aos assassinos, mas sim em pequeninas pílulas para se tomarem em nata perfumada com baunilha, como convém que se receite às senhoras frágeis e anémicas (Queirós e Ortigão, 1872: 16).

3.2. O Quinto dos Infernos O Quinto dos Infernos é uma minissérie da autoria de Carlos Lombardi, produzida pela cadeia de televisão brasileira Globo, entre 2001 e 2002, que “reconstitui os bastidores políticos da independência do Brasil. Tudo com muito amor, ação e sensualidade”.5 5

Informação retirada da secção do site Memória Globo dedicada à minissérie O Quinto dos Infernos, disponível no endereço http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/o-quinto-dos-infernos/tramaprincipal.htm (consultado em 4 de janeiro de 2015)

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Sendo esta uma minissérie que se propõe reconstruír a História, não se pense que o rigor que a esta ciência social é exigido transparece nesta narrativa televisiva, já que a mesma acaba por usufruir de todas as liberdades que à ficção histórica são concedidas: “O Quinto dos Infernos agita a nossa História, transformando-a numa história peculiar, maliciosa como poucas”, lê-se na capa da edição em DVD. Assim, estamos perante uma caricatura da família real portuguesa, principalmente de D. João VI, D. Carlota Joaquina, D. Miguel e D. Pedro, este último que assenta na definição de herói postulada por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1990: 187): “Trata-se de considerar que a narrativa existe e desenvolve-se em função de uma figura central, protagonista qualificado que por essa condição se destaca das restantes figuras que povoam a história”. Parece-nos, contudo, desadequada a designação de minissérie que a Globo adota para a sua narrativa. Em primeiro lugar, porque estamos perante 16 horas e 51 minutos de trama, subdivididos, segundo o site Memória Globo, em 48 capítulos.6 Depois, consideramos, com base na distinção entre série e seriado de Rosemary Huisman (2005: 154), que O Quinto dos Infernos se enquadra mais neste último caso: a série não tem um número predeterminado de episódios, é pensada para ter um final aberto e os episódios, que introduzem e completam uma nova história cada um, partilham entre si as mesmas personagens e o tema básico, que podem ir sofrendo alguma evolução, enquanto no seriado a história se assume como uma linha contínua e tem um número finito de episódios onde ela se desenrola. É de facto esta a situação que verificamos: o seriado conta a história da corte portuguesa, desde a chegada de Carlota Joaquina a Portugal para casar com D. João VI até à morte de D. Pedro I, sofrendo algumas elipses, das quais se destacam, no início do seriado, aquela que omite o período temporal entre o casamento de D. João VI com Carlota Joaquina e as Invasões Francesas e consequente saída da corte para o Brasil e, após a chegada desta, a que passa da infância de Pedro para a sua idade adulta, em 1817. A partir daí, a ação e, com ela, as personagens, vão evoluíndo até se chegar a um final fechado – a capitulação das tropas miguelistas e a morte de D. Pedro.

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A necessidade de consultar esta informação justifica-se pelo facto de a nossa análise ser baseada na edição em DVD, o qual compila todos os episódios sequencialmente, não permitindo saber a divisão episódica empreendida para a versão televisiva.

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4.

Análise das personagens 4.1. Estratégias de figuração na crónica em estudo Fastos da Peregrinação de Sua Majestade o Imperador do Brasil por estes Reinos é a

crónica publicada n’ As Farpas, em fevereiro de 1872, a propósito da primeira viagem que D. Pedro II, Imperador do Brasil, fez à Europa. Esta é, aliás, uma das crónicas que Eça deliberadamente não publica em Uma campanha alegre. Salta logo à vista do leitor uma das suas especificidades: ela é escrita em formato epistolar, dirigida “ao Imperial Viajante”, ou seja, ao próprio Imperador. Se, como vimos, a personagem é a categoria narrativa que permite ao autor veicular as suas ideologias, é, pois, através da construção caricaturada - isto é, com recurso ao exagero - da personagem de D. Pedro II, que não só Eça e Ramalho criticam as atitudes do Imperador durante a própria viagem, mas, sobretudo, aproveitam para denunciar alguns aspetos da sociedade do seu tempo, por exemplo, os privilégios das altas classes sociais, a fragilidade dos regimes monárquicos ou a situação das letras, das artes e da Universidade. Assim, como afirma Rômulo Brito (2013: 102), “D.Pedro II não representou um fim, mas um caminho para a problematização de questões mais amplas através das sátiras sobre sua passagem pelo continente”. Uma das estratégias adotadas para construir a tal crítica social é, aliás, comum nos textos de Eça – a construção de personagens-tipo (Peixinho, 2002: 77). Nesta crónica, é sobre a sociedade lisboeta da época que os tipos são contruídos: o mendigo, o empregado público, o jovem sacerdote, o soldado, o polícia, o aba, o caixeiro de modas, o militar reformado, o operário, o político, o deputado da província, as mulheres e, estando nós perante uma carta dirigida ao Imperador do Brasil, o Brasileiro. A criação destas personagens dá-se com o intuito de retratar fielmente a cidade de Lisboa, já que os cronistas observam: “Vossa Majestade supôs talvez que viu tudo visitando em Lisboa todos os edifícios e todos os monumentos” (Queirós e Ortigão, 1872: 17). Contudo, consultando um documento de época sobre a passagem do Imperador pela Europa, parece-nos injusta a acusação feita, pois, pelos relatos, a ideia com que ficamos foi a de que o Imperador calcorreou bastante as ruas das cidades por onde passou, merecendo até a admiração do povo: “o Imperador conversava muito familiarmente com as colarejas e saloios (…). Um saloio, admirado de ver o imperador entre o povo (…)”(Real, Rocha e Castro, 1872: 276). Claramente, a Eça não interessava a 13

fidelidade ao histórico ou ao factual, antes o aproveitamento seletivo de certos tiques e detalhes que pudessem construir uma figura ao serviço da crítica e do humor. “Um homem alto, forte, encanecido, com uma mala na mão, o hebraico na boca, académico e irmão dos terceiros da Lapa” (Queirós e Ortigão, 1872: 65): parece-nos esta a mais sucinta, mas, ao mesmo tempo, mais completa descrição do D. Pedro criado por Ramalho e Eça. Na verdade, estamos perante um processo de criação de uma personagem pela própria personagem – ou melhor, pelo seu referente no mundo real. Assim, ao que na crónica assistimos é a uma ridicularização da construção de uma auto-imagem, por parte do Imperador, que desejou viajar na Europa como um cidadão comum, o que leva os cronistas a constatar que “a História não tem nome a dar-lhe!” (ibidem: 36), justificando-se com o facto de o Imperador se identificar, alternadamente, como tal ou como um simples cidadão, conforme a situação perante a qual se encontrava. O que a História registou foi que, chegado a Portugal, D. Pedro afirmou: “Aqui não há imperador nem imperatriz. Chamo-me D. Pedro de Alcântara e minha mulher D. Teresa Cristina” (apud Real, Rocha e Castro, 1872: 10) e, consequentemente, “Deixe-me gozar esta liberdade de simples cidadão” (ibidem: 11). Desta construção da própria personagem faz também parte o figurino – tanto o documento de Real, Rocha e Castro como a Farpa fazem menção aos trajes simples usados por D. Pedro. Contudo, por estarmos perante um registo histórico e uma crónica, com todas as diferenças a que já fizemos alusão, enquanto o registo factual dá conta que “o Imperador vestia o trajo modesto, em que já o vimos saír do porto” (Real, Rocha e Castro, 1872: 16), a menção cronística exagera os atributos expondo-os quase ao ridículo. Vejamos, por exemplo, o que é dito em referência ao dia em que D. Pedro assistiu a um doutoramento, em Coimbra: “dizem que Sua Majestade trajando jaquette de viagem, com um chapéu desabado, e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada (…)”(Queirós e Ortigão, 1872: 49). Ao figurino da personagem acrescentam Eça e Ramalho um adereço, recorrentemente referido na sua crónica: uma mala que, dizem, D. Pedro nunca largou em toda a sua viagem. Este objeto, que no documento histórico a que tivemos acesso não encontra correspondência, é visto pelos autores como “uma insígnia: a insígnia do seu incógnito” (ibidem: 38-39), “o cartaz da sua familiaridade” (ibidem: 39), ou a democracia, antítese da coroa, símbolo da realeza (ibidem). A personagem construída por D. Pedro na sua visita à Europa fica completa com a atitude que resolve adotar: a de “distinto cultor das boas letras”, segundo os autores do relato 14

(Real, Rocha e Castro, 1872: 25), que, nas palavras dos autores da ‘farpa’, foi adjetivado como sábio: “Andou igualmente bem Vossa Majestade em viajar incógnito e em adotar a representação de sábio” (Queirós e Ortigão, 1872: 18). Este aspeto é, então, hiperbolizado, numa tentativa de criticar o conhecimento superficial e até inútil do Imperador, como o que diz respeito ao seu culto pela língua – já então considerada morta – hebraica: “Sua Majestade é guloso de hebraico. No hebraico – rapa os pratos e lambe os dedos.” (ibidem: 48). A ridicularização desta personagem fica completa com a ironia com que os autores se lhe dirigem ou se referem a ele, por exemplo: “ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta” (ibidem: 58) ou “ele – que não pode ser chamado Pedro de Alcântara porque o vedou, nem Pedro II porque o negou – seja simplesmente chamado – PST!” (ibidem: 37). 4.2. Estratégias de figuração no seriado em análise Como já foi referido, a nossa proposta é, agora, estudar a personagem de D. Pedro I no seriado O Quinto dos Infernos. Para tal, embora tenhamos em mente toda a narrativa, selecionámos dois episódios que nos permitem perceber as estratégias de figuração. Contudo, esta delimitação do corpus não é muito exata, uma vez que o nosso objeto de análise não é o formato televisivo do seriado, mas sim a sua versão compilada em DVD, a qual não contempla a divisão episódica empreendida para a versão televisiva. Assim, tivemos em conta aquela que pensamos ser a duração média de um episódio de seriado – 40 minutos – e selecionamos dois blocos temporais que consideramos equivaler, então, a dois episódios. Esta escolha não foi aleatória, pois fizemos um primeiro visionamento da totalidade do seriado, a fim de conhecer a diegese e, particularmente, a personagem de D. Pedro I, e só depois refletimos sobre os dois blocos temporais a escolher, que nos permitissem perceber a evolução que a personagem sofre, bem como o maior número de traços do seu caráter. Assim, decidimos debruçar-nos sobre os 40 minutos subsequentes à primeira aparição da personagem na série, enquanto adulto (isto porque, como referimos, a infância é quase toda omitida) e o mesmo bloco temporal que rodeia a cena da proclamação da independência do Brasil, por considerarmos, como explicaremos, que este é o ponto alto da personagem de D. Pedro e que marca uma evolução de caráter bastante saliente.7

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Ainda hesitámos entre escolher este “episódio” ou o do final da série, em que D. Pedro I derrota o irmão, em guerra civil. Contudo, parece-nos que aquele que acabámos por selecionar nos oferece elementos que nos permitem elaborar uma caraterização mais completa da personagem.

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É a rodopiar na chuva, em tronco nu, que passam dez anos e Pedro se transforma em adulto. Na verdade, o facto de estar semi-nu assume importância no processo de figuração, já que é nesses propósitos – quando não apenas de ceroulas - que, muitas vezes, a personagem irá aparecer na diegese. Além disso, a nudez total é frequentemente insinuada, principalmente nas muitas cenas de sexo em que D. Pedro está envolvido. Estando perante um formato televisivo, em que a imagem é código predominante, é-nos permitido perceber com exatidão a fisionomia bela da personagem que tão elogiada é por outras personagens ao longo da ação: D. Pedro é moreno, musculado, cabelo encaracolado, patilhas e olhos escuros e bonito sorriso. O físico da personagem é bastante relevante, não só porque lhe confere uma sensualidade que tem certo fundo histórico, como também porque se adequa a uma estratégia de sedução e captação do público feminino do seriado. A primeira cena da personagem no seriado é no clube ilegal em que D. Pedro se costumava envolver em lutas, sendo-lhe dado o atributo de – “gladiador vitorioso”. O facto de, logo no início, mostrar o caráter, ao mesmo tempo, forte, popular e transgressor das regras da corte, permite traçar a oposição entre D. Pedro e o seu irmão, D. Miguel, quando o próprio diz: “Falas com Pedro, não com o choramingas do mano Miguel”, caráter que se vem a confirmar, não só pela constante saúde frágil de que vai padecendo, mas também porque D. Miguel se assume como o filho preferido de Carlota Joaquina, que vê nele um meio de chegar ao tão auspiciado lugar de rainha, se conseguirem que D. João deserde D. Pedro, príncipe herdeiro. Contudo, a paixão – que inclui atração física quase incestuosa – de Miguel pelo irmão (que se confirma no segundo episódio do nosso corpus) nem sempre o leva a ser tão severo como a mãe desejava, estando constantemente a defendê-lo. No início do seriado, D. Pedro é, assim, uma personagem que carrega o peso da irresponsabilidade, que abdicou das aulas de alemão pagas pelo pai, para que o auxiliasse em negociações com nativos dessa língua, para ir “atrás de uma escrava, de uma mocamba ou de qualquer coisa que tiver saias”, segundo as palavras do pai. Esta é, sem dúvida, a caraterística que mais é realçada ao longo da série e que, na nossa opinião, mais caricaturada está: as cenas de cariz íntimo abundam do princípio ao fim, sendo este o traço que acompanhará D. Pedro até à morte, por muitas evoluções que ele sofra. A imaturidade é também concretizada através dos excessos boémios (alcoól, festas, mulheres, …) cometidos pelo príncipe que, nessa sequência, costuma aparecer – como acontece, aliás, neste episódio que estamos a analisar – embriagado dentro de uma fonte, na rua. Nestas ocasiões, Pedro é acompanhado pelo seu lacaio, Plácido, e, mais tarde, também por Francisco Gomes da Silva. 16

Embora a irresponsabilidade caraterize o jovem D. Pedro, é já percetível a sua ideologia política, quando diz a D. João – personagem caraterizada, sucintamente, pela fraqueza e a cobardia: “a crítica de Napoleão à monarquia absoluta é lúcida, não se pode governar hoje como há duzentos anos, sem passar pelo povo”. Considerando, então, a soberania do povo acima de qualquer outra coisa, o segundo episódio do nosso corpus começa precisamente no momento após D. Pedro se unir àquele contra a rebelião militar que, mais tarde vem a saber, foi provocada pelo irmão. Pedro evita, assim, a sua ida para Portugal que D. João auspiciava. Com esta demonstração de maturidade, D. Pedro consegue conquistar o orgulho de seus pais, que até aqui dele duvidavam, e também do povo: “Carlotinha, todos só querem saber de Pedrinho, agora. Querem resolver alguma coisa, Pedrinho para cá, Pedrinho para lá”, diz D. João. É também aqui que podemos ver o amor e dedicação da personagem aos seus filhos, na época em que estava casado com a sua primeira esposa, D. Leopoldina, mantendo as suas relações extra-conjugais, entre as quais aquela que mais o marca, Domitila. Dessas relações, D. Pedro tem já, nesta altura, vários filhos bastardos, que ele assume sem problemas, como era costume a época. O abandono do álcool é outro aspeto que pode ser associado ao crescimento do príncipe e que acontece neste episódio. A confiança de D. João é confirmada quando este regressa a Portugal, confiando ao filho primogénito a tarefa de cuidar do Brasil. Contudo, chegado a Portugal, o Rei envia um despacho ao filho em que ordenava a submissão do Brasil às decisões das cortes portuguesas, o que leva D. Pedro, em 1822, a tomar a decisão que o heroificará. Recusando obedecer às leis que lhe enviam de Portugal, D. Pedro lança o célebre Grito do Ipiranga: “Chega! O Brasil não se curva mais àqueles filhos da mãe. Independência ou morte! Está declarada a independência do Brasil”. Se o seriado, como dissemos, usufrui dos benefícios da ficção, parece-nos que isso acontece quase só no exagero com que as personagens são apresentadas e nas suas características, o que se justifica, na nossa opinião, com o intuito assumido de fazer História com humor e maldade. Dizemos isto, pois a maior parte das cenas narradas têm fundamento histórico: a ida da corte para o Brasil, fugindo às Invasões Francesas, os casamentos negociados e até a fisionomia, a vida boémia e o amor pelos filhos. Contudo, há pequenos pormenores históricos que a narrativa altera, como por exemplo o embarque da família real na mesma nau e a própria habitação comum (Carlota Joaquina viveu no Brasil, tal como em Portugal, apartada do marido (Jaca, 2008: 10)) ou a entrega de Pedro às tropas por vontade 17

própria e não do pai. Contudo, parece-nos que estes pequenos desvios estão ao serviço de dois objetivos: por um lado, a necessidade de criação de um núcleo centralizado da ação, pois se a família real estivesse separada, seria mais difícil criar uma narrativa una; por outro, pela densificação dos traços heróicos da personagem. 5. Conclusões Chegados ao momento de tecer algumas conclusões, parece-nos que estas assentam sobretudo em quatro aspetos: i) ambos os textos – crónica e seriado – utilizam a figuração de uma personagem histórica com intuitos satíricos; ii) existem, contudo, divergências evidentes, fundamentalmente decorrentes das linguagens utilizadas por ambos os textos; iii) deve também ter-se em conta de que a crónica, no momento da sua publicação, pretendia ser atual e narrar um acontecimento presente, ao passo que o seriado é claramente histórico, no sentido em que recupera matéria pretérita; iv) apesar dessas diferenças, a construção da personagem é, em ambos, estratégia central de comunicação. Relativamente ao primeiro ponto, julgamos ter ficado claro que existe, no corpus analisado, uma subversão da história, com fins claramente humorísticos, conseguida essencialmente pela caricatura das personagens: no seriado, o alvo é a corte portuguesa; na crónica, o alvo é a sociedade portuguesa e a própria personagem histórica. No que diz respeito ao segundo aspeto, salientamos a maior eficácia narrativa do seriado em relação à crónica: por um lado, o recurso a uma narrativa extensa, que permitiu enquadrar a personagem num contexto mais lato; por outro lado, o valor expressivo da imagem e da performatividade dos atores facilitam – em termos de receção – a figuração da personagem. Finalmente, e pesem embora as diferenças temporais e genológicas destes textos, a personagem é em ambos a estratégia retórica utilizada para a concretização dos objetivos: quer D. Pedro I das Farpas, quer D. Pedro II do Quinto dos Infernos são sobretudo signos ideológicos, ao serviço da crítica. Por outras palavras, estes dois produtos mediáticos, embora muito diferentes em termos de linguagem, de códigos e de tempos, utilizam a categoria personagem para provocar no leitor/espectador uma reflexão: a de que nem sempre a História oficial é suficiente para se compreender o passado, sendo, por isso, passível de outros tipos de abordagem e representação.

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Resumo Através de um estudo de caso constituído pelas personagens D. Pedro I, na minissérie O Quinto dos Infernos (TV Globo, 2001-2002), e D. Pedro II, na crónica Fastos da Peregrinação de Sua Majestade o Imperador do Brasil por Estes Reinos (Eça de Queirós e 20

Ramalho Ortigão, As Farpas, 1872), este artigo constitui-se como uma reflexão acerca da figuração da personagem histórica, com intuito satírico e humorístico, na crónica e na série. Para sustentar este estudo, a primeira parte do artigo versa questões relacionadas com a teoria da personagem, tais como a importância e funções desta categoria narrativa, a diferença entre pessoa e personagem, os problemas associados à sua leitura e as diferenças entre o registo histórico e os registos cronístico e televisivo, colocando-se em confronto a factualidade e a ficcionalidade. A análise das personagens é ainda precedida por uma parte sobre a importância histórica das figuras estudadas, bem como pela contextualização do corpus. Palavras-chave: personagem, figuração, crónica, série

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