A Filogenia da Guerra: uma hipótese evolucionária sobre as origens do conflito interssocietário na linhagem do homem (52 - 6 Ma)

May 24, 2017 | Autor: Daniel Barreiros | Categoria: Evolutionary Psychology, Human Evolution, Primatology, Cooperation (Evolutionary Psychology), Sociobiology, Behavioral Primatology, Conscience, Behavioral Ecology, War and violence, Evolution and Human Behavior, Arqueología, Warfare, Evolution of Human Cognition, Arqueologia, Antropología Política, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Violencia, Cognição, Miocene, Anthropology of War, Paleopatologia, Primate Behavior, Human Evolution, Paleoanthropology, Guerra, Violência, Sociobiology, Kin Selection, Altruism, Evolução, Consciência, Psicologia Evolutiva, Palaeolithic Archaeology, Hominin Palaeontology, Evolutionary Psychology and Cognitive Psychology, Palaeoecology, Palaeoenvironment, and Palaeoclimate studies, Anthropological Genetics, Palaeopathology, Paleoantropología, Paleoanthropology, Evolutionary Primatology, & Prehistoric Archaeology, Primatologia, Estudos de Defesa, Defesa Estratégica, Segurança Estratégica, Segurança Externa, Segurança Interna, Segurança Pública, Gestão Estratégica Internacional, Sistema Interestatal, Guerras e Conflitos, Poder, Ciência Política, Sociologia, Antropologia., Sociobiologia Psicologia Evolucionista, Antropología de la violencia, Evolutionary Sociobiology, Cognição Humana, Arqueologia Cognitiva, Evolução Humana, Evolution of Hominin and Human Behaviour, Sociobiología, Cultural Primatology, Arqueologia da Guerra e do Conflito, Behavioral Primatology, Conscience, Behavioral Ecology, War and violence, Evolution and Human Behavior, Arqueología, Warfare, Evolution of Human Cognition, Arqueologia, Antropología Política, Estudios sobre Violencia y Conflicto, Violencia, Cognição, Miocene, Anthropology of War, Paleopatologia, Primate Behavior, Human Evolution, Paleoanthropology, Guerra, Violência, Sociobiology, Kin Selection, Altruism, Evolução, Consciência, Psicologia Evolutiva, Palaeolithic Archaeology, Hominin Palaeontology, Evolutionary Psychology and Cognitive Psychology, Palaeoecology, Palaeoenvironment, and Palaeoclimate studies, Anthropological Genetics, Palaeopathology, Paleoantropología, Paleoanthropology, Evolutionary Primatology, & Prehistoric Archaeology, Primatologia, Estudos de Defesa, Defesa Estratégica, Segurança Estratégica, Segurança Externa, Segurança Interna, Segurança Pública, Gestão Estratégica Internacional, Sistema Interestatal, Guerras e Conflitos, Poder, Ciência Política, Sociologia, Antropologia., Sociobiologia Psicologia Evolucionista, Antropología de la violencia, Evolutionary Sociobiology, Cognição Humana, Arqueologia Cognitiva, Evolução Humana, Evolution of Hominin and Human Behaviour, Sociobiología, Cultural Primatology, Arqueologia da Guerra e do Conflito
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Texto para Discussão 004 | 2017 Discussion Paper 004 | 2017

A filogenia da Guerra Uma hipótese evolucionária sobre as origens do conflito intersocietário na linhagem do homem (52 – 6 Ma)

Daniel Barreiros Professor, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro

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A filogenia da Guerra Uma hipótese evolucionária sobre as origens do conflito intersocietário na linhagem do homem (52 – 6 Ma) Fevereiro, 2017

Daniel Barreiros Professor, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: BARREIROS, TD 004 - 2017.

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O emprego da violência interpessoal tem destaque no conjunto de instrumentos comportamentais de uma ampla gama de espécies que habitam ou habitaram o Planeta, e é algo que representa um diferencial evolucionário na competição individual pelas fontes de subsistência e no sucesso reprodutivo, em determinadas circunstâncias ecológicas (Chauvin, 1977, p. 134-136). Ou, pelo menos, esse é um encaminhamento cuja generalização requer um conceito de evolução fortemente eivado pelo pensamento liberal-burguês da segunda metade do oitocentos 1. Em maior ou menor medida, a partir da evolução dos grandes símios no âmbito da ordem dos Primatas, postulamos a existência de fenômenos que nos permitem traçar uma narrativa, se não essencialmente distinta, pelo menos dotada de importantes nuances. Isso porque o consistente desenvolvimento da vida social, em curso desde a adoção de hábitos diurnos há 52 Ma 2, e amplamente potencializado com a formação de pares ou de haréns a partir de algumas espécies da família Hominidae 3 por volta de 16-12 Ma, além de funcionar, ele próprio,

“O sucesso evolucionário é a soma alcançada por suas partes constituintes. Como muitos biólogos evolucionistas já apontaram, apesar de a evolução ser um processo que se desenrola ao longo de vastas extensões de tempo, é o indivíduo que constitui a unidade dos bits evolucionários. A razão para tal é que é o indivíduo que se reproduz, não a espécie, e portanto é sobre os indivíduos que a seleção natural opera (...). Uma espécie alcança sucesso evolucionário se os indivíduos que a formam obtêm altos níveis de sucesso reprodutivo, em relação tanto uns aos outros quanto às espécies concorrentes” (Foley, 2003, p. 170171). Ainda nos falta alguma criatividade para superarmos a visão individualista, burguesa e oitocentista da seleção natural. Decerto há boas iniciativas, mas pouca consolidação e sistematização. Sem eliminar o aspecto individual, a sociabilidade, os aspectos coletivos e cooperativos na generalização de oportunidades evolucionárias para os membros de um grupo precisam ser mais bem conhecidos, por seguem sendo minimizados ou ocultos pelas formas convencionais de enquadramento do problema. 2 Quando “Ma”, leia-se “milhões de anos atrás”; quando ma (iniciado por minúscula), leia-se “milhares de anos atrás”. 3 A atribuição do termo “hominíneo” a determinadas espécies primatas é mais um dos muitos temas, na filogenia do homem, dotados de controvérsia. Tradicionalmente, estabelecia-se como limite cladístico entre os monos estantes e os humanos modernos a família Hominidae, que compreenderia os últimos, enquanto os primeiros pertenceriam a outra família, então designada como Pongidae. Entretanto, cresceu a opinião de que não seria tão justificado agrupar as espécies do gênero Pan junto de outros hominídeos mais antigos, considerando a provável maior proximidade genética entre H. sapiens e P. troglodytes do que entre este último e as espécies dos gêneros Gorilla e Pongo. Os que entendem dessa maneira preferem, então, agrupar sob a família Hominidae todos os monos, além do homem moderno, e empregar o critério de subfamília (Homininae) para agrupar somente os gêneros Gorilla, Pan e Homo (alocando então as espécies do gênero Pongo em sua própria subfamília, Ponginae). Descendo a escala cladística, agrupam-se Pan e Homo em uma só tribo, chamada Hominini, das quais duas subtribos surgem, Hominina (para a espécie estante e as espécies extintas do gênero Homo) e Panina (para as duas espécies de chimpanzés estantes e conhecidas). Existe ainda a opinião de que, em privilégio da especificidade da linhagem direta do homem moderno, se deva estabelecer a subfamília Homininae excluindo as espécies do gênero Gorilla, apartando os chimpanzés 1

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como uma inovação comportamental adaptativa (Shultz, Opie, Atkinson, 2011), gerou um contexto complexo que levaria o exercício da violência e do poder a ganhar novas dimensões, milhões de anos depois. Em âmbito interno aos grupos sociais, o exercício da força associar-se-ia a estratégias sociais envolvendo intricadas ritualizações e o sutil emprego de estratagemas e subterfúgios, incluindo nas ferinas disputas por status a formação de alianças em torno de objetivos comuns. No âmbito externo, a projeção de poder também viria a superar a antediluviana tendência, frequente nos mamíferos, às disputas entre indivíduos, dando origem à novidade evolucionária consubstanciada no fenômeno da violência coalizacional. Surgiam, então, genuínas relações sociais de poder que ultrapassavam, embora incorporassem, a mera instância interpessoal, assumindo uma dimensão coletiva e intersocietária. É nesse sentido que a intensa sociabilidade demonstrada pelos grandes primatas antropoides estantes – excetuando os orangotangos, do gênero Pongo – sugere um interessante emaranhamento entre o social e a dinâmica evolutiva, entre a vida coletiva, com sua lógica de cooperação e conflito intra e intergrupal, e aquele domínio vitorianamente consagrado ao indivíduo (a origem e evolução das espécies). E de forma mais específica, são traços compartilhados entre P. troglodytes e H. sapiens – os chimpanzés comuns e os humanos modernos –, adequados integralmente ao portfólio comportamental descrito, que nos fazem imaginar que tanto a violência coalizacional quanto a projeção de poder interssocietária possam se configurar como uma condição

no nível da tribo (Panini), e reservando a tribo Hominini exclusivamente para agrupar as subtribos Hominina (gênero Homo) e Australopithecina (demais antropoides na linhagem direta ou indireta do homem moderno). Acompanharemos essa última definição, na qual o termo "hominíneo" designa genericamente as espécies vinculadas à tribo Hominini, que agrega todos os antropoides surgidos da divergência com o gênero Pan, incluindo H. sapiens. O termo "hominídeo", por sua vez, atribui-se a todas as espécies da família Hominidae, desde aquelas pertencentes ao gênero Pongo até os humanos, passando ainda por outras espécies extintas. Em busca de maior especificidade, empregaremos "hominídeo" sempre que nos referirmos a espécies que não são hominíneas. Naturalmente, essa classificação cladística dificilmente será definitiva, especialmente se considerarmos a seriedade com que investigadores, tais como Jared Diamond, advogam em favor de um olhar que privilegie a inequívoca proximidade genética entre homens e chimpanzés, a ponto não só de agrupá-los sob uma mesma tribo, mas também sob um mesmo gênero (de modo que teríamos três espécies estantes do gênero Homo, H. sapiens, H. troglodytes e H. paniscus). Ver Cameron e Groves, 2004, p. 61; Diamond, 2010; Gratão et al., 2015, p. 97; Wood, 2010, p. 8902.

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sinapomórfica 4, desenvolvida e transmitida no decurso evolucionário de algumas espécies da subfamília Homininae, com laços filogenéticos entre si, e que remetem pelo menos ao último ancestral comum (UAC) entre os gêneros Pan e Homo. Assim, o desenvolvimento da violência coalizacional e da projeção de poder interssocietária teria percorrido uma senda evolucionária de ao menos seis milhões de anos, gerando uma identidade elusiva entre os reides promovidos por bandos de chimpanzés contra grupos vizinhos rivais nas florestas equatoriais da África Central, os massacres que marcaram a vivência social de H. sapiens durante a Última Era Glacial, e os dantescos choques entre sociedades organizadas em Estados, no curtíssimo intervalo entre o surgimento da agricultura, há aproximadamente dez mil anos, e os tempos atuais. Esse fenômeno de longuíssima duração, a filogenia da guerra, superaria absolutamente a percepção subjetiva de seus agentes históricos (fosse pela sua própria condição, fosse pela ausência de instrumentos cognitivos para o conceito de temporalidade), e, operando num pano de fundo inconsciente, estrutural, tensionaria e problematizaria dialeticamente cada

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Apomorfia é uma estrutura ou traço comportamental, de caráter inovador, manifestado em determinado táxon ou grupo de táxons. Apomorfias compartilhadas por vários táxons que apresentam um ancestral comum são chamadas de sinapomorfias, e são critério importante para a identificação de grupos monofiléticos (leia-se, grupos de táxons com ancestralidade comum). Uma plesiomorfia é uma característica primitiva, basal, compartilhada por dois ou mais táxons, e que só configura critério de agrupamento para grupos parafiléticos (sem ancestral direto comum). Quando num grupo desse tipo, parafilético, todas as espécies apresentam uma determinada característica primitiva, chamamo-la de simplesiomorfia. A determinação da condição apomórfica ou plesiomórfica de um traço ou estrutura é relativa, e depende do nível taxonômico analisado. Então, ao se afirmar que comportamentos de poder complexos, envolvendo agressão, subterfúgio e uma intrincada teoria da mente, são traços sinapomórficos quem unem as espécies que compõem a subfamília Homininae, sinaliza-se que tais traços se manifestam nelas, em exclusão de todas as demais espécies que formam a família Hominidae, e que provém de ancestralidade comum. Um traço plesiomórfico seria a ausência de cauda, aspecto morfológico primitivo, compartilhado com espécies primatas fora da subfamília, e que, portanto, não confere especificidade aos táxons componentes de Homininae. Além disso, tem-se que as sinapomorfias estão presentes em duas ou mais espécies pela razão de compartilharem elas um ancestral comum. Essa, todavia, não é a única possibilidade do desenvolvimento de uma característica comum. As homoplasias consistem em desenvolvimentos morfológicos ou comportamentais convergentes entre espécies apartadas no tempo e/ou no espaço, sem ancestralidade direta comum, mas normalmente selecionados por pressões adaptativas com algum grau de semelhança. Diferenciar sinapomorfias de homoplasias nunca é tarefa fácil; nesse estudo, privilegiarei hipóteses sinapomórficas, mas consciente de que elas não são a única possibilidade explicativa na história evolucionária de que qualquer traço morfológico ou comportamental comum entre duas espécies.

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episódio envolvendo o poder e a guerra em temporalidades mais curtas, sem determinálos. Nesse estudo, a hipótese de transmissão hereditária do portfólio de características que fundamenta as relações de poder interssocietárias será sempre trabalhada no limite de sua plausibilidade. A pressão seletiva ambiental e a adaptação ao meio são consideradas instrumentos eficazes de fixação de mutações, em consonância com a moderna síntese neodarwinista, destacando-se os limites da flexibilidade morfo-comportamental diante dessas mesmas pressões. Opta-se, então, por um modelo “ordenado” da dinâmica evolucionária, tanto no que compete aos aspectos morfológicos quanto aos comportamentais (Wood, 2002, p. 133-134), o que significa uma forte ênfase metodológica no princípio da parcimônia 5; para tanto, buscar-se-á reconstruir cadeias evolucionárias de forma mais simples possível, considerando o menor número necessário de eventos especiativos que expliquem determinado conjunto de variações. Além disso, será privilegiada a identificação de sinapomorfias nítidas na definição dos táxons, algo que enfatiza a interpretação filogenética da presença de traços derivados

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compartilhados por espécies num mesmo clado. Assim, a busca de um cenário

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O princípio da parcimônia é uma importante salvaguarda no campo dos estudos evolucionários. Não se trata de um expediente simples determinar se uma característica compartilhada por dois ou mais táxons consiste em uma condição derivada ou primitiva, se expressa ancestralidade comum entre essas espécies, ou se é fruto de desenvolvimento homoplásico. Assim, assume-se como regra de ouro a opção inicial por uma interpretação cladística que admita o menor número de desvios evolucionários, e que nos possibilite identificar o maior número de apomorfias possível. Em busca do cenário mais simples para a origem e evolução das espécies em um táxon, a parcimônia incita o investigador a buscar as linhas de continuidade morfológica e comportamental mais nítidas, e as derivações e ancestralidades mais pronunciadas a partir dessas linhas. Não obstante, a análise evolucionária frequentemente se debruça sobre desenvolvimentos não explicáveis como apomorfias a partir das fontes disponíveis, e que precisam ser lidos (ao menos provisoriamente) como reversões (em que uma espécie parte de uma condição ancestral apomórfica e retoma traços primitivos, simplesiomórficos) ou convergências (em que, partindo de condições plesiomórficas distintas, sem ancestral comum direto, espécies desenvolvem traços semelhantes). Para mais detalhes ver Ladeia, Ferreira, 2015, p. 49-51. 6 Convém ao leitor atentar para o fato de que, em termos evolucionários, dizemos “derivada” uma condição morfológica ou comportamental que não é compartilhada pelo ancestral direto de uma espécie, emergindo então como inovação, seja ela adaptativa ou exaptativa (que surge por uma razão determinada, mas se mostra crucial para a sobrevivência e sucesso reprodutivo diante de uma mudança ambiental posterior, ausente no momento do surgimento da característica). Chamamos de “primitiva” uma condição também morfológica ou comportamental apresentada por uma espécie e compartilhada com seu ancestral direto. Características derivadas são o elemento principal para a delimitação de um táxon numa análise cladística.

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simplificado para a explicação das especiações na família Hominidae privilegiará a construção de longas cadeias de continuidade morfo-comportamental, apenas interrompidas em pontos específicos por inovações evolucionárias, que devem gerar outras longas cadeias de continuidade 7. A possibilidade de convergências de tipo homoplásico, nas quais uma característica se desenvolve em duas espécies diferentes, diacrônica ou sincronicamente, sem que haja transmissão hereditária a partir de um ancestral comum entre elas, são fenômenos naturalmente reconhecidos, mas que terão recurso limitado nesse estudo, exceto em casos de difícil explicação filogenética. O fenômeno do equilíbrio intermitente 8 (punctuated equilibrium, na formulação clássica de Eldredge e Gould) como aspecto radical da cladogênese aparece nesta pesquisa como mais provável imagem dos processos especiativos; não obstante, a busca por uma reconstrução simples da evolução do comportamento social e da violência interssocietária na linhagem do homem poderá ainda admitir, em casos específicos, a possibilidade de desenvolvimentos anagenéticos, pelo menos até os eventos que datam de 3 Ma, aproximadamente.

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Se duas espécies provenientes de um ancestral comum compartilham de um mesmo traço morfológico ou comportamental, a hipótese filogenética prescreve que aceitemos a presença desse mesmo aspecto, ainda que em forma transicional, na espécie matriz (caso contrário, deveríamos então concluir que o desenvolvimento simultâneo nas duas espécies provém de convergência homoplásica). Se entre outras duas espécies, igualmente com ancestralidade comum, uma determinada característica está manifesta em uma delas, mas não em outra, deve-se decidir se a presença ou ausência desse traço configura uma condição derivada ou primitiva; no primeiro caso, o ancestral comum não compartilhará do aspecto. 8 A noção de equilíbrio intermitente propõe uma imagem para os processos especiativos que corresponderia a longos períodos de estase, de adaptação flexível do portfólio morfológico e comportamental de uma espécie às lentas mudanças ambientais, entrecortados por momentos revolucionários em que o acirramento das transformações climático-ambientais levariam ao esgarçamento das possibilidades de acomodação desses portfólios ao meio ambiente, provocando rápidas extinções e especiações. Assim, hiatos temporais no registro fóssil (ou seja, intervalos em que não se identificam espécimes) não são falhas investigativas, mas sim, informação: essa seria evidência de períodos de rápidas extinções e especiações, nos quais formas transicionais seriam improvavelmente preservadas, dada a sua ligeira permanência e escasso número. O modelo parece funcionar bem para os primatas do Mioceno (23-6Ma). A teoria do equilíbrio intermitente admite ainda que a especiação é resultado de isolamento reprodutivo de grupos que vivem na periferia do alcance geográfico da espécie, pelo processo de cladogênese. O isolamento de populações marginais resulta em rápida especiação, que pode ser acompanhada por uma nova espécie-filha tomando o território da espécie que lhe deu origem. Se isso ocorre, é quando passamos a encontrá-la no registro fóssil. É mais provável que a nova espécie não seja capaz de competir e pereça. Ela pode ainda sobrepujar ou coexistir com a espécie original, ocupando outro nicho ecológico. Ver Cameron, Groves, 2004, p. 3.

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Uma postura parcimoniosa sugere, ainda, que concebamos o último ancestral comum entre o homem moderno e o chimpanzé como portador de características morfológicas mais aproximadas a este último, algumas das quais estariam presentes, e sendo transmitidas, desde pelo menos a divergência da linhagem que culminou nas espécies estantes do gênero Gorilla, há 8 Ma. Entre essas características, destacam-se a nodopedalia 9 e a anatomia dentária (esmalte de fina espessura, caninos grandes e molares de pequenas proporções, em comparação com o restante da dentição). Ao mesmo tempo, traços distintivos do homem moderno são assumidos nesse estudo como derivados (em contraposição à morfologia do chimpanzé, tida por primitiva), e, portanto, elementos de ruptura com um longo passado evolucionário; são alguns deles o esmalte dentário espesso, a bipedia, o expressivo coeficiente de encefalização, a redução nas dimensões dos caninos e o crescimento da compleição dos molares vis-à-vis os demais dentes. Certamente o UAC entre homens e chimpanzés não se constituiu em um tipo híbrido, e talvez precisemos considerar que no conjunto dos seres vivos, algumas espécies demonstrem ritmos e intensidades diferentes de mudança evolucionária, mesmo sob pressões análogas. A rapidez com que as espécies na linhagem do homem se transformaram, e principalmente dentre elas, H. sapiens, contrasta firmemente com o nítido conservantismo morfo-ecológico dos chimpanzés que, em linhas gerais, o compartilham com os gorilas. Considerando que a linhagem conducente a Gorilla sp., por volta de 10-8 Ma, divergiu de um tronco comum com os demais grandes símios africanos que lhe sucederam, e tendo emergido os ancestrais diretos de Pan sp. por volta de 6-5 Ma, há uma razoável linha de continuidade de dez milhões de anos formada pelas espécies dos dois gêneros; tendo sido o UAC parte dessa trajetória filogenética, e vivente entre os dois polos nessa régua cronológica, precisaremos considerar suas características gerais como bem próximas daquelas comuns entre gorilas e chimpanzés, e seus aspectos específicos como mais semelhantes aos desses últimos (inclusive no tipo de habitat ocupado e dieta praticada). A alternativa a esse arrazoado seria a consideração de um cenário homoplásico, no qual as principais características anatômicas e comportamentais

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A nodopedalia é estratégia motora na qual uma espécie se move apoiada nos membros posteriores e nos nós dos dedos dos membros anteriores. É o modo pelo qual chimpanzés e gorilas estantes se movimentam no solo.

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dos gorilas desaparecem antes ou no momento de surgimento do UAC, para tornarem a aparecer com os chimpanzés, mais adiante (Wrangham, Peterson, 1996, p. 43-45). Temos também que, em um modelo “ordenado” da evolução hominídea, as estimativas mais comuns para o tempo de divergência entre os gêneros Homo e Pan, estimadas pelo método do relógio molecular 10 em aproximadamente 6 Ma, podem ser flexionadas (em privilégio de origens mais antigas) diante das evidências de traços hominíneos (derivados) em espécies estratigraficamente

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datadas de 7-6 Ma (e que, portanto,

presume-se serem posteriores à separação entre as linhagens do homem e do chimpanzé). Assume-se, desse modo, que o UAC deva se assemelhar em morfologia às espécies estantes de chimpanzés, uma vez que elas compartilham sua compleição geral com outras mais antigas que a divergência entre Pan e Homo – tal como Gorilla spp. –, formando uma longa linha de continuidade genética (Wood, 2002, p. 133-134). Em um cenário marcado por homoplasias, os aspectos que consideramos derivados na linhagem do homem poderiam ter surgido, desaparecido e ressurgido por um número desconhecido de vezes, impulsionados por desafios ambientais e por uma notável mutabilidade morfo-comportamental, sem a necessidade de transmissões filogenéticas nítidas e inequívocas. Isto é algo que tornaria o recurso às espécies do gênero Pan algo fortemente questionável, se o assunto é a obtenção de um ponto de referência para ponderarmos a respeito dos traços prováveis do último ancestral comum; mais ainda, um cenário radicalmente homoplásico eliminaria, grosso modo, a verossimilhança da

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Há porções do ADN que são infensas à seleção natural, porque não parecem cumprir qualquer função significativa. Esse refugo ("junk DNA") é considerado um pseudogene, com possível função num passado evolucionário muitíssimo distante, mas 'desligado’ com o passar do tempo. O fato é que o ADN refugo parece modificar-se em ritmos razoavelmente constantes, sem que essa transformação tenha qualquer implicação fenotípica, nem que seja influenciada por pressões evolucionárias. Isso nos fornece um relógio evolucionário, capaz de medir, no tempo, a distância entre o surgimento de duas espécies. Ou seja, quanto mais ADN refugo duas espécies compartilham, mais próximos foram seus momentos de divergência. Algo semelhante acontece com o ADN mitocondrial (mtDNA), herdado exclusivamente da linhagem materna, e sem expressão fenotípica conhecida. Ver Cameron, Groves, 2004, p. 12-13; Foley, 2003, p. 90-91. 11 Uma datação estratigráfica consiste na análise da sucessão de camadas de sedimentos sobrepostas numa formação geológica em busca de marcadores que definam as datas relativas e absolutas da deposição destes sedimentos. A idade das rochas, a presença de material vulcânico depositado por erupção datada, a presença de material fóssil ou orgânico, todos esses são elementos empregados para determinar-se a idade de um depósito sedimentar e, por consequência, dos materiais nele encontrados (salvo, claro, quando há evidências de que o sítio foi perturbado).

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filogenia da guerra como hipótese, já que nenhuma linha de continuidade comportamental poderia ser dada por certa entre o homem moderno e o chimpanzé, a despeito da identificação e do reconhecimento de similaridades entre as espécies. Estudos posteriores, no âmbito do projeto de pesquisa que dá substrato ao presente artigo, deverão desenvolver esta hipótese de uma origem homoplásica da guerra. Por hora, convém ressaltar a interpretação filogenética da violência coalizacional e da projeção de poder interssocietária, ainda que reconhecida como tão somente uma possibilidade verossímil, entre outras. O desenvolvimento da sociabilidade dos grandes antropoides – e, portanto, a condição inicial para a existência de projeções de poder interssocietárias – ganhou forma após uma longa trajetória percorrida por espécies de comportamento solitário. Modelos recentes, calcados em evidências paleontológicas disponíveis, estimam que durante o Eoceno Inicial, por volta de 52 Ma – dezenas de milhões de anos, portanto, antes da existência do último ancestral comum entre nossa espécie e os chimpanzés – emergiu entre determinados táxons de primatas a prática da formação de agregações multissexuais, associada à adoção de hábitos diurnos e à ocupação de nichos ecológicos até então prescritos (Figura 15), condições essas possibilitadas pela extinção em massa dos até então dominantes dinossauros, por volta de 65 Ma. A diuturnidade decerto facilitou práticas de forrageamento eficientes a partir da percepção visual: uma importante distinção entre esses pequenos primatas e os demais mamíferos contemporâneos a eles provinha de especializações pouco comuns, como as órbitas oculares convergentes, que permitiam visão estereoscópica. A fixação desse traço morfológico pode ser comum entre espécies predatórias – e que dependem da visão para rastrear a presa – e/ou portadoras de comportamento arbóreo – para as quais a percepção de profundidade é crucial no ato de mover-se, aos saltos, entre galhos. A visão tridimensional também fora acompanhada de uma acrescida capacidade cerebral e de comportamento manipulatório. Talvez ainda mais importante que a hipótese predatória, a relação entre esses primatas e as plantas angiospermas deva ser considerada: incapazes de se reproduzir por meio da dispersão de pólen pelo vento, as angiospermas oferecem recompensas na forma de frutos adocicados, que, atraindo espécies comensais, as engajam em uma relação mutualística (não sendo digeridas, as sementes acabam sendo dispersas através dos dejetos, permitindo a reprodução desses vegetais). Tal fato abrira um rico nicho explorável por primatas capazes de visualizar os frutos em condições de poluição visual e baixa luminosidade

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(florestas tropicais densas), e de manipulá-los (Groves, Cameron, 2004, p. 36; Ladeia, Ferreira, 2015, p. 56-58; Shultz, Opie, Atkinson, 2011, p. 219). Não obstante, os hábitos diurnos trouxeram simultaneamente sérios riscos envolvendo a maior exposição a predadores, e é exatamente neste ponto que a sociabilidade torna-se decisiva; a gregariedade pode ter emergido como estratégia evolucionária anti-predatória, ampliando o número de organismos sensorialmente atentos não só a oportunidades nutricionais, mas também às ameaças provindas dos escalões superiores da cadeia alimentar. É muito provável, contudo, que esse fosse o limite das práticas sociais primatas entre 52 - 23 Ma, em consonância com os desafios evolucionários enfrentados àquela altura: a formação de agregações frouxas, meramente pragmáticas e ocasionais, voláteis quanto à composição de seus membros e quanto aos laços entre eles, e marcadas pela dispersão multissexual (o que implica que machos e fêmeas não se fixam ao território, nem demonstram propensão à formação de agregações permanentes) (Shultz, Opie, Atkinson, 2011, p. 222). Este portfólio comportamental parece, então, selecionado tão somente pelo potencial reprodutivo inerente à socialização dos riscos de predação e da informação a respeito desses mesmos riscos. A defesa coletiva de recursos naturais, o comportamento cooperativo nas práticas de forrageamento, a hierarquização social, as práticas de poder, e a violência interssocietária estariam ainda num horizonte longínquo. Tal devia ser o estado de coisas no nascedouro da infraordem dos simiformes, que ocorreu por volta da transição entre o Eoceno-Oligoceno, há 40-37 Ma. Com uma centralidade geo-histórica de dezenas de milhões de anos na história da humanidade 12, é no Egito, na região do Fayum, onde encontramos uma verdadeira explosão especiativa que deu origem ao bem documentado Aegyptopithecus zeuxis, uma das prováveis espécies que dariam origem à parvordem dos catarrinos, e anteriores à própria divergência entre hominídeos e cercopitecídeos no Velho Mundo. É entre os vestígios paleontológicos do Fayum (Mapa 1) que notamos não só o aprofundamento de traços primitivos – estima-se uma maior

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A relevância geo-histórica da depressão do Fayum supera, em muito, a própria história natural de nossa espécie. Cabe, assim, que flexibilizemos o problema da longa duração braudeliana, uma vez que precisamos aceitar que uma reflexão histórica que aceite dialogar com uma longuíssima duração pode – e deve, em certos casos – transcender os próprios limites do que é considerado tradicionalmente “humano”. Urge que desmontemos, de vez, um certo humanismo vitoriano, no qual a espécie é tida como centro da existência e autora de atos e fatos completamente exclusivos, gerados por sua condição de “ser cultural” e de “ser social”, referendando a arbitrária separação entre a instância do “homem” e a da “natureza”.

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eficiência da visão estereoscópica, inferida a partir do registro morfológico – como também a redução do tamanho das narinas e, presumidamente, da relevância evolucionária do aparato olfativo, nas condições ecológicas então presentes. É provável que um grande número de espécies pouco ou não identificáveis tenham se sucedido desde os primatas do Fayum, passando pelo surgimento dos primeiros cercopitecídeos e platirrinos (macacos do Novo Mundo, distantes da linhagem do homem moderno) sem que, em tese, tenhamos qualquer forte evidência que contraindique a persistência da organização social de grupos instáveis multissexuais. O processo de fusão-fissão faz parte sociabilidade primata desde então, e não caracteriza essencialmente determinadas espécies sociais, em detrimento de outras. A coesão espacial e o grau de permanência na composição interna dos grupos variam não só com aspectos etológicos de cada espécie, mas também, com a saturação demográfica e a oferta de recursos alimentares (Aureli et al., 2008, p. 627). O drama evolucionário que marcaria a divergência entre as linhagens do homem moderno e do chimpanzé, milhões de anos depois, parecia recapitular os desafios ambientais enfrentados pelos seus ancestrais oligocênicos: revertia-se a homogeneidade ambiental global, marcada até então pela expansão latitudinal das florestas tropicais perenes, pelos altos índices pluviométricos por toda a África, pela elevação do nível dos mares e pela retração das calotas polares 13. Tal era a situação do planeta, com as Américas do Norte e do Sul separadas (até 3 Ma), e o continente africano, ainda uma ilha. O resfriamento planetário por volta de 25 Ma – ainda que abrandado por volta dos primeiros milhões de anos do Mioceno – somou-se à crescente aridificação, acentuada por intensa atividade tectônica e radicais mudanças orográficas decorrentes da elevação da cordilheira do Himalaia, do Planalto Tibetano e do Altiplano Etíope (este último, inclusive, dando origem ao Vale do Rift, berço geográfico da linhagem do homem moderno). Essas colossais transformações geomorfológicas não foram capazes de impedir que a África

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A expansão latitudinal do clima e paleofauna tropicais é um fenômeno de extrema relevância. Sabemos que o número de espécies e de nichos ecológicos estáveis é muito maior nos trópicos que nas latitudes mais altas, e a cada momento na história natural do Planeta que as condições trópico-equatoriais eram ampliadas em direção aos polos, explosões especiativas se tornavam ainda mais possíveis. Isso significava mais energia disponível, mais espécies vegetais, mais herbívoros e, por sua vez, mais carnívoros. As altas latitudes sofrem tradicionalmente de forte homogeneidade ambiental (algo evidente nos polos glaciais), limitando o número de nichos a serem explorados por novas espécies. Ver Foley, 2003, p. 153-154.

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Central e Ocidental continuasse a registrar altos índices pluviométricos, preservando em certa medida o perfil de flora e fauna herdados do passado oligocênico. É na África Oriental, por sua vez, que o impacto é fortemente sentido, na medida em que o Altiplano Etíope preveniu a entrada de massas de ar marítimas, ampliando o potencial de aridificação já intenso, em decorrência do declínio das temperaturas globais (Cameron, Groves, 2004, p. 38). Era, assim, no Mioceno inicial (após 23 Ma, aproximadamente) que as mudanças geológicas geravam uma “colcha de retalhos” em termos de perfis climáticos e pluviométricos na África Oriental e Meridional, razoavelmente homogeneizados sob a rubrica da aridez e das temperaturas em queda, mas diversos o suficiente para dar origem a nichos específicos e razoavelmente apartados. Essa diversidade era o palco para o surgimento das famílias dos proconsulídeos (Proconsulidae, 23-15 Ma) e dos afropitecídeos (Afropithecidae 18-15 Ma), primeiros antropoides a se engajarem em amplas radiações territoriais (Figuras 2, 3, 4 e 5; Mapa 2). Esse é um momento importante na trajetória da filogenia da guerra; os padrões de sociabilidade dos primatas antropoides ganhavam em complexidade com o surgimento, entre determinadas espécies dessas famílias, de agregações estáveis no tempo e no espaço, na forma de haréns (com um ou poucos machos dominantes, acompanhados ou não de machos socialmente inferiores) ou de pares monogâmicos (Shultz, Opie, Atkinson, 2001, p. 220). Sem que as agregações multissexuais instáveis ou o comportamento solitário deixassem de se replicar, inclusive entre espécies novas – respeitadas suas heranças filogenéticas

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–, a eclosão de grupos sociais estáveis em outras espécies primatas

implicou, em seu âmbito, uma relação diferenciada com o território, com os recursos naturais, bem como tornou ainda mais complexa a resolução de conflitos intragrupo. Fundamentalmente, as associações multissexuais estáveis ganhariam relevância entre os cercopitecídeos (macacos do Velho Mundo, como babuínos e colobos) e entre os

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Shultz, Opie e Atkinson sugerem que a hipótese de flexibilidade comportamental deva ser rejeitada diante de importantes evidências estatísticas que apontam para um padrão de transformação que parte da vida solitária para grupos multissexuais instáveis, sem possibilidade de retorno. Assim, uma vez que os processos especiativos selecionam a formação de grupos sociais (ainda que instáveis), eles tendem a se reproduzir nas espécies posteriores que guardarem relação filogenética com a espécie social. Desse modo, nenhum primata de comportamento solitário tem como ancestral um primata social, ainda que o inverso seja comum. Ou seja, a sociabilidade é um Rubicão evolucionário, e dele, os desenvolvimentos historicamente registrados são a formação de grupos multissexuais estáveis e de pares monogâmicos, caminhos entre os quais são possíveis idas e vindas. Ver Shultz, Opie, Atkinson, 2011, p. 220.

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hominídeos por volta de 16-14 Ma, o que nos faz presumir que estivessem presentes, ainda que de forma embrionária, no último ancestral comum entre as espécies dessas duas famílias. Ao mesmo tempo, entre os calitriquídeos do Novo Mundo e os hilobatídeos do Velho Mundo (estes últimos genericamente chamados de gibões, ligados aos hominídeos no nível da superfamília, Hominoidea), a sociabilidade em forma de pares monogâmicos estáveis – a condição comportamental mais derivada no conjunto das evolucionariamente identificáveis entre os primatas – se instaurava por volta de 16 Ma e 8,6 Ma, respectivamente, tendo como ponto de partida não a vida solitária, mas o padrão de organização em grupos multissexuais, de que já tratamos. É bastante verossímil considerarmos que os proconsulídeos existentes no intervalo de 2315 Ma estiveram na raiz da parvordem dos catarrinos, dados seus aspectos morfológicos (Cameron, Groves, 2004, p. 39), integraram possivelmente uma superfamília específica, Proconsuloidea (anterior à divergência entre Hominoidea e Cercopithecoidea), e foram portadores do ancestral comum entre hilobatídeos, cercopitecídeos e hominídeos. Desse modo, considerando: a) que entre as espécies estantes dessas três últimas famílias, não há registro de grupos multissexuais instáveis; b) que agregações estáveis, na forma de bandos multissexuais ou de pares, eram existentes entre 16-8,6 Ma; c) que, sob uma perspectiva filogenética, a coincidência em termos de padrões de sociabilidade nessas três famílias deve indicar uma herança comum, ao invés de um desenvolvimento homoplásico; d) e que proconsulídeos compunham-se de táxons ativos naquele intervalo de tempo; logo, é razoavelmente provável que as transformações comportamentais em torno da estabilidade das agregações tenham surgido entre uma ou mais espécies dessa família, sendo, portanto, as primeiras experiências de sociabilidade primata que, mais adiante, conformariam o quadro etológico fundamental para o surgimento do conflito interssocietário. Essas espécies troncais estavam mais uma vez divididas pela sua diferente relação com o ambiente e com os recursos naturais disponíveis (Figura 15). Enquanto os proconsulídeos (Proconsul sp., Rangwapithecus sp., Turkanapithecus sp.) habitavam as zonas de florestas tropicais e subtropicais fechadas, cada vez mais insuladas e cercadas por extensões de vegetação savânica, os afropitecídeos (Afropithecus sp., Morotopithecus sp., Heliopithecus sp.), evolucionariamente mais jovens, ocupavam os habitats marginais a estes microssistemas bióticos, avançando, ocasionalmente, pelos espaços aridificados e abertos. As espécies da primeira família, demonstrando um arraigado conservantismo de

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nicho diante da mudança climática, tiveram seu alcance geográfico circunscrito pela retração das florestas (Barnosky, Kraatz, 2006, p. 528); preservaram hábitos arborícolas, com forrageamento realizado na galhada das árvores, e, principalmente, locomoção acima dos galhos, algo que se infere a partir de vestígios pós-cranianos. Além disso, permaneciam fiéis ao pacote odontomorfológico esperado de espécies primatas tropicoflorestais: a) molares proporcionalmente menores que os registrados em espécies de ambientes áridos e; b) esmalte dentário de fina espessura, propenso ao desgaste e à maximização de ação cortante das cúspides, algo apropriado para uma dieta de folhas e frutas macias, e que exigem pouco tempo de preparação e mastigação (Pampush et al., 2013, p. 218). Além disso, pelo menos no que diz respeito às espécies do gênero Proconsul, verificava-se outra característica, relativamente presente entre antropoides detentores de amplos grupos sociais, e de habitat florestal: um notável grau de dimorfismo sexual, que expressa a diferença morfológica entre machos e fêmeas em uma mesma espécie. No caso dos antropoides, os graus de dimorfismo usualmente considerados dizem respeito ao tamanho e ao formato dos dentes caninos, bem como à massa corporal (paleontologicamente inferida a partir dos vestígios ósseos). Há outras condições específicas de certas espécies, como as bolsas de gordura no pescoço e face presentes nos orangotangos machos (Pongo sp., ainda por surgir, no tempo dos proconsulídeos), que se desenvolvem a partir da afirmação da dominância sobre o território e sobre as fêmeas (Cameron, Groves, 2004, p. 39-40; Ladeia, Ferreira, 2015, p. 75; Nordhausen, Oliveira Filho, 2015, p. 37). O comportamento social, então, é elemento predominante no desenvolvimento de dimorfismos sexuais, normalmente relacionado à competição reprodutiva e territorial, o que implica um razoável contexto para o exercício da violência física e da intimidação (ao que se relaciona a seleção de dentes caninos de grande porte, e o hábito de mostrá-los aos oponentes, demonstrando ameaça). Uma hipótese sobre a relação entre o hábitat tropico-florestal, o dimorfismo sexual, a transmissão filogenética do comportamento violento interpessoal, e a contestável relevância direta desses fatores para a origem da guerra será discutida mais adiante. O fato a ser destacado, por hora, é o de que as espécies do gênero Proconsul, e os proconsulídeos em geral, situam-se na raiz evolucionária dos potenciais ancestrais dos hominídeos, e, de forma verossímil, foram primatas sociais etologicamente agressivos.

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O reconhecido grau de dimorfismo sexual (que sugere intensa competição sexual entre machos), as mudanças climáticas que levaram à retração das florestas tropicais perenes e ao insulamento (e concentração no espaço) das faixas restantes, e os traços morfológicos entre os proconsulídeos que sugerem o consumo de alimentos tipicamente florestais (existentes, portanto, somente nesses espaços insulados), nos conduzem à hipótese de que, nessas espécies, o primitivo padrão de dispersão multissexual vinha sendo substituído, pioneiramente, pela concentração de fêmeas em territórios circunscritos. Esse era o primeiro passo em direção a uma forma inovadora de sociabilidade primata, na qual a defesa territorial ganharia renovada importância. Na formação dos vínculos sociais em longuíssima duração, devemos considerar, em primeira mão, a geo-história da distribuição dos recursos naturais, isto é, as relações que estas sociedades primatas estabelecem com o espaço, no tempo. Nos mamíferos em geral, sendo os custos reprodutivos altamente desiguais entre os sexos, estabelecem-se diferentes estratégias de sobrevivência. Os custos energéticos da gestação interna e da lactação impõem significativa vulnerabilidade às fêmeas, que se veem sob a pressão de obter acesso a fontes nutricionais suficientes e estáveis, sem as quais tanto a mãe quanto a prole estariam severamente ameaçadas. Já os custos reprodutivos para os machos são pequenos (inclusive na produção gamética), de modo que o acesso à energia se torna menos crucial que o acesso às próprias fêmeas. A proliferação de indivíduos do sexo masculino é, nesse caso, reprodutivamente redundante

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, o que impõe a eles intensa

pressão competitiva por oportunidades sexuais, diante de sua razoável descartabilidade no processo reprodutivo. Na circunstância, então, de diferentes estratégias, etologicamente se verifica um padrão geral de distribuição espacial no qual as fêmeas buscam assegurar seu controle territorial sobre os recursos nutricionais, enquanto os machos visam justamente o acesso às fêmeas (com variados graus de sucesso) (Foley, 2003, p. 220; Nordhausen, Oliveira Filho, 2015, p. 36). A distribuição de recursos alimentares de alta qualidade em grandes manchas, de forma geograficamente regular pelo território, é algo que fornece um contexto evolucionário positivo para a fixação e a transmissão filogenética do comportamento de formação de grupos estáveis entre os primatas antropoides. Nesse caso, a exploração conjunta das

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Muito embora a multiplicidade de machos contribua para a diversidade genética numa população.

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oportunidades nutricionais não teria como trade-off uma significativa redução do consumo calórico per capita (considerando o facilitado acesso ao alimento, sua concentração e abundância), sobressaindo-se as vantagens em termos de socialização da informação e da vigilância, facultadas pelos grupos estáveis. A espacialidade da distribuição dos recursos (concentrados em territórios contínuos e acessíveis) permitiria, por assim dizer, ganhos de escala provenientes da exploração conjunta por grupos de fêmeas aparentadas e seus filhotes (apoiando-se mutuamente na proteção ao seu fundo genético comum), capazes de defender coletivamente as fontes energéticas contra a intrusão de fêmeas não aparentadas, para as quais, tanto quanto para as primeiras, o amplo acesso ao alimento é um motor etológico indiscutível. Essa, aliás, é a forma de comportamento mais comum entre os primatas sociais (Foley, 2003, p. 223-224; Shultz, Opie, Atkinson, 2011, p. 222; Wrangham, Peterson, 1996, p. 131). Este perfil comportamental continuaria coerente com um traço primitivo, e presumido fato gerador da sociabilidade primata lato sensu: as vantagens advindas da maior vigilância e da acrescida capacidade de localização sensorial de recursos nutricionais. Nesse caso, contudo, acrescentar-se-ia ao risco tradicional representado por carnívoros predadores, um outro, que é a ameaça intraespecífica, representada dessa vez não por indivíduos isolados competindo por alimentos, mas por outros grupos familiares e cooperativos de fêmeas não aparentadas. Esse seria um passo decisivo na direção do conflito interssocietário como estratégia etológica, ainda que sua conformação tal como presente nos hominíneos ainda estivesse em futuro distante. Diante, então, da formação de coletivos estáveis de fêmeas com laços consanguíneos, cooperando pela exploração e defesa comum das fontes de alimentos, agrupam-se em torno delas machos, em busca de oportunidades reprodutivas. Como a territorialidade, neste caso, é definida pelas estratégias evolucionárias femininas, a etologia do comportamento socioespacial masculino é determinada pelos deslocamentos dos grupos de fêmeas; e sendo os vínculos sociais estáveis de corte matrilinear, entende-se que o mais provável tenha sido o fim da dispersão multissexual entre as espécies adotantes desse portfólio, e uma razoavelmente acrescida dispersão dos machos. São eles que majoritariamente deixam seu grupo matrilinear ao atingirem a maturidade sexual, e migram em direção a grupos de fêmeas com as quais não guardam consanguinidade direta, sendo obrigados, assim, a enfrentar outros machos também migrantes, pelo acesso às oportunidades de cópula.

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Quanto aos machos, mais uma vez é a distribuição geográfica das fontes nutricionais que indicará a formação de agrupamentos, e a natureza destes. Na circunstância de o território e os recursos serem suficientemente extensos e de alto valor nutricional (ainda que concentrados a ponto de viabilizarem a formação de grupos locais de parentesco matrilinear), será tolerada pelo coletivo de fêmeas a presença de grupos instáveis de machos ao seu redor (todos eles não aparentados, provenientes de outras linhagens maternas, e lutando por oportunidades sexuais); o custo energético dessa estratégia etológica é baixo porque, a despeito da demanda por alimento sofrer elevação diante da presença de elementos desvinculados do grupo de parentesco feminino, a oferta é suficiente para manter a todos, fazendo assim sobressaírem vantagens em termos de defesa, provenientes da presença dos machos no bando. Considerando ainda esse intenso contexto de alterações climáticas do Mioceno, uma ainda maior concentração de alimentos ricos e abundantes poderia facilitar a formação de um harém, tão logo se tornasse possível para um único macho dominante defender simultaneamente todas as fêmeas concentradas no espaço, contra as tentativas de cópula de outros machos postulantes. Nesse caso, seriam mínimas as requisições alimentares de indivíduos alheios ao círculo matrilinear, favorecendo a etologia energética feminina, estando preservadas as vantagens habituais de defesa e vigilância. Podemos esperar, entre espécies cuja formação de haréns conste em sua estratégia social, um elevado grau de tensão e de violência interpessoal entre machos, considerando a ampla exclusão formal das oportunidades reprodutivas para a maior parte deles, e uma sinalização negativa no sentido da formação de coalizões masculinas. Note-se que, no caso da formação haréns, os vínculos de parentesco seguem sendo matrilineares (Foley, 2003, pp. 224-227). Consolidemos então os elementos de que dispomos: a) proconsulídeos viviam em florestas tropicais, em acelerado processo de insulamento e concentração espacial, decorrente das alterações geoclimáticas do Mioceno inicial; b) teriam demonstrado forte conservantismo de nicho, inferido a partir de sua anatomia dentária, com esmalte de fina espessura e molares modestos, apropriados para o consumo de alimentos macios, típicos do ambiente florestal e tropical perene; c) através de sua morfologia óssea, infere-se locomoção sobre os galhos, na horizontal (e não suspensória, ou mesmo terrestre); d) pela morfologia dos dentes caninos, infere-se intenso dimorfismo sexual em algumas das espécies pertencentes à família.

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E, prosseguindo: e) considerando, entre os cercopitecídeos, a plausibilidade do desenvolvimento dos vínculos sociais matrilineares, acompanhados de haréns ou de grupos de machos não aparentados, por volta de 16-14 Ma (Shultz, Opie, Atkinson, 2011, p. 220); f) que alguma espécie proconsulídea pode, potencialmente, ter ocupado o lugar de ancestral comum entre hominídeos e cercopitecídeos; g) que as condições climáticoambientais nas quais passaram por especiação e viveram os proconsulídeos, com retração das florestas tropicais e concentração dos recursos alimentares no espaço, fornecem contexto evolucionário para a seleção de vínculos sociais matrilineares, incluindo a presença de machos dominantes em haréns; logo, podemos sugerir que Proconsul e/ou espécies congêneres podem razoavelmente ter inaugurado essas novas formas de sociabilidade entre os primatas antropoides, e que a matrilinearidade / dispersão masculina se configuram como traço primitivo entre os simiformes. Por contraste, tomemos como exemplo um macaco estante, o muriqui (Brachyteles arachnoides, Brachyteles hypoxanthus). É um platirrino sul-americano francamente pacifista; poliginândricos, as fêmeas escolhem seus parceiros à vontade. Demonstram grau de dimorfismo sexual mínimo. As cópulas entre eles ocorrem abertamente, sob olhar vigilante de muitos machos, que aguardam pacientemente sua vez, sem que se manifeste qualquer comportamento competitivo ou agonístico entre eles. Não há hierarquias sociais entre os muriquis, nem machos dominantes, nem lutas por status. As condições ecológicas em que se especiaram seus ancestrais, e as espécies do próprio gênero, eram decerto muito distintas das que marcaram, em África, o surgimento de Proconsul sp (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 174-175). O surgimento de estratégias sociais envolvendo grupos estáveis, centrados no parentesco feminino, foi um passo decisivo em direção à violência coalizacional e à projeção de poder interssocietária. As restrições ambientais e a maior circunscrição espacial dos recursos nutricionais exploráveis eram fatores que reduziam potencialmente o sucesso de respostas evasivas como mecanismo de resolução de conflitos, dando ainda maior relevância para o aspecto da territorialidade na etologia dos primatas antropoides. Não obstante, podemos inferir, a partir dos graus de dimorfismo sexual, uma intensa competição reprodutiva masculina, potencialmente marcada por violência interpessoal, envolvendo, inclusive, estratégias de exclusividade no acesso às oportunidades de cópula por machos dominantes (haréns), além de formas de sociabilidade masculina que

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congregam machos não aparentados e concorrentes. Essas são condições que advogam razoavelmente contra o desenvolvimento de coalizões estáveis entre machos aparentados, organizados em hierarquias complexas, cooperando no exercício da agressão voltada contra outros grupos sociais intraespecíficos. Em suma, é altamente provável que, entre os proconsulídeos, os mecanismos de resolução de conflito envolvessem comportamento agonístico com alto grau de violência interpessoal masculina, mas, sob nenhum aspecto, podemos inferir que esse fator estivesse positivamente relacionado ao surgimento e à transmissão filogenética da violência interssocietária como traço etológico. Por volta de 18 Ma emergiam igualmente na África Oriental (Quênia, Uganda) os primeiros afropitecídeos (Afropithecidae), possivelmente divergindo de algum ancestral proconsulídeo das florestas tropicais. Com traços morfológicos altamente derivados, sugere-se fortemente que entre as espécies dessa família tenha vivido o ancestral direto de todos os hominídeos – o que poderia incluí-los na superfamília Hominoidea, ao contrário de Proconsul e congêneres (Ladeia, Ferreira, 2015, p. 75). A partir de traços morfológicos, inferimos que alguns dos afropitecídeos (especialmente Morotopithecus bishopi) apresentaram locomoção suspensória – braquiação

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– e hábitos terrestres ou

semiterrestres, coerentes com uma maior massa corporal (comparativamente, em relação aos proconsulídeos em geral). Em linhas gerais, os aspectos odontomorfológicos hipodigmáticos nessas espécies convergem para uma acrescida espessura do esmalte dentário, para uma arquitetura facial robusta, e para maiores dimensões dos dentes mastigadores – molares e pré-molares – em detrimento dos caninos. Essa é uma indicação possível de ocupação de habitats marginais às manchas florestais mais úmidas e com maior biomassa, ou mesmo da incursão em regiões abertas e savânicas. Nelas, a oferta de alimentos rígidos, secos e abrasivos, que exigem intensa preparação mastigatória, prevenia a exploração por espécies anatomicamente despreparadas – como os proconsulídeos –, abrindo-se então oportunidades evolucionárias para divergentes melhor adaptados ao uso desses recursos (Cameron, Groves, 2004, p. 39; Pampush et al., 2013, p. 222). Considerando a existência

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A braquiação consiste em forma de locomoção suspensória na qual o animal se move entre galhos de árvores, mas não com o tórax em posição horizontal, acima deles, mas dependurado, e com o tronco na vertical. Orangotangos e chimpanzés deslocam-se também dessa forma, entre outros primatas.

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de espécies conservadoras em termos dos nichos normalmente explorados, e de outras, altamente adaptáveis e objeto de mutações seletivas rápidas (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 46-47), é altamente provável, inclusive, que a razão da divergência entre proconsulídeos e afropitecídeos (ou entre eles e um ancestral comum) tenha provindo do processo de aridificação do Mioceno, que levou os primeiros a limitar seu alcance espacial, acompanhando as florestas tropicais em retração, ao mesmo tempo criando oportunidade para a seleção e fixação de mutações, em populações geograficamente marginais, coerentes com os novos nichos em expansão (Barnosky, Kraatz, 2007, p. 525) 17

.

O aparecimento de uma dentição fortemente derivada é a chave para compreendermos a relação renovada que os afropitecídeos possivelmente estabeleceram com os recursos naturais disponíveis. Se até aqui consideramos que determinadas estratégias sociais são selecionadas com base na distribuição geográfica das oportunidades nutricionais, devemos agora notar que há uma relação dinâmica entre a oferta de recursos e a capacidade de cada espécie de explorá-los, interação essa que pode alterar a própria espacialidade relativa dos recursos naturais e, por sua vez, as estratégias sociais numa nova espécie. Como já vimos, os parâmetros sob os quais as sociedades proconsulídeas devem ter se constituído envolviam a circunscrição territorial da oferta energética em manchas homogêneas de florestas tropicais (cercadas por extensões não exploráveis de vegetação savânica, decorrente do processo de resfriamento global e de aridificação na África oriental), o que levava à concentração de fêmeas aparentadas, cercadas por grupos instáveis de machos não aparentados, ou por um único macho dominante. Esse conservantismo de nicho próprio do comportamento dos proconsulídeos dizia respeito, fundamentalmente, a uma herança presente em sua morfologia dentária, que impedia a exploração de recursos alimentares que diferissem radicalmente de folhas macias e frutos, e, eventualmente, de insetos e pequenos animais. É desse modo que, com o avanço da savanização e do insulamento das áreas de florestas tropicais, reduzia-se, grosso modo, a

A opinião de Foley a respeito dos processos de especiação em geral ilustra a ideia “(...) se os recursos necessários para sustentar a população fossem infinitos, não haveria reprodução diferenciada (...) Na prática, é claro, todos os recursos são limitados – energia, água, abrigo, cônjuges em potencial e assim por diante. (...) Se os recursos são limitados, nem todos os indivíduos irão sobreviver e reproduzir, ou eles irão se reproduzir com diferentes níveis de sucesso. (...) A evolução é o resultado dessas condições, e os padrões evolucionários variarão na medida em que essas condições variarem” (Foley, 2008, p. 44). 17

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oferta de oportunidades nutricionais para essas espécies, fazendo ainda com que as oportunidades restantes se concentrassem territorialmente, gerando contexto para a formação de grupos de fêmeas aparentadas, de machos impermanentes e não aparentados, e, no limite, de haréns. Nessas mesmas condições de mudança climática e ambiental especiaram-se os afropitecídeos, ainda que o significado evolucionário da savanização para essas espécies deva ter sido diferente daquele enfrentado pelos proconsulídeos. Com morfologia maxilar robusta, privilegiando a compleição de molares e pré-molares, e esmalte dentário espesso, foram potencialmente capazes de explorar frutos, nozes, vegetação gramínea seca e o súber de plantas ressequidas, entre outros alimentos presentes em espaços aridificados, para além daqueles tradicionalmente consumidos por espécies de dentição mais grácil (e presentes nos espaços florestais úmidos). As sugestões de comportamento semiterrestre 18

, de locomoção suspensória e de maior massa corporal 19, inferidas a partir dos vestígios

fósseis disponíveis, convergem com a conclusão obtida a partir dos dados odontológicos, de exploração alternada de espaços florestais e não florestais. Populações viventes nas margens dos territórios florestais sofreram pressões intensas, que se agravaram com o crescimento populacional nas regiões centrais, e com os avanços e recuos sazonais da vegetação tropical limítrofe, que transformava essa fronteira periodicamente em zona de arborização mais esparsa, ou mesmo inexistente. A dificuldade para a reprodução da flora angiospérmica, abrindo espaço para a expansão das gimnospérmicas (desprovidas de frutos, com sementes nuas e em certos casos envoltas em carapaças rígidas), deixava de oferecer uma recompensa energética a espécies mutualísticas, que promovessem a dispersão das sementes por meio dos resíduos de uma dieta frugívora. Assim, enquanto nas regiões centrais do território ocupado as florestas seguiam oferecendo as mesmas condições de refúgio e alimentação, a

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A única possibilidade de exploração dos ambientes savânicos consiste, naturalmente, da adoção de hábitos terrestres, já que a locomoção exclusivamente arbórea – suspensória ou horizontal – não pode ser feita em espaços abertos. 19 Primatas como chimpanzés e gorilas, com grande massa corporal comparada aos demais membros estantes da ordem dos primatas, oscilam entre comportamento arbóreo e terrestre ao longo do tempo de atividade diurna. Pequenos primatas podem mais facilmente obter as vantagens de uma vida fundamentalmente arbórea, dada a facilidade de deslocamento entre galhos decorrente da pequena massa corporal, seja usando braquiação, seja locomoção horizontal.

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aridificação pressionava os animais viventes nas bordas. Vemos que os afropitecídeos mostravam adaptações que lhes permitiriam flexibilizar sua dependência do ciclo reprodutor das angiospermas; mas somente um recurso nutricional com distribuição suficiente, com valor nutricional relevante, perene, e não explorado de forma intensa por outras espécies, poderia cumprir esse papel de selecionar mutações com poder especiativo. Nozes, súber, grama, nenhum destes parecia cumprir todas as condições, embora devam ter sido explorados de forma oportunista. Já as raízes, escondidas em profundidade e ricas em carboidratos, são uma possibilidade, sendo poucas as espécies competentes em encontrá-las e desenterrá-las. Sabemos que plantas de clima tropical, adaptadas para situação de ampla oferta de energia e água, desenvolvem poucas estratégias para preservá-las, ao contrário do que ocorre com raízes de vegetação de clima árido (Wrangham, Peterson, 1996, p. 56-57). Compunham então um nicho marginal importante pra espécies odontomorfologicamente preparadas para seu consumo, algo que potencialmente os afropitecídeos parecem ter sido. Dessa forma, pomo-nos diante da possibilidade de a abordagem comportamental dos afropitecídeos diante das restrições do território ter sido razoavelmente distinta daquela desenvolvida pelos proconsulídeos: para os primeiros, não há concentração de recursos nutricionais em espaços homogêneos e insulados, e sim uma forte desconcentração de recursos por um vasto território, e uma distribuição razoavelmente heterogênea dos mesmos. Tanto savana quanto floresta podem ser exploradas, ainda que o valor nutricional das oportunidades presentes em cada um desses espaços seja bastante diferenciado. Notemos, então, que a desconcentração na distribuição de recursos energéticos, e a heterogeneidade em sua qualidade, deveriam contribuir para uma maior mobilidade e dispersão territorial das fêmeas, tornando inviável a formação de haréns ou de grupos instáveis de machos. No limite, as relações sociais permanentes poderiam se romper, retomando então um padrão de instabilidade e migração multissexual que foi comum milhões de anos antes das transformações climático-ambientais do Mioceno. O reduzido grau de dimorfismo sexual encontrado entre os afropitecídeos – inferido exclusivamente a partir dos dados odontomorfológicos – poderia sugerir um igualmente reduzido nível de competição sexual entre machos, advogando em prol da extinção das formas de sociabilidade estáveis, e de uma maior promiscuidade no comportamento reprodutivo. Não obstante, há outros elementos que devemos considerar antes de concluirmos ou não a favor dessa hipótese.

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Consideremos inicialmente os cercopitecinos estantes, que incluem as espécies mais conhecidas de babuínos, da África Ocidental à Península Arábica. Tal como os hominídeos, provavelmente tiveram um proconsulídeo como ancestral, e desenvolveram estruturas sociais permanentes, com a presença de machos dominantes em haréns ou de grupos de machos não aparentados, por volta de 14 Ma. Da mesma forma como sugerimos ter ocorrido entre os afropitecídeos, os babuínos em geral são forrageadores altamente oportunistas, adaptados a uma razoável gama de condições ambientais, que envolvem espaços desertificados, altiplanos, savanas, bosques e florestas. Para estas espécies, o confinamento territorial em regiões florestais, decorrente de restrições dietárias, já não era uma questão, de modo que, também para eles, estava ausente o contexto ambiental para a concentração de fêmeas aparentadas no território, com a presença de um macho dominante portador de exclusividade reprodutiva, ou de grupos de machos sem consanguinidade. Entretanto, é exatamente a formação de grupos femininos matrilineares com um ou mais machos não aparentados o que se verifica entre os cercopitecinos 20. Isso é algo compreensível sob uma perspectiva filogenética, já que muito provavelmente divergiram de um ancestral arbóreo portador desse portfólio etológico. Ficaríamos, assim, diante de uma cisão entre a determinação do ambiente – que deveria ter sido suficiente para eliminar o comportamento de harém – e a dinâmica evolucionária. Não obstante, a distinção entre nature e nurture se restringe a um expediente didático, sendo uma e outra resultante de um todo, dialeticamente retroalimentado. A ampliação das possibilidades de exploração de recursos através de eficiente quadrupedismo terrestre e de adaptações odontomorfológicas (Foley, 2008, pp. 150-151) impactou claramente na etologia das espécies cercopitecinas, mesmo que tenham recebido o comportamento de formação de haréns de seus ancestrais. Entre elas, vemos a organização de tropas, que forrageiam e se deslocam conjuntamente pelo território, formadas por múltiplas unidades compostas por um macho dominante, fêmeas aparentadas, e um macho subalterno; as tropas aparecem, assim, como “confederações” de haréns, com unidades firmemente estáveis em seu âmbito interno, e frouxamente

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Identifica-se a formação de haréns, por exemplo, em Papio hamadryas (babuíno-sagrado), Theropithecus gelada (babuíno-gelada) e em Papio papio (babuíno da Guiné). Já entre os seguintes cercopitecinos, temos grupos de fêmeas aparentadas cercadas de machos com diferentes níveis de hierarquia entre si: Papio anubis (babuíno-sagrado, ou babuíno-anúbis) e Papio cynocephalus (babuíno-amarelo).

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ligadas no âmbito externo

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. A oferta ampliada de recursos nutricionais permite o

forrageamento por múltiplos indivíduos em conjunto, organizados nos haréns, sem impactar no consumo per capita de toda a tropa, e mantidas as vantagens da vigilância e da segurança provenientes dos grupos sociais de grande porte (Aureli et al., 2008, p. 630). Preserva-se, então, a herança filogenética, moldada às circunstâncias do ambiente. Um processo similar pode ter marcado as formas de sociabilidade das espécies de afropitecídeos, vivendo entre as bordas das florestas tropicais e os espaços savanizados. Diferentemente da locomoção quadrúpede dos cercopitecinos, altamente eficiente para percorrer longas distâncias em campo aberto, a prática da braquiação em ambiente florestal invoca um plano corporal diferente daquele evidente nos primatas de locomoção arbórea horizontal ou quadrúpede terrestre: espera-se tórax mais compacto, membros superiores alongados, articulações dos ombros flexíveis e ausência de cauda (Ladeia, Ferreira, 2015, pp. 76-77). Tais traços anatômicos sugerem então, que, na circunstância de uma vida semiterrestre, braquiadores movem-se pelo solo de forma nodopedálica, estratégia energeticamente pouco eficiente para deslocamentos de longa distância (Foley, 2003, p. 178-179) 22. Se afropitecídeos foram forrageadores oportunistas como os babuínos o são, algo que se depreende de sua morfologia dentária, muito provavelmente suas incursões para além das bordas florestais foram limitadas, dado o intenso custo térmico da movimentação nodopedálica por espaços abertos com forte incidência de radiação solar. Ainda assim, a ampliação das oportunidades alimentares para os afropitecídeos não devia estar restrita

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Há razoável nível de fissão nas tropas de babuínos em decorrência do menor tempo de interação social, causado pelo forrageamento em regiões cada vez mais distantes, algo que toma grande parte das horas ativas desses animais (Foley, 2003, p. 184) 22 Devemos considerar que uma mudança adaptativa ocorre pela interação entre as pressões do ambiente e a trajetória evolucionária de uma espécie. O quadrupedismo era, sem dúvida, mais eficiente em aspecto termorregulatório que a nodopedalia, mas não se pode imaginar que, uma vez desenvolvido o plano corporal próprio à braquiação, a ação ambiental pudesse simplesmente reverter essa condição e tornar quadrúpedes as espécies em questão. Mudanças evolucionárias são inequivocamente path-dependent, e se constituem na “melhor solução possível” considerando-se as condições morfológicas e comportamentais disponíveis. Se a mudança ambiental é radical a ponto de tornar incompatíveis todas alternativas, a extinção sem novas especiações deve ser o resultado. A nodopedalia, naquele caso, aparecia como saída ótima para primatas de massa corporal acrescida, pouco adequada a uma vida exclusivamente arbórea, braquiadores, e exploradores de recursos naturais não arbóreos. Sobre a evolução das espécies como um processo dependente de trajetória ver Foley, 2003, p. 149.

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pela dificuldade de expansão do território explorável para muito além das zonas de pernoite arbóreo, dadas suas restrições motoras. Isso porque, além de poderem contar com recursos provenientes das florestas tropicais (que deviam seguir sendo seu habitat primário), devem ter sido capazes de acessar raízes de alta qualidade em território árido, tal como os chimpanzés de Tongo (Zaire) o fazem, ao serem capazes de identificar a presença deste rico alimento em elevações rochosas, por meio de seus ramos. O uso de ferramentas para remoção das raízes do solo (e para processamento pré-oral) pode ser inclusive postulado entre os afropitecídeos, como ocorre em Pan sp. e, para outros fins, em diversas outras espécies de catarrinos e platirrinos. Entretanto, as condições que levam os chimpanzés de Tongo, hoje, a recolherem raízes para sua alimentação, são ocasionais, e não expressam a ruptura de um habitat convencional. Adaptações morfológicas para a exploração de nichos marginais não são esperadas, nem estão presentes entre eles. Já entre os afropitecídeos – supondo que sua “vida dual” seja uma hipótese sustentável – o consumo de raízes deve ter cumprido um papel adaptativo decisivo, na condição de buffer de acomodação da espécie contra a crescente sazonalidade, uma vez que tanto a locomoção terrestre quanto os grandes dentes mastigadores, com espesso esmalte, se fixaram. Os cercopitecinos, incapazes de cavar em busca destas raízes de alto valor energético, ainda assim são capazes de consumir pequenos bulbos e rizomas, e enfrentaram a crescente aridez ampliando sua radiação e território de forrageamento, tendo por base a sua eficiente locomoção quadrúpede (Pampush et. al., 2013, p. 222; Wrangham, Peterson, 1996, p. 58-59). Com os custos térmicos decorrentes da nodopedalia, a resposta dos afropitecídeos ao ambiente fora odontomorfológica, permitindo que acessassem alimentos mais nutritivos, com menos deslocamento. Isso pode significar, ainda, que a pressão ambiental sofrida no Mioceno inicial, no sentido da savanização e insulamento extremo das florestas tropicais na África oriental (com vastas extensões áridas separando pequenas zonas arborizadas), ainda não havia atingindo seu zênite pliocênico, que levaria, milhões de anos após os afropitecídeos desaparecerem do registro fóssil, ao desenvolvimento da bipedia plena entre os primeiros hominíneos. Nessas condições, as sociedades afropitecídeas não deviam sofrer intensamente o trade off entre tempo social e tempo de forrageamento. Essa é uma questão central na etologia dos primatas sociais, que significa que quanto maior é o tempo necessário para a obtenção de alimentos em quantidade e qualidade, mais escassas são as oportunidades de interação, envolvendo o grooming e outros rituais pacificadores e reforçadores dos vínculos

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coletivos (Foley, 2003, pp. 183-184). Provavelmente ainda capazes de depender da oferta energética proveniente do hábitat florestal, e empregando a savana como fonte suplementar de recursos (ainda que relevantíssima, caso contrário as adaptações dentárias não seriam justificadas), os grupos sociais afropitecídeos podiam crescer em número de integrantes, dada o tempo disponível para o exercício das práticas de reconhecimento e de reforço dos laços sociais, sem prejuízo para as necessidades nutricionais. Então, mesmo vigorando fortes mecanismos de resolução de conflitos internos e de estabilização social masculina, a herança filogenética da formação de associações matrilineares femininas não parece contraindicada, apesar de o contexto ecológico poder sugerir o esvaziamento das relações sociais permanentes, como já tratamos. Aliás, a terrestrialidade dos afropitecinos, tal como ocorre entre cercopitecinos (Wrangham, Peterson, 1996, p. 131), é um elemento que favorece a logística da defesa dos recursos e da prole, por meio de melhor coordenação e cooperação feminina, muito mais do que permitiria a vida arbórea dos mais antigos proconsulídeos. O baixo nível de dimorfismo sexual reconhecido entre essas espécies também seria coerente com uma reduzida tensão intrassocietária, principalmente de caráter reprodutivo, o que poderia advogar em favor da inexistência de haréns entre os afropitecídeos, e de formas menos agonísticas de hierarquização sexual entre machos não consanguíneos. Aceitemos a ausência de condição dimórfica como algo relevante ou não 23, o fato é que o corte etológico fundamental se situa na transição entre grupos instáveis com migração multissexual e grupos estáveis com dispersão masculina. Em ambos os casos, tal como entre os proconsulídeos, a formação de coalizões masculinas permanentes e patrilineares não estava em questão, embora um reduzido nível de comportamento agonístico entre machos pudesse favorecê-las. O surgimento da projeção de poder interssocietária por meio da violência coalizacional masculina ainda não se fazia presente, embora se fixasse uma forma de sociabilidade que estaria na base de seu desenvolvimento.

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O grau de dimorfismo sexual entre os afropitecinos é identificado a partir da morfologia dos dentes caninos. Entretanto, esse não é único traço relevante quando se busca inferir o nível de competição sexual entre machos. Em determinadas espécies – e isso vale substancialmente para os primatas antropoides – a massa corporal dos machos pode ser um instrumento ainda mais eficaz nos rituais agonísticos. De fato, os afropitecídeos apresentam massa corporal maior que a demonstrada pelos antigos proconsulideos, ainda que seja difícil inferir daí que os machos nas espécies da primeira família tenham sido substancialmente maiores que as fêmeas.

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A formação de haréns (com exclusividade sexual), de coletivos de machos não aparentados, ou de formas híbridas entre esses dois polos (como parece acontecer entre os cercopitecinos) faz parte da “sintonia fina” gerada pelo ambiente sobre traços comportamentais filogeneticamente herdados. Então, a fluidez entre essas formas específicas de organização masculina responde às condições do meio, sem que se altere o fato essencial: a organização de coletivos matrilineares femininos em torno das fontes de energia, mesmo que as condições ambientais sejam relativamente diferentes daquelas que selecionaram, em primeira instância, essa forma de comportamento. Devemos considerar que existem “bandas de flexibilidade” na relação entre a herança filogenética e as mudanças climático-ambientais. Quando as últimas se acirram e ultrapassam um limite de tolerância admitido pelas estratégias comportamentais e pelas características fisiomorfológicas de uma espécie, ela ver-se-á sob intenso estresse evolucionário. Rápidas extinções e múltiplas especiações costumam advir desses contextos de crise. A longa estase tem fim, dando lugar às intermitentes explosões especiatiavas 24. A flexibilidade morfo-comportamental de proconsulídeos e afropitecídeos parece ter sido levada ao limite com o avançar do Mioceno médio e, por volta de 15 Ma, as espécies das duas famílias desapareceram do registro fóssil, indicando sua mais que provável extinção. Intensificava-se o resfriamento global, com expansão das calotas polares e retração do nível dos oceanos, afetando com maior intensidade a Eurásia e a América do Norte. A pluviosidade na África Central e Oriental continuava a se reduzir, com as temperaturas em queda. Se as porções setentrionais da Eurásia encontravam-se completamente inóspitas para as espécies então estantes de primatas, as regiões meridionais preservavam vegetação subtropical entrecortada de áreas savanizadas, com sazonalidade e aridez um tanto mais intensas que as registradas em território africano. Então, em certo aspecto, emergia uma zona biogeográfica suficientemente homogênea entre o território atualmente ocupado pelo Saara (em lento processo de desertificação), a África Centro-Oriental, a atual Europa Mediterrânica e o Levante. As evidências de movimentos de espécies mamíferas africanas em direção a essas áreas setentrionais sugerem um contexto igualmente provável de migração de primatas antropoides, adaptados às condições mais áridas, para terras europeias e asiáticas. Era assim que a primeira grande radiação de

Essa é a imagem popularizada por S. J. Gould e N. Eldredge, que chamamos de “equilíbrio intermitente”, e referida no início desse artigo. Ver Cameron, Groves, 2004, p. 2-3. 24

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antropoides ganharia forma, conduzida por uma ou mais espécies derivadas dos afropitecídeos, armados de instrumentos adaptativos suficientes para sobreviver ao quadro de agravamento climático. Não há suficiente evidência de que proconsulídeos ou seus descendentes diretos tenham deixado a África, ou originado quaisquer dos antropoides africanos existentes hoje; as condições nas regiões mais próximas do Equador já deviam ser suficientemente difíceis para espécies tão dependentes de florestas tropicais úmidas, de modo que a migração para zonas de ainda maior estiagem seria improvável (Cameron, Groves, 2004, p. 41; 55). É nesse primeiro contexto de radiação para fora da África (que antecedeu em muitos milhões de anos a bem sucedida expansão de H. erectus até o Extremo Oriente asiático e ilhas da Oceania) que identificamos os primeiros hominídeos genuínos (membros da família Hominidae) representados pelos chamados queniapitecinos, sendo espécies dos gêneros Kenyapithecus (na África oriental) e Gryphopithecus (identificados na Anatólia, Europa Central e nos Bálcãs), surgidas entre 16-14 Ma (Mapa 3). O plano corporal compartilhado com os extintos afropitecídeos sugere uma herança comum: tórax compacto, braços longos, articulações flexíveis nos ombros, peitoral amplo, e ausência de cauda. Além disso, fixava-se entre eles a locomoção nodopedálica terrestre, e suspensória, em ambiente florestal. Uma vida exclusivamente arbórea não fazia parte das estratégias adaptativas dos primeiros hominídeos, embora, como veremos, não tenha tardado para que algumas das novas espécies voltassem a se especializar na exploração de recursos florestais (como haviam feito no passado os proconsulídeos) (Ladeia, Ferreira, 2015, p. 76-77; Cameron, Groves, 2004, p. 41-42). Na evolução dos queniapitecinos, preservou-se o perfil de esmalte dentário espesso já presente entre os afropitecinos, embora Kenyapithecus wickeri tenha demonstrado uma anatomia dentária mais semelhante à dos modernos monos (como chimpanzés e gorilas) que aquela comum entre os hominídeos de seu tempo. As opções dietárias dos primatas antropoides se diversificavam ao se aproximar o Mioceno tardio, englobando tipos diferentes de alimentos de origem vegetal e, eventualmente, o consumo de insetos e de pequenos animais, em consonância com as mudanças ambientais. Nenhum dos primeiros hominídeos, portanto, parecia especializado no consumo de recursos nutricionais florestais até o surgimento das espécies do gênero Dryopithecus (12 Ma). Não devemos neste estudo, entretanto, determo-nos na história natural dos driopitecinos, que

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consistiram em um beco sem saída na trajetória evolucionária dos hominídeos. Medindo e pesando como chimpanzés estantes, com longos caninos, altamente dimórficos, com locomoção suspensória, e fino esmalte dentário adaptado à frugivoria, ocuparam as florestas tropicais da Península Ibérica à Europa Central, especializando-se em um nicho ecológico em esgotamento. A invasão das regiões setentrionais por vegetação decídua, suplantando a flora tropical perenifólia com o avançar do Mioceno Médio, inviabilizara os habitats explorados por espécies desse tipo, que desapareceram da Eurásia por volta de 11-10 Ma. Por volta da mesma circunstância de surgimento dos driopitecinos, emerge no registro fóssil da Europa Oriental uma nova espécie hominídea, Graecopithecus freybergi, com esmalte dentário ultraespesso, hábitos terrestres e regime dietário amplo, dando continuidade a um perfil morfo-comportamental primitivo. É muito provável que Graecopithecus sp. tenham sido sobreviventes menos afetados pelas intensas transformações nos paleohabitats tradicionais e que, antes de serem extintos na cada vez mais gélida Europa, por volta de 10 Ma, tenham sido capaz de alcançar as costas meridionais do Mediterrâneo, provocando a primeira grande radiação hominídea de volta à África. A adaptação às temperaturas e à aridez eurasiana decerto funcionou como uma exaptação na migração para o território africano, com condições relativamente mais brandas. Graecopithecus sp. são, assim, prováveis candidatos a ancestral de todos os pongíneos (hominídeos asiáticos) dos gêneros Ankarapithecus, Sivapithecus e Pongo (os orangotangos), e dos hominídeos africanos (que incluem Samburupithecus sp., gorilas, chimpanzés e, por definição, todos os hominíneos) (Cameron, Groves, 2004, p. 41; 5657). Da Anatólia ao Sudeste Asiático irradiaram-se espécies com perfil morfológico convergente com o demonstrado pelos orangotangos atualmente viventes nas ilhas de Sumatra e Bornéu (e somente nelas), de modo que podemos postular uma relação filogenética entre esses últimos e pelo menos alguma das espécies do Mioceno Tardio (Mapa 4). Ankarapithecus meteai (Turquia, 10 Ma), Sivapithecus spp. (Índia, Paquistão 12-8 Ma), Khoratpithecus spp. (Tailândia 9-6 Ma), Giganthopithecus spp. (Índia,

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Indochina, Sul da China, 9-0,1 Ma) (Ladeia, Ferreira, 2015, p. 78-79) são pongíneos

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(Figuras 6, 7, 8 e 9) que perfazem uma interessante “rota de ocupação” da Ásia meridional, em direção à Península Malaia, e que compartilham com Pongo spp. dentição primitiva, provavelmente preservada desde a divergência de seu último ancestral comum com o eurasiático Graecopithecus freybergi (que compreende molares robustos e esmalte espesso). Devemos notar, então, que a distribuição paleobiogeográfica dos grandes símios asiáticos corrobora um perfil migratório oeste-leste com restrita variação latitudinal, de modo que, a despeito de variações locais, os desafios ambientais enfrentados por essas espécies devem ter sido razoavelmente similares por toda rota de expansão. A chegada dos hominídeos eurasianos ao território africano, bem como a migração longitudinal de outros descendentes de Graecopithecus sp. percorrendo o sul da Ásia, era parte de uma colossal relocalização de espécies coincidente com um novo patamar de agravamento climático, com o aproximar-se do Mioceno Tardio. Bosques e matagais ganhavam espaço sobre florestas perenes, inclusive nas regiões intertropicais, o que levava ao limite da ruptura as estratégias de forrageamento dos grandes primatas. Tal fato fez reduzir-se sensivelmente a diversidade de espécies hominídeas entre 10-7 Ma, gerando o primeiro grande gargalo evolucionário em sua história. Ao mesmo tempo em que os grandes símios sofriam uma acentuada crise demográfica, incapazes de multiplicar seu número com rapidez (deve-se considerar que temos mais vestígios de hominídeos extintos que estantes), outros primatas do Velho Mundo, como colobinos e cercopitecinos, enfrentavam as mesmas condições através de uma elevada taxa de reprodução (para o que contribuía uma massa corporal média de proporções modestas e um período de amadurecimento dos filhotes menor). Tanto no eixo latitudinal quanto no eixo longitudinal, as migrações resultariam em poucas especiações de grandes símios, ainda que alterações morfo-comportamentais de grande relevância tenham sido geradas na luta pela sobrevivência, e que são de crucial importância, mais uma vez, para a trajetória filogenética da violência coalizacional. Não sabemos desde quando os pongíneos tomaram parte no radical processo de alterações etológicas que romperam a

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As estimativas moleculares sugerem que os pongíneos divergiram de um ancestral comum com os demais grandes símios africanos (incluindo o homem) por volta de 12 Ma, algo que coincide aproximadamente com o aparecimento de Sivapithecus sp. Considerando, em adição, a compatibilidade fenotípica entre esses hominídeos asiáticos e os orangotangos, considera-se firmemente sua relação filogenética. Ver Foley, 2003, p. 91.

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matrilinearidade entre os hominídeos, algo que, até 12-10 Ma era característica comum de seus sistemas sociais. A questão é que provavelmente ao final do Mioceno as pressões ecológicas haviam superado a margem de flexibilidade admitida tanto pela morfologia quanto pelo comportamento demonstrados pelos grandes símios entre 18-10 Ma, e sua sobrevivência pode ter dependido de um novo conjunto de estratégias etológicas, constatáveis até hoje entre orangotangos e gorilas. Concentremos-nos, por hora, nos primeiros, herdeiros dessa trajetória evolucionária asiática, para só depois nos voltarmos aos hominídeos africanos e, dessa forma, à linhagem do homem moderno. A relativa concentração geográfica de recursos nutricionais, que havia fomentado a fixação de um portfólio comportamental com ênfase no agrupamento permanente de fêmeas consanguíneas, teria sido radicalmente esgarçada numa faixa territorial entre o limite da capa de gelo setentrional e as zonas limítrofes do Trópico de Câncer, a ponto de gerar intenso sinal negativo para a presença de fêmeas aparentadas em um mesmo território de forrageamento. Vimos que entre os antigos afropitecídeos e, possivelmente, entre os posteriores queniapitecinos, essa estratégia etológica deve ter sido reproduzida, ainda que as condições do meio viessem a ser um tanto diferentes das que geraram o comportamento em primeira instância, jogando então com o limiar de resiliência com que um traço herdado persiste em se manifestar, até que se torne uma desvantagem evolucionária. Após 10 Ma, aproximadamente, tanto a qualidade quanto a quantidade de alimentos, bem como sua concentração no espaço, sofreram alterações, e no caminho dos Bálcãs à Oceania, bosques superariam em extensão e frequência as florestas densas e perenifólias; planícies se abririam, e a vantagem desfrutada pelas fêmeas consanguíneas na exploração conjunta de faixas homogêneas de recursos se esvairia. Com alimento menos rico, menos abundante, e mais disperso, a presença numa mesma área de duas fêmeas aparentadas significaria disputar o acesso às oportunidades nutricionais com um organismo com quem se compartilha carga genética, algo que enfraquece a ambos, ou elimina um deles. Fêmeas que, por razões variadas, migraram e buscaram disputar recursos com fêmeas não consanguíneas, teriam sido capazes de maximizar as chances de reproduzir seus genes (já que a sobrevivência de uma não implica, nesse caso, o fracasso de uma parente). Não tardaria para que, em termos evolucionários, essa forma de comportamento se fixasse em resposta ao ambiente, e fosse transmitida hereditariamente (Figura 15).

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Em algum momento nessa trajetória de doze milhões de anos, os pongíneos desenvolveram a forma de sociabilidade peculiar demonstrada pelas espécies estantes de orangotangos; a considerar o impacto do meio ambiente, sugerimos que esse desenvolvimento se deu bastante cedo na trajetória da subfamília. Os pongíneos formaram sistemas fundamentalmente marcados pela ausência de sociabilidade grupal, com consórcios temporários entre machos e fêmeas. Isso não significa dizer que sejam primatas tipicamente solitários, por não vivenciarem interações cotidianas; a rarefação dos contatos não evita o fato de estarem articulados em extensas redes sociais, formadas por machos e fêmeas (essas com seus filhotes pré-adultos) altamente dispersos, em amplo território. As exigências em termos de processamento mental dessas relações sociais certamente são grandes (Foley, 2003, p. 218), levando em conta a necessidade de memorização e o exercício de uma teoria da mente aplicada a indivíduos com os quais se firma contato sensorial raramente. A territorialidade entre as espécies da subfamília Ponginae (incluindo, presumidamente, as extintas) se baseia na fixação de fêmeas individuais e seus filhotes em determinados núcleos florestais, não compartilhados com quaisquer outras (aparentadas ou não), e o estabelecimento de um superterritório, compreendendo as localidades ocupadas por muitas fêmeas, através das quais um macho dominante se desloca em busca de oportunidades sexuais e alimentares. A mãe e sua prole (até completar dez anos de idade, aproximadamente) compõem unidades sociais estáveis (Wrangham, Peterson, 1996, p. 133), mas devemos observar que, entre os pongíneos, os laços de cooperação entre fêmeas aparentadas e a matrilinearidade não estão presentes, tendo muito provavelmente sido rompidos pela espacialidade dos recursos naturais no Mioceno Tardio. Ao mesmo tempo, os machos dominantes circulam terrestrialmente (de forma nodopedálica), relacionandose com as fêmeas em seu superterritório como em uma espécie de harém lasso, sem a possibilidade de vigilância constante. Notemos, então, que a quebra de um comportamento tradicional, que levou à dissolução dos consórcios matrilineares femininos, ao mesmo tempo pulverizou-as por um território impossível de ser controlado efetivamente por um ou mais machos. Se entre os hilobatídeos (símios igualmente asiáticos, surgidos por volta de 18 Ma), essas condições ambientais levaram à formação de pares monogâmicos estáveis e a um reduzido dimorfismo sexual (que marca as dezessete espécies de gibões até nossos dias), entre os pongíneos, a dispersão das fêmeas conduzira a alto grau de pressão competitiva entre os machos, filogeneticamente

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preparados a defender a exclusividade sexual sobre as fêmeas em sua rede, mas incapacitados de controlar haréns em sentido estrito, tal como ocorria em espécies mais antigas. Essa pressão competitiva masculina levou a uma verdadeira “corrida armamentista” expressa em elevado grau de dimorfismo sexual. A luta dos machos solitários pela dominância e pela vigilância sobre extensíssimos territórios levou ao desenvolvimento de espécimes pesando noventa quilos (em contraste com os quarenta quilos médios de uma fêmea saudável), com ampla capacidade de produzir ruidosas vocalizações, necessárias para sinalizar aos demais machos acerca de sua presença (por meio de estruturas maleáveis na altura da garganta, e que funcionam como caixa de ressonância). A dominância envolve intenso comportamento agonístico; os machos são intolerantes diante da presença de postulantes, e o alto nível de violência interpessoal produz nítidas desfigurações entre os combatentes. A maturidade e o poder produzem marcadores fenotípicos de clara perceptividade sensorial, como é o caso das bolsas de gordura na região do pescoço e da face, que são traços, em conjunto, privilegiados pelas fêmeas receptivas à cópula (Cameron, Groves, 2004, p. 75-77; Nordhausen, Oliveira Filho, 2015, p. 29; Wrangham, Peterson, 1996, p. 134). Então, a trajetória evolucionária dos hominídeos asiáticos parecia haver rompido com as condições que permitiriam a formação de grupos masculinos, cooperativos, patrilineares e estáveis, matéria prima da violência coalizacional entre os hominídeos, e, por assim dizer, da guerra como aspecto filogenético. Mais ainda, entre os pongíneos, o afrouxamento da sociabilidade cotidiana e da autoproteção gerada pela agregação consanguínea havia ampliado as oportunidades do exercício da competição masculina, repousada sobre ampliado grau de violência sexual contra as fêmeas. O fenômeno do bimaturismo entre os orangotangos estantes pode ter existido por toda a linhagem dos hominídeos asiáticos, e consistiu em um instrumento eficaz para burlar as formas de exercício de domínio convencionais. Ele se expressa pela ocorrência de um padrão de amadurecimento fenotípico masculino que contraria a manifestação dos marcadores típicos de prontidão sexual, como o acrescido tamanho corporal, a força física e as bolsas de gordura facial. Assim, determinados machos mantém aspecto “imaturo”, com massa corporal compatível com um perfil feminino, algo que os dotaria, a princípio, de uma baixa qualidade em termos de seleção sexual (já que

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é nítida a rejeição das fêmeas a esses aspectos). Não obstante, esses “imaturos” são capazes de braquiar eficientemente nas copas das árvores (dado seu menor peso e estatura), algo inviável aos seus titânicos competidores, preparados para o exercício da violência física e para uma vida mais terrestre. E é justamente na cobertura arbórea onde as fêmeas habitam, o que permite a elas evadir-se, quando oportuno, ao assédio dos machos mais pesados, mas não dos “imaturos”, leves e rápidos o suficiente para perseguilas. Essa “imaturidade fenotípica” permite então evitar os riscos do confronto físico masculino, ao mesmo tempo em que sanciona a violência sexual como fato etológico. De um terço a metade das cópulas registradas entre os pongíneos estantes assume esse aspecto, e, embora não saibamos a eficácia dessa estratégia, a persistência do bimaturismo sugere uma sinalização evolucionária positiva (Wrangham, Peterson, 1996, p. 138-142). A ruptura dos laços matrilineares era um elemento que unia os grandes símios asiáticos e africanos em suas trajetórias de expansão geográfica para sul e leste, partindo da Europa; mas no caso dos pongíneos, seus impactos sociais foram complexificados pela recomposição dos habitats asiáticos, acentuada entre 12-10 Ma, que proscreveu as formas de sociabilidade permanente entre os hominídeos. Em termos etológicos, a extrema dispersão feminina e a ausência de estruturas sociais de cooperação intensificaram o conflito sexual masculino, advogando contra o surgimento das formas de poder e violência coalizacional, como já afirmamos. Na África, os herdeiros da radiação nortesul, para fora da Eurásia, encontrariam condições ambientais menos severas, com uma menor dispersão dos recursos naturais florestais, ainda que estes fossem de qualidade inferior àquela de que desfrutaram os proconsulídeos, milhões de anos antes. Tal fato teria sido crucial na estruturação de uma forma variada de sociabilidade, que abriria lentamente espaço para as coalizões patrilineares. Os gorilíneos, cujos únicos representantes estantes são Gorilla spp., mas que incluíram potencialmente Samburupithecus sp., desenvolveram-se no processo de migração de volta para a África, a partir de 10 Ma (Mapa 5). Não obstante terem, tal como os pongíneos, enfrentado condições ambientais em mudança, o perfil assumido por essas transformações na África Centro-Oriental foi de tal natureza que não conduziria ao quase completo esgotamento da sociabilidade grupal permanente, como supomos ter ocorrido na linhagem que culminaria, até o momento, em Pongo sp.; mais moderada, a transformação dos habitats africanos não esgarçaria rápida e suficientemente as formas

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de sociabilidade primitivas de modo a inviabilizar a formação de haréns, traço etológico esse herdado ao longo de milhões de anos desde os afropitecídeos. Preservada a constituição de grupos sociais fundados na exclusividade sexual masculina sobre as fêmeas, ela não passaria, contudo, sem alterações de grande significado na etologia da guerra. Em boa medida, a radicalidade que envolveu a ruptura longitudinal de habitats pela Eurásia inviabilizou a célula-máter da violência coalizacional entre os grandes primatas, que é a formação de grupos sociais estáveis, cooperativos, patrilineares e patrilocais; assim, a guerra, em perspectiva etológica e ecológica, foi filha da moderação. Em algum ponto da trajetória evolucionária que conduziria aos gorilíneos, no caminho em direção à África, a primitiva dentição robusta, presente desde os afropitecídeos até os pongíneos asiáticos, cedia espaço novamente para um perfil odontomorfológico que remete à especialização dietária em nichos florestais (especialmente no que se refere à espessura do esmalte dentário e formato dos molares). É razoável a hipótese de que o desenvolvimento odontomorfológico demonstra claro perfil homoplásico, respondendo de forma flexível e conclusiva, no tempo evolucionário, às pressões ambientais e necessidades dietárias, mais do que ao ditame filogenético (Pampush et al., 2013, p. 217). E notemos que o momento de especiação dos gorilíneos coincide justamente com uma redução acentuada na biodiversidade dos grandes primatas, momento esse em que estratégias de forrageamento limítrofes eram postas à prova. Toda generalidade do comportamento forrageador de espécies de dentição mais robusta não deve ter sido suficiente para enfrentar os rigores da aridez do Mioceno tardio sem modificações comportamentais significativas, abrindo uma brecha para a re-especialização em recursos florestais como condição capaz de oferecer um diferencial reprodutivo, enquanto aqueles habitats ainda existissem. Manter uma estratégia de forrageamento híbrida significaria depender cada vez mais dos recursos provenientes dos espaços aridificados, e cada vez menos dos espaços florestais em retração, o que implicaria a necessidade de avançar por distâncias cada vez maiores pelo interior da savana, em busca de alimento. Considerando a natureza “dependente de trajetória” do processo evolucionário, a nodopedalia era um fator restritivo para esse resultado, dada sua ineficiência para o deslocamento em alta velocidade, ou por longas distâncias. Assim, para os primatas nodopedálicos, uma trilha evolucionária se abria no sentido de acompanhar a retração das florestas, até que inovações motoras (bipedia) viessem a criar uma rota de sobrevivência alternativa, rompendo o impasse termorregulatório.

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Como dito anteriormente, a ruptura ambiental na África centro-oriental era suficientemente moderada, se comparada com sua análoga eurasiana, para fazerem persistir núcleos florestais com razoável concentração de alimentos, ainda que cada vez mais circunscritos e insulados em meio ao acelerado processo de savanização. Essa moderação foi justamente o elemento que facultou a re-especialização dietária dos gorilíneos (Figuras 10,11 e 12), mas, no Mioceno tardio, mesmo essa estratégia adaptativa não viria sem alterações. Ainda que espacialmente concentrados e distribuídos com relativa uniformidade, a qualidade nutricional dos recursos diminuía, acirrando uma competição tácita no âmbito da etologia energética feminina. A espacialidade dos recursos era suficiente para a manutenção de grupos sociais femininos permanentes (diferentemente do que ocorria entre os pongíneos), com a presença de um macho dominante com exclusividade no acesso às oportunidades sexuais, mas a qualidade nutricional dos recursos concentrados sinalizava negativamente para a preservação de laços entre fêmeas consanguíneas (Figura 15). Assim a primitiva etologia da gregariedade feminina matrilinear e matrilocal encontrava seu limite tanto entre os grandes primatas asiáticos quanto entre os africanos, ainda que o resultado desses mesmos óbices tenham sido distintos. No caso dos gorilíneos nas florestas em retração na África centro-oriental, a espacialidade dos recursos nutricionais era o bastante para a preservação de grupos sociais permanentes de fêmeas, ainda que não aparentadas. No algoritmo evolucionário, pontuavam mais as fêmeas que buscavam disputar recursos empobrecidos, ainda que concentrados, com outras alheias à sua herança genética (Foley, 2008, p. 224) Tal como entre os pongíneos repetia-se, à sua maneira, o enfraquecimento dos laços matrilineares, erodindo a firme capacidade de autoproteção feminina; e a redução no alcance dessas alianças abria espaço evolucionário para o realinhamento da estratégia etológica masculina. Temos que, entre os gorilíneos estantes (e presumidamente, já em Samburupithecus sp.) o afrouxamento das iniciativas de ação coletiva autoprotetora por parte dos grupos sociais de fêmeas não aparentadas demonstrava, potencialmente, uma menor propensão à cooperação do que o manifestado em sociedades primatas matrilineares e matrilocais. A manifestação de um traço comportamental primitivo – a presença de um macho dominante e a organização de haréns – deixava de privilegiar, nessas circunstâncias, a etologia energética feminina, uma vez minimizada sua capacidade de cooperar e coibir o saque de outros machos contra os fundos nutricionais defendidos.

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Abria-se uma brecha evolucionária para que a estratégia de formação de haréns privilegiasse eventualmente a etologia reprodutiva masculina, nos casos em que vínculos de parentesco patrilineares levaram à permanência, no grupo de origem, de um ou mais filhos adultos (machos) de um determinado “dorso prateado” dominante 26. Essa presença pressionará negativamente, em algum grau, os recursos energéticos disponíveis, retroalimentando o imperativo de migração feminina entre os gorilíneos; além disso, permitirá que um dos descendentes do macho dominante venha a herdar o domínio sobre o harém, garantindo assim, por mais uma geração, a transmissão dos genes paternos. A transmissão filogenética do comportamento de harém, presumidamente já tensionada pelo impacto do meio ambiente em Afropithecus sp., seria mais uma vez pressionada entre os gorilíneos a partir do empobrecimento e da maior dispersão dos recursos naturais, e, por sua vez, da dissolução dos laços matrilineares. Mas sabemos que enquanto for possível acomodar traços filogenéticos à transformação das condições ambientais, eles persistirão, ainda que flexibilizados. Nesse caso, os grupos familiares estáveis de gorilíneos também não forneciam a matériaprima essencial para o conflito interssocietário. Se os consórcios femininos se fragilizam com a ruptura dos laços matrilineares e com a dispersão, nem por isso surgem efetivos laços de cooperação entre machos aparentados. A exclusividade sexual desfrutada pelo macho dominante num bando é tributária da submissão dos demais indivíduos masculinos a esse estado de coisas; há dominância em sentido estrito. Da mesma forma que as fêmeas adultas, todas não aparentadas, estão totalmente subjugadas, e somente em raros casos conflitam abertamente entre si (antes de terem suas querelas suprimidas pela violência do líder), também os machos adultos descendentes do silverback mantém notável nível de paz interna e de submissão ao “poder constituído”. Não existe uma “etologia da rebelião” entre os gorilíneos, de modo que nem machos nem fêmeas cooperam de forma coalizacional para contestar um poder dominante socialmente desgastado. As ameaças são externas, normalmente: jovens adultos migrantes, e que se aventuram em buscar o controle sobre um harém alheio através da expulsão ou derrota do silverback dominante (para o que o infanticídio direcionado contra sua prole é um mecanismo eficaz), geram repetidas oportunidades de comportamento agonístico entre machos, com intensa

“Dorso prateado” ou silverback é como chamamos um gorila adulto, em função do clareamento da pelagem das costas em decorrência da idade. 26

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violência física (de forma análoga ao que vemos entre os pongíneos, há forte dimorfismo sexual entre os gorilíneos) (Wrangham, Peterson, 1996, pp.147-149). Assim, se a estabilidade nas relações sociais internas tem significado no caminho para a etologia da guerra, certamente ele não consiste em respaldar que da submissão derivou qualquer cooperação masculina patrilinear, capaz de tornar a violência um ato coalizacional e interssocietário. Mais quatro milhões de anos de gradual mudança ambiental seriam necessários para tornar a coalizão masculina entre os grandes primatas uma realidade. Foi por volta de 7 Ma que o contínuo resfriamento global e a aridificação ultrapassaram o limiar de resiliência do comportamento social e econômico dos grandes símios africanos, abrindo caminho para novas especiações e mudanças etológicas estruturais. A expansão de matas e savanas, fragmentando cada vez mais intensamente as florestas, contribuía para maior dispersão e distribuição heterogênea de recursos, nutricionalmente empobrecidos. Enquanto o conservantismo de nicho movia espécies mais antigas (como os gorilíneos) em direção aos núcleos florestais ainda homogêneos e circunscritos, populações marginais a esses ecossistemas enfrentavam condições cada vez menos propícias às suas formas de comportamento tradicionais. A espacialidade dos recursos energéticos se tornava suficientemente rarefeita para fazer com que as fêmeas não aparentadas, outrora reunidas de forma permanente num mesmo território, necessitassem se dispersar simultaneamente por um perímetro incompatível com a capacidade de controle de um macho dominante (Aureli et al., 2008, pp. 629-630; Foley, 2008, p. 230). Note que, diferentemente dos pongíneos, para os quais a solução possível para uma fêmea com seus filhotes era estabelecer controle exclusivo sobre núcleos insulados e ricos em alimentos, nas zonas marginais ocupadas pelos grandes símios africanos, as fêmeas ainda seriam capazes de obter as vantagens de viver em grupos sociais, sendo apenas obrigadas, no ato de forrageamento, a se distanciar por uma área vasta o suficiente para fugir ao “panóptico” do macho dominante (Figura 15). Dessa maneira, nos estertores do Mioceno, as estratégias convencionais de controle, exclusividade sexual e garantia de paternidade empregadas pelos grandes símios africanos tornavam-se inviáveis. Esse era o provável estado de coisas durante a emergência do último ancestral comum entre os chimpanzés (Figuras 13 e 14) e os humanos modernos, e devemos considerar que tais transformações etológicas devem ter tomado lugar no intervalo entre 8 – 6 Ma, a partir de alguma linhagem divergente dos gorilíneos, e que resultaria no UAC. A quebra

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do sistema de haréns teria levado a uma franca expansão demográfica dos bandos; chimpanzés estantes chegam a estabelecer grupos de quarenta a cem indivíduos, enquanto um bando comum de gorilas tem cerca de dez indivíduos. Nessas condições ecológicas e etológicas, as fêmeas deixam de se ligar quase que exclusivamente a um macho dominante, e passam a acasalar em regimes poliginândricos. Rompida a matrilinearidade e a agregação de fêmeas aparentadas desde pelo menos 10 Ma, e herdada a formação de grupos patrilineares de machos aparentados, desenvolve-se a mais rara condição etológica em toda ordem dos primatas, que é a gregariedade masculina cooperativa e coalizacional. Os machos em um bando, todos parentes, e organizados em uma complexa hierarquia 27, cooperam entre si, com sinalização ritualística de lealdade e de reconhecimento de status, visando estabelecer o domínio sobre o território disperso por onde as fêmeas do grupo forrageiam, e, assim, negar a bandos “estrangeiros” de machos o acesso a elas. O poder que era exercido individualmente pelos silverbacks na linhagem dos gorilíneos, e voltado contra outros indivíduos alheios ao bando, se torna, na linhagem do UAC, uma prerrogativa das coalizões. A violência interssocietária torna-se, nesse caso, tributária da cooperação masculina 28. Importa enfatizar que o que gera a relativa dispersão espacial feminina, a ruptura do sistema de harém e a oportunidade evolucionária para o raro fenômeno da cooperação masculina é, em última instância, o conservantismo de nicho, mantido por todos os ramos da árvore evolucionária dos grandes primatas africanos desde pelo menos 10 Ma, até o surgimento dos primeiros hominíneos. Esse conservantismo se revela em uma especialização dietária menos estrita que a demonstrada pelos gorilíneos, mas ainda suficiente para impedir a Pan troglodytes (os chimpanzés estantes) e, presumidamente,

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As relações hierárquicas envolvem algum componente etário, já que a dominância é normalmente exercida por machos em pleno vigor reprodutivo. Machos idosos são normalmente desprivilegiados, e jovens impúberes sempre o são. Entre as fêmeas também se manifesta uma hierarquia de prestígio, mas não há nada como a posição de dominância masculina, nem como as lutas pela conquista desse status. Insultos à posição hierárquica provocados por uma fêmea contra outra dificilmente conduzem ao conflito, enquanto entre os machos, essa frequência é radicalmente maior (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 190-191). 28 A violência coalizacional em sua dimensão etológica não é um atributo “masculino” como opiniões politicamente incorretas podem desejar. Entre as hienas malhadas (Crocuta crocuta) são as coalizões femininas que promovem intenso comportamento agonístico contra outros bandos de fêmeas, organizadas em clãs territoriais. O dimorfismo sexual nessa espécie torna-as maiores e mais pesadas que os machos, e claramente mais agressivas (Wrangham, Peterson, 1996, p. 155).

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ao UAC, a ocupação e a exploração efetiva dos territórios savanizados (Wrangham, Peterson, 1996, p. 52). Um consumo acrescido de proteína animal (proveniente de pequenos mamíferos, para além dos insetos que também são consumidos por certas espécies de gorilas estantes), de algumas sementes e de nozes não seria o bastante para transformar radicalmente a espacialidade relativa dos recursos naturais, como acreditamos ter ocorrido com Afropithecus sp. e seus descendentes eurasianos, até as migrações em direção a Ásia e a África. Lembremos que P. troglodytes demonstra dentição grácil, compatível com a exploração de territórios úmidos e florestais, tal como os gorilíneos, sendo essa a provável condição primitiva do último ancestral entre chimpanzés e humanos, igualmente. Caso estivéssemos falando de uma linhagem de dentição robusta, capaz de explorar com eficiência recursos em ambientes savanizados, o comportamento de harém potencialmente seguiria sendo transmitido de modo filogenético, porque não haveria qualquer tensão de ruptura sobre ele, impulsionada pela oferta energética. Hipoteticamente esse seria o caso de reproduzirem-se as “confederações de haréns” cercopitecinas, com pequenos bandos autônomos formados por um macho dominante, suas fêmeas e seus filhotes (e, eventualmente, machos sem privilégios sexuais, e subalternos), coligados de forma frouxa, beneficiando-se dos ganhos defensivos proporcionados pela gregariedade. Entretanto, para espécies de dentição grácil, espaços savanizados não trazem qualquer recurso amplamente explorável. Quando a dispersão das fontes energéticas superar um limiar no qual não seja mais possível o controle do território de forrageamento e habitação das fêmeas por apenas um macho, a estratégia de harém estará evolucionariamente liquidada. Nesse caso, as fêmeas não podem simplesmente forragear juntas, simultaneamente, indo de área produtiva em área produtiva, por mais dispersas que sejam, já que a qualidade do alimento não é suficiente. Elas sofreriam restrições se tivessem de forragear juntas num mesmo bolsão empobrecido de alimentos. Então, elas devem se dispersar individualmente, levando seus filhotes, por uma ampla área. Caso dispusessem de condições anatômicas capazes de lhes garantir recursos energéticos nas condições ambientais em agravamento, o comportamento de harém, filogeneticamente herdado, poderia ter sido preservado, tendo a dentição como um buffer de acomodação para esse traço comportamental filogenético. Não sendo o caso, devemos então considerar que tanto chimpanzés quanto humanos modernos – e decerto

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também seu ancestral comum – desenvolveram suas formas específicas de sociabilidade a partir de uma etologia pós-harênica. O crescimento demográfico dos grupos permanentes e sua estrutura interna complexa, decorrentes do colapso dos arranjos etológicos estáveis que estabeleciam claramente uma hierarquia simples, fazem escalar a incerteza quanto às expectativas e aos lugares de poder interpessoais. Movida pela formação das coalizões masculinas patrilineares, pelo colapso do exclusivismo sexual e da dominância monocrática dos silverbacks sobre os haréns e sobre os adultos mais jovens; redes hierárquicas complexas, com vários níveis de prestígio, oportunidades de ascensão e risco de declínio, surgem nas sociedades de grandes primatas às margens dos territórios florestais em retração. Entre 8 – 6 Ma, as potenciais espécies desconhecidas que resultariam no também incógnito último ancestral comum entre homens e chimpanzés, bem como em P. troglodytes, demonstrariam, pelas circunstâncias evolucionárias, forte disposição em despender tempo e energia nos jogos de status e no comportamento social em geral. A incerteza e o excesso de informação social fazem emergir complexificadas formas de expressão gestual, comunicação e interação, instrumentos indispensáveis para o gerenciamento de conflitos em sociedades permanentes, de grandes dimensões (Aureli et al., 2008, p. 632). A etologia política masculina envolve a reafirmação cotidiana da posição de poder por meio de demonstrações somáticas, de intimidação e de violência não letal, além do grooming como elemento de pacificação, uma vez que a contestação às hierarquias estabelecidas é frequente. Além disso, verifica-se em P. troglodytes que um jovem macho deve primeiro conquistar os degraus superiores na pirâmide hierárquica feminina antes de disputar posições mais elevadas na hierarquia de seu próprio gênero. Os “ritos de passagem” nas sociedades chimpanzés envolvem o exercício da violência não letal contra as fêmeas por parte dos jovens machos chegando à maturidade, até que reconheçam seu poder (por meio de um ritual de submissão, em que o macho estende a mão com o ombro elevado em direção à fêmea, que permite ser tocada) (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 143-144). Adultos migrantes são igualmente incorporados aos grupos sociais e alocados nos escalões mais baixos da hierarquia geral, devendo conquistar o prestígio nos mesmos moldes que os jovens autóctones (Nordhausen, Oliveira Filho, 2015, pp. 36-38). Nesse quadro, os grandes grupos fendem-se cotidianamente em bandos menores e voláteis (como associações de interesses, por analogia), voltados para finalidades específicas e

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temporárias; essas breves alianças envolvendo forrageamento e acasalamento podem se converter em laços de cooperação duradouros entre determinados indivíduos, visando a reprodução de seu status social mútuo ou a voos mais ousados na hierarquia do grupo. São os parâmetros de uma sociabilidade gregária altamente físsil e de hierarquias complexas o fator responsável mais provável pelo aumento do quociente de encefalização entre 10 – 6 Ma, na linhagem que conduziria ao UAC entre humanos e chimpanzés, quando comparada aos gorilíneos. O crescimento do tamanho dos grupos sociais significa que novas e mais relações precisam ser gerenciadas, hierarquias relativas precisam ser compreendidas e registradas, estratégias precisam ser montadas com a finalidade de galgar degraus na pirâmide social ou, no mínimo, manter-se onde se está. Além disso, grupos maiores geram pressão sobre os recursos naturais, de modo que maior território precisa ser conhecido e mapeado, para o que uma acrescida capacidade de memória é indispensável (Foley, 2008, pp. 207-210). Provavelmente, foi então que, sob pressão de uma necessária “inteligência social”, com processos neurológicos especializados e altamente dedicados, capazes de lidar com a complexidade apresentada pela formação de grupos sociais permanentes, mas altamente físseis, que a modularidade da mente primata deu seu primeiro passo. Seu desenvolvimento, e, quem sabe, suas limitações, podem ter sido responsáveis pela etologia da guerra na linhagem de homens e chimpanzés. Na psicologia evolucionária, a ontogenia da mente é entendida como a resultante de mecanismos de resposta moldados pela seleção natural; nesse caso, o complexo cognitivo é formado por módulos mentais com determinados conteúdos básicos inatos (especialmente regras de aprendizado e de organização da informação), altamente seletivos quanto ao tipo de input sensorial que absorvem, e tendo como finalidade a resolução de problemas específicos enfrentados no âmbito do processo de especiação de um determinado táxon. Não se trata de considerarmos a mente primata apenas como um grande instrumento de inteligência geral, indistinto, holístico, com regras de aprendizado padronizadas para quaisquer domínios cognitivos; tampouco, um mecanismo de tipo “esponja”, que absorve indistintamente conteúdo através dos sentidos, e molda-se exclusivamente a partir do meio. Ao contrário, o entendimento de que determinados problemas requereram processos mentais altamente especializados e neurologicamente concentrados, leva a psicologia evolucionária a reconhecer que a aplicação de regras gerais de aprendizado à solução de desafios com risco evolucionário, resulta em erro ou

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em respostas demasiado lentas, a ponto de produzir uma sinalização negativa para a persistência desse tipo de comportamento cognitivo. Uma vez exposto a pressões radicais dessa natureza, um organismo deve ser capaz de excluir rapidamente informações involuntariamente adquiridas pelos sentidos, e que são irrelevantes ou contraproducentes na resolução de um dado problema. Se todo tipo de informação tiver de ser analisado simultaneamente pelos mesmos processos mentais gerais e não dedicados, uma decisão vital e eficaz pode jamais ser obtida a tempo. Ignorar o que é evolucionariamente irrelevante; captar, organizar e analisar a informação decisiva: assim funcionam módulos mentais especializados. Os simiformes, e os chimpanzés em particular, dispõem de uma bem desenvolvida inteligência geral. Isso significa dizer que contam com um eficiente mecanismo de regras de aprendizado genérico, adequado para os desafios mais amplos que enfrentam. É através dela que P. troglodytes e, presumidamente, o UAC, foram capazes de modificar seus comportamentos a partir da experiência de vida, por mecanismos de tentativa e erro, aplicados à maioria esmagadora dos domínios cognitivos existentes. No caso dos chimpanzés, isso significa que, através dessa inteligência geral, são capazes de aprender alguns símbolos humanos simples e seus significados (quando a eles ensinados exaustivamente em laboratório, nunca em habitat natural), bem como de manusear e produzir algumas ferramentas, como as varetas para a “pesca” de cupins (feitas a partir de ramos de arbustos, depois de arrancados os galhos), marretas e martelos para quebrar nozes (leia-se, duas pedras de tamanho adequado para a tarefa), e esponjas (feitas de folhas) para coletar água. Entretanto, é próprio da inteligência geral operar com soluções simples, de lento aprendizado, e seus processos gerarem erros frequentes. Ela é um instrumento de menor custo evolucionário, e pode ser eficaz em determinadas circunstâncias; suas ineficiências, contudo, podem se converter num passivo quando a precisão, a eficácia e a velocidade na tomada de decisão, bem como na análise do ambiente, se tornam questão de sobrevivência. Então, em algum momento evolucionário entre 8 – 6 Ma., a complexidade das relações sociais entre as populações marginais que dariam origem ao UAC e a P. troglodytes, provocadas pela reconfiguração dos habitats florestais, geraria uma sinalização positiva para a seleção de processos mentais especializados, e voltados exclusivamente para a interpretação e previsão do comportamento de terceiros, tendo como referência uma autoimagem consciente do próprio comportamento do organismo que observa (Mithen, 2002, pp. 67-71; 102-111).

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Em outras palavras, a ruptura ambiental gerava contexto para o aprofundamento da “teoria da mente” entre chimpanzés, e acreditamos que essa condição estivesse também presente no último ancestral comum, já que nós, humanos, dela também dispomos. H. sapiens e P. troglodytes estão filogeneticamente ligados por uma inteligência social modular, e processos especializados desse tipo estão no cerne da guerra em sua dimensão etológica. É improvável que em algum momento desde a divergência da linhagem que levaria ao UAC, até aquela que levaria a P. troglodytes (o que exclui os hominíneos), pressões evolucionárias tenham levado à modularização de uma inteligência, digamos, técnica. A produção de ferramentas líticas exige, entre outras competências, a formulação de uma imagem mental (uma hipótese, portanto) da ferramenta acabada, com base na qual o núcleo será talhado. As ações envolvidas na produção de uma ferramenta lítica não parecem ter equivalente em qualquer outro domínio comportamental dos hominíneos capazes de criá-las, não correspondendo a um subproduto acidental de atividades executadas com outras finalidades. Em outras palavras, a tecnologia lítica envolveria, nitidamente, um conjunto de processos mentais altamente especializados, concentrados e modularizados, cuja finalidade se inicia e se esgota na própria produção de artefatos. O custo energético e evolucionário de um caminho como esse não é desprezível, e diante da seleção natural, não há espaço para desperdícios. Se as “ferramentas” empregadas por chimpanzés podem ser produzidas através de ações já associadas à alimentação (remover ramos, arrancar folhas, morder os galhos para nivelá-los), isso significaria dizer que o mecanismo pelo qual o último ancestral comum e seus herdeiros paníneos foram levados a manipular e transformar objetos físicos recorre à inteligência geral, maquinário genérico, lento e pouco sofisticado, mas já em funcionamento, sem custos adicionais. Não seria o caso de dizer que chimpanzés precisassem “inventar a roda”. As “tradições culturais” que se nota entre chimpanzés estantes de diferentes comunidades estudadas, e que levam determinados grupos a socializarem a prática de caça de formigas, ou de uso de folhas para higiene pessoal, não significariam, por sua vez, a existência de uma modularidade mental técnica. Tratam-se tão somente do uso dos processos genéricos para aprendizado por tentativa e erro, e que são replicados por observação inconsciente, que é potencializada pela vivência em grupos sociais permanentes. É consistente a ideia de que chimpanzés quando “imitam” e “aprendem” o ato de pescar cupins praticado por

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algum outro membro do grupo, não têm consciência do propósito da sua ação, nem como aplicar aquela mesma ação para outros fins. Eles simplesmente o fazem, e recebem a recompensa na forma de proteína animal. Da mesma forma, o ato de quebrar castanhas com pedras é muitas vezes aprendido depois de muitas tentativas (e erros), com os praticantes batendo as pedras sem as castanhas entre elas, ou depositando castanhas sem que haja martelos para quebrá-las. A inconsciência a respeito do manejo técnico da natureza se expressa pela pouca importância que o ensino ativo representa, a despeito das nítidas vantagens evolucionárias que os membros de uma prole obteriam caso fossem instruídos sistematicamente pelos pais nas tarefas do uso de ferramentas. Hipóteses causais quanto ao funcionamento dos martelos e bigornas, envolvendo uma “física intuitiva”, uma noção de densidade, rigidez, força e resistência, não parecem “autoevidentes” aos chimpanzés adultos como o são para crianças humanas de dois ou três anos. É então a sociabilidade que permite a transmissão “cultural” de certos procedimentos técnicos, e não a emergência de uma inteligência especializada. Convém ressaltar que, em P. troglodytes, as tradições técnicas que existem em um grupo não existem em outros, porque a variável de ajuste é a transmissão social dos procedimentos. No caso dos humanos modernos, as tradições culturais dizem respeito, em última instância, a formas diferentes de fazer coisas semelhantes. Não existem culturas humanas que usem ferramentas, e outras que não usem (Mithen, 2002, pp.120-122; 139). É razoável que o aumento do quociente de encefalização desde 10 Ma até a especiação do UAC esteja ligado, também, à pressão pela busca de recursos alimentares, na circunstância de grupos sociais com crescente número de integrantes. A ampla capacidade de memorização visual dos chimpanzés (algo não rivalizado por qualquer humano moderno em testes laboratoriais) remete decerto a esse “mapeamento” das oportunidades nutricionais. Um exemplo bastante peculiar desse poder mnemônico é dado pelos chimpanzés das florestas de Taï, na Costa do Marfim, e é algo que constitui uma tradição “cultural” desse grupo, ausente em quaisquer outros até hoje estudados. Os chimpanzés de Taï costumam espalhar e esconder martelos de pedra não modificados em locais estrategicamente selecionados. Eles seriam capazes então de fazer comparações das distâncias entre cada martelo, decidir qual deles está mais próximo, e se é energeticamente mais eficaz transportar um martelo pesado por uma distância menor, ou um martelo leve por uma distância maior. Essa distribuição dos martelos pelo território permitiria o processamento de alimentos de origem vegetal in loco, evitando então o custo energético

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e de oportunidade que envolveria o transporte dos alimentos até local seguro, onde pudessem ser processados. A diminuição do tempo de exposição aos predadores, por meio do acesso rápido às ferramentas otimamente espalhadas pelo território, e obtenção das calorias necessárias antes de um novo deslocamento, seriam fatores relevantes para aumentar as chances de sobrevivência desses chimpanzés (Cameron, Groves, 2004, p. 74; Mithen, 2002, p. 125). A despeito, contudo, de serem forrageadores muito capazes, P. troglodytes (e, em seu tempo, o UAC) são pouco capazes de encontrar novas zonas ricas em recursos sem que dela tenham um conhecimento sensorial prévio, o que reforça a noção de que registram mentalmente posição, distância e formas de acesso aos locais já mapeados, mas não estabelecem hipóteses a respeito da distribuição do alimento a partir do conhecimento do ciclo de nascimento e amadurecimento dos vegetais. Uma inteligência naturalista especializada, com processos mentais exclusivos e dedicados, talvez lhes permitisse um uso criativo da informação sensorial para simular onde e quando recursos estariam disponíveis, sem que fosse preciso atestar sua existência previamente. O fato de a estratégia de forrageamento dos chimpanzés de Taï não ter equivalente em quaisquer grupos congêneres nos impede de invocar uma condição apomórfica deste comportamento em P. troglodytes ou mesmo no UAC. Fruto do aprendizado social, e manifestação de uma competência cognitiva técnica genérica, é nítido então que a manipulação criativa do mundo material não conta com módulos mentais especializados. Mas nesse campo os chimpanzés e o UAC não estariam sozinhos: tomemos o exemplo dos interessantes macacos-japoneses de Koshima (Macaca fuscata) que aprenderam a prática de lavar batatas-doces na água marinha, para eliminar areia e detritos. Em pouco tempo a prática “cultural” havia se generalizado no grupo social onde surgira, e fora transmitida geracionalmente, por meio do aprendizado observacional, embora não fosse replicada em qualquer outro agrupamento de primatas semelhantes Notamos que em cativeiro, aos chimpanzés podem ser ensinadas operações técnico-linguísticas que jamais apareceriam em seu habitat natural, como rudimentos da linguagem de sinais, e mesmo a produção de lascas afiadas de pedras. É compreensível que assim seja, já que, para esses expedientes, empregam uma inteligência geral, um conjunto de regras padronizadas, que lhes permitem aprender socialmente, de forma rudimentar. (Nordhausen, Oliveira Filho, 2015, pp. 40-41; Mithen, 2002, p. 141-142).

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Ainda no que diz respeito ao forrageamento, os hábitos de caça dos chimpanzés são estereotipados e pouco oportunistas, reforçando a noção de que uma inteligência modular naturalista não pertence ao conjunto de inovações comportamentais que marcou a emergência da linhagem que conduziria ao UAC. Chimpanzés de diferentes localidades concentram-se “culturalmente” na caça de determinados animais, como os colobos entre os habitantes de Taï, e os porcos e gamos entre os de Gambe e Mahale. A despeito do alto sucesso da cooperação entre os caçadores de Taï, e do emprego de pistas sonoras para localizar suas presas, a capacidade desses chimpanzés de detectar pistas visuais (como pegadas, sombras, etc.) é pequena, a despeito de seu incrível poder de memorização fotográfica do ambiente, e do mapeamento mental de recursos vegetais estáticos (Mithen, 2002, pp. 126-127). Não parece haver então um módulo mental especializado capaz de reunir e processar informação, e de traçar hipóteses sobre tudo aquilo que se relacione às necessidades do forrageamento, no qual a caça ou a coleta estivessem reunidas e sendo pensadas em conjunto. Além disso, carcaças de determinados animais, riquíssimas em nutrientes, e ainda frescas, podem ser ignoradas por um bando de chimpanzés se o animal morto não corresponde à espécie normalmente caçada no âmbito da “cultura” de que compartilham os caçadores. Então, vemos que mais uma vez é o aprendizado social no âmbito da inteligência geral, inconsciente e transmitido no âmbito do grupo, que marca a relação entre os paníneos e a natureza, sendo essa também a provável condição do último ancestral comum entre eles e os humanos modernos. Todos os parâmetros da prática da caça são decorados pelo exemplo, e por tentativa e erro; não há espaço para que as informações sobre a captura e o abate de uma determinada presa sejam lidas à luz de um modelo abstrato, que as torne capazes de serem extrapoladas e adaptadas, de acordo com as circunstâncias, para outros tipos de presa ou mesmo de situações envolvendo o forrageamento, mas não a caça. Não podemos dizer o mesmo em relação ao comportamento social, dos quais temos razoável evidência de que sejam fundamentados em algo que possamos chamar de uma inteligência modular. É significativo considerar que chimpanzés em cativeiro, quando submetidos a treinamento regular, sejam capazes de desenvolver alguma comunicação linguística e de elaborar instrumentos líticos, algo que não fariam se não fossem devidamente instruídos por humanos (Mithen, 2002, p. 142). Quanto ao comportamento social, entretanto, não há nada efetivamente que se consiga ensinar a esses primatas; o

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cativeiro não parece alterar de modo significativo esses processos, mesmo entre aqueles chimpanzés nascidos fora de seu habitat natural. A convivência, simultaneamente competitiva e cooperativa, em grupos multissexuais permanentes, tornou os instrumentos cognitivos de manutenção e reconhecimento de hierarquias uma condição importante para a redução e manejo de conflitos intrassociais ao longo das linhagens de hominídeos africanos que divergiram entre 8 – 6 Ma. Isso porque, em um contexto pós-harênico, no qual a espacialidade da ocupação territorial acaba por diluir a perceptividade do lócus de dominância masculina, as oportunidades de fazer cumprir uma agenda energética e reprodutiva estritamente “egoísta”, tanto por parte de machos quanto de fêmeas, é razoavelmente grande. Esse seria um contexto forte para um “retorno” à sociabilidade multissexual instável, filogeneticamente esgotada por volta de 23 Ma, na qual os mecanismos de fuga e migração funcionavam como um buffer suficiente no gerenciamento de conflitos. Entretanto, a persistência de laços masculinos patrilineares permanentes em P. troglodytes nos faz crer que a resposta às pressões impostas pela territorialidade social foi respondida não por meio da eliminação de tais laços e do renascimento da dispersão multissexual, mas sim pelo extraordinário desenvolvimento da cognição social, em direção à modularização e à especialização de processos mentais, aprofundando radicalmente aspectos que já se faziam presentes, mas de forma embrionária, desde a eclosão da sociabilidade permanente. É sob essa luz que devemos entender a notória astúcia e a dissimulação que envolvem as relações cotidianas dos chimpanzés comuns, com suas alianças e amizades de ocasião. Em última instância, está em jogo buscar o equilíbrio entre as necessidades energéticas e reprodutivas de cada organismo engajado na rede de relações sociais, e as vantagens advindas da cooperação permanente. Para tal, surgem no tempo evolucionário processos modulares plenos de conteúdo e de modelos que permitem a esses organismos não só gerar hipóteses sobre comportamentos futuros de terceiros, mas de compreender o conjunto de regras que impedem que o confronto pelas agendas individuais se torne uma luta fratricida. Confrontos entre machos adultos, e com pretensões à preservação ou à conquista da dominância, podem durar meses, tal como se depreende de observações em cativeiro. Demonstrações de comportamento agonístico entre os contendores são observadas pelos demais membros do grupo, que se posicionam na disputa, sem se envolver diretamente nela, de acordo com uma intrincada lógica de suporte ou oposição. O estado de

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contestação à hierarquia vigente pode ser notado através da troca de olhares entre os machos e por uma maior instabilidade na composição das coalizões masculinas, entre outros marcadores. Nesses casos, ficam mais frequentes as demonstrações de força e poder do macho dominante em exercício, e de seus aliados, direcionadas contra as fêmeas. Um macho contestante demonstra sua clara insubordinação ao poder da ocasião ao dirigirlhe apenas vocalizações tímidas, e por meio de uma postura corporal. O desafiante se mostra desrespeitoso, e se recusa a promover rituais de submissão direcionados ao macho alfa, como dar as costas, curvar-se ou abaixar-se diante dele (sinais de inofensibilidade), ou mostrar-lhe o “sorriso assustado”, expressão facial padronizada e demonstração de reconhecimento da dominância alheia. As tentativas do macho dominante de tocar o ombro de seu oponente com a mão estendida são rechaçadas. Os dois lados buscam ocasionalmente reconciliar-se por meio da proximidade física, por demonstrações de afeição e grooming. Entretanto, na luta pelo poder interno, normalmente a situação escala para o isolamento social de um dos machos, e a perda de seu poder, consubstanciada pela defecção dos demais componentes do grupo. O disputante mais hábil pode lograr em desferir seu golpe final por meio da conquista do apoio do coletivo de fêmeas não aparentadas, o que envolve investir tempo em atividades lúdicas e de higiene com a prole dessas mães observadoras, enquanto o outro macho contestante encontra-se fora do alcance sensorial. Outro passo importante é investir mesma quantidade de tempo em atividades similares, mas com as fêmeas. Machos em situação inferior, mas desejosos de galgar alguns degraus na pirâmide social a partir da submissão a um dos disputantes (na hipótese, naturalmente, de ele ser o vencedor da corrida pelo poder) podem ser um instrumento importante: durante as oportunidades de interação social entre seu “candidato” e as fêmeas receptivas, esses machos inferiores podem se responsabilizar por afastar fêmeas partidárias do oponente, e evitar que elas provoquem qualquer interferência na estratégia política. Não raras vezes machos inferiores, desprezados pela maior parte das fêmeas, com pouquíssimo prestígio no grupo, tomam o segundo lugar na hierarquia interna, logo abaixo do macho dominante a quem apoiaram, o que amplia suas oportunidades reprodutivas. Uma vez conquistado ou preservado o poder, o macho dominante reduz seu comportamento agonístico, e com atitude pacificadora, aparta lutas entre fêmeas (envolvendo ocasionalmente o acesso aos recursos energéticos) e apoia os machos mais fracos, física e socialmente, em seus conflitos com outros mais poderosos. Em geral, ciclos como esse logo se reiniciam, com uma coalizão entre os machos

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subalternos ao dominante (até então a ele aliados) e o antigo líder destronado, voltandose contra o poder estabelecido (Mithen, 2002, p. 129-131, Wrangham, Peterson, 1996, p. 128; 186). Todos esses atos envolvem uma teoria da mente bem desenvolvida. Desse modo, chimpanzés precisam ser capazes de dispor de um modelo de funcionamento das principais linhas de comportamento social normais de sua espécie; em certo aspecto, precisam ser conscientes a respeito de como se comportariam sob determinado conjunto de pressões, para que, a partir daí, sejam capazes de prever como outros se comportariam diante de condicionantes análogos (Aureli et al., 2008, pp. 636-637). Mais ainda, essa etologia política em P. troglodytes requer não só que se possam formular hipóteses a respeito das expectativas e reações de um determinado indivíduo em relação ao comportamento daquele que analisa, mas também, acerca das expectativas e reações mútuas entre dois ou mais indivíduos, sem que o observador esteja envolvido. Requer, finalmente, que os modelos mentais devotados à análise do comportamento alheio sejam realinhados caso a caso, a partir de informações a respeito de indivíduos específicos, e de seus temperamentos individuais e momentâneos; sem que essa sintonia fina aconteça, expectativas estereotipadas podem induzir ao erro, e é justamente a uma capacidade de ajuste e adaptação rápida a alterações de cenários que inteligências especializadas se prestam. É razoável que, pela seleção natural, chimpanzés tenham desenvolvido consciência a respeito de sua própria mente, de serem seres pensantes, mas somente quando os raciocínios envolvem aspectos variados da interação social. Decerto são capazes de se perceberem como indivíduos, contrapostos a outros, e de reconhecerem sensorialmente sua autoimagem, conclusão essa que conta com suporte laboratorial já bem estabelecido. Isso significaria que um “pensamento sobre o pensamento”, ou seja, a consciência acerca do pensar, ocorre quando as estratégias sociais para a luta diária pela dominância estão em jogo, mas não quando quaisquer outras competências cognitivas estão em questão. A modularização da inteligência social entre os grandes primatas africanos, e especialmente, no UAC, em chimpanzés e em humanos, foi provavelmente fruto do notório desenvolvimento do córtex insular entre esses animais. A ínsula está localizada nas paredes dos hemisférios cerebrais, no interior da dobra formada pelo sulco lateral, e é laboratorialmente associada à manifestação de estados comportamentais que remetem

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a representações mentais internas do próprio corpo. É verossímil, então, que o córtex insular nos possa fornecer a localização anatômica dos mecanismos neurais responsáveis pela consciência subjetiva no que tange as interações sociais. Em humanos, ele está associado ao autorreconhecimento sensorial (visual, inclusive), à percepção de emoções próprias e de terceiros, à intersubjetividade, à percepção do tempo, à formulação de hipóteses e à tomada de decisões em situações de incerteza. A linguagem e a música também estão associadas ao funcionamento da ínsula em humanos, reforçando a dimensão social e relacional desses atos psicoculturais. Os grandes símios contam com uma subdivisão no córtex insular, com determinado grau de especialização: enquanto sua seção posterior é dedicada ao processamento de informações sensorial referentes à dor, à fome, à sede e ao toque; sua seção anterior se dedica à autoconsciência social e ao exercício da teoria da mente (o que inclui competências empáticas). Nessa fração anterior dedicada à inteligência social, o lado direito é ativado a partir de experiências que exijam resposta rápida do sistema nervoso simpático, tais como aquelas relacionadas ao comportamento agonístico, ao risco de vida, à ameaça ao status, à competição sexual; enquanto o lado esquerdo da ínsula anterior é ativado em situações emocionais de calma, nas quais os marcadores fisiológicos de resposta a ameaças são desativados. Ambas trabalham em oposição, e concorrem para a homeostase e para um senso unificado de consciência (Bauernfeind et al., 2013, pp. 263264). No tempo evolucionário, conhecemos a relação entre aumento do volume das regiões corticais, a neurogênese e a pressão por maior capacidade de processamento de informações. Nos grandes primatas, chimpanzés e humanos em particular, a região anterior esquerda do córtex insular, ligada ao manejo de conflitos e ao sistema nervoso parassimpático, apresenta forte perfil alométrico em relação ao volume cerebral como um todo (considerando uma taxa de crescimento homogênea para o cérebro em seu conjunto, a ínsula esquerda é de 5% a 22% maior do que deveria ser em caso de um desenvolvimento plasticamente isométrico). Além disso, a dimensão do córtex insular como um todo varia de acordo com o tamanho total do cérebro, algo esperado se considerarmos a conexão entre o processo de encefalização, o número médio de indivíduos em grupos sociais típicos, e a necessidade de gerenciamento de relações sociais (Bauernfeind et al., 2013, pp. 271-273).

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Então, a ampla centralidade dos jogos de status na vida coletiva dos chimpanzés, e o modus operandi desses primatas nessas interações, são suficientemente familiares aos observadores humanos a ponto de suscitar certo olhar antropomórfico em nossa leitura dessas formas de sociabilidade. Também é significativo, contudo, que não seja tão simples a “humanização” de nosso olhar a respeito do comportamento social de outras espécies mais distantes de nós na árvore evolucionária. Do vício de medirmos o mundo à nossa imagem e semelhança, devemos extrair conhecimento: nosso espanto diante do “maquiavelismo” chimpanzé, sem igual entre os grandes primatas africanos (excetuando o homem), e o modo pelo qual parece fazer com que nos deparemos com um desconfortável espelho, traz, subterrâneo, um problema filogenético. Hominíneos e paníneos compartilham dessa inteligência social modularizada, como condição primitiva. Mas essa inteligência modular entre os paníneos (e presumidamente, no UAC), a despeito de sua complexidade, parece suficientemente insulada da inteligência geral, e não interagir plenamente com outros domínios cognitivos. Se é verdade que todas as táticas parecem abertas rumo à dominância nos jogos de status, não há entre eles o uso, como entre os humanos, da cultura material com a finalidade de se obter vantagens na disputa por espaço na hierarquia. Ferramentas e objetos não são empregados por esses primatas com a finalidade de sinalização social, de expressão de interesses, de aspirações, de poder. Não ocorre entre eles qualquer dimensão “simbólica” da cultura material, que transmita imediatamente ao coletivo noções a respeito do lócus ocupado na pirâmide social, nem que permita dissimulação capaz de ocultar um status inferior. Então, se os jogos de status ocupam parte importante da vida ativa desses primatas, nem por isso a inteligência social modular é capaz de acessar plenamente domínios cognitivos alternativos, e de colocá-los ao seu serviço. Parece haver uma barreira que torna apartados o saber social e o comportamento a respeito do mundo material e natural; isso significa que podem interpretar e prever os raciocínios de outros no âmbito das disputas por prestígio, mas não são capazes de imaginar os pensamentos alheios quanto aplicados ao forrageamento e à elaboração de ferramentas. Assim, excluída do espaço social, a inteligência geral opera em domínios inconscientes, incapazes de gerarem uma autorrepresentação cognitiva, uma percepção mental daquilo que se sabe (Mithen, 2002, pp. 139-141). Essa condição psíquica, que torna a linhagem dos chimpanzés incapaz de mobilização simultânea e transdominial de competências, limitou um eventual perigo evolucionário representado pela violência coalizacional interssocietária, que é um fenômeno da mente modular social

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por definição. Não devemos esperar chimpanzés envenenando cursos d’água nem produzindo armas, em suas campanhas de extermínio contra grupos vizinhos. Ambas as ações requerem uma super-representação horizontal e fluída entre dois ou mais domínios cognitivos especializados. Uma exceção relativa, mas notória, deve ser feita no que tange à interferência de aspectos ligados à alimentação nas estratégias sociais, especialmente porque se relacionam ao resultado mais significativo do exercício da inteligência social modular, que é a resolução de conflitos internos. Ainda que a prática da caça envolva esforço cooperativo, o produto é apropriado inicialmente por apenas um dos machos, normalmente aquele que capturou efetivamente a presa. Entram em vigor nesse momento eficazes freios etológicos: o detentor do alimento é cercado por outros chimpanzés – muitos dos quais participantes da caçada –, que pacientemente estendem as mãos, solicitando a sua parte. O atendimento às demandas é influenciado pelas alianças políticas vigentes: se é o caso de um dos pedintes ser aliado subalterno do detentor da caça em sua luta pela dominância, ele receberá antes de todos a sua parte. Os demais podem receber ou não, de acordo com as demonstrações de submissão que apresentarem. Fêmeas não raras vezes emitem sinais somáticos e vocais de interesse sexual direcionados ao portador do alimento; este último provavelmente responderá de forma positiva, e incluirá a fêmea no conjunto dos beneficiários da partilha. Decerto não se trata de uma partilha de alimento igualitária: é o emprego de um recurso alimentar específico para fazer avançar a agenda política e reprodutiva dos machos, especialmente no que tange à exploração da vulnerabilidade energética feminina (Mithen,2002, pp. 140-141; Wrangham, Peterson, 1996, pp. 8-11). Mas em qualquer dos casos, que se ressalte o fundamental: ao invés de o acesso a um alimento especial gerar uma luta fratricida, entre os chimpanzés, manifestam-se rapidamente normas etológicas que se prestam à resolução e redução de conflito letal. A transmissão filogenética do comportamento gregário permanente, quando somada a condicionantes ambientais conducentes à dispersão espacial feminina, poderia ter sinalizado negativamente para a preservação dos laços de parentesco masculino e feito ressurgir os grupos multissexuais instáveis; tal desdobramento evolucionário hipotético, supondo-o plausível, teria sido então obstado pelo acelerado desenvolvimento de uma inteligência social modularizada, capaz de regular, ritualizar e modelizar o conflito reprodutivo entre machos consanguíneos, permitindo não só que se mantivessem

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socialmente coesos, mas que alcançassem um grau diferenciado e incomum de cooperação. Vemos, assim, nas relações intragrupo, como normas de demarcação de status e de contestação da ordem funcionam como mecanismos de regulação de conflitos, permitindo demonstrações de força, de intimidação e de subterfúgio sem a produção de danos físicos necessariamente letais entre machos aparentados. O grau reduzido de dimorfismo sexual em P. troglodytes, quando comparados aos gorilíneos, sugere uma competição reprodutiva menos intensa. O mesmo, contudo, não pode ser dito das relações interssocietárias, entre grupos de chimpanzés com algum grau de parentesco em potencial, mas social e politicamente apartados. Tal como os mecanismos de regulação de conflitos internos introduziram um componente coletivo e social nas chances de sucesso reprodutivo entre os paníneos (já que todos se beneficiam simultaneamente da gregariedade, simultaneamente minimizando os riscos letais do comportamento agonístico sexual masculino), uma mesma dimensão coletiva rege as relações entre grupos, marcadas pela violência coalizacional. Eliminar machos “estrangeiros” e desarticular a coesão das comunidades vizinhas são o resultado das frequentes incursões violentas de bandos cooperativos formados por maioria de machos, e esse resultado conduz eficazmente à incorporação de fêmeas ao grupo vencedor (seja por migração delas, seja pela possibilidade de avanço pelos territórios por onde elas forrageiam, uma vez descartada a ameaça de retaliação inimiga). Com esse resultado, a relativa promiscuidade que norteia as relações poliginândricas numa sociedade panínea, e o menor nível de privilégio sexual dos machos dominantes, abrem uma frente de oportunidades para que todos os combatentes aumentem seu fitness reprodutivo uma vez engajados nas coalizões violentas, e ampliem o número de fêmeas férteis disponíveis. E nesse caso, ao contrário do que ocorre nas relações internas, não parece haver qualquer conjunto de normas etológicas que estabeleçam os limites até onde o exercício do poder sobre comunidades vizinhas possa chegar; não há instrumentos redutores de conflitos, possibilidades de “acordos de paz”, ou demarcação de fronteiras. Se a luta interna pelo status se interrompe (ainda que temporariamente) com o reconhecimento da derrota pelo vencido, os choques interssocietários só se encerram com a eliminação social de uma das comunidades em guerra.

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Situações de conflito letal foram observadas, documentadas e analisadas por equipes primatológicas em diferentes momentos, em Gombe (Tanzânia), Niokola-Koba (Senegal), Taï (Costa do Marfim), Kibale (Uganda) e Mahale (Tanzânia) A principal matriz do conflito interssocietário está na fissão de grupos sociais de paníneos, levados ao limite socioambiental. Nessas circunstâncias, uma disputa interna por poder pode precipitar uma ruptura; uma de suas primeiras manifestações pode ser a segmentação de dois grupos de relacionamento mais frequentes, com certos indivíduos se deslocando, forrageando e praticando o grooming sempre com os mesmos parceiros, em detrimento de outros. Essas duas facções, ainda que permaneçam associadas por algum tempo, demonstram predileção ou pelo macho dominante estabelecido, ou por seu desafiante. Progressivamente, as ocasiões de agrupamento (para grooming, descanso, etc.) se tornam tensas, manifestando-se nítida fratura no espaço ocupado, com os bandos estabelecendose em lados opostos. Nesse quadro, os machos mais idosos, muitos dos quais já incapazes de lutar pela dominância, podem permanecer refratários à cisão por mais tempo, mas com o passar do tempo, uma separação completa dos grupos toma lugar, com a formação de dois territórios de forrageamento delimitados, e limítrofes. A partir da fragmentação total em dois grupos distintos, algum tempo leva para que se organizem, periodicamente, pequenos bandos temporários, incitados por um dos machos, ou especialmente pelo macho dominante. Há ritualização nesses atos, percorrendo o “agente provocador” as áreas ocupadas pelo grupo maior, gerando ruidosas vocalizações, arrastando galhos, tudo isso com o objetivo de provocar etologicamente os demais. Se for bem sucedido, logo o líder parte com outros machos, e eventualmente uma ou duas fêmeas jovens e sem filhotes, em direção ao território do grupo vizinho. Essas incursões em território alheio não são defensivas, nem são reativas; não há qualquer fator externo evidente, e de curto prazo, que as produza. Nem sequer se confundem com a prática do forrageamento: há registro de oportunidades de alimentação deixadas para trás no caminho em direção à zona habitada pelo grupo “inimigo”, e nenhuma evidência de consumo de alimentos nessa marcha. Esses pequenos bandos, organizados com aparente intuito específico, patrulham seu próprio território com certa calma, parando para ouvir, subindo em árvores para ver à distância, e descansando. Ao identificarem marcadores no terreno que indicam a proximidade do território alheio, o comportamento do bando tende a se alterar, fazendo silêncio e depositando total atenção

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sensorial no espaço ocupado pelo adversário. Podem eventualmente vocalizar, na expectativa de obterem resposta de algum bando inimigo. Quando isso acontece, demonstram clara tensão, amenizada por meio de uma ritualística voltada para assegurar a confiança e a cooperação, consubstanciada em toques e abraços. Chimpanzés devotam grande atenção sensorial para avaliar o risco representado por um grupo inimigo, e nunca atacarão se tiverem a certeza de que estão em menor número. Se por vezes a prospecção do risco falha, e, na expectativa de encontrar um oponente solitário, um grupo hostil é encontrado, a retirada é apressada. Na certeza de encontrar o adversário em menor número, o avanço pelo seu território é igualmente ligeiro. A espacialidade dos recursos naturais é ocasionalmente cruel com os chimpanzés, dado que, para forragear, os indivíduos precisam se afastar razoavelmente uns dos outros. Essas são ocasiões frequentes nas quais machos solitários são atacados e mortos pelo bando invasor, que coopera, arremetendo em carga contra o inimigo. Se mais de um adversário é encontrado, é frequente que o bando atacante tente isolar um deles, repelindo os demais. Se há fêmeas entre os agressores, ou machos muitos jovens, normalmente só observam, ainda que exista caso documentado de fêmea engajando-se em atividade letal. Assegurada a morte do oponente, permanecem pouco mais tempo no território alheio, até retornarem para seu lugar de origem. No caso de haver fêmeas no bando atacado, elas podem ser coagidas, através de demonstrações de força, a deixarem seu grupo original e se juntarem aos agressores 29 (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 5-16). Essa dinâmica pode se repetir inúmeras vezes durante anos seguidos, até que todos os machos de uma comunidade tenham sido mortos, incluindo os jovens e os anciãos. Ataques mais violentos podem envolver demonstrações etológicas intrigantes, como a emasculação de um adversário ainda vivo, e o consumo de seu sangue, partilhado entre um macho mais experiente e outro mais jovem. Fêmeas mais velhas podem também ser eliminadas após as defesas serem minadas, enquanto as mais jovens podem sofrer recorrente violência física não letal, promovida pelos machos invasores, até que aceitem se juntar a eles. Os primeiros filhotes nascidos das fêmeas férteis recém-abduzidas poderão ser eliminados pelos machos em conjunto30, neutralizando os genes paternos provenientes do grupo adversário. Os filhotes seguintes a esses, sendo asseguradamente

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Como documentado nos choques entre as comunidades de Kasekela e Kahama, em Gombe, Tanzânia. Como documentado na eliminação do grupo K pelo grupo M em Mahale, Tanzânia.

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fruto de cópulas ocorridas no novo contexto social, seguirão incólumes, especialmente porque regimes poliginândricos permitem às fêmeas ocultar a paternidade de sua prole, minimizando o impulso a tendências infanticidas intragrupo (Wrangham, Peterson, 1996, pp. 17-18; 158-159; 166). Na origem da violência interssocietária está, então, o processo de fissão dos grupos sociais, presumidamente manifesto entre os grandes primatas africanos desde algum ponto entre as divergências de gorilíneos e paníneos. Em tese, podemos postular que agrupamentos de primatas poderiam crescer indefinidamente enquanto fossem suficientes os recursos naturais efetivamente exploráveis, considerando as variáveis motoras e morfológicas relevantes. Num cenário de oferta de alimentos espacialmente homogênea e nutricionalmente equilibrada, à expansão dos grupos se seguirá a ampliação do território de forrageamento a ser percorrido pelo coletivo como um todo, que manterá as vantagens da gregariedade enquanto atende às suas necessidades energéticas. Quanto maior for a heterogeneidade espacial da distribuição dos recursos, bem como da qualidade nutricional dos mesmos, maior será a pressão para a fragmentação social, tendo como caso limite a instituição de relações monogâmicas, e como solução intermediária a fissão dos grupos de chimpanzés seja em bandos temporários menores (voltados para o forrageamento). (Aureli et al., 2008, p. 627; Wrangham, Peterson, 1996, pp. 168-170). Diferentemente dos gorilíneos, capazes de se alimentar em tropas estáveis e coesas, dada a maior homogeneidade espacial na distribuição das folhas e frutos que consomem, aos paníneos é dificultada uma refeição em família ou entre amigos, o que cria uma vulnerabilidade particularmente grave quando se está suscetível à violência letal por parte de seus vizinhos. São na fragmentação temporária e na formação de coalizões masculinas, ambas surgidas sob pressão do ambiente, que repousa parte do problema da violência interssocietária na linhagem do último ancestral comum entre homens e chimpanzés. A agressão letal intraespecífica não chega a configurar um fator etológico atípico; em muitas espécies indivíduos levam à morte seus semelhantes, ainda que na maioria esmagadora dos casos, isso envolva a prática do infanticídio, ou a disputa por recursos realmente escassos. O confronto entre machos ou fêmeas adultas, envolvendo competição sexual ou nutricional, normalmente ocorre na forma de duelos, que não necessariamente envolvem violência física (podendo estar restritos a sinalização de força, demonstrações de poder, etc.),

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terminando quando um dos lados reconhece sua derrota, e renuncia ao prêmio. Assim, precisamos reconhecer que a violência interssocietária coalizacional manifestada entre os paníneos – e presumidamente no UAC – vem a se manifestar em decorrência da vantagem numérica. Matar, em dimensão etológica, é um ato que precisa envolver riscos controlados. Nenhum um organismo adulto é capaz de, deliberadamente, levar à morte outro organismo adulto de sua mesma espécie sem correr o alto risco de se tornar vítima, antes de algoz; é por isso que o infanticídio surge como uma estratégia etológica de baixíssimo custo, caso inexistam outros indivíduos maduros dispostos a empreender a defesa. Os haréns se constituem também como forma de impedir o atentado de machos migrantes contra os jovens, através da capacidade agonística do macho dominante. Entre os chimpanzés, é a paternidade imprecisa que leva a coalizão de aparentados a proteger coletivamente os filhotes contra outros grupos hostis. Então, não há qualquer prêmio evolucionário em buscar a morte de um oponente (tiro que pode, efetivamente, “sair pela culatra”) se o objetivo do comportamento agonístico – fêmeas, alimento – for conseguido por menos. O equilíbrio de poder é, etologicamente, um instrumento eficaz para frear a violência letal; e justamente esse equilíbrio é rompido com a estratégia coalizacional. Grupos cooperativos que se lançam sobre indivíduos isolados raramente sofrem qualquer tipo de dano; o emprego da força massiva, do cerco e do isolamento do inimigo, reduzem o custo da violência letal ao mínimo. Nesse caso, garantir uma agenda reprodutiva por meio da aniquilação dos oponentes passa a ter retornos etológicos positivos (Roscoe, 2007, pp. 485-486; Wrangham, Peterson, 1996, pp. 6-7; 162-165). Mas tudo isso não contempla a fissão permanente dos grupos sociais de chimpanzés, matéria-prima mor da guerra em perspectiva etológica. Voltemos à eclosão da inteligência social especializada na linhagem do UAC. A escalada da incerteza, motivada pela ruptura da sociabilidade arnica e pela menor perceptividade do lócus de dominância masculina, todas elas relacionadas às transformações ambientais do Mioceno Tardio, foi o provável fato gerador da modularização mental entre os chimpanzés e os hominíneos. O desenvolvimento encefálico e da capacidade de processamento cerebral dedicada à análise do mundo social, certamente esbarrou em limites físicos e energéticos inescapáveis. O número de relações sociais que podem ser registradas e analisadas simultaneamente não é infinito. As dimensões do neocórtex cerebral, dos grupos sociais, e do tempo dedicado à manutenção das relações sociais (através do grooming) estão bem associados. Assim, quando o número de relacionamentos a serem monitorados supera

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certo limite, imposto pela morfologia e pelas dimensões neocorticais, a coordenação e a cooperação se tornam menos viáveis, e a fissão permanente emerge como resposta (Aiello, Dunbar, 1993, pp. 184-185). Uma vez alcançados os limites físicos de uma inteligência social modular operando em cérebros de cerca de 400 mm3, os indivíduos passam a não ser capazes de registrar e processar informações sobre o lugar na hierarquia de todos os seus associados, algo que se manifesta pelo crescente estranhamento e facciosimo das escolhas do uso do tempo social (especialmente do grooming). Nesse caso, a demografia pode se entendida como um fator de estresse ambiental, catalisador de comportamento agonístico (Ferguson, Beaver, 2009, p. 291). As lutas pela dominância interna precipitam a fissão; com ela, procede-se ao esvaziamento da bolha representada pela crescente demanda por processos mentais simultâneos e especializados no âmbito da inteligência social, fato causador de comportamento anômalo e de sofrimento emocional (Aureli et al., 2008, p. 637). O número de relações sociais simultâneas a serem acompanhadas retorna a níveis manejáveis. Já os “estrangeiros”, leia-se, os indivíduos que passam a pertencer a um espaço distinto, não têm lugar nas relações hierárquicas internas, e, portanto, não são objeto da intrincada rede de processos neurais voltados para o gerenciamento de conflitos. Nesse contexto, os membros desligados do grupo passam a ser tratados como animais de caça. Há relevante evidência de que chimpanzés em guerra, em seu habitat natural, emitem sinais vocais e somáticos que coincidem com o ato de encontrar e perseguir uma presa em fuga, mostrando mais uma interface, ainda que simplificada, entre a inteligência social modularizada e os domínios gerais empregados nas estratégias de forrageamento. Ainda que se possa argumentar que o processo de “dechimpization”

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é um artifício

aprendido socialmente, e que se presta a abafar uma suposta aversão desses primatas ao assassinato de coespecíficos (Roscoe, 2007, p. 491), devemos considerar que comportamentos “culturais” desenvolvidos pela inteligência geral através de aprendizado observacional, são populacionalmente restritos, enquanto há suficiente universalidade desse traço para postulá-lo como resposta etológica no âmbito da inteligência social modular. Então, nos parece mais provável que seja o “descarte” de excesso de informação social, que sobrecarrega a cognição modularizada, o fato que leva ao reenquadramento

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Algo como “des-chimpanzeização”.

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do status dos membros desligados do grupo, que passam a ser situados fora da pirâmide social e tratados como animais de caça. Não só a ressignificação da natureza do “inimigo”, mas o conteúdo dessa própria ressignificação, são provavelmente instrumentos etológicos voltados especificamente para deflagrar respostas simpáticas associadas ao engajamento violento e à eliminação física do oponente; isso porque, em tese, nada parece impedir que ignorem socialmente outros organismos. Chimpanzés altamente excitados pelos marcadores sensoriais que indicam a proximidade da fronteira de seu território, e ainda mais alarmados pela detecção de sons que podem indicar a presença do perigo, rapidamente são varridos por respostas parassimpáticas ao perceberem que o que produzia os sons era apenas um babuíno, e não outro chimpanzé. Babuínos são animais violentos, podem representar uma ameaça mortal, e podem lutar violentamente contra chimpanzés em disputa por alimentos (Wrangham, Peterson, 1996, p. 15; 179). Então, o grupo não retorna à calma dada a uma suposta inofensibilidade do primata transeunte, mas sim porque a presença dele não é capaz de deflagrar o conjunto de gatilhos etológicos relacionados à violência coalizacional interssocietária. O babuíno, simplesmente, não é um “inimigo”. Chimpanzés excluídos de um grupo, e integrantes de outro, pertencem, do ponto de vista dos primeiros, ao campo do não social, e manifestam a incerteza e a ameaça em seu mais alto grau: ao não fazerem parte da hierarquia, não fornecem dados que permitam a formulação de hipóteses, que por sua vez permitam o alinhamento de estratégias sociais com base na posição ocupada por aquele indivíduo; não reconhecem os espaços de dominância, justamente por operarem em um espaço hierárquico externo ao grupo; não são objeto dos mecanismos etológicos regulares de pacificação. Infensos à “ordem” interna, representando o caos de um mundo privado de mecanismos de regulação de conflitos, e sujeitos ao exercício nada custoso da violência coalizacional letal promovida por seus inimigos, ao “estrangeiro” resta a aniquilação e a incorporação de suas fêmeas férteis ao campo ordenado das relações sociais mentalmente monitoradas, até que o crescimento demográfico reinicie o ciclo, mais uma vez. Em comparação com H. sapiens ou mesmo com P. paniscus (o chimpanzé-pigmeu, ou bonobo, evolucionariamente mais jovem que o chimpanzé comum, e dele derivado), o volume total da ínsula agranular anterior, responsável pela autoconsciência social e pela teoria da mente, é menor quando considerado a massa corporal. Ligada à consciência

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subjetiva a respeito do próprio estado emocional e à capacidade empática, parece natural que tanto P. troglodytes quanto o último ancestral comum entre eles e os humanos tenham encontrado, em termos comparativos, limites bastante tênues quanto à expansão de comportamentos prossociais, ou mesmo ao estabelecimento de relações de reciprocidade entre machos não aparentados. Além disso, a assimetria entre os lados esquerdo e direito do córtex insular anterior nos chimpanzés (e presumidamente no UAC) acaba por privilegiar a ativação do sistema nervoso simpático, o comportamento de desafio e o comportamento agonístico (Bauernfeind et al., 2013, pp. 275-276). Ainda que detentores de um potente sistema cognitivo modularizado em benefício da inteligência social, a dinâmica de fissão-fusão social em P. troglodytes e sua relação com a violência interssocietária parecem denunciar inequivocamente seus limites. Essa pesquisa dialoga, primariamente, com a produção do chamado “Período Recente” acerca da origem da guerra, segundo o recorte elaborado por Keith Otterbein (Otterbein, 2000), marcada pela presença da primatologia no debate, em suporte a determinado conjunto de formulações antropológicas que se voltam em favor da defesa da existência da “guerra primitiva”. Entretanto, ainda que essa dimensão não fique clara nesse primeiro produto do projeto, a hipótese geral que o norteia tenta manter uma equidistância crítica tanto em relação à postura assumida pelos “hawks” (ou seja, autores que advogam em favor da guerra enquanto expressão de um comportamento inato e incontornável) quanto pelos “doves” (que, sem delongas, buscam certa revivescência da ideia do “bom selvagem”), e isso diz respeito especialmente ao fato de que, em última instância, o que se busca com essa investigação é lançar hipóteses sobre a guerra entre as sociedades humanas. Assim, nos parece simplista a cisão entre a defesa de uma dimensão etológica para o comportamento violento (Ferguson, Beaver, 2009), explicações outras que buscam uma dimensão ambiental, cultural ou adquirida desse mesmo comportamento, ou outras ainda que invocam a aversão, entre humanos, ao assassinato de coespecíficos (Roscoe, 2007). A eclosão da modernidade comportamental na história evolutiva mais recente de H. sapiens (40 ma, aproximadamente) foi trazida pela expansão de domínios mentais modularizados (técnicos, naturalistas, sociais, linguísticos), e pela sua interconexão em um campo fluido, metarrepresentacional, no qual as fronteiras entre eles são diluídas. A expansão da autoconsciência (social), amalgamada à consciência acerca da existência de um mundo “exterior” (técnico, naturalista) é fruto dessa potente rede cognitiva manifestada pelo módulo de metarrepresentação (Mithen, 2002, pp. 308-309), e

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significou, na mente do homem moderno, a operação de processos paralelos e potencialmente críticos ao conhecimento etológico, ainda presente, em cada um dos domínios cognitivos especializados, bem como na inteligência geral. A noção de que comportamentos etológicos filogeneticamente transmitidos não podem ser controlados voluntariamente pelo empenho da mente metarrepresentacional (Ferguson, Beaver, 2009, p. 287) são equivocados, embora essa capacidade de regulação não deva ser tomada como automática, ou à prova de falha. Dessa forma, a existência de uma etologia da guerra, transmitida filogeneticamente desde o último ancestral comum entre humanos e chimpanzés, e associada às peculiaridades da operação da inteligência social modularizada, certamente não é suficiente para solucionar as indagações de por que H. sapiens vai à guerra, já que processos cognitivos metarrepresentacionais, únicos dessa espécie (consciência holística, racionalidade, abstração) atuam como firme instância dialética. Da mesma maneira, explicações culturalistas ou racionalistas consolidadas em parte majoritária da historiografia da guerra soam igualmente como insuficientes. Uma compreensão profunda e renovada do fenômeno da violência coalizacional interssocietária entre as sociedades humanas, que leve em conta o emaranhamento entre as dimensões cultural-racionais e o inconsciente, requer, então, um firme esforço interdisciplinar que articule as bases já consolidadas no campo das ciências humanas e sociais, às ciências naturais e biológicas, e à psicologia analítica.

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Apêndice Figura 1. Evolução dos padrões de sociabilidade

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Figura 2

Proconsul nyanze Reconstituição pelo paleoartista Nobu Tamura Protegida sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0

Figura 3

Proconsul heseloni Natural History Museum, Londres. Fóssil KNM RU 7920 Protegida sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0

Figura 4

Afropithecus turkanensis Museum Histoire Naturelle, Paris Foto de Diego Sala Protegida sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0

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Figura 5

Afropithecus turkanensis Reconstituição forense pelo paleoartista Viktor Deak

Figura 6

Sivapithecus sivalensis Museum Histoire Naturelle, Paris Foto de Diego Sala Protegida sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0

Figura 7

Pongo pygmaeus Foto por Roger Smith (2011) Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-2.0

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Figura 8

Pongo abelii Foto por Michael Gwyther-Jones (2014) Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-2.0

Figura 9

Pongo abelii Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-2.0

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Figura 10

Gorilla gorilla Protegida sob licença Creative Commons CC BY-SA 3.0 https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Eyes_of_gorilla.jpg

Figura 11

Gorilla gorilla Zoológico de Cincinnati, setembro de 2005 Foto de Kabir Bakie Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-SA-2.5

Figura 12

Gorilla gorilla Port Lympne Wildlife Park, Kent, Inglaterra, julho de 2006 Domínio público

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Figura 13

Pan troglodytes Foto de Foshie (2009) Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-2.0

Figura 14

Pan troglodytes Foto de Chi King (2007) Protegida sob licença Creative Commons CC-BY-2.0

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Figura 15 – Modelo de distribuição espacial de recursos

A - Recursos de alta qualidade, desconcentrados no espaço. Não há necessidade de concentração de fêmeas em patches; isso faz sobressair a vantagem, para as fêmeas, de forragearem sozinhas, e garantirem para si recursos nutricionais, evitando inclusive a competição com fêmeas aparentadas. Grupos instáveis se formam para segurança e observação. Machos dispersam de seus grupos de origem chegando à maturidade, bem como as fêmeas. B - Recursos de alta qualidade concentrados em manchas homogêneas, uniformes, e de grande extensão, acompanhados de recursos de qualidade mediana. Fêmeas aparentadas se concentram nessas manchas de alta qualidade, que são suficientes para que se alimentem juntas, desde que mantidas distantes as fêmeas não aparentadas. Prevalece a defesa do pool genético. Machos não aparentados ficam ao redor dessas fêmeas. C - Recursos de alta qualidade estão intensamente concentrados em manchas uniformes. Fêmeas aparentadas se reúnem; nessas condições, um macho sozinho é capaz de controlar o território de forrageamento desse grupo de fêmeas, e estabelecer um harém. Perfil presumido em Proconsul sp., Afropithecus sp., Gryphopithecus sp., Kenyapithecus sp. e Graecopithecus sp. D - A qualidade dos recursos diminui, sendo mantido o padrão de distribuição. Grupos de parentesco feminino, se presentes, conduzem à disputa por energia entre fêmeas aparentadas, e por isso são desprivilegiados evolucionariamente. Fêmeas dispersam espacialmente em busca de patches de energia de média qualidade. Solidariedade entre as fêmeas decai. Oportunidade para haréns continuarem, dessa vez com patrilinearidade. Coincide com o padrão de sociabilidade de Gorilla sp. E - Distribuição dos recursos se torna heterogênea, e desconcentrada no espaço. Grupos de parentesco feminino, já esgotados anteriormente, tornam-se ainda menos possíveis, bem como os haréns. Não é possível para um macho solitário dominar as fêmeas numa mesma área, já que se espalham para aproveitar os recursos de qualidade mediana, e os poucos de alta qualidade. Controle por um macho se torna impossível, mas patrilinearidade se preserva. Coalizões de machos aparentados para dominar as fêmeas dispersas. Coincide com o padrão de sociabilidade de P. troglodytes. F- Distribuição dos recursos por demais rarefeita condena a sociabilidade permanente. Entre Pongo sp., leva à dispersão feminina, à ocupação individual, pelas fêmeas, de zonas dotadas de recursos, e à formação de superterritórios masculinos.

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Figura 16 – Cladística Critério 1 (com pouco ou nenhum suporte atualmente) Família

Hominid ae

Gênero

Homo

Pongo

Pongidae

Gorill a Pan

Critério 2 Família

Subfamília

Hominina e

Tribo

Subtribo

Gênero

Panini

Panina

Pan

Hominini

Hominin a

Homo Gorilla

Gorillini

Hominid ae Ponginae

Pongo

Critério 3 (empregado neste estudo) Família

Subfamília

Tribo Panini

Hominina e

Subtribo

Gênero

Panina

Pan

Hominina

Homo Ardipithecus

Homini ni

Australopitec ina

Orrorin Sahelanthropu s

Hominid ae Gorillinae

Gorillini

Ponginae

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Gorilla

Pongo

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Mapa 1 - O velho mundo por volta de 52 Ma

Mapa do autor, elaborado a partir da pesquisa cartográfica de SCOTESE, 2013

Mapa 2 – África e Eurásia, por volta de 19 Ma

Mapa do autor, elaborado a partir da pesquisa cartográfica de SCOTESE, 2013

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Mapa 3 – Primeiras migrações de antropoides para fora da África, a partir de 16 Ma

Mapa do autor, elaborado a partir da pesquisa cartográfica de SCOTESE, 2013

Mapa 4 – Ásia Meridional – Expansão dos Pongíneos – a partir de 12 Ma, aprox.

Mapa do autor, elaborado a partir da pesquisa cartográfica de SCOTESE, 2013

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Mapa 5 – Migração dos grandes símios de volta à África, a partir de 10 Ma, aprox.

Mapa do autor, elaborado a partir da pesquisa cartográfica de SCOTESE, 2013

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