A Filosofia da Paz no Pensamento de Santo Agostinho

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1   A FILOSOFIA DA PAZ SEGUNDO ST. AGOSTINHO Intervenção na Faculdade de Ciências Sociais e Políticas da UCM de Quelimane, pela Ocasião do Dia do Padroeiro (28. 08. 2015)

Introdução Em resposta ao convite que me dirigiu o digníssimo Decano desta prestigiosa instituição acadêmica, o Prof. Doutor Armindo Tambo, para tomar parte activa nestas celebrações da festa do padroeiro da UCM - a quem agradeço pelo convite -, encontro-me, com temor e tremor, diante de vós, para falar da “Filosofia da Paz no Pensamento de St. Agostinho”. Temor e tremor porque estudar St. Agostinho é entrar num enorme “santuário” de saber, onde seria necessário descalçar – não os sapatos, mas os nossos prejuízos -, e também porque teimo de permanecer aquém das vossas expectativas. Definição dos Termos e Conceitos A palavra “paz” provém do termo latino pax, pacis. E a nossa concepção moderna da paz está ligada, embora sendo distinta, a algumas concepções clássicas da paz. A pax romana, por exemplo, era uma ordem imposta pela conquista e submetia os súditos de Roma aos ius gentium. Esse tipo de paz, assim como as suas metamorfoses modernas, dá a entender que ela é uma ordem imposta pelos poderosos. Ainda hoje, sobretudo nos países chamados do Terceiro Mundo, como o nosso, a prática da utilização da força militares para instaurar ou manter um poder político, mesmo quando é difusamente considerado ilegítimo ou odiosos, é comum. Em contrapartida, no capítulo XII, do Livro XIX, da sua principal obra da filosofia política - De Civitates Dei (413-426) – Agostinho apresenta-nos a paz como um bem desejado e não uma ordem imposta. A propósito, Agostinho salienta que “o bem a que chamamos paz é tal que nas coisas humanas não é possível desejar outro mais alegre ou mais útil”. Todavia, embora se trate de um bem universalmente desejado, ele permanece sempre um desafio porque está frequentemente ameaçado pela expansão contínua das paixões e desejos mesquinhos. Daí a necessidade sentida pelo Bispo de Hipona de identificar e qualificar as principais razões que explicam a ausência ou a precariedade do precioso bem da paz. Atendendo e considerando que ainda hoje, a paz continua ameaçada, tanto no nosso país como em muitos outros quadrantes do mundo, por aquilo que St. Agostinho denominou paixões desordenadas e desejos mesquinhos, convido-vos, não a contemplar passivamente o pensamento de Agostinho, come se se tratasse de uma obra de arte colocada num museu, mas, guiados por ele, convido-vos a considerar as razões que frequentemente atentam contra a paz, no nosso país e em muitos outros países do mundo.

 

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Aliás, este é o distintivo específico do pensamento filosófico. O que faz com que um determinado pensamento seja denominado filosófico é a sua capacidade de transcender o espaço e o tempo em que nasceu, suscitando, desse modo, nova reflexão, problematização e conceitualização, dotados de caráter universal e, portanto, objectivos. A “filosofia de Paz” de St. Agostinho, e o seu pensamento político, em geral, foram nutridos pelo estudo da Sagrada Escritura e da Filosofia grega, sobretudo dos neoplatônicos, dos neopitagóricos e dos estoicos, dos epicúrios e dos acadêmicos. Graças ao longo e tortuoso percurso intelectual e espiritual, feito antes da sua conversão ao catolicismo, o pensamento filosófico de St. Agostinho é livre do dilema fé ou razão, teologia ou filosofia, unindo, sem sobrepor, as duas grandes culturas da antiguidade. Além de Platão e do platonismo, Agostinho conhecia também as obras de Virgílio, de Terêncio e de Cícero, entre muitos outros. Sob o influxo de Platão, de Plotino e de Porfírio, ele identificou pontos de contato entre o cristianismo e o platonismo, como por exemplo, no que se refere à noção do “Sumo Bem”. O “amor próprio” e o “amor do Bem Supremo” A partir da noção do “Bem Supremo”, Agostinho constata que a humanidade vive sob a tensão de duas maneiras de amar distintas – o amor próprio e o amor do Bem Supremo que, por sua vez, são responsáveis pela paz ou pela discórdia na sociedade. Ele analisa, nitidamente, as características desses dois amores nas suas duas principais obras de carácter político-social: De Civitates Dei e De Gênesis ad Litteram. O amor próprio impede a concórdia social, pois impele e conduz os membros da sociedade somente pela via do individualismo e do egocentrismo soberbo. Por isso recebe o nome de amor privado, porque reduz o horizonte humano apenas ao âmbito pessoal, desprezando a dimensão da comunhão com Deus ( o Sumo Bem) e com o próximo, suscitando assim os conflitos e as divisões na sociedade, os quais dificultam a implantação da paz. A rejeição do Bem Supremo ocasiona o surgimento de todas as calamidades da história, inclusive as guerras que assolam a vida dos povos. Para Agostinho o amor do Bem Supremo é o único caminho que o homem deve escolher para salvaguardar e restaurar a paz e o justo convívio na sociedade, porque deste amor do Bem Supremo brota o interesse pelo bem comum que promove a comunhão, a unidade e a paz. A paz só é possível quando se procura o verdadeiro bem-estar de todos e se combate o desejo de poder e vangloria pessoais. Segundo Agostinho, o “amor próprio” não é inocente ou indiferente; ele representa uma fraude e um engano, frutos da soberba e da vaidade humana, originada pela rebelião da criatura contra o Criador. O ser humano foi criado não para amar a si mesmo, vivendo como se não existisse um “Bem Supremo”, e nem para utilizar o seu próximo como meio

 

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para a realização de seus projectos mesquinhos e inescrupulosos. De facto, tal insubordinação ao “Sumo Bem” que se materializa no “amor próprio” subtrai a paz e a unidade nos indivíduos e na sociedade, semeia o ódio e a divisão do tecido social e gera as injustiças e as guerras. Educação para a Paz Fundado naquela ontológica e imortal frase do capítulo XII, do Livro XIX de De Civitates Dei, que já citamos anteriormente e, segundo a qual, o “bem a que chamamos paz é tal que nas coisas humanas não é possível desejar outro mais alegre ou mais útil”, Agostinho procurou oferecer alguns critérios de acção para que a paz seja possível. O comportamento a ser adoptado para a educação e construção da paz é também conciliável com a natureza humana. Da mesma maneira como o ser humano é beneficiário de um “direito natural” que se posiciona acima de qualquer direito positivo, assim, ele é também sujeito a uma “lei natural”, universal e impressa em todo o gênero humano, independentemente da raça e da cultura. Com efeito, não poderia haver direito onde não houvesse lei. Enquanto o “direito natural” é uma força inata no ser humano, como a religião, a piedade, a gratidão, a punição ao mal, o respeito e a sinceridade nas relações sociais e, dele depende o acordo entre duas pessoas, o reconhecimento da igual dignidade de todos; a “lei natural”, para Agostinho, corresponde a um conjunto de princípios e normas que expressam a lei eterna no espírito dos seres humanos. Aderindo aos ditames da razão, a “lei natural” torna-se um imperativo da justiça, que se manifesta nas diversas dimensões da vida humana, inclusive no aperfeiçoamento das relações sociais. Atendendo e considerando que a “lei natural” reconhece a ordenada disposição dos seres inferiores e superiores, dos iguais e dos diferentes, nos seus diversos lugares, segundo Agostinho, através da inteligência, dom de Deus, os seres humanos podem, iluminados pela fé, alicerçar a própria acção sobre princípios racionais. Desse modo, a educação serviria à causa da paz, se ensinasse os usos e costumes de tal forma que eles não desviem os membros da sociedade do fim último para o qual foram criados, que é fruir do “Sumo Bem”. Portanto, a educação (modus vivendi) deve ajudar os seres humanos a tomar consciência daquele princípio interior presente em cada ser humano, que diz: “evita o mal e faz o bem”. A autêntica paz jorra da aplicabilidade desse ditame moral, pois, na verdade, quem procura o bem do outro, supera o mal do egoísmo e se torna arauto da concórdia e da paz. Agostinho argumenta que, assim como os bons usos e costumes corroboram em prol da paz, os maus usos e costumes constituem uma inversão da ordem das coisas que se amam, e

 

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acarretam as guerras e os infortúnios para a humanidade. O pior dano que um indivíduo ou um governo perverso pode fazer à sociedade não é tanto o quantificável, mas o inqualificável, representado pelos usos e costumes. Agostinho acrescenta dizendo que nenhuma cidade pode manter-se por muito tempo de pé, se não estiver fundada sob costumes morais sólidos e verdadeiros. A Pacificação da Civitas No capítulo XVI do Livro XIX da De Civitates Dei, quando se refere ao espaço público como espaço concreto onde se constrói a paz, Agostinho afirma que a base da “paz civitas” é a família e, por isso as regras que fazem parte da vida familiar, devem estar em sintonia com as leis e a praxis do Estado. De facto, enquanto os pais continuassem, por exemplo, a ensinar as crianças que a mentira, o roubo, a desonestidade e prepotência são vícios perversos, e os servidores públicos continuassem a distinguir-se pela vizinhança com os mesmos vícios condenados por seus pais, tornar-se-ia difícil a pratica da boa conduta social. A outra condição para a consecução da instauração da paz – quer na “Domus” como na “Civitas” – é que haja uma autoridade responsável pela promoção do bem comum. Tal autoridade, deve obter, da parte dos cidadãos, a obediência. Todavia, a obediência que Agostinho destaca não é motivada por um temor servil, mas pelo amor zeloso e diligente daqueles que detêm a autoridade. De facto, o uso da força repressiva é o principal sinal da perda de legitimidade. Por isso, para os filósofos políticos contractualistas, o governo que viola o contracto celebrado com os cidadãos, e faz uso da força, cessa, automaticamente, de ser um governo e pode ser tratado como um agressor. Dentro do quadro legal da relação entre os governantes e os governados, Agostinho acrescenta a necessidade de existir o espírito de colaboração que se manifesta através do esquecimento de si em prol do outro e da comunidade, ou seja, um espírito impregnado de altruísmo e caridade fraterna, porque onde existe um empenho para socorrer as necessidades comuns e se busca a interação entre os interesses pessoais e os comunitários, as armadilhas do egoísmo são vencidas e a paz torna-se visível. A vivência da justiça, por parte do Estado, se dá quando aqueles que governam canalizam os seus esforços em prol de seus súbditos, não permitindo que os seus projectos pessoais se sobreponham às necessidades dos governados. É dentro desta tese argumentativa que se insere a crítica que o Bispo de Hipona move contra o império romano e, assim, funda a construção da sua defesa do cristianismo, acusado pelos pagãos de ser responsável pela queda do império, pela mão dos visigodos, comandados por Alarico, no ano 401. Esta acusação foi, de facto, o ensejo externo da

 

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principal obra da Filosofia Política de St. Agostinho, a Cidade de Deus, onde está contida também a maior parte da sua filosofia de Paz. Não obstante Agostinho reconheça que os romanos conseguiram, pelo esforço e perseverança, o crescimento político e económico do império e, a prática destas virtudes teve o reconhecimento de Deus, o aplauso e o elogio de diversos povos da história, ele acusa-os, todavia, de terem cometido um grave erro moral ao sobreporem os bens mutáveis ao Imutável. Por conseguinte, reitera Agostinho que, em nenhum momento da história, está registrado que aqueles que deviam promover e sustentar a República, prestaram culto ao Sumo Bem e nem, muito menos, dominado as paixões do vício e do mundo. Portado, se o Sumo Bem não foi servido, como se requer de uma autêntica justiça, o povo também nunca fora beneficiado pelos préstimos da República. O que explica o saque e a conquista da parte dos visigodos. E provavelmente, o mesmo tipo de comportamento explica também a instabilidade política do nosso país e do mundo.

Prof. Manhiça

 

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Bibliografia AGOSTINHO : La città di Dio, © 2013 REA Edizioni, Via S. Agostino 15, 67100 L’Aquila. www.reamultimedia.it. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes. 1998. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: (contra os pagãos). Parte I. 4 ed. Petrópolis: Editora Vozes. 1999. ______. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004. [Os Pensadores]. ______. O Livre Arbítrio. Trad., org., introd. e notas: Nair de Assis Oliveira. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1995. [Col. Patrística]. ______. A Trindade. Trad.: Agustinho Belmonte; notas: Nair de Assis Oliveira. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. [Col. Patrística]. ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulinas, 1990, v.1. Col. Filosofia. COSTA, Marcos Roberto Nunes. “Conseqü.ncias da problemática relação entre o livrearbítrio Humano e a Providência Divina na solução Agostiniana do Mal”. In: Studium, Recife: v.6, n.12, p. 43-54, Dezembro/2003. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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