A formação de agentes de inteligência nos primórdios da Escola Nacional de Informações (Brasil, 1972)

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A formação de agentes de inteligência nos primórdios da Escola Nacional de Informações (Brasil, 1972) Jaime Valim Mansan1

A Escola Nacional de Informações, ou EsNI, foi o órgão instituído em 1971 para, dentre outros objetivos, formar especialistas em inteligência que pudessem suprir as demandas da estrutura de vigilância do sistema de controle social constituído no Brasil após o golpe de 1964.2 Subordinada diretamente ao Chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e com sede na capital do país, a escola havia sido criada através do Decreto nº 68.448, baixado em 31 de março pelo ditador, gen. Emílio Médici, e pelo então chefe do SNI, gen. Carlos Alberto da Fontoura.3

1

Doutorando em História na PUCRS, bolsista CNPq. E-mail: [email protected]

Priscila Antunes observa que “[...] o termo informações é a apropriação dada à atividade de inteligência no contexto brasileiro até 1990”. De fato, embora informações fosse o termo usual naquele contexto, uma análise dos sentidos comumente atribuídos a ele (e a expressões correlatas) naquele período indica a propriedade do uso do conceito de inteligência na “acepção restrita” proposta por Cepik. Para ele, se em uma acepção ampla o termo inteligência corresponderia a “toda informação coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisões qualquer”, em uma acepção restrita poderia fazer referência à “coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou mesmo o conhecimento por parte dos alvos da ação”. Esse entendimento situa as atividades de inteligência em um nível mais restrito que o da produção de informações em geral para decisões governamentais e, ao mesmo tempo, em um nível mais amplo que o ocupado pela espionagem. ANTUNES, Priscila C. B. SNI & ABIN: entre a teoria e a prática: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 41; CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na institucionalização de serviços de inteligência. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 27-35. 2

Sobre a história do SNI, ver: ANTUNES, Priscila C. B. SNI & ABIN: entre a teoria e a prática: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2002; BAFFA, Ayrton. Nos porões do SNI: o retrato do monstro de cabeça oca. Rio de Janeiro: Objetiva, 1989; FICO, Carlos. Como eles agiam - Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001; FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005; LAGÔA, Ana. SNI: como nasceu, como funciona. São Paulo: Brasiliense, 1983. 3

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Os objetivos da EsNI, segundo o Art. 2º do referido texto normativo, eram: a) preparar civis e militares para o atendimento das necessidades de informações e contrainformações do Sistema Nacional de informações; b) cooperar no desenvolvimento da doutrina nacional de informações; c) realizar pesquisas em proveito do melhor rendimento das atividades do Sistema Nacional de Informações.

Ainda conforme as diretrizes estabelecidas naquela norma, a escola deveria ser dirigida por um militar da ativa, obrigatoriamente um general de brigada, brigadeiro ou contra-almirante, postos mais baixos no estrato dos oficiais generais que, por sua vez, era e continua sendo o segmento mais elevado da hierarquia militar no país. Tal diretor deveria ser escolhido pelo ditador a partir de lista tríplice a ele apresentada pelo chefe do SNI. Com a criação da EsNI, a intenção, como indicava o Art. 5º do decreto que a instituiu, era centralizar e padronizar as atividades de formação em inteligência no país, as quais, até então, vinham sendo desenvolvidas em instituições diversas. Destacava-se, nesse sentido, a Escola Superior de Guerra, cujo Curso de Informações fora pioneiro na formação de agentes de inteligência no Brasil, tendo sido fundado ainda em 1958, através do Decreto nº 43.810, de 29 de maio, com o objetivo de “cooperar no estabelecimento da doutrina de Segurança Nacional e preparar civis e militares para as funções relacionadas com as Informações” (Art. 1º). Tendo iniciado em 1959, foi suspenso no ano seguinte, para retomar suas atividades apenas em 1965, através do Decreto nº 55.791, de 23 de fevereiro, agora chamado de Curso Superior de Informações. O curso, que formava agentes de inteligência oriundos não apenas do meio militar, mas também um grande número de civis, como é possível ver no Quadro 1 (abaixo), permaneceu em atividade até 1973, quando, em função da referida centralização das atividades de formação de agentes de inteligência na escola coordenada pelo SNI, foi extinto na ESG.4

BRASIL. Ministério da Defesa. Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Inteligência Estratégica – resumo histórico. Disponível em: . Acesso em: 14/03/2014. 4

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Ano

Marinha

Exército

Aeronáutica

Civis

Total

1959

1

3

1

11

16

1960











1961











1962











1963











1964











1965

0

6

0

5

11

1966

1

2

1

9

14

1967

1

4

1

7

13

1968

3

3

2

8

16

1969

2

5

0

12

19

1970

2

5

1

8

16

1971

2

4

2

8

16

1972

2

5

0

7

14

TOTAIS

13

34

7

64

119

Quadro 1: Diplomados no Curso (Superior) de Informações da ESG. Fonte: BRASIL. Ministério da Defesa. Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Inteligência Estratégica... op. cit.

O início das atividades da EsNI, conforme previsto no decreto de sua criação, ocorreu em 1972. Desde então e até 1990, a EsNI seguiu formando especialistas em inteligência, em diferentes níveis de atuação. 5 A principal documentação a embasar esta reflexão é um conjunto de materiais didáticos e administrativos vinculados a uma das primeiras atividades de ensino ministradas naquela escola, um estágio na área de informações realizado em fins de 1972. São planos de aula, lista de alunos e respectivas instituições de origem, textos didáticos, exercícios e também algumas orientações e diretrizes de cunho BRASIL. Ministério da Defesa. Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Inteligência Estratégica... op. cit. 5

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administrativo. Encontrei tal material em fins de 2013 nos acervos sob guarda da Coordenação Regional do Arquivo Nacional em Brasília, mais especificamente no fundo da Assessoria de Segurança e Informações da Universidade de Brasília, no âmbito das atividades da investigação à qual se vinculava o presente texto.6 Tratava-se, portanto, de um contexto em que a instituição provavelmente ainda se encontrava em fase de organização, enquanto seguiam em atividade outros cursos de inteligência em instituições correlatas, como a ESG e o Centro de Estudos de Pessoal (CEP, órgão do Exército que funciona até hoje no Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro).7 Segundo o Capitão de Mar e Guerra Marcio Moraes, na EsNI “os primeiros cursos e estágios só foram iniciados no ano de 1972”. 8 Considerar que se tratava de uma fase experimental das atividades da EsNI implica em lembrar que as características do estágio que analisaremos devem ser avaliadas com cuidado, sem tomá-las como típicas das atividades didáticas daquela instituição ao longo de sua existência. De fato, é bastante provável que os cursos e estágios tenham sofrido diversas modificações ao longo dos anos 1970 e 1980, tanto em função do processo de organização da escola quanto devido à adaptação da instituição às variadas políticas adotadas pelo regime nas diferentes conjunturas pelas quais passou naquele período. A formação de agentes de inteligência durante o regime de 1964 constitui, ainda hoje, uma lacuna importante na historiografia específica. Como reconhece Samantha Viz Quadrat, uma das principais especialistas na temática, “embora tenhamos avançado bastante sobre o que conhecemos [...], as atividades da EsNI e do Cigs [Centro de Instrução de Guerra na Selva] ainda se configuram sob pactos de silêncio e inacessibilidade aos seus documentos”.9 Segundo o gen. Leone Lee, a escola oferecia diferentes tipos de estágios, nas áreas de “informações”, “contrainformações” e “operações”.10 Moraes corrobora, afirmando que os estágios abrangiam as “áreas de operações, de análise, de

Referência da documentação: BR-AN-BSB-AA1-LGS-005. Projeto de pesquisa intitulado “O controle do campo da educação superior no Brasil da Ditadura Civil-Militar (1964-1988)” (PUCRS/CNPq – 2011-2014), que deu origem a: MANSAN, Jaime Valim. Subversivos: ditadura, controle social e educação superior no Brasil (1964-1988). 366 f. Tese – Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2014. 6

7

Sobre o CEP, ver: ANTUNES, Priscila C. B. SNI & ABIN... op. cit. p. 56-57.

MORAES, Marcio Bonifácio. A atividade de inteligência, em nível estratégico: uma proposta para o Brasil. Cidadania e Defesa - Boletim Informativo da Associação de Auditores dos Cursos de Defesa Nacional, n. 50, dez/2013-fev/2014, Lisboa. p. 7. 8

QUADRAT, Samantha Viz. A preparação dos agentes de informação e a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Varia Historia, v. 28, n. 47, Belo Horizonte, Jan./Jun. 2012. p. 41. 9

LEE, Leone da Silveira. A implantação do quadro de pessoal militar da área de informações nas Forças Armadas do Brasil. Apud QUADRAT, Samantha Viz. A preparação dos agentes de informação... op. cit. p. 32-33. 10

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Contrainteligência”, bem como a “preparação de funcionários designados para missões no exterior” com vistas à “proteção dos conhecimentos sensíveis”.11 Além dos estágios, a EsNI oferecia cursos regulares que, organizados em três níveis, constituíam a principal atividade formativa ofertada pela instituição. Segundo Quadrat, o “curso A”, destinado a militares e civis que fossem atuar como analistas de inteligência ou ocupar determinadas funções de chefia em altos níveis hierárquicos, tinha por pré-requisito o nível superior para os civis e o curso de Comando e Estado-Maior para os militares, com duração de até 41 semanas. Já o “curso B”, que também permitia participação tanto de civis quanto de militares, buscava formar agentes de inteligência e chefes para funções de nível intermediário. Teria duração de 20 semanas e recrutaria seus alunos, ainda segundo Quadrat, entre majores e capitães e “civis com nível equivalente” (a autora, contudo, não precisa o que poderia significar tal equivalência). Por fim, o “curso C”, sem duração informada pela autora, seria subdividido nos cursos C1 e C2. O primeiro seria destinado a capitães e tenentes que fossem atuar como chefes de seções de informações e no planejamento ou direção de operações de informações. Para o segundo, que teria por objetivo formar agentes para coleta de dados, os alunos seriam recrutados entre os sargentos.12 A atividade didática aqui analisada teve duração consideravelmente menor que os referidos cursos regulares. O estágio em questão ocorreu ao longo de três semanas, entre os dias 27 de novembro e 15 de dezembro de 1972. Moraes afirma que a duração dos estágios na EsNI era variável, embora não especifique se a variação se dava em função da área de especialização ou de mudanças curriculares realizadas ao longo da existência da EsNI, hipóteses plausíveis e não excludentes entre si.13

11

MORAES, Marcio Bonifácio. A atividade de inteligência... op. cit. p. 7.

QUADRAT, Samantha Viz. A preparação dos agentes de informação... op. cit. p. 32. Como a autora indica, a fonte onde obteve tais informações também foi a citada obra do gen. Lee, publicação de difícil acesso, o que impediu-nos de verificar seu conteúdo diretamente. LEE, Leone da Silveira. A implantação do quadro de pessoal militar da área de informações nas Forças Armadas do Brasil. Rio de Janeiro: ESG, 1980. (O gen. Lee foi Secretário-Geral do Exército entre 1991 e 1993 e um dos assinantes do polêmico manifesto lançado no início de 2012 pelo Clube Militar, intitulado “Eles que venham – por aqui não passarão: alerta à nação brasileira”, que caracterizava a aprovação da Comissão da Verdade como “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo”). Baseada em documentação da EsNI, a caracterização dos pré-requisitos exigidos dos candidatos a alunos dos cursos regulares da escola apresentada por Rodrigo Patto Sá Motta difere muito pouco da de Quadrat. Segundo ele, o curso A seria destinado a “civis com diploma universitário e militares oficiais superiores com o curso de Estado-Maior; o curso B para civis possuidores do 3º ano universitário e oficiais militares; e o C para oficiais militares”. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p. 390. A definição de Moraes, ainda mais sucinta, segue na mesma linha. MORAES, Marcio Bonifácio. A atividade de inteligência... op. cit. p. 7. 12

13

MORAES, Marcio Bonifácio. A atividade de inteligência... op. cit. p. 7.

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A turma era composta por pelo menos 41 estagiários, sendo que 25 deles ficaram alojados na EsNI.14 Observa-se assim que, desde seus primórdios, a escola possuía estrutura física para viabilizar a formação de agentes de inteligência oriundos das mais diversas partes do país. Como é possível ver no Quadro 2 (abaixo), naquele estágio, além de 14 agentes atuantes no Distrito Federal, havia alunos oriundos dos estados da Guanabara (12), Pernambuco (2), Rio Grande do Sul (2), São Paulo (2), Alagoas (1), Ceará (1), Goiás (1), Minas Gerais (1), Paraíba (1), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Norte (1), Santa Catarina (1) e Sergipe (1). Os estagiários eram agentes que já se encontravam em atividade na área de inteligência. Trinta deles atuavam em órgãos vinculados aos ministérios da Educação e Cultura, outros seis trabalhavam em órgãos da esfera de responsabilidade do Ministério dos Transportes e cinco em órgãos subordinados ao Ministério das Comunicações (ver Quadro 2, abaixo). O grupo era composto tanto por militares quanto por civis. Pelo menos quatro alunos eram coronéis. Parece plausível supor que a função esperada de tais estágios, naquele contexto, fosse complementar o conhecimento que aqueles agentes de vigilância já possuíam, seja por terem frequentado outras atividades de formação na área, seja pela experiência obtida através da atuação nos órgãos de vigilância em que trabalhavam. Isso é condizente com a forte tentativa de organização e racionalização do sistema de controle social promovida no país de modo crescente desde 1967.15 A EsNI representava, nesse sentido, a busca por uma maior padronização na formação de civis e militares que pudessem atuar como agentes de inteligência junto àquele sistema de controle, tanto no “campo interno” quanto fora do país. Na Nota de Serviço nº 02, emitida pela chefia do Departamento de Administração da EsNI com as principais medidas administrativas para a realização da atividade de ensino, era indicado um total de 43 estagiários. Entretanto, em uma listagem dos alunos e de suas vinculações profissionais, bem como em um documento no qual era especificada a composição de cada “grupo de trabalho”, eram elencados apenas 41 estagiários. 14

Controle social é uma expressão marcada por notória polissemia, inclusive no âmbito da Sociologia, onde seus usos são mais frequentes que na História. O sociólogo estadunidense Edward Ross, que desenvolveu seus trabalhos entre o fim do século XIX e o início do XX, é comumente referido como o pioneiro no uso da expressão. Uma síntese da história do conceito é apresentada por Mathieu Deflem em: The concept of social control: theories and applications. International Conference on Charities as Instruments of Social Control in Nineteenth-Century Britain, Université de Haute Bretagne (Rennes 2), Rennes, France, Nov. 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2012. Stanley Cohen, um dos principais nomes do heterogêneo campo dos revisionist studies of social control, conferia em seus estudos igual importância aos mecanismos coercitivos e consensuais de controle social. Cf., por exemplo: COHEN, Stanley. Visions of social control. Cambridge: Polity Press, 1985; e COHEN, Stanley; SCULL, Andrew (ed.). Social Control and the State: historical and comparative essays. Oxford: M. Robertson, 1983. Tal perspectiva, aqui adotada, possui notável compatibilidade com a ideia de “relação de unidade-distinção” entre coerção e consenso proposta por Antonio Gramsci. Cf.: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 3 – Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 3. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 15

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As refeições eram realizadas no restaurante da Academia Nacional de Polícia, escola destinada à formação e especialização de agentes da Polícia Federal. A academia, criada em fins de 1960, foi remodelada em fins de 1964 e transferida para um amplo complexo após 1966 (concluído em 1973). Localizado no Setor Policial Sul, onde atualmente fica a sede da Escola Nacional de Administração Pública, a academia permaneceu ali sediada até 1978.16 As atividades de ensino daquele estágio na EsNI ocorriam nos turnos da manhã e da tarde. Os estagiários ficavam alojados em grupos de três em cada apartamento. O Departamento de Administração da EsNI, setor responsável pelos aspectos administrativos do estágio (condução, alimentação, alojamento, etc.), era chefiado por um militar, o tenente-coronel Godofredo de Araújo Neves. Nome

Local de Trabalho

UF

Ministério

Eduardo Lima de Miranda

DSI/MC

DF

MC

Leda Malta Lessa

DSI/MC

DF

MC

Bárbara Ribeiro de Sant’Anna

DSI/MC

DF

MC

Marilha Consuelo da Silva

DSI/MC

DF

MC

Carlos Alberto de Carvalho Costa Andrade

DSI/MC

DF

MC

Carlos Eugênio Pires deAzevedo

UFAL

AL

MEC

Geraldo Nogueira Diógenes

UFCE

CE

MEC

Arsênio Canísio Becker

DSI/MEC

DF

MEC

Gabriel Lino Lopes Maia

DSI/MEC

DF

MEC

Theobaldo Pedro Genovai

DSI/MEC

DF

MEC

Waldir Bortoluzzi

DSI/MEC

DF

MEC

Quadro 2: Estagiários. Fonte: ARQUIVO NACIONAL. Coordenação Regional DF. Fundo ASI-UNB. Ref. BR-AN-BSBAA1-LGS-005.

BRASIL. Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia. História. Disponível em: . Acesso em: 15/05/2014. 16

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Nome

Local de Trabalho

UF

Ministério

Hebert Pinheiro de Abreu

IGF/MEC

DF

MEC

José Liberato Costa Póvoa

MEC

DF

MEC

Luiz Leme Venturoso de Araújo

MEC

DF

MEC

João de Aragão Coutinho

SDI/MEC

DF

MEC

Joselito Eduardo Sampaio

UnB

DF

MEC

Amyr Santos

DAC/MEC

GB

MEC

Sidney de Castro Véras

DEB/MEC

GB

MEC

Eurico Borges Cortes

DSI/MEC

GB

MEC

FENAME/MEC

GB

MEC

SRE/MEC

GB

MEC

Mânlio Garibaldi Fischer Filizzola

UFRRJ

GB

MEC

Carlos de Carvalho Craveiro

UFGO

GO

MEC

UFJF (Juiz de Fora)

MG

MEC

Ediláudio Luna de Canalho

UFPB

PB

MEC

Djair de Barros Lima

UFPE

PE

MEC

UFRPE

PE

MEC

UFF

RJ

MEC

Zacheu Luiz Santos

UFRN

RN

MEC

Natalício da Cruz Correa

UFRGS

RS

MEC

Aristóteles Pinheiro de Oliveira Waldir de Lima Castro

Herbert Moreira Moraes

Luiz Marcelo Pon-Gondry Ferreira José Francisco Borges de Campos

Quadro 2 (continuação): Estagiários. Fonte: ARQUIVO NACIONAL. Coordenação Regional DF. Fundo ASI-UNB. Ref. BR-AN-BSBAA1-LGS-005.

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Nome

Local de Trabalho

UF

Ministério

Augusto Ribas Maciel

UFSM

RS

MEC

Fernando Antônio Medeiros Beck

UFSC

SC

MEC

Hélio de Sousa Leão

UFS

SE

MEC

Arminak Cherkezian

ARSI SP-MT/MEC

SP

MEC

UFSCar

SP

MEC

7ª DV-EF-Leopoldina

GB

MT

Wioder (?) do Rego Monteiro

DNEF

GB

MT

Juarez Costa de Albuquerque

DNER

GB

MT

Edder Fogaça Travassos da Rosa

DSI-MT

GB

MT

Vicente Ferreira Rômulo

RFFSA

GB

MT

Nelson Marques

RFFSA

GB

MT

José Nastri Filho Paulo José de Oliveira

Quadro 2 (continuação): Estagiários. Fonte: ARQUIVO NACIONAL. Coordenação Regional DF. Fundo ASI-UNB. Ref. BR-AN-BSBAA1-LGS-005.

“Informações”: importância, princípios e conceitos básicos Logo de início, os estagiários eram apresentados aos fundamentos do que naquela ocasião constituía a “doutrina de informações” adotada pela estrutura de vigilância daquele sistema de controle social. Através de uma “sinopse histórica”, argumentava-se a favor da “importância das informações” no sentido do conhecimento das próprias “possibilidades” e das do “adversário”, de maneira a “poder enfrentá-lo com vantagem”. A seguir, eram apresentados os princípios da atividade de inteligência, considerados como “alicerces necessários à orientação dos trabalhos na produção de Informações”:

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• objetividade: “as Informações devem ter uma utilidade, finalidade ou um objetivo específico” e “a maior precisão possível”; • oportunidade: “as Informações devem ser produzidas e difundidas dentro do prazo necessário para sua completa e adequada utilização”, atrelando “o valor e a utilidade das Informações” à “oportunidade com que sejam elaborados e difundidos os conhecimentos necessários aos planejamentos ou às ações decisórias”; • segurança: “as Informações devem ser planejadas, produzidas e difundidas em caráter sigiloso” (confirma-se aqui a adequação do conceito de inteligência para o caso em questão, conforme comentado inicialmente); • clareza: “as Informações devem permitir a imediata e integral compreensão de seu significado”, através da utilização de “linguagem inteligível, sem floreios e literatura desnecessária”; • simplicidade: vinculado ao princípio da clareza, este propunha que “as Informações devem ser simples”, contendo apenas “os conhecimentos essenciais, livres de expressões ou conceitos supérfluos”; • controle: vinculado ao princípio da segurança, este orientava no sentido da necessidade da “organização dos diferentes escalões de Informações”, “através de normas orientadoras” e “em face da ampla diversificação dos escalões produtores de Informações”, e da importância da “centralização das atividades nos mais altos escalões”, com vistas à “adequada difusão aos usuários interessados”; • amplitude: sem descuidar do princípio da oportunidade, este sugeria “que as Informações devem ser tão completas quanto possível”, para que contenham “conhecimentos amplos e exatos, obtidos de todas as fontes disponíveis”; • imparcialidade: as “Informações” devem ser “isentas de posição pessoal do analista e de outras influências que possam prejudicar sua exatidão”. Expostos os princípios, eram apresentados então alguns conceitos básicos das atividades de inteligência. Assinalava-se a importância da classificação das informações, que teria por objetivo “facilitar a utilização e o arquivamento, possibilitar a conveniente atribuição de responsabilidade na sua produção e obter a uniformidade de trabalho no âmbito do Sistema Nacional de Informações”.17

Sobre o Sistema Nacional de Informações, ou SISNI, implementado no país após 1970, cf.: FICO, Carlos. Como eles agiam - os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001. cap. 2. 17

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Remetia, por fim, ao “Manual Provisório de Informações”: provavelmente tratava-se de um dos documentos doutrinários que então estavam sendo elaborados pela própria EsNI, com vistas à sistematização das normas para as atividades de vigilância a serem adotadas no país a partir daquele período, conforme determinado pelo já citado Art. 2º do Decreto nº 68.448 em seus itens “b” e “c”. O texto apresentava ainda a diferença entre “informe” e “informação”: • Informe: “qualquer observação, fato, relato ou documento que possa contribuir para o conhecimento de determinado assunto”; “matéria-prima para a produção da informação”; • Informação: “conhecimento objetivo sobre qualquer ato ou fato, elaborado com um determinado fim” a partir do “processamento dos informes obtidos ou de outras Informações coletadas”, tendo por finalidade “fornecer os dados básicos necessários à decisão e ao planejamento de ação do utilizador, em proveito do qual é produzida”; “produto acabado que representa a expressão pura e simples da verdade, resultante de um processo de elaboração mental”.18 A “produção de informações” era parte essencial do trabalho daqueles agentes de vigilância. Natural, portanto, que no estágio tal assunto fosse abordado de modo relativamente atento e minucioso. Tal atividade era sintetizada de maneira bastante didática aos alunos: Para chegarmos ao conhecimento de qualquer assunto temos de realizar, naturalmente, uma série de atos preliminares. Fixado o que queremos saber, planejamos, em seguida, onde buscar os esclarecimentos necessários e como consegui-los; finalmente, damos a conhecer o resultado do nosso trabalho a quem por ele esteja interessado ou capacitado a usá-lo.

Detalhando tal caracterização, o material didático da primeira aula assinalava que a “produção de informações” compreendia quatro “fases”, cada uma delas objeto de uma aula (ou “sessão de instrução”) específica. 1. fase do planejamento: realizado “em todos os escalões do Sistema Nacional de Informações” através “de um Estudo de Situação cuja amplitude varia segundo o nível do escalão, a missão recebida, os meios disponíveis e os conhecimentos sobre o assunto a ser pesquisado”, podendo constituir-se em “Plano de Informações”, “Plano de

Esse entendimento acerca do valor de verdade das “informações” era fundamental para a sustentação de toda a estrutura de vigilância e, consequentemente, daquele sistema de controle social de um modo geral.

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Busca”ou apenas “coleta de dados”, “de acordo com o nível do escalão ou com a complexidade da missão”. 2. fase da reunião de informes: fase composta pelas atividades de coleta e busca. A coleta seria a “reunião ostensiva de dados catalogados, isto é, devidamente classificados e fichados em arquivos, bibliotecas do órgão interessado, dos demais órgãos do Sistema e em outras organizações oficiais ou não oficiais ao nosso alcance”. Já a busca seria “a atividade de procura de dados não catalogados ou protegidos contra quem a realiza”, exigindo nesse sentido “cuidadoso planejamento, tendo em vista obter o máximo de eficiência e segurança”. As “fontes de informes” eram definidas como “pessoas, documentos, publicações, serviços e outras das quais se recebe, ou se obtém, o informe”.19 Outra definição bastante importante que era apresentada já na primeira aula dizia respeito às diferenças entre “agentes”, “informantes” e “colaboradores”. “Agentes”, segundo aquele material didático, seriam “indivíduos que realizam a busca de informes sob controle de uma organização de Informações e pertencem aos quadros de funcionários do Governo”. Já “informantes” seriam “pessoas que não pertencem aos quadros de funcionários do Governo e que aquiescem ou desejam cooperar com uma organização de informações, mediante remuneração ou não”, recebendo este último caso a “denominação já consagrada de colaborador”. 3. fase do processamento: “conjunto de atividades executadas pelo analista para produzir Informações sobre determinado assunto”, compreendendo “ações que vão desde a avaliação e a interpretação de um único informe, até o manuseio de inúmeros informes que obrigam a avaliação, análise e integração, antes de chegar à interpretação final”. 4. fase da difusão: “processo eminentemente técnico” destinado a “verificar a quem pode interessar o documento produzido”, bem como “em que prazo ele deve chegar ao destinatário, para que lhe seja útil e, em consequência, qual o meio de transmissão e grau de sigilo a adotar”. Dava-se muito destaque às diferentes responsabilidades atribuídas aos “produtores de informações” e aos “utilizadores” de tais informações, ou seja, os “clientes” a quem aquele conhecimento se destinava. Afirmava-se, por exemplo, que “os utilizadores são inteiramente responsáveis por suas decisões e os produtores por suas informações”, e que, portanto, não caberia “aos produtores pedir contas aos utilizadores das ações decorrentes do produto de seu trabalho”. Observe-se, no trecho grifado, a indicação da possibilidade de obtenção de dados sem o consentimento da fonte, o que poderia ocorrer de diversas formas, desde a interceptação de documentos até a tortura. 19

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Informações internas e externas Tal tema foi objeto de duas aulas naquele estágio, uma para cada tipo de informação. Na aula específica sobre “informações internas”, os estagiários aprendiam que “a Nação necessita conhecer o valor, as possibilidades e as limitações do seu poder” – o que “possui e pode aplicar a qualquer momento” – “e do seu potencial” – o que “pode transformar em poder” – nos “quatro campos ou expressões do Poder Nacional”, a saber: “político, econômico, psicossocial e militar”. As informações internas seriam, assim, a reunião de conhecimentos sobre tais campos, tendo por cliente os “planejadores e executores da Política Nacional” e por objetivo “favorecer e orientar a conquista e a preservação dos Objetivos Nacionais”. Já na aula sobre “informações externas”, observava-se que se tratava de obter o mesmo tipo de conhecimento mas a respeito da situação daqueles quatro campos em outros países, “com o fim de evitar possível interferência na realização da Política Nacional” do país em favor do qual a atividade de inteligência é executada. Tanto as informações internas quanto as externas poderiam, segundo o material, assumir algumas formas principais. Primeiramente, em função de seu conteúdo, poderiam ser: “informações básicas”, “quando exprimem conhecimentos de fatos já consolidados, levantados ou catalogados”; “correntes”, “quando se referem a fatos atuais e recentes”; e “estimadas”, quando “se prendem a considerações de natureza especulativa e a sua produção requer um estudo da situação atual e uma projeção de possíveis tendências”. Em relação à finalidade, as informações poderiam constituir-se como “estratégicas”, “operacionais” ou “táticas”. No caso das informações internas, dependendo da “amplitude dos conhecimentos” nelas contidos, bem como do “nível de sua produção” e “utilização”, poderiam adotar a forma de “informações nacionais”, “regionais” ou “setoriais”. Eram abordados, nessas aulas, aspectos de planejamento, acompanhamento de informações e levantamento estratégico, na linha do que já foi comentado. No caso das informações externas, além dos conhecimentos já assinalados, afirmava-se também a necessidade “de conhecimentos que [...] possam servir de base para planejamento”, como “a fisiografia do país” vigiado, “seu povo” (aspectos demográficos), a “situação das artes, ciências e tecnologia desse povo”, bem como informações sobre sua forma de organização política e econômica. Em suma, tratava-se de argumentar no sentido da necessidade de um conhecimento básico sobre o país em questão, de modo a garantir ao cliente a utilização das informações estratégicas da melhor forma possível. Ao tratar das fontes externas, a principal obra de referência era um dos mais conhecidos livros de Harry Howe Ransom, cientista político estadunidense que, já na ocasião, era nos EUA um dos maiores nomes na área dos estudos de

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inteligência.20 Nota-se, no conjunto documental que fundamenta esta análise e em outras obras de formação de agentes de vigilância, a forte influência da doutrina estadunidense de inteligência, o que não é surpreendente diante do que se sabe a respeito da predominância das doutrinas militares e estratégicas estadunidenses sobre as Forças Armadas brasileiras após a Segunda Guerra Mundial.21 Especificamente em relação à EsNI, essa influência parece ter sido particularmente significativa, inclusive através do general Ênio Pinheiro. Comumente referido como o principal idealizador e responsável pela organização da escola, foi um dos vários oficiais brasileiros a estudar técnicas de inteligência no exterior, tendo inclusive frequentado “um curso de 6 meses no FBI e na CIA”.22

“Informações de segurança interna” Dentre os conteúdos abordados durante aquele estágio, sobressai-se em importância para os fins desta análise aquele que dizia respeito às chamadas “informações de segurança interna”. De modo mais explícito na aula em questão do que em qualquer outra, eram caracterizadas noções como “inimigo interno” e “processo subversivo”, fundamentos das atividades de vigilância daquele sistema de controle social. Atividades de vigilância que, vale lembrar, aqueles agentes já realizavam em seus respectivos órgãos de origem, de maneira que o estágio cumpria essencialmente uma função de reforço daquelas ideias, que serviam como fundamento de discursos de convencimento e autoconvencimento a respeito de uma suposta necessidade e importância daquelas ações de controle. Aquilo que era caracterizado como “o problema da Segurança Interna” era tratado como algo inerente às sociedades humanas, através de uma abordagem essencialista, sem qualquer fundamentação histórica. Ao mesmo tempo, defendia-se a ideia de que se vivia no Brasil e no “mundo” (tratado de modo genérico, impreciso, homogeneizador) um período em que a “subversão” e a ameaça à “ordem” teriam atingido níveis mais elevados do que em qualquer outra época. Para justificar tal conclusão, eram mobilizadas premissas assentadas em generalizações anticomunistas e em suposições algo delirantes acerca de conspirações globais; ideias que, observe-se, ainda detinham significativo poder de convencimento naquele período da Guerra Fria. Nesse sentido, afirmavaRANSOM, Harry Howe. Central Intelligence and National Security. Cambridge: Harvard University Press, 1958. 20

21 Exemplo bastante conhecido de tal influência é a Doutrina de Segurança Nacional, desenvolvida no Brasil pela ESG com forte influência da equivalente estadunidense. A esse respeito, ver, dentre outros: COMBLIN, José. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 5. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1989. 22

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ANTUNES, Priscila C. B. SNI & ABIN... op. cit. p. 58.

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-se, por exemplo, que “as ações subversivas e perturbadoras da ordem sempre existiram”, mas que “nunca, no entanto, assumiram as proporções de nossos dias, em razão, principalmente, do conflito ideológico de âmbito mundial ora em curso, no qual se evidencia a ameaça comunista de dominação do mundo”. Diretamente relacionada a tal argumento estava a noção de “inimigo interno”, um dos pilares ideológicos do regime de 1964. Tal inimigo era considerado “um perigo à estabilidade das instituições”, responsável por “todos os tipos de ações que, por sua natureza, são capazes de comprometer os poderes constitucionais, a lei e a ordem”. Desnecessário lembrar o leitor de que se tratava de um regime no qual os poderes legislativo e judiciário encontravam-se subordinados a um executivo constituído por meio da violência e do arbítrio; no qual a principal função da lei não era garantir os direitos fundamentais de cada cidadão, mas contribuir com a criação de uma aparência de legimitidade para um regime intrinsecamente ilegítimo; um regime, enfim, erigido e mantido com o objetivo de assegurar que os interesses de um segmento social minoritário fossem garantidos, a qualquer preço e independentemente da vontade da maioria, com vistas à manutenção daquela ordem social injusta, não democrática, fortemente excludente e calcada na violência contra a maioria da sociedade e sobretudo contra toda oposição não tolerada. A noção de “inimigo interno” era, assim, um elemento importante tanto na conformação de um pensamento favorável ao regime quanto na aplicação de diversas formas de violência física ou simbólica contra todo aquele que fosse visto como uma ameaça àquela ordem social. De modo convenientemente impreciso, tal inimigo era associado a “indivíduos, grupos ou forças irregulares que visam a perturbar a lei e a ordem ou a pôr em perigo os poderes constituídos, agindo, em sua forma mais ameaçadora, com finalidade revolucionária de implantação da ideologia totalitária”. Contra o perigo de associação do “inimigo interno” com o “inimigo externo” e diante do já citado medo relativo à “ameaça comunista de dominação do mundo”, sugeria-se àqueles estagiários que, ao considerar as possibilidades de ação do inimigo interno, “dever-se-á levar em conta, também, o eventual apoio, não declarado, de nação ou grupo de nações estrangeiras”. Relativamente às formas de ação de tal inimigo, eram apontadas as “operações psicológicas e políticas visando à desagregação do moral nacional”, os “distúrbios civis e greves”, as ações de “terrorismo, destruição e sabotagem” e as “ações violentas, de envergadura ou não, com caráter de guerra de guerrilha – podendo chegar a guerra regular – tendo em vista a posse do poder ou o controle de certas áreas do território nacional”. A noção de “processo subversivo” estava intrinsecamente relacionada com a de inimigo interno, mesmo porque, de acordo com os discursos que buscavam manter e criar uma aparência de legitimidade para aquela ordem social, “inimigo interno” e “subversivo” eram a mesma coisa. A noção de subversão era, de fato, o principal elemento da ideologia que sustentava aquele regime. | 93

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O “processo subversivo” era constituído, segundo aquela argumentação, por “pressões que exploram a linha da violência, geralmente impregnadas pelo vírus da ideologia materialista de Engels e Marx”, e que, nesse sentido, seriam responsáveis por “alimentar”, “dirigir” ou “explorar” fundamentalmente as seguintes situações: a corrupção, o tráfico de influência, o domínio econômico, a intranquilidade dos estudantes, as greves operárias, as associações camponesas, as manifestações populares, os movimentos intelectuais e artísticos, os comícios políticos, as lutas partidárias, as reformas do catolicismo, o terrorismo urbano, a luta armada no campo, os grupos de choque nas cidades, os atentados e raptos.

As “informações na Segurança Interna” teriam, nesse sentido, a finalidade de identificar “os antagonismos e pressões de qualquer origem, forma ou natureza, capazes de atuar no âmbito interno do país”, apresentando avaliações a respeito das “intensidades” e “modos de atuação” de tal inimigo, de maneira a que pudessem ser adotadas medidas destinadas “a diferir, neutralizar ou anular tais elementos adversos”. Tais avaliações teriam a função de “alertar os órgãos de segurança sobre o valor da propaganda adversa, seus indícios de aceitação, as técnicas que estão sendo e serão postas em prática, os objetivos visados pelos agitadores, os sofismas que estão sendo utilizados”, além dos “planos prováveis de desenvolvimento” de tais atividades. O trabalho na área era visto como especialmente sensível, na medida em que, segundo a perspectiva dos planejadores daquela atividade didática, “no tempo de paz, particularmente, face ao inimigo interno”, a produção de informações para segurança interna seria especialmente difícil “em razão da atuação clandestina desse inimigo, muitas vezes infiltrado nos próprios órgãos da estrutura governamental”. Tal ideia, como se sabe, foi amplamente mobilizada em tentativas de justificar os milhares de expurgos de funcionários públicos e militares realizados ao longo da vigência daquela ditadura.

“Segurança das comunicações” Uma das “instruções” tratava da “segurança das comunicações”. Consistia em apresentar aos alunos “medidas passivas de contrainformações que visam garantir a segurança orgânica das comunicações de uma agência de informações”. Eram analisadas as principais vulnerabilidades à interceptação de cada método de comunicação comumente adotado nas atividades de inteligência e estudadas técnicas para evitar que tais brechas pudessem ser aproveitadas pelo “inimigo”. Isso deveria ser concretizado “através dos sistemas de códigos e cifras e pela segurança física dos operadores, mensageiros, aparelhos, etc., contra captura, destruição, interferência ou identificação”. 94 |

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Os tipos de comunicações eram classificados segundo sua natureza (oficial ou clandestina) e também segundo seu meio, cada um com determinadas vantagens e riscos: • contato pessoal, “em área conhecida e vigiada”, em local “escolhido e preparado”, com uso de um “agente protetor” e memorização da mensagem; • mensageiro, observando-se a necessidade do mensageiro “ser protegido por agentes” e “ser selecionado, pois, dentre outras coisas, poderá ser solicitado a agir”; • correio, meio considerado de fácil interceptação, podendo ser utilizado “com mensagens em código, cifras, com tintas invisíveis ou outro artifício qualquer” e, para “os expedientes de rotina”, preferencialmente com mala postal oficial; • elétrico, ou seja, telefone, telex, telégrafo, etc.; considerado vantajoso em termos de manutenção de sigilo, “desde que se disponha de linhas privativas de comunicações ou possa ser exercido o controle nas centrais telefônicas ou de telex”, devendo ser utilizado “um sistema de código e cifras” e, no caso do telefone, “misturador”; • radioelétrico, ou seja, radiotelegrafia, radiofonia, rádio-fax, etc., considerado como “o método mais vulnerável”, motivo pelo qual se sugeria que seu uso fosse evitado, na medida em que “permite que o inimigo faça análise do nosso tráfego e plote nossa posição por radiogoniometria”; • eletrônicos, mais especificamente a televisão, “utilizada para a transmissão de mensagens por processos subliminares, códigos especiais, etc.”; • óticos, constituídos por um “sistema de sinais visuais”, motivo pelo qual eram limitados “ao alcance visual”, sendo predominantemente usados nas atividades de “operações”; • receptáculos móveis e fixos, usados para “transmissão de mensagens clandestinas”, sendo sua utilização considerada “enorme nas atividades de espionagem”; • artifícios, ou seja, “quaisquer métodos que a inteligência e a imaginação permitirem, desde que sejam razoavelmente seguros”; como exemplos, eram indicados “anúncios em jornais, revistas, buzina, lanternas, infravermelho, pombo-correio, etc.”.

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Exercícios e manuais Dentre o interessante conjunto documental aqui analisado, uma parte significativa correspondia a alguns dos exercícios que os alunos daquele estágio realizavam. Eram atividades para execução em sala de aula e também “temas de casa”, ou “fichas para estudo em domicílio”. Em uma delas, era indicado que deveriam “estudar o cap. 5 [...] do Manual de Informações”, provavelmente uma referência ao documento produzido pela EsNI com a síntese da doutrina de informações da escola, conforme assinalado anteriormente. Também é de se salientar que o conteúdo daquele estágio, salvo tópicos mais específicos, estava totalmente conforme o que era apresentado pelo Manual Básico produzido pela ESG, para uso como referência didática em seus cursos, desde antes do golpe.23 Tudo isso sugere cuidado ao supor uma grande ruptura doutrinária na área de inteligência com a criação da EsNI. Ao menos naquele momento inicial, houve muito mais permanências que inovações, no que tange aos conteúdos e fundamentos teóricos abordados. Em outro desses “temas de casa”, o aluno era solicitado a elaborar um “pedido de busca”. Na atividade didática, simulava-se que o estagiário era um analista do campo estudantil da Agência Central do SNI. Uma terceira “ficha para estudo em domicílio” treinava os alunos na redação de informes. O exercício consistia basicamente em analisar uma carta coletada clandestinamente e redigir, em folha padrão, um informe para a Divisão de Segurança e Informações do MEC (DSI/MEC), órgão no qual, aliás, vários daqueles estagiários já atuavam, como indicado no Quadro 2, acima.24 É de se cogitar a hipótese de que alguns desses exercícios tenham sido preparados tendo em vista a composição da turma, predominantemente vinculada ao MEC e atuante em atividades de inteligência no âmbito da vigilância das instituições de educação superior. Note-se ainda que a noção de subversão era central em tais exercícios, como, ademais, em vários outros. Não se tratava, portanto, apenas de uma referência passageira na mencionada aula sobre informações de segurança interna, mas de uma ideia que estava no cerne da fundamentação teórica daquele estágio. Vários dos textos didáticos utilizados naquela atividade indicavam em seu cabeçalho serem material de um “curso B”, apontando para um provável reaproveitamento de materiais didáticos dos cursos regulares nos estágios, ao menos naquele período inicial.

BRASIL. Estado-Maior das Forças Armadas. Escola Superior de Guerra. Departamento de Estudos. Manual Básico. Rio de Janeiro: APEX, 1975. 23

Sobre a DSI/MEC, ver: MANSAN, Jaime Valim. O Ministério da Educação e Cultura e o controle do campo do ensino superior durante o governo Costa e Silva (1967-1969). Militares e política, Rio de Janeiro, v. 7, p. 76-99, 2010; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar... op. cit. 24

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Em outro exercício, este a ser realizado como atividade em classe, o aluno deveria elaborar um plano de busca, de acordo com uma série de tópicos elencados como “informações necessárias” e que consistiam de questões como “possibilidade da eclosão de movimentos subversivos”, para citar apenas um exemplo bastante ilustrativo. Com base em tal listagem de questões a serem averiguadas, o estagiário deveria planejar a melhor maneira de encontrar o máximo possível de dados a respeito.

Considerações finais Pesquisadores que se dedicam ao estudo de processos históricos conturbados, como foi a ditadura de 1964 no Brasil, normalmente precisam enfrentar situações bastante adversas em termos de fontes. Essa situação mudou drasticamente para melhor após a entrada em vigor da chamada Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011). Um grande volume de documentos tem sido disponibilizado desde então, e em muitos arquivos já não se nota o temor com que vários funcionários lidavam com os pedidos de documentação relacionados a tópicos sensíveis. Mesmo assim, ainda é raro encontrar um conjunto documental como o que embasou esta análise. O que garantiu sua sobrevivência até nossos dias provavelmente foi o fato de que o assessor de segurança e informações da ASI/UnB (então chamada de “Assessoria para Assuntos Especiais”), Joselito Eduardo Sampaio, resolveu guardar nos arquivos daquele órgão de vigilância o material que havia recebido durante seu estágio na EsNI.25 Através daqueles documentos, foi possível vislumbrar alguns aspectos de como se dava a formação de agentes de inteligência nos primórdios da EsNI e, assim, auxiliar na compreensão de tópicos como esse, os quais, passado meio século do golpe que instituiu aquele regime, seguem constituindo lacunas importantes na historiografia do período. Os cursos e estágios da EsNI, bem como outras tantas atividades formativas desenvolvidas em instituições correlatas, cumpriam uma importante função ideológica, para além da formação de quadros para a manutenção daquele sistema de controle social, conforme o que foi apresentado ao longo deste capítulo. Tal função ideológica correspondia à construção de um significativo contingente de intelectuais pró-regime, para atuar na defesa daquela ordem social não apenas em suas atividades como agentes de inteligência, mas também junto àqueles que integravam seu entorno social: colegas de trabalho, familiares, amigos, etc.

Joselito Eduardo Sampaio foi nomeado chefe da AAE/UnB em 11/fev/1971, por indicação do então reitor daquela universidade, Caio Benjamin Dias, ao então diretor da DSI/MEC, coronel Pedro Vercillo. Sampaio era advogado e antes de 1971 já atuava na UnB como subchefe da Assessoria Jurídica da Reitoria. Referência: BR-AN-BSB-AA1-AGR-018.

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Essa formação foi bastante eficaz, sendo uma das principais razões pelas quais se pode dizer, tomando de empréstimo a expressão de Fernando Rosas, que a ditadura de 1964, de modo análogo ao Estado Novo português, ao franquismo e a outras ditaduras longevas, “soube durar”.26 A formação de tais intelectuais, contudo, foi apenas um dos vários meios através dos quais aquele sistema de controle social logrou impor aquela ordem social ilegítima, violenta, não democrática, baseada no medo e na exploração do ser humano pelo ser humano. Uma compreensão adequada da longevidade daquele regime e da flexibilidade e eficácia do sistema de controle social que o sustentava demanda análises mais amplas. Abordagens que considerem, de modo processual, tanto a interação daquele complexo de controle com a sociedade como a dinâmica da relação dos diversos elementos daquele sistema.

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ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber durar. Lisboa: Tinta-da-china, 2012.

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