A França é um país racista (entrevista de Stéphane Monclaire por Gianni Carta, anexo do artigo “Falta luz, sobra fogo” publicado na revista Carta Capital, 16/11/2005 p.44)

June 14, 2017 | Autor: Stéphane Monclaire | Categoria: France, Racismo, Violência, Violência Policial, Integração, Protestos, França, Protestos, França
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Nosso Mundo

FALTA LUZ, SOBRA FOGO A “subclasse” dos imigrantes briga FRANÇA

pela inclusão na república dos iguais POR GIANNI CARTA, DE PARIS lichy-sous-Bois, quarta-feira

C

9, 14 horas. Nesse subúrbio de 280 mil habitantes onde começaram os distúrbios do dia 27 de outubro, Yusuf, 15 anos, está cercado por amigos. Ele brinca com a reportagem de CartaCapital. Em resposta a uma pergunta sobre o que fazia na noite em que tiveram início os confrontos entre os jovens do subúrbio e a polícia, ele retruca: “Ah, eu estava dormindo”. Risos. E como ele se sentiu ao acordar e inteirar-se sobre o que havia acontecido? “Chocado.” Mais risos.

Yusuf, filho de tunisianos, é carismáti-

co. Ele quer continuar a brincadeira, mas um de seus amigos o abraça. E diz: “Vamos sair daqui, não queremos servir de palhaços para a imprensa”. Mas o motivo do abraço parece ser outro. A

poucos passos, quatro rapazes encapuzados avançam, com passos determinados, na nossa direção. Um jovem da turma de Yusuf, sua voz e olhar traindo um misto de camaradagem e prazer com o possível confronto, avisa a reportagem: “Melhor vocês caminharem rápido, esses caras vão querer brigar”. Clichy-sous-Bois é a prova de que existem duas Franças. Isolada do mundo, sem metrô, nem sequer um escasso cinema, o nível de desemprego aqui é de 40% – a taxa média no país é de 10%. Metade dos habitantes, em sua maior parte imigrantes da África do Norte e Meridional, e seus filhos e netos nascidos na França, tem menos de 20 anos. Traficantes de drogas e pequenos criminosos perambulam pelas ruas. Esteticamente, Clichy-sous-Bois é um horror. Enormes prédios sem alma, grafite em todos os muros, uma escola que lembra um presídio, um supermercado C L E B E R B O N ATO

SUBVERSIVOS? Tudo começou aqui, no subúrbio de Clichy-sous-Bois 42

CARTACAPITAL 16 DE NOVEMBRO DE 2005

PARIS EM CHAMAS. A ira dos jovens da periferia evidencia a decrepitude de políticas sociais tímidas ou discriminatórias

com produtos de terceira categoria. Em cada esquina, grupos de jovens, invariavelmente encapuzados. Todos em grupo, como o de Yusuf. Para ir a Paris, precisam tomar um ônibus que os leva ao metrô mais próximo, num subúrbio vizinho. O percurso para a Capital das Luzes leva, aproximadamente, duas horas, segundo o vice-prefeito socialista de Clichy-sous-Bois, Stéphane Testé. “Desde a madrugada de sábado para domingo, quando um ginásio de esportes foi incinerado, estamos atravessando um período calmo”, afirma Testé, numa esquálida sala da prefeitura do bairro. “Mas as pessoas estão amedrontadas, claro.” Ele esperava que Clichy-sousBois poderia inflamar-se de tal forma? “Olha, não esperávamos ser o epicentro dessa crise nacional, mas os ingredientes para uma reação violenta coexistem aqui faz décadas.”

V I CTO R TO N E L L I / R E U T E R S

Foi nessa periferia erguida às pressas para abrigar habitantes das colônias francesas do Norte da África, a partir do fim dos anos 50, que dois adolescentes muçulmanos morreram, eletrocutados, numa estação de transmissão elétrica. Pouco após o anúncio, em 27 de outubro, da morte de Zyed Benna, 17 anos, e Bouna Traore, 15 anos, começaram os distúrbios. O ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, 50 anos, logo entrou em cena... para dizer que os “amotinadores” são uma “escória”. Resultado: os ataques se multiplicaram. Desde então, uma investigação tenta apurar se, de fato, os dois adolescentes estavam fugindo da polícia. Qualquer que seja o veredicto, como todos os jovens muçulmanos ou africanos, provavelmente, eles sabiam que estava sendo realizada mais uma batida policial. Habituados a ter de mostrar documentos a policiais, talvez tenham tentado evitar um interrogatório, que pode terminar na delegacia – e durar mais de quatro horas. Mas, se choques entre adolescentes e a polícia não são novidade, nunca tiveram tanta amplitude. As imagens de bombeiros tentando apagar o fogo de milhares de carros, ônibus, creches, escolas, supermercados e prédios incendiados viraram rotina. O mesmo se pode dizer dos embates entre a polícia e jovens encapuzados. Cenas de insurreições de Terceiro Mundo – e agora em CARTACAPITAL 16 DE NOVEMBRO DE 2005

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Nosso Mundo “A FRANÇA É UM PAÍS RACISTA” Segundo o cientista político Stéphane Monclaire, o país não possui um autêntico sistema de integração social

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CartaCapital: Estamos assistindo a uma crise do modelo francês de integração social? Stéphane Monclaire: Não há crise porque jamais houve uma política verdadeiramente de integração dessa população de imigrantes e seus descendentes. A crise que estamos atravessando agora é metassocial. “Meta”, em grego, quer dizer ao lado. Os grupos hoje incendiando o que encontram pela frente são jovens à margem da sociedade e em vias de exclusão. Vivem nos subúrbios, ao lado das cidades. Cidades onde há riqueza, emprego. Onde há o Estado, com suas funções regulares e de providência. Nos subúrbios, eles estão marginalizados porque nunca os integramos. Os esforços de integração foram tardios, ou demasiadamente parcimoniosos. E, portanto, insuficientes. CC: Mas não é exagero dizer que não existe um modelo social? SM: São os políticos que nos fazem crer que esse modelo social existe. Sim, há um modelo para a previdência social. Há um modelo no que concerne ao lugar do serviço público na economia francesa. Mas não existe a integração das populações deserdadas, pobres. E, sobretudo, das populações vindas da imigração. Estamos pagando a conta de uma série de erros – e pela ausência de uma política de integração. CC: O problema não é novo. SM: É muito velho. No pós-Segunda Guerra Mundial, houve pessoas que renunciaram à nacionalidade argelina e escolheram a francesa. Entraram no Exército francês. E o Estado francês tratou-os muito mal. Não lhes concedeu nenhum direito, somente pensões de miséria. Antes disso, o Estado francês comportou-se muito mal com populações que não são brancas de pele, ou de descendência francesa. Na Primeira Guerra Mundial, colocávamos na primeira fila os batalhões vindos da África... CC: Como os americanos com os negros... SM: Exatamente. E, nos anos 50, a França 44

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trouxe da África do Norte ou Meridional, dezenas de milhares de trabalhadores. Foram colocados em favelas. O Estado não considerou suas identidades culturais. Nenhuma mesquita foi construída. Em seguida, as favelas foram substituídas por alojamentos sociais. Nos anos 60, eram construídos entre 500 mil e 600 mil alojamentos por ano. Só que esses prédios eram monstruosos. Não havia prazer de viver neles. Não desenvolveram, nesses subúrbios, serviços públicos suficientes. E nem zonas de emprego. Aí veio o primeiro choque do petróleo (1973). As primeiras populações que sofreram foram as dos imigrantes.

FOTO S : C L E B E R B O N ATO

téphane Monclaire é professor de Ciências Políticas da Sorbonne. Suas especialidades são as políticas francesa e brasileira.

CC: O que o senhor achou das propostas do premier Dominique de Villepin na sua tentativa de acalmar a crise? SM: Ele disse, por exemplo, que vai multiplicar por três as bolsas estudantis por mérito.Essa medida vai beneficiar aqueles que merecem essas bolsas, claro. Mas o problema essencial nesses bairros é o da escolarização insuficiente. Ou seja, não é para os melhores alunos que temos de dar bolsas de estudo. Villepin precisa pensar numa política de habitação para essas cidades-dormitório, sem empregos. E é escandaloso que o direito ao voto não tenha sido dado aos imigrantes. Eles deveriam votar, no mínimo, em eleições locais.

“É escandaloso que o direito ao voto não tenha sido dado aos imigrantes”

CC: O senhor teria números que ilustrem o legado dessa política iniciada nos anos 50? SM: Existem, hoje, 717 bairros que concentram 7% da população francesa. São 4,5 milhões de habitantes. Nesses bairros, o nível de desemprego é o dobro ou o triplo da média francesa. São zonas sem empregos.

CC: Por que não deram o direito de voto aos imigrantes, como foi feito, por exemplo, no Reino Unido? SM: Temos medo de desagradar às camadas mais reacionárias, mais racistas da ALVO DISPERSO. Na falta da Bastilha, os desprovidos de direitos espalham destruição

toda a França. Entre as cidades atingidas pela violência, inscrevem-se Marselha, Toulouse, Metz, Lens, Saint-Étienne, Lille, Cannes, Nice e Estrasburgo, sede do Parlamento Europeu. E a onda de violência parece ter contagiado países vizinhos. No domingo 6, houve incêndios em Bruxelas, capital da União Européia, Berlim e Bremen, no norte da Alemanha.

CC: Sarkozy, de fato, foi infeliz na sua escolha de termo. Mas há também outros responsáveis por essa crise. SM: Nos últimos 40 anos, todos os governos são responsáveis por essa situação nos subúrbios. Nossas elites políticas provêm dos mesmos meios sociais, a burguesia. Estudam nas mesmas grandes escolas, fazem os mesmos estágios na alta administração. Portanto, todos têm uma visão comum. E, diante de certas situações problemáticas, reagem de forma idêntica. Esperávamos de um governo como o de (Lionel) Jospin (premier socialista, 19972002), que se dizia de esquerda, uma política de discriminação positiva. Por que não fizeram isso? Porque o eleitorado, hoje, é essencialmente de classe média, não popular. E, portanto, a discriminação positiva lhes interessa muito pouco porque afetaria seus filhos na competição escolar e na vida pública. Lembre-se de que (François) Mitterrand (presidente socialista, 1981-1995) falou do direito de voto para estrangeiros no início dos anos 80. CC: Mas Mitterrand, apesar de se dizer socialista, era de direita. SM: Como sugeri há pouco, sejam de esquerda, sejam de direita, para os políticos, a sociedade significa cidades, não as periferias. Pensam na chamada “França profunda” (rural e tradicional), não na França multicolorida. E basta andar pelo bairro dos Les Halles, em Paris, para ver essa França real. Mas essa não é a França dos políticos. CC: A França é racista? SM: É um país racista. Mas esse racismo é hoje menos duro em relação ao que foi entre as duas grandes guerras. O mesmo se pode dizer sobre o anti-semitismo, que prevalece, mas, felizmente, de forma menos violenta. De qualquer modo, esse racismo latente permeia os projetos políticos. Resultado: as populações vindas da imigração ficam marginalizadas.

graça na televisão. Autorizou os governos regionais, sob uma lei de Estado de emergência, o direito de impor toque de recolher. E chamou mais de 1,5 mil reservistas para ajudar os 8 mil policiais que já estavam nas áreas ditas “quentes”. Ao mesmo tempo, prometeu programas para ajudar jovens nas áreas pobres. Avaliou Antoine de Gaudemar, num editorial do diário Libération: “Através

FORA DE CONTROLE. As ações sociais anunciadas pelo governo não parecem suficientes para baixar a temperatura

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França. Mas esse é um risco que tem de ser tomado. O que pedem os jovens? O reconhecimento. Se eles têm raiva de (Nicolas) Sarkozy não é porque o ministro do Interior propôs o voto dos imigrantes, mas porque ele os chamou de “escória”. O Estado não os reconhece nos seus direitos mais fundamentais.

Websites do Ministério do Exterior de vários países aconselham seus cidadãos a não viajar para a França, o país que mais recebe turistas no mundo. Na segunda-feira 7, a crise assumiu novas dimensões. Jean-Jacques Le Chenadec, um aposentado de 61 anos que havia sido espancado na semana anterior e estava em estado de coma, perdeu a vida. Dezenas de policiais encontravam-se feridos devido a embates envolvendo armas de fogo. Na noite do mesmo dia, Dominique de Villepin, o primeiro-ministro de 51 anos, dava, pela primeira vez desde o início do conflito, o ar de sua

de regras de exceção, a polícia está ganhando ainda maiores poderes”. Ou seja, ao invocar uma lei de 1955 que a França usou para reprimir os insurgentes na guerra de independência da Argélia (1954-1962) – no território da excolônia –, o primeiro-ministro manda o seguinte recado: os descendentes dos imigrantes serão tratados da mesma forma, agora em território francês. No dia seguinte, terça-feira 8, Sarkozy, filho de imigrantes húngaros, voltou a se manifestar. Em Toulouse, elogiou os policiais e as “tradições” da França. E disse que não gosta de eufemismos. “Chamemos os jovens de vândalos.”

A revolta parece ter contagiado vizinhos. Houve incêndios em Bruxelas, Berlim e Bremen

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de classe média alta em Paris, não está satisfeito com sua vida na França. “Tenho 30 anos, um mestrado em marketing e, pelo fato de ser tunisiano, não encontro emprego.” Eis um fato que parece comprovar a discriminação contra Mustafa: embora a França tenha 5 milhões de muçulmanos – numa população de 60 milhões –, não há sequer um deputado islâmico na Assembléia Nacional. Stéphane Monclaire, professor

“Não tento me ‘integrar’, e não gosto desse termo”, declara, decepcionada, uma argelina

Sentada no café L’Horizon, no elegante bairro de Saint-Germain-des-Près, Alem, médica argelina de nacionalidade francesa, diz: “A questão transcende a guerra na Argélia. O francês tem um problema com o ‘outro’, com o imigrante africano”. Ao chegar a Paris, em 1992, Alem, que hoje tem 40 anos, teve dificuldade em encontrar moradia por conta de seu nome. Quando finalmente achou um estúdio, e havia acabado de assinar o contrato, o dono viu seu passaporte argelino. 46

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Os discursos de Villepin e Sarkozy, diz a CartaCapital Jean-Paul Pierrot, diretor do diário comunista L’Humanité, “fazem parte de suas campanhas para as presidenciais de 2007”. Villepin faz um discurso mais moderado, mas, no fundo, tanto o premier quanto Sarkozy fazem a mesma política. O objetivo é conquistar os eleitores da extrema-direita, aqueles que votariam no Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen. “O problema”, continua Pierrot, “é que os franceses ainda não compreenderam o mal que fizeram às suas antigas colônias no Norte da África. E na guerra na Argélia. O argelino ainda é visto como uma pessoa perigosa.”

de Ciências Políticas da Sorbonne, diz alto e claro que a França é um país racista (entreREFORÇO POLICIAL. vista à pág. 44). Isso porque, ele Batida policial em argumenta, nunca houve um Clichy-sous-Bois verdadeiro modelo de integraapós o início da ção nesse país. Monclaire diz onda de violência que uma reforma capital, para “A senhorita não é francesa?”, indagou. mudar o sistema do Imposto de Renda, “Não, isso é um problema?” deveria ter sido feita há décadas. As ca“Isso muda tudo”, retrucou o pro- madas populares são isentas do imposprietário do imóvel. to porque a renda delas fica abaixo do Alem, filha de um empresário e nível mínimo obrigatório. Ou seja, uma uma diretora de escola, formada em vasta maioria dos imigrantes paga immedicina e educada em escolas fran- postos indiretos e não sabe o que é feicesas na Argélia, diz to de seu dinheiro. “Se fizessem um que, na rua, chorou. A cheque para pagar seus impostos, se partir de então, tenta- perguntariam o que é feito de seu diva sempre se justificar nheiro. Teriam, assim, maior respeito quando as pessoas per- pelo seu bairro, pela sua cidade.” ■ guntavam de onde vinha. “Sou argelina, mas estudei em escolas francesas”, dizia. “Mas, agora”, ela acrescenta, “não quero nem saber: digo que sou argelina. Não tento me integrar, e não gosto desse termo, ‘integrar’.” Ela dá uma tragada no seu cigarro e acrescenta: “A França me convém, e basta”. Aqui, Alem diz que tem acesso às artes e ciências. “E, como mulher, vivo muito melhor na França do que na Argélia. Lá, uma minoria de mulheres com dinheiro vive uma vida paralela. Se estivéssemos na Argélia, eu não estaria conversando num café, não teria toda essa independência.” Claro, Alem sabe que, por ser médica no setor de emergências e falar também o árabe, seus serviços são apreciados. Mas Mustafa, que trabalha num pequeno supermercado no Cinquième, bairro TESTÉ. Uma explosão previsível, diz o vice-prefeito

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