A função contra-fática do direito e o Novo CPC

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A função contra-fática do direito e o Novo CPC A ser publicado na Revista da AASP. Abril/2015. Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual pela PUCMINAS/ Universitá degli Studi di Roma La Sapienza, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG. Sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Secretário Geral Adjunto do IBDP. Membro Fundador da ABDPConst.

Desde as primeiras aulas de um curso jurídico o aluno aprende que uma das funções primárias do direito é a de impedir e fiscalizar comportamentos “inadequados” que as pessoas assumiriam dentro da busca de seus interesses pessoais. Com o sistema jurídico se busca coibir comportamentos injurídicos que ordinariamente seriam desempenhados salvo, em contraponto, quando se adote uma determinação normativa que os coíba, o que poderíamos nominar de função contrafática. Esta função pode ser percebida em situações cotidianas como a de se parar o automóvel no semáforo em um “sinal vermelho” para não colidir com outro veículo e, obviamente, não ser multado. Tal tendência a parar aumenta exponencialmente se o semáforo for municiado do sistema de “registro de avanço” em decorrência do acréscimo de fiscalidade. Mas qual seria a conexão desta função básica do direito com o Novo Código de Processo Civil? Respondo: toda! Ao se perceber uma série de vícios e descumprimentos à normatização (inclusive constitucional) a nova legislação tenta, contra-faticamente, implementar comportamentos mais consentâneos com as finalidades de implementação de efetividade e garantia de nosso modelo processual constitucional. Este é um de seus grandes pressupostos ao se buscar corrigir problemas sistêmicos. Adota-se, assim,

uma série de “registros de avanço” normativos para uma plêiade de

comportamentos não cooperativos habitualmente adotados pelos sujeitos processuais.

E para não aparentar se estar procedendo uma discussão meramente teórica nos valeremos de alguns singelos exemplos. Passemos a eles: Uma situação recorrente na prática (no mundo fático) que vivenciamos é a do magistrado, no momento de fixar honorários sucumbenciais em causas de grande relevância econômica, especialmente em face da Fazenda Pública, estabelecer um valor irrisório em prol do advogado, que desconsidera todo o empenho, zelo e esforço empreendido pelo profissional ao longo da tramitação processual. Tal hipótese fomenta o uso de recursos e muitas vezes conduz, ao final, a um resultado indevido com a chancela dos valores anteriormente fixados. O Novo CPC, contra-faticamente, ao constatar tal fenômeno cria critérios normativos que limitam a determinação judicial a parâmetros que atendam o grau de trabalho empreendido pelo patrono na causa, em seu art. 85. 1 O dispositivo fixa limites mínimos e máximos de fixação de honorários, inclusive estabelecendo critérios precisos, inclusive em relação à Fazenda Pública.                                                                                                                 1 “Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. [...] § 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar de prestação do serviço; III - a natureza e a importância da causa; IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. § 3º Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais: I – mínimo de dez e máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido até duzentos salários mínimos; II – mínimo de oito e máximo de dez por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de duzentos salários mínimos até dois mil salários mínimos; III – mínimo de cinco e máximo de oito por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de dois mil salários mínimos até vinte mil salários mínimos; IV – mínimo de três e máximo de cinco por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de vinte mil salários mínimos até cem mil salários mínimos; V – mínimo de um e máximo de três por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de cem mil salários mínimos. § 4º Em qualquer das hipóteses do § 3º: I – os percentuais previstos nos incisos I a V devem ser aplicados desde logo quando for líquida a sentença; II - não sendo líquida a sentença, a definição do percentual, nos termos dos referidos incisos, somente ocorrerá quando liquidado o julgado; III – não havendo condenação principal ou não sendo possível mensurar o proveito econômico obtido, a condenação em honorários dar-se-á sobre o valor atualizado da causa; IV - será considerado o salário mínimo vigente quando prolatada sentença líquida ou o que estiver em vigor na data da decisão de liquidação. § 5º Quando, conforme o caso, a condenação contra a Fazenda Pública ou o benefício econômico obtido pelo vencedor ou o valor da causa for superior ao valor previsto no inciso I do § 3º, a fixação do percentual de honorários deve observar a faixa inicial e, naquilo que a exceder, a faixa subsequente, e assim sucessivamente. § 6º Os limites e critérios previstos nos §§ 2º e 3º aplicam-se independentemente de qual seja o conteúdo da decisão, inclusive aos casos de improcedência ou extinção do processo sem resolução do mérito. [...]”

Outra patologia recorrente na prática que o Novo Código coíbe é a da criação pelos Tribunais superiores de entendimentos que patrocinam um maior rigorismo no juízo de admissibilidade recursal, de modo reduzir sua carga de trabalho: a famigerada jurisprudência defensiva. Tal prática chega ao requinte de promover a edição de enunciados de súmula com o objetivo de criar ferramentas formais de impedimento do julgamento de mérito das impugnações às decisões. Em face do vício manifesto da jurisprudência defensiva, e em sua função contrafática, desde a parte geral (art. 4o do Novo CPC2), a nova lei impõe premissas interpretativas e um novo formalismo que induz o máximo aproveitamento da atividade processual e a primazia do julgamento do mérito34. Determina-se, assim, nos moldes do art. 930, 5 a impossibilidade do relator dos recursos inadmiti-los antes de viabilizar a correção dos vícios, como, por exemplo, de ausência de documentação6 ou de representação7. Ainda estabelece, em seu art. 216, §4º, que um recurso praticado antes do termo inicial do prazo seja considerado tempestivo. Ou seja, se busca limitar o comportamento não cooperativo dos tribunais de impedir atividades processuais por rigorismos formais desprovidos de fundamento constitucional adequado.                                                                                                                 2

Art. 4º As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. 3 THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015 4 NUNES, Dierle; CRUZ, Clenderson Rodrigues da Cruz; DRUMMOND, Lucas Dias Costa. Novo CPC, formalismo democrático e súmula 418 do STJ: primazia do mérito e máximo aproveitamento. Revista justificando. Disponível em: http://justificando.com/2014/09/18/novo-cpc-formalismodemocratico-e-sumula-418-stj-primazia-merito-e-o-maximo-aproveitamento/ 5 Art. 930. [....] Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível. 6 Este também é o entendimento do Enunciado n. 82 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): (art. 930, parágrafo único; art. 936, § 1º) É dever do relator, e não faculdade, conceder o prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive os excepcionais. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo). Salvador, 2013. 7 Conforme o Enunciado n. 83 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): “Fica superado o enunciado 115 da súmula do STJ após a entrada em vigor do NCPC (“Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”). (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo)”. Salvador, 2013.

E por falar em comportamentos não cooperativos, todos sabemos que o ambiente processual sempre está permeado dos mesmos, seja o advogado que se vale de manobras de má fé com a finalidade de atrasar o procedimento quando isto o interessa, sejam os juízes que não auxiliam as partes a superarem dificuldades que as impeçam do exercício de faculdades ou ônus processuais, como os probatórios (dever de auxílio), as surpreende com decisões trazendo fundamentos não discutidos ao longo do processo e, não enfrentam todos os argumentos relevantes apresentados pelas mesmas. E estes são apenas algumas situações não cooperativas. Ao se vislumbrar tais hipótese o Novo CPC impõe uma premissa forte (contra-fática) ao adotar de uma teoria normativa da comparticipação8 (cooperação relida) que impõe, mediante vários dispositivos, a necessidade de se repreender comportamentos que não atendam a boa fé objetiva e, ao mesmo tempo, criam mecanismos de fiscalidade para as condutas não cooperativas dos sujeitos processuais. Aponte-se que não se trata, como alguns insistem em dizer, de uma concepção utópica, pois não se defende uma concepção de solidariedade no processo, nem se adota mais a visão tradicional de colaboração que estabelecia quase uma hierarquia entre juiz e partes/advogados, na qual as últimas deveriam ajudar o primeiro. Aqui se trata de uma concepção normativa contra-fática que delimita ferramentas de controle de todos os sujeitos processuais ao se perceber a interdependência entre suas atividades e fazendo com que todas ofertem um importante papel dentro do sistema processual (divisão de papéis). Assim, o CPC 2015 traz uma série de preceitos normativos louváveis que viabilizarão um diálogo mais proveitoso entre os sujeitos processuais com a adoção, por exemplo, do dever do juiz de se levar em consideração os argumentos relevantes das partes (Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen), atribuindo ao magistrado não apenas o dever de tomar conhecimento das razões apresentadas (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerá-las séria e detidamente (Erwägungspflicht) em seus arts. 10 e 486, §1º, IV, do NCPC.

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NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.

Há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas sim como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit)9 sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa. Tal concepção significa que não se pode mais acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo possa ser meramente fictícia, ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no plano substancial. No sistema alemão, o princípio, nos termos do art. 103, § 1.º, da Grundgezets (Lei Fundamental alemã) inclui não só o direito de se expressar, mas também o direito a que essas declarações sejam devidamente levadas em consideração. Julgados do Tribunal Constitucional Federal (por exemplo, BVerfGE 70, 288 NJW 1987, 485) localizam esse dever como decorrência do contraditório (Anspruch auf rechtliches Gehör), apontando que ele assegura às partes o direito de ver seus argumentos considerados. No entanto, o entendimento corrente no Brasil até o advento do Novo CPC, inconstitucional e ilegal, por violador do dever constitucional e legal de fundamentação das decisões judiciais, autoriza que o Estado-juiz não enfrente um argumento jurídico relevante da parte, ou seja, mesmo argumentos que invoquem uma norma jurídica aplicável ao processo são singelamente desconsiderados por inúmeras decisões judiciais, que não os acolhem. 10

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BAUR, Fritz. Der Anspruch auf rechliches Gehör. Archiv für Civilistiche Praxis, Tubingen, J.C.B. Mohr, n. 153, p. 403, 1954. 10 Cf. com mais argumentos NUNES, Dierle. O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-Minas, 2003, dissertação de mestrado; NUNES, Dierle. O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008. NUNES, Dierle, THEODORO JR, Humberto. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: uma garantia de influência e não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. RePro, v. 168. 2009.

E o problema, na atualidade é de índole prática, eis que a ausência de análise de todos os argumentos relevantes, em especial pelos tribunais superiores, induz a falta de coerência e estabilidade em sua jurisprudência, e se abre para uma constante reabertura a que novos debates e novos argumentos, que já poderiam ter sido analisados desde o primeiro recurso ou procedimento, sejam levados em consideração, fomentando uma anarquia interpretativa. Os exemplos poderiam aqui se multiplicar à exaustão, mas creio que fugiriam ao propósito provocativo deste breve ensaio. No entanto, para terminar, há de se perceber que devemos afastar aqueles argumentos recorrentes “de que isto não funcionará porque sempre foi diferente” uma vez que os mesmos negam exatamente o papel corretivo e a função contra-fática do direito, que se presta a fiscalizar e a implementar balizas normativas (correção normativa) que os direitos, especialmente fundamentais, se prestam. Não podemos tolerar um processo judicial não dialógico e cooptado tão somente por imperativos de máxima produtividade e de qualidade zero. O Novo CPC busca, assim, dentro de seus estritos limites, por ser tão somente uma lei e não uma panaceia, ofertar um balizamento contra-fático que possa otimizar a atividade processual e melhorá-la qualitativamente. Resta-nos agora compreendê-lo e aplicá-lo sempre sob a melhor luz e em conformidade com sua parte geral, sua unidade e suas premissas norteadoras.11

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Para a devida compreensão cf. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015.

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