A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL FRENTE ÀS FANFICTIONS

July 1, 2017 | Autor: Isabel Placido | Categoria: Fan Studies, Fandom, Fan Fiction, Direito Civil, Fanfiction, Direito Autoral
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP

PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL ISABEL ANACLETO PLACIDO

A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL FRENTE ÀS FANFICTIONS

Criciúma - SC 2013

ISABEL ANACLETO PLACIDO

A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL FRENTE ÀS FANFICTIONS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao setor de Pós-Graduação da Universidade Anhanguera-Uniderp, como exigência parcial para a obtenção do título de especialista em Direito Civil, sob a orientação do Prof. Renato Sedano Onofre.

Criciúma - SC 2013

ISABEL ANACLETO PLACIDO

A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL FRENTE ÀS FANFICTIONS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Direito Civil da Universidade Anhanguera-Uniderp.

Data: ____ / ____/ ______.

Nota: ___________.

Banca Examinadora:

________________________________________ Prof. Renato Sedano Onofre (Orientador)

________________________________________ Prof. XXXXXXXXXXXXX

________________________________________ Prof. XXXXXXXXXXXXXX

À minha família e aos meus amigos, dedico este trabalho. A primeira apresentou-me às histórias; comigo.

os

últimos,

compartilham-nas

AGRADECIMENTOS

Aos autores, estes fazedores de sonhos e de maravilhas, agradeço com a mesma sinceridade, devoção e emoção de Severo Snape: "- Depois de todo este tempo?". " - Sempre". E lembrem-se: "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades".

Agradeço, ainda: A aqueles que acham o máximo dedicar um livro "ao verme que primeiro lhe roer as carnes"; Que explicam qualquer coisa te chamando de "pequeno padawan"; Que dizem que um livro é igual à T.A.R.D.I.S.: pequeno por fora mas muito, muito maior por dentro; Que nunca perdem sua muiteza; Que se calam quando alguém diz não gostar de seu filme favorito, pois a Primeira Diretriz da Frota Estelar proíbe a intervenção em "culturas primitivas"; Que pronunciam corretamente vingardium leviosa; Que reconhecem a verdade universal de que "um homem solteiro, possuidor de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa"; Que sabem que não há nada elementar no Dr. Watson; Que entendem a Morte como sendo uma moça ágil vestida em roupas de aeróbica; Que sabem que é preciso 1.21 gigawatt para um capacitor de fluxo funcionar.

Finalmente, caso tenha entendido pelo menos um destes agradecimentos - ou acrescentaria algum a esta lista -, então... Agradeço também a você.

Que a sorte esteja sempre a seu favor!

Quem conhece os segredos da imaginação Não se perde nem perde a razão Não precisa dizer de onde tirou As ideias que deixa no chão Quem passeia nos ventos Que sopram do mar Sabe que o tempo pode mudar Pode ser calmaria Pode ser temporal Fantasia ou vida real Quem não tem Um mal que não se espanta? De onde vem essa loucura santa? E quem sabe explicar, dizer o que é normal? Fantasia ou vida real? E quem sabe explicar, dizer o que é normal? Fantasia ou vida real? ("Fantasia Real", Biafra).

RESUMO

1. Este trabalho utiliza-se do método categórico-dedutivo (pesquisa doutrinária) para extrair significados de interesse público de duas fontes (enfoque hermenêutico). São estas fontes, de um lado, a prática conhecida como "fanfiction", e, de outro, os dois sistemas de proteção da criação intelectual, o "copyright" e o "droit d'auteur". O objetivo é colher elementos para a análise sobre a legalidade da "fanfiction" nestes sistemas, enfocando na legislação brasileira e norte-americana. 2. Para fins deste estudo, a "fanfiction" é entendida como o texto produzido por admirador da(s) obra(s) originária(s), produzida sem fins lucrativos e ligada declarada ou implicitamente àquela(s) obra(s). 3. Conclui-se pela possibilidade do acréscimo das hipóteses de exclusão ou limitação do direito autoral. Na lei brasileira (Lei n° 9.610/98, artigo 46), através da funcionalização do direito, ou seja, a aplicação dos princípios e cláusulas gerais. No sistema norte-americano, a própria lei ("United States Code", Título 17, Seção 107) estabelece mecanismo de análise em concreto, que obedece também a princípios gerais de interesses da coletividade. 4. Independentemente do entendimento da aplicabilidade desta limitação do direito autoral, a responsabilidade quanto à violações deverá obedecer, no Brasil, ao disposto nos artigos 186 e 187 do Código Civil Brasileiro. Ou seja, deve haver dano (ato ilícito); e, no caso de o titular do direito autoral exercê-lo abusivamente, o titular será responsabilizado também (abuso do direito autoral). 5. Nem todos os personagens e elementos são protegidos, devendo ser "suficientemente construídos" (constructos ou delineados). O mesmo se aplica à "persona" da celebridade, entendida esta como personagem por ela construída, diferente de sua pessoa real.

Palavras-chave: fanfiction; direito autoral; funcionalização do direito; limitações do direito autoral; uso justo; responsabilidade civil.

ABSTRACT

1. This work uses the categorical deductive method (doctrinal research) to extract public interest meanings from two sources (hermeneutic approach). These sources are, on the one hand, the practice known as "fanfiction", and, on the other hand, the two systems for protection of intellectual creation - "copyright" and "droit d'auteur". The objective is to gather elements to analyze the legality of "fanfiction" in these systems, focusing on Brazilian law and United States Law. 2. This study understands, "fanfiction" as a nonprofit text produced by an admirer of the original work and that is stated or implicitly connected to that work. 3. It concludes that there is a possibility to extend the cases of exclusion or limitation on copyright limitation. In the Brazilian law (Law No. 9.610/98, Article 46), through the functionalization of law, that is, the application of the principles and of the general clauses. In the American system, the law itself (United States Code, Title 17, Section 107) establishes a mechanism for analysis in concrete, which also complies with the general principles of collective interests. 4. Regardless of the understanding of the applicability of this copyright limitation, the responsibility for the violations shall comply, in Brazil, the provisions of Articles 186 and 187 of the Civil Code. In other words, there must be (unlawful) damage, and, in case the copyright holder exercises it improperly, the holder will be responsible as well (abuse of law, copyright misuse). 5. Not all characters and elements are protected and must be "sufficiently built" (constructos or delineated). The same applies to the "persona" of celebrity, understood as a character built by themselves, unlike their real person.

Keywords: fanfiction; copyright; functionalization of law; copyright limitations; fair use; civil liability.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CB

- Convenção de Berna

CG

- Convenção de Genebra

LDA

- Lei de Direitos Autorais, Lei n° 9.610/1998

OMPI

- Organização Mundial da Propriedade Intelectual

TRIPS

- Trade Related Intellectual Property Aspects

USC/17

- United States Code, Título 17

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

CAPÍTULO I O FENÔMENO/GÊNERO LITERÁRIO FANFICTION. ................................................. 14 1.1 Abordagem inicial. .......................................................................................................... 14 1.2 Uma (tentativa de) busca das origens. ............................................................................ 16 1.3 Práticas, terminologias e números. ................................................................................. 21 1.4 Fenômeno e/ou (sub)gênero literário. ............................................................................. 25

CAPÍTULO II DIREITO DE AUTOR E COPYRIGHT ............................................................................... 31 2.1 As origens em comum. ................................................................................................... 31 2.2 O Copyright. ................................................................................................................... 33 2.3 O Droit d'Auteur. ............................................................................................................ 36 2.4 Os Direitos Morais. ......................................................................................................... 38 2.5 Os Direitos Morais no Copyright.................................................................................... 39 2.6 Convenções e organismos internacionais pertinentes. .................................................... 41 2.6.1 A Convenção de Berna. ............................................................................................ 41 2.6.2 A Convenção Universal ou de Genebra. .................................................................. 42 2.6.3 A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). .................................. 43 2.6.4 O Trade Related Intellectual Property Aspects (TRIPS). ........................................ 44 2.7 Alguns elementos essenciais dos direitos autorais. ........................................................ 45 2.7.1 O que se protege: as obras compreendidas na proteção legal. ................................. 46 2.7.2 Para quem se protege: quem são titulares dos direitos autorais. .............................. 48

2.7.3 Como se protege: quais são os direitos exclusivos. ................................................. 49 2.7.4 Quando se protege: as condições para que uma obra seja protegida. ...................... 50

CAPÍTULO III A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO FRENTE ÀS FANFICTIONS ......................... 54 3.1 O Direito Civil Constitucional: a interpretação funcionalizada do Direito Autoral Brasileiro. .............................................................................................................................. 55 3.2 Fanfiction: a obra derivada. ............................................................................................ 58 3.3 Limitações à exclusividade do direito autoral. ............................................................... 62 3.3.1 Fair Use.................................................................................................................... 62 3.3.2 Art. 46 da Lei n. 9.610/98: número aberto? ............................................................. 65 3.4 As fanfictions e a Responsabilidade Civil no Direito Autoral. ....................................... 69 3.4.1 O dano. ..................................................................................................................... 70 3.4.2 O abuso de direito. ................................................................................................... 77 3.5 Quando os elementos e personagens são protegidos. A celebridade-personagem. ........ 79 3.5.1 Personagens e elementos da história. ....................................................................... 80 3.5.2 A celebridade como personagem. ............................................................................ 83 3.6 Um novo ator sobre ao palco: o Kindle Worlds. ............................................................. 84

CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................... 86

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 90

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE ......................................................... 95

INTRODUÇÃO

O mundo mudou. Esta é uma verdade que não para de ser repetida e, ainda assim, o Direito continua seu esforço de ajustar-se a este novo mundo. Porém, a velocidade com que o faz não é satisfatória: nunca o foi, na realidade. O diferencial é que, talvez, esta lentidão jamais foi tão sentida como nos presentes dias. Com as novas possibilidades do mundo digital e da Internet, os usuários, maravilhados com seus "novos poderes", não entendem a relevância do que quer que se proclame protegido. Aparentemente, não há prejuízo. Sem entender que valor é este colocado acima de seus valores, o cidadão-usuário destas tecnologias dá as costas a este complicado sistema que, longe de se dar ao trabalho de lhe explicar onde está o mal em suas práticas, esconde-se atrás de palavras difíceis e conceitos pouco claros. O ambiente digital torna-se, assim, um ótimo exemplo de desobediência civil. Afinal, como diz o velho brocardo jurídico: "Quando o Direito ignora a Realidade, a Realidade ignora o Direito". Assim, a comunicação instantânea e digital na Internet trouxe à luz uma prática que já vinha sendo desenvolvida muito tempo antes do primeiro computador: admiradores de determinadas obras que escrevem histórias baseadas nelas e as compartilham online. O nome que esta prática recebeu foi fanfiction. Na Wikipédia, o verbete fanfic [fanfiction] aparece com a seguinte afirmação: "Normalmente os fanfics costumam infringir as leis sobre direito autoral, já que utilizam personagens criados originalmente por terceiros"1. No entanto, questiona-se se esta afirmação, presente em uma das enciclopédias online mais famosas da atualidade, estaria correta. Ora, diariamente, tomamos conhecimento de notícias acerca de jovens que passam a ganhar interesse pelo mundo da leitura, através do engajamento online com grupos de admiradores desta ou daquela obra ou artista. Além da leitura, interessam-se pela prática da escrita. São noticiados os casos de novos autores, que surgiram primeiramente nestes locais. Novas obras, cujas criações foram estimuladas dentro destes ambientes; e só foram criadas porque, primeiramente, o universo de outro autor permitiu o desenvolvimento das habilidades deste novo.

1

Disponível em: . Acesso em 24 nov. 2013.

12

Surgem criações que são geradas e compartilhadas no espírito comunitário, gratuitamente, com intuito de entretenimento, cultura, educação. A expressão individual ganha instrumentos capazes de encorajar até o menos hábil a se expressar, contar o que lhe vai na alma. Finalmente, a identidade de grupo, de compartilhamento de interesses, contribui para uma reversão da lógica de mercado para uma lógica de afeição. Advogados ligados às editoras e autores parecem muito certos do conteúdo da lei. Mas nenhum estudo ou abordagem sobre o tema parece ter se desenvolvido no país. As implicações legais sobre esta prática dos fãs esbarram no modo quase superficial como se trata as questões de direito autoral. Enfim, faltam muitos "porquês" - ou seja, razões de justificativa - no que tange a uma "proteção" da propriedade intelectual, mormente em casos como o em tela, onde o interesse patrimonial passa ao largo. O foco do presente trabalho será, então, a produção de textos destes fãs, excluindo-se outros tipos de obras, como vídeos, músicas, desenhos e montagens gráficas. Esta prática textual se apresenta de forma bem variada, não podendo a fanfiction ser caracterizada como mera imitação da obra originária. A intenção do escritor destes textos não é plagiar seu autor favorito, e sim acrescentar algo de seu à obra admirada e a dividir com outros fãs. A liberdade dentro dos grupos online de fãs é larga, mas não total, uma vez que cada espaço tem suas próprias regras. Ainda assim, isto possibilita ir muito além do universo da obra originária. Logo, parece inviável qualquer enquadramento da fanfiction como simples plágio ou contrafação. É preciso investigar como o Direito entende - ou possivelmente pode entender esse "não tão novo" fenômeno. Se não pelas razões de interesse público acima descritas, ao menos como resposta da ciência jurídica a estes grupos que se vêem marginalizados pela estrutura legal. Não se parte do pressuposto de que os autores seriam algum tipo de "vilões" neste embate. Antes, deseja-se investigar se existe algum prejuízo - moral, que seja, mas se ele existe - a ponto de justificar a limitação do direito de expressão das milhões de pessoas envolvidas. Sim, milhões. Os números apresentados no primeiro capítulo podem nos levar com certa segurança a esta conclusão. Para tanto, utiliza-se o método categórico dedutivo (pesquisa doutrinária), com enfoque hermenêutico. Apresentar-se-á as questões dentro de três capítulos, os dois primeiros visando ressaltar as nuances fundamentais dos dois valores em colisão, a prática dos fãs e o direito autoral. Assim, o primeiro capítulo tratará de apresentar a fanfiction, seus termos e significados. Também

13

servirá para lançar algumas luzes sobre seu papel histórico, social e cultural. O segundo capítulo será dedicado à busca da essência dos valores do direito autoral, contrabalanceandose os dois principais sistemas mundiais em vigor, o droit d'auteur (adotado pelo Brasil) e o copyright. No terceiro capítulo, finalmente se fará o confronto da prática das fanfictions com o ordenamento jurídico pátrio, a legislação estrangeira (mormente a americana) e os acordos internacionais. A abordagem internacional do tema é essencial para a fase global em que se encontra o direito autoral nos dias atuais. Reconhece-se, desde logo, que o presente estudo não esgotará o tema. A amplitude das questões envolvidas vão muito além daquilo que aqui se tratará. No entanto, ambiciona-se tão somente uma primeira abordagem que, quem sabe, posteriormente poderá ser desenvolvida.

CAPÍTULO I O FENÔMENO/GÊNERO LITERÁRIO FANFICTION.

"Você já se perguntou onde a história termina e como tudo começou? Eu já (eu já, eu já, eu já) Você já sonhou que era a estrela do filme, com a pipoca na mão? Eu já (eu já, eu já, eu já)". 2 ("Would You Be Happier?", The Corrs).

Antes de se enfrentar qualquer problematização que a prática conhecida como fanfiction possa acarretar em relação ao Direito, é necessário investigar o conceito e valor históricosocial do que seja este fenômeno, para só então buscar-se o seu sentido frente à ciência jurídica.

1.1 Abordagem inicial.

O vocábulo fanfiction, proveniente da língua inglesa, é a união de duas outras palavras: fan (fã) e fiction (ficção). A origem de fiction é o radical latino fict, que confere às formas verbais o sentido de "criar ou inventar" (CAVALIERI, 2011. p. 22). Por sua vez, fan (diminutivo de fanatic: fanático, do latim fanaticus) foi utilizado primeiramente no final do século XIX, pelos meios jornalísticos, para descrever os seguidores de times esportivos profissionais (JENKINS, 2013. Cap. 1, p. 12-16). Traduzida livremente, a expressão designa uma "ficção de fã" ou "criação de fã". A prática envolve a produção de textos literários por admiradores de determinada obra (livro, filme, série televisiva, quadrinhos, dentre outros) ou de celebridade. Estes escritos dão continuidade, preenchem lacunas ou incorporam novos pontos de vista às obras originárias; ou então, podem abordar de forma ficcional a vida de pessoas reais (no caso de celebridades). Neste sentido e para fins do presente estudo, é interessante destacar os conceitos de Maria Lucia Bandeira Vargas - no Brasil, uma das pioneiras no assunto - e de Márcio Padrão:

"A fanfiction é, assim, uma história escrita por um fã, envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro 2

Tradução livre de: "Have you ever wondered where the story ends and how it all began? / I do (I do I do I do...) / Did you ever dream you were the movie star with popcorn in your hand? / I did (I did I did I did...)".

15

envolvidos nessa prática. Os autores de fanfictions dedicam-se a escrevê-las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o original, que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado, passando a haver a necessidade de interagir, interferir naquele universo ficcional, deixar sua marca de autoria". (VARGAS, 2005. p. 21). "Por fanfiction estamos nos referindo ao hobby literário cujo objetivo é escrever histórias baseadas em universos ficcionais – personagens, cenários e acontecimentos – criados por terceiros. Na grande maioria dos casos, a principal inspiração dos escritores de fanfiction são histórias lançadas por produtos da indústria cultural, como livros, filmes, desenhos animados, quadrinhos e seriados de TV". (PADRÃO, 2007).

No Brasil, verifica-se a prevalência da forma composta "fanfiction", tanto em trabalhos científicos quanto nas páginas na internet que abrigam os mencionados textos - razão pela qual se mantém a unidade da nomenclatura no presente trabalho. No entanto, no exterior (leiase, Estados Unidos), localiza-se majoritariamente a forma "fan fiction", preferência notada especialmente no âmbito dos escritos jurídicos. Também podem ser encontrados os diminutivos fanfic ou simplesmente fic (BALL, 2007, p. 14). Embora o termo seja associado largamente à atividade escrita, há quem defenda que possa ser aplicado mesmo às expressões apresentadas em outras mídias, como o vídeo e a música, sendo todas elas "ficção de fã" e, portanto, fanfiction (FALCHETTI, 2011. p.16). Encontra-se no trabalho do jurista americano Aaron Schwabach (2011, p. 8) a seguinte classificação: a) "fan fiction" incluiria todas as ficções derivativas e trabalhos relacionados criados por fãs, tanto autorizadas ou não pelo autor ou detentor dos direitos do trabalho originário; b) "fanfic" designa a vasta maioria de fan fiction, ou seja, a publicada online (ou nos dias pré-Internet, nas fanzines), sem a permissão expressa do autor ou outros detentores dos direitos, para uma audiência de outros companheiros fãs; c) "fanfic" é, portanto, um subtipo de "fan fiction" e esta, por sua vez, é um subtipo de "fan work" (trabalho/obra de fã). É bem verdade que, hodiernamente, a prática se apresenta das mais variadas formas, sendo que sua face mais conhecida é estudada dentro dos fenômenos da "cultura de convergência" e "cultura da participação". E, como bem lembrado por Márcio Padrão (acima citado), é comumente associada à cultura de massa, aos produtos midiáticos do século XX, e ao avanço da tecnologia e da Internet. No entanto, uma análise inicial sobre o assunto, mesmo que superficial e baseada no senso comum, demonstraria que é improvável que a origem e a natureza da atividade descrita seja tão recente - sequer que seja tão fácil de delinear. E, assim, ainda diria o citado senso

16

comum, que dificilmente uma criação humana seja isenta de referências passadas, influências externas: mormente quando inspirado no objeto da admiração de seu criador ou criadores. Indaga-se, por consequência, se qualquer uso de elementos oriundos de obras préexistentes por admiradores são considerados fanfictions. Além disso, busca-se saber como a prática vem sendo valorada socialmente ao longo do tempo, pois "[...] o que está em jogo é o comportamento humano. O cerne de todo o debate jurídico é o problema do valor, uma vez que é indissociável da noção de práticas jurídicas a noção de práticas de cultura". (BITTAR, Eduardo C.B, 2013).

1.2 Uma (tentativa de) busca das origens.

De acordo com Theane Neves Sampaio, encontrar as raízes históricas da prática depende do que se entende por fanfiction (2011, p.4-5), podendo remontar às histórias criadas nos séculos XVII e XVIII que utilizavam personagens de outros autores. De fato, Caroline Ball narra a publicação, no ano de 1614, do Segundo Tomo del ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de autoria de alguém que usou o pseudônimo "Alonso Fernandez de Avellaneda" - cuja verdadeira identidade permanece desconhecida até hoje (2007, p.12) 3. Felipe Oliveira Cavalieri (2011, p. 24) identifica o início embrionário da atividade no período pós-publicação de Alice no País das Maravilhas, por Lewis Carroll (final do século XIX, portanto)4, quando alguns de seus leitores passaram a escrever suas próprias versões da história. Caroline Ball, no entanto, aponta para um começo um pouco mais antigo. Lembra a autora dos trabalhos de Elizabeth Judge, sobre os círculos de escrita do século XVIII, baseados nas obras de Jane Austen (2007, p. 12). O detetive Sherlock Holmes, personagem de Sir Arthur Conan Doyle, também apareceu em publicações não-oficiais no início do século XX, a primeira vez já em 19055 (BALL, 2007. p.12). Nos anos 1920, grupos de fãs escreviam histórias baseadas em Sherlock Holmes e nas obras de Jane Austen (SAMPAIO, 2011. p. 4-5). Em sua face mais moderna, a fanfiction é estudada por teóricos das áreas de linguagem, comunicação e sociologia dentro do que é conhecido como fandom - aglutinação das palavras da língua inglesa fan (fã) e kingdom (reino) -, hodiernamente utilizado como coletivo para "conjunto de fãs" de um determinado programa da televisão, pessoa ou fenômeno em 3

Ressalta a autora, no entanto, que esta sequência não-autorizada da obra de Cervantes foi cem anos antes do copyright como um conceito legal, uma vez que a primeira lei a proteger os direitos dos autores surgiu em 1709. 4 Paródias e revisões da obra, de E. Nesbitt e Frances Brunett, conforme Carolina Ball (2007, p.12). 5 "Sherlock Holmes Arrive Trop Tard", de Maurice Leblanc (BALL, op. cit).

17

particular (SHIRKY, 2011. l.890). O conceito será de vital importância neste e no terceiro capítulo, quando se discorrerá sobre o impacto que as fanfictions têm no mundo moderno. Francesca Coppa melhor resume o nascimento do fandom (2006, l. 604-608). Diz a autora que, conforme o Oxford English Dictionary, o termo era inicialmente aplicado aos esportes e ao teatro antes de ser adotada por entusiastas da ficção científica - que, por sua vez, desenvolveram grande parte da linguagem de fã dos dias atuais. A revista norte americana Amazing Stories (1926) dispunha de uma seção de cartas dos leitores, que disponibilizava os endereços dos fãs, o que permitiu que estes se contatassem e, assim, ter-se-ia primeiramente desenvolvido o fandom de ficção científica. Nas palavras de Francesca Coppa: "Talvez sem surpresa, estes fãs começaram a se organizar e produzir arte; a primeira revista de ficção científica, The Comet, foi publicada em 1930". (2006, l. 604-608). Foi somente em 1965 que surgiu, no Brasil, a fanzine (fan + magazine - revista) Ficção, editada por Edson Rontani. Embora estivesse voltada para os quadrinhos, pertencia a um clube de ficção científica, o "Intercâmbio Ciência-Ficção Alex Raymond", de Porto Alegre. A motivação de Rontani para publicá-la foi a criação deste tipo de revista na França em 1964 e "[...] a necessidade de se comunicar com outras pessoas que gostassem desta arte". (MAGALHÃES, 1993. p.18 e 39-40). Henrique Magalhães, no entanto, faz uma ponderação sobre a natureza dessas revistas brasileiras, dividindo-as em dois grupos: as fanzines propriamente ditas, que priorizavam matérias de informação, crítica e reflexão; e as revistas alternativas, voltadas para a apresentação de trabalhos artísticos, como poesias, contos, quadrinhos, gravuras, dentre outros (Op. cit., p. 08). O autor diz que o objetivo era dar visibilidade ao trabalho dos fãs, à produção nacional que não tinha espaço nos veículos profissionais ou comerciais (idem, p. 15). Cesar Silva nos informa que muitos textos foram produzidos no Brasil em época prérevolução digital (2013): "[...] Naqueles tempos, a prática não tinha ainda esse nome, e nos referíamos a ela simplesmente como pastiche. O autor que mais teve seguidores nessa linha foi o norte americano H. P. Lovecraft, já em domínio público". Prossegue Silva, quanto às franquias comerciais, que a série mais reverenciada pelos brasileiros era Star Trek. Também tem seu capítulo especial nas fanfictions brasileiras (ou pastiche) a série Star Wars: pelos idos dos anos 1990, o fanzine "Intrepid", de São Paulo (editado por Fábio Madrigal Barreto), promoveu um concurso de contos inspirados na franquia. Ainda nos anos 1990, relata Cesar Silva, Luiz Saulo Adami editou o Century City News, um fanzine dedicado à série "O Planeta dos Macacos", onde foram publicadas muitas

18

fanfictions baseadas na série. São casos exemplificativos, comenta Silva, e muitos outros casos podem ser encontrados nas diversas fanzines que circulam a décadas.

"O caso mais expressivo de fanfic brasileiro ocorreu por volta de 1980. O jornalista carioca Jorge Luiz Calife, que mantinha correspondência frequente com seu ídolo, o escritor britânico Arthur C. Clarke, disse a ele numa carta que não concordava com a ideia de que seu romace 2001, uma odisseia no espaço, não permitia uma continuação. E, para provar, mandou a sinopse de uma novela sugerindo como essa continuação poderia ser. Clarke não apenas gostou da ideia de Calife, ele realmente a adotou quando escreveu o romance 2010, uma odisseia no espaço 2, e até agradeceu a Calife no prefácio do livro. Essa sinopse foi publicada na época num encarte especial da revista Manchete, sob o título de 2002". (SILVA, 2013).

O caso mais emblemático (e problemático), talvez, tenha sido do autor Monteiro Lobato. Lobato usou em seus livros do "Sítio do Pica-Pau Amarelo" vários personagens de outros autores - a maioria em domínio público, é verdade; mas outros, em área duvidosa. E, ainda assim, seus herdeiros, relata Silva, são muito rígidos com o uso dos personagens deste autor. Os anos 1960 foram, no entanto, decisivos para a criação do fandom midiático. A série televisiva norte-americana Star Trek 6 (1966/1969) despertou um grande entusiasmo entre os fãs de ficção científica - muitos dos quais, como aponta Francesca Coppa, já haviam abraçado previamente outra série, The Man from U.N.C.L.E 7 (1964/1968). Os fãs de Star Trek não só salvaram a série, que lutou todo o tempo para ser reconhecida, como a tornaram um fenômeno mundial. Talvez, argumenta Coppa, tenha sido justamente esta luta do programa que tenha estimulado seus fãs a manifestarem-se e se tornarem mais participativos (2006, l. 624-640). Este elemento de organização é registrado por Henrique Magalhães a partir da década de 1960 também, quando Dick Lupoff editou o fanzine Xero, que estimulava os leitores a se organizarem e a também publicarem. A Amateur Publisher's Association (APA) surgiu a partir daí (1993, p. 30).

"O fandom organizado é, talvez primeira e principalmente, uma instituição de teoria e crítica, um espaço semi-estruturado onde interpretações e valorações concorrentes são propostas, debatidas, e negociadas e onde leitores especulam sobre a natureza da mídia de massa e sua própria relação com ela". (JENKINS, 2013. cap. 3. p. 02) 8.

6

No Brasil, "Jornada nas Estrelas". No Brasil, "O Agente da U.N.C.L.E". 8 Tradução livre de: "Organized fandom is, perhaps first and foremost, an institution of theory and cristicism, a semistructured space where competing interpretations and evaluations of common texts are proposed, debated, and negociated and where readers speculate about the nature of the mass media and their own relationship to it". 7

19

Apesar de Magalhães (Op. cit. p. 18) apontar o sucesso cinematográfico Star Wars9 (1977) como desencadeador das manifestações de fãs que não se contentavam em apenas enaltecer o filme, que queriam promover também o intercâmbio entre eles e a publicação de seus trabalhos, Francesca Coppa indica - como narrado anteriormente - que Star Trek é que teve este papel catalisador:

"Desde o começo, fãs de Star Trek produziram não apenas argumentos críticos típicos do fandom de ficção científica, mas respostas criativas ao programa favorito deles. Desde a primeira, zines [fanzines] de Star Trek incluíam arte de fã - poemas, canções, histórias, desenhos, peças para a TV. Como [Cynthia] Walker observa, a estratégia de Gene Roddenberry de fechar os olhos para a arte e ficção de fã provavelmente foi responsável pelo florescimento do fandom midiático". (2006, l. 646). 10

Não que Star Wars não tenha contribuído imensamente para o universo de fandoms de ficção científica, ao contrário. Conforme narra Francesca Coppa, o sucesso de Star Wars desencadeou uma explosão de outras produções em ficção científica11 no final dos anos 1970 e início dos anos 1980; além de possibilitar o retorno tão desejado de Star Trek, - o que, talvez, tenha sido o mais importante, diz a autora. "Star Trek: o Filme" estreou em 1979. Os fãs destas obras começaram a formar sua própria e distinta cultura (2006, l. 714-821). A franquia de George Lucas (Star Wars) também tem sua própria história com as fanfictions. E, geralmente, é usada como exemplo entre os especialistas em cultura midiática, para aquilo que eles chamam de uma tentativa de abraçar a produção dos fãs "se, e somente, eles seguirem certas ideias, não se tornarem rebeldes demais, ou pornográficos demais" (JENKINS, 2013. Cap. 1, p. 85). Esta posição foi considerada pela comunidade de fãsescritores uma interferência indevida em sua criatividade. Comentou, certa feita, uma editora feminista de fanzine: "A Lucasfilm está dizendo: 'você deve apreciar os personagens do universo Star Wars por razões masculinas. Sua sexualidade deve ser corrigida e adequada por minha definição (masculina)' "12. (JENKINS, 2013. Cap. 1, p. 79). Aliás, não só de ficção científica viviam os fandoms. Além de música, cinema, quadrinhos e celebridades, as fazines também disseminavam ideias do underground, o 9

No Brasil: "Guerra nas Estrelas". Tradução livre de: "From the start, Star Trek fans produced not simply the critical discussion typical of science fiction fandom but creative responses to their favorite show. From the first, Star Trek zines included fan art - poems, songs, stories, drawings, teleplays. As Walker observes, Gene Roddenberry's strategy of turning a blind eye to fan art and fiction was probably responsible for the flowering of media fandom". 11 Battlestar Galactica (1978), Blakes's 7 (1978/1981), Buck Rogers in 25th Century (1979), Battle Beyond the Stars (1980), e Flash Gordon (1980). 12 Tradução livre de: "Lucasfilm is saying, 'you must enjoy the characters of Star Wars universe for male reasons. Your sexuality must be correct and proper by my (male) definition' ". 10

20

movimento de contracultura. No Brasil, por exemplo, O Trem das 7, dedicado a Raul Seixas, difundia os ideais da "sociedade alternativa", propagada pela "guerrilha raul-seixista". Com os anos 80, surgem revistas que espelhavam o ideal "anarquista" da música punk, ideais ecológicos (a conscientização toma forma nesta época) e sociais. A Decadence tratava da temática homossexual, extremamente polêmica para a época (MAGALHÃES, p. 22-27). Assim, os estudiosos do tema também identificam nas produções de fãs desta época um veículo não só de expressão das frustrações e gostos dos fãs em relação ao objeto de sua admiração, mas também um receptáculo da subcultura e contracultura nascente. No fim da década de 80, o avanço tecnológico propiciou o deslocamento da troca de informações de revistas impressas para a Usenet e bulletins bords (o começo do que se chamaria Internet mais tarde). Havia grande diversidade entre as comunidades de fãs que começaram a se encontrar na net, como mostram os títulos "rec.arts.sf.fandom", "rec.arts.startrek.fandom" e "alt.drwho.creative" (COPPA, 2006. l. 762/764). Conforme Francesca Coppa, na metade dos anos 90, foram criados arquivos centralizados online específicos de fandom, mas estes arquivos iniciais eram muito trabalhosos. Então, no fim da década, finalmente os fãs puderam fazer softwares que formatavam e armazenavam automaticamente as ficções em uma base de dados armazenável. Nesta década, a força da infra-estrutura de um fandom era a medida com que o julgavam. Os bem-organizados dividiam suas listas de correio em duas: uma para distribuir ficções e uma para abrigar as discussões (algumas vezes as listas de ficções se subdividiam em "gen" e "adulto"). Listas estas que já exibiam o próprio e curioso código linguístico de cada fandom - XFF (X-Files fanfiction), DSF (Due South adult fiction)13 e ROG (Really Old Guy, o Methos de 5.000 anos em Highlander). (Op. cit. l. 778-781). Quando a Internet cresceu e a tecnologia se tornou mais acessível, as listas se proliferaram e se tornaram ainda mais específicas. Com o One.List, eGroups, e Yahoo.com, qualquer um podia ter a sua própria lista. O surgimento do escâner, do vídeo digital e da tecnologia do compartilhamento facilitou imensamente o acesso às produções japonesas (anime, manga e yaoi) aos de língua inglesa tanto o acesso ao material quanto às traduções. Logo, a expansão permitiu a comunicação entre fãs, a tradução e adaptação dos termos, formas e práticas de fã. Produz-se mais "fan label" (feito de fã) do que nunca: não apenas os fãs escrevem fanfictions, mas fazem vídeos e vídeos de música (vidding), arte (fanart) e uma infinidade de variações permitidas pela

13

Due South é uma série canadense de TV (1994/1999). Fonte: .

21

tecnologia. Conclui Francesca Coppa: "O fandom midiático pode agora ser maior, estrondoso, menos definido e mais excitante do que nunca. [...] As pessoas podem transitar entre os interesses de fã em uma velocidade espantosa" (Op. cit., l. 809-829)14.

1.3 Práticas, terminologias e números.

Ao se digitar a palavra fanfiction na ferramenta de busca do Google, obtém-se 37,5 milhões de resultados

15

. É um dado que não pode ser ignorado, uma prática que precisa ser

analisada pelo Direito. Conforme Kristina Busse e Karen Hellekson (2006, l.159-177), a história da fanfiction deixa claro que a tecnologia é cúmplice da geração de textos de fã - e, talvez, o mais importante avanço tecnológico e com as implicações de maior alcance, o advento da Internet. Fanzines ainda são produzidas, mas a maioria das fanfictions são disponibilizadas online. E o LiveJornal.com guiou o vocabulário único deste espaço do fandom. A terminologia utilizada para as práticas destes fãs definem quem são, o que fazem e como interagem ao transitarem pelo fandom. Os próprios termos estão em constante recepção, apropriação, adaptação e reinterpretação. A relação abaixo é um apanhado das descrições feitas por Busse e Hellekson, com alguns agrupamentos por nós realizados: a) Canon/Fanon. É a distinção mais importante dentro do entendimento do fandom. Canon são acontecimentos presentes na mídia-fonte (obra originária) que provê o universo, as regras, os personagens. Esse entendimento, é claro, está constantemente mudando e ainda há as interpretações individuais. Fanon: os eventos criados pela comunidade de fãs em um fandom em particular e repetido dentro do texto do fã. b) Gêneros (Gen/Het/Slash). Gen é o tipo de história que não impõe nenhum relacionamento romântico entre os personagens. Het denota um relacionamento heterossexual, seja um inventado pelo autor ou um presente no texto primário. Slash são aquelas narrativas que implicam na presença de um relacionamento entre personagens do mesmo sexo, comumente criadas pelo autor e baseadas em uma percepção homoerótica do subtexto. Geralmente o slash é armazenado em arquivo separado. c) Subgêneros (Universo Alternativo/Crossover/Badfic). Universo Alternativo - UA (ou AU - Alternate Universe) é quando personagens familiares a certo universo são colocados em

14

Tradução livre de: "Media fandom may now be bigger, louder, less defined, and more exciting than it's ever been. (...) People can move through fannish interests at an astonishing speed". 15 Procura em outubro de 2013.

22

um novo cenário. O crossover combina dois conjuntos diferentes de personagens de duas fontes midiáticas em uma única história. Badfic configura uma história deliberadamente escrita de forma ruim, quase de forma paródica. Algumas histórias ainda apresentam sexualidade explícita, sem que um nome fixo seja dado a elas, como BDSM, PWP, kink (mania). Nestes casos, são apresentadas com avisos de que o conteúdo por ser desagradável ou squiked. d) Elementos da história (Spoilers/Disclaimers/Header/Mary Sue-Marty Stu). Spoilers são identificações de elementos da mídia-fonte, inéditos, que vazaram. Dentro da fanfiction geralmente no header - alertam o leitor da existência de um elemento que ele pode ainda não conhecer (o objetivo é permitir ao leitor decidir se quer saber deste elemento antes de o ler/assistir na fonte originária). O header (cabeçalho) aparece em todas as histórias e contém informações sobre elas, incluindo os agradecimentos aos betas e alertas de spoilers. Nos disclaimers é feito um reconhecimento de que o escritor não é dono dos personagens e do universo, dentre outras informações relevantes. Mary Sue/Marty Stu é um personagem original (do ficwriter), frequentemente um "avatar" deste, que é apresentado como o belo e inteligente herói ou heroína que "salva o dia e fica com o cara" (l. 146), tudo com a exclusão virtual dos personagens do canon. Os Mary Sue ou Marty Stu geralmente são utilizados nas badfics. Fora delas, o termo é aplicado de forma pejorativa à um personagem. e) Atividades exercidas (Listmoms/Vidders/Ficwriter/Beta Reader). Listmoms ou list owners são os proprietários das comunidades online e que mantêm controle sobre o que pode ser postado. Vidders, aqueles que fazem arte em vídeos, vídeos curtos com cenas da fonte canon e que os combinam com uma música cuidadosamente escolhida para o seu significado temático. Ficwriter16 ou "fanfiqueiro", como foi traduzido no Brasil, é o típico escritor de fanfiction. Beta Reader ou simplesmente beta é quem lê a história e faz sugestões antes que o autor a poste. f) Rotulações (Newbies/Lurkers). Quem é novo no fandom, mas ansioso por aprender, é um newbie (o termo pode ser pejorativo, dependendo do fandom). Lurkers são aqueles que acompanham ou assistem a atividade dos fãs, mas raramente (se alguma vez) interagem com outros fãs. Hoje, as histórias escritas por fãs são facilmente encontradas no FanFiction.net e archiveofourown.org, como lembra Henry Jenkins (2013, p. 12). Aliás, para fins de mesurar

16

O conceito de ficwriter foi extraído de Márcio Padrão (2007, p.05).

23

fenômeno, coletaram-se dados de alguns dos principais nichos de fanfiction na Internet, começando pela mencionada página, a Fanfiction.Net. Em caráter internacional e reconhecidamente o maior site do gênero, o FanFiction.Net17 divide seu banco de dados em dois grandes grupos: a) fanfiction; b) crossovers. Cada um destes grupos, por sua vez, é subdividido em nove outras categorias, correspondentes às mídias ou aos gêneros dos quais são provenientes as respectivas histórias originais: anime/mangá, livros (books), desenhos animados (cartoons),

histórias em quadrinhos

(comics), jogos (games), filmes (movies), peças/musicais (plays/musicals), programas de TV (TV shows) e mistos (misc). O FanFiction.Net não exibe informações diretas de quantos usuários possui ou de quantos arquivos armazena. Todos os dados mostrados são fragmentados de alguma forma (por categoria ou por mídia, por exemplo). No entanto, é possível abstrair alguns exemplos práticos. Por exemplo, de todas as categorias do grupo fanfiction que se encontra neste site, o número absoluto de arquivos é o de Harry Potter, na categoria "livros". Na data pesquisada, ele, sozinho, possuía 516.016 (quinhentos e dezesseis mil e dezesseis) arquivos. Somam-se a este número os 20.176 (vinte mil, cento e setenta e seis) escritos que pertencem ao segundo grupo, crossover. Destes, 3.364 (três mil, trezentos e sessenta e quatro) são com a segunda colocada na categoria, a série Twilight ("Crepúsculo", no Brasil). Por fim, deste universo todo, 18.874 (dezoito mil, oitocentos e setenta e quatro) eram escritas em português. Twilight, por sua vez, tinha um arquivo com 135.031 (centro e trinta e cinco mil e trinta e um) fanfictions, das quais 2.910 (duas mil, novecentas e dez) em língua portuguesa. Na categoria anime/mangá, o campeão é Naruto, com 252.825 (duzentas e cinquenta e duas mil, oitocentas e vinte e cinco) histórias. E assim segue, com Star Wars (27.061) em filmes, Avatar (35.805) em desenhos animados, X-Men (8.895) em quadrinhos, Glee (72.721) em programas de TV e Kingdom of Hearts (55.113) em jogos. E todos estes números são só uma parcela do que se pode encontrar em seus grupos e categorias. A cifra oculta deve ser imensamente maior, face às possibilidades de soma e combinação das diversas subdivisões. No Brasil, a página Nyah! Fanfiction18 lidera o armazenamento deste tipo de arquivo. Em seu próprio endereço na Internet, reúne o site algumas informações sobre as suas atividades:

17

Disponível em: . Acesso: 19/10/2013. Texto presente na página inicial do Nyah!Fanfiction: "As histórias postadas no site são criações originais ou ficções criadas por fãs — fanfiction — de animes, seriados, filmes, livros e muito mais. Este site foi criado com 18

24

"O site cresceu bastante desde sua abertura e já fomos citados por diversos jornais e revistas. Hoje (28/05/2013) temos a média diária de 297 novas histórias, 1.200 novos capítulos e 390 novos cadastros de usuários. No total, são mais de 160.000 histórias, 900.000 capítulos e 300.000 usuários cadastrados" 19.

E prossegue o texto, elencando a média obtida entre 27/04/2013 e 27/05/2013: 4.823.380 visitas, 46.849.528 visualizações de página, tempo médio no site de 21min07ss, sendo que a porcentagem de visitas novas foi de 18,32%. O Nyah! também divide as fanfictions em grupos, sendo nove ao todo: animes/mangas, cartoons, filmes, jogos, livros, originais, poesias, quadrinhos e seriados/novelas/doramas. Uma vez selecionado o grupo, este está dividido pelo nome das obras originais. Ao se optar por uma delas, é possível filtrar os resultados dentre 32 (trinta e duas) outras subdivisões, chamadas "gênero". Ou, ainda, que somente se liste as histórias concluídas; ou que se omita os crossovers. As regras de envio são detalhadas e expostas de forma clara (o que fazer antes de postar, o que é permitido e proibido postar, regras de formatação e sobre categorias, classificações e aviso)20. Estes são apenas os dois maiores sites (internacional e nacional) e, ainda assim, é possível notar que existem semelhanças e diferenças entre eles, perceber a dinâmica mencionada por Kristina Busse e Karen Hellekson no início deste subcapítulo. As páginas citadas têm a característica, ainda, de não pertencerem a nenhum fandom específico - apenas se destinam a armazenar as fanfictions. O site do Nyah! tem ainda a particularidade de possibilitar que seus escritores publiquem histórias originais, em categoria própria. Mas existem muitas outras páginas, específicas de um fandom ou não. A título de exemplo, cita-se o fandom que parece ser o mais amplo em número de fanfictions (Harry Potter). Tem-se, em território nacional, a Floreios e Borrões21, do grupo Potterish. Este site possui quase 25.000 (vinte e cinco mil) histórias baseadas na obra de J. K. Rowling, divididas

o intuito de divulgar as séries originais, reunir seus fãs e proporcionar momentos de lazer através da leitura, assim como incentivar as pessoas a trabalharem seu lado criativo escrevendo suas próprias histórias. Você não paga nada para ler ou postar no site, o uso é gratuito!". Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2013. 19 Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2013. 20 Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2013. 21 Disponível em: . Acesso em: 04 nov 2013.

25

em vinte categorias. O Potterish, inclusive, possui o reconhecimento da própria autora, concedido em 2006 22. Ao chegar-se até aqui, abordou-se os conceitos semântico, o histórico e as práticas das fanfictions. Mas o questionamento feito ao final do primeiro subcapítulo permanece turvo, não-delimitado: qualquer história baseada em uma obra pré-existente deve ser considerada fanfiction? O próximo subcapítulo é uma tentativa de responder a esta pergunta.

1.4 Fenômeno e/ou (sub)gênero literário.

Em Archontic Literature: A Definition, a History, and Several Theories of Fan Fiction, Abigail Derecho faz uma declaração, contida ainda no resumo do artigo, que acredita-se ser uma direção para o problema da delimitação dos escritos de fãs:

"A primeira parte deste ensaio define fan fiction como um subgênero de um tipo mais amplo de escrita, que é geralmente chamada de literatura 'derivativa' ou 'apropriativa', mas a qual escolhi chamar de archontic, um termo emprestado da definição de Jaques Derrida de arquivos enquanto sempre em expansão e nunca completamente encerrados"23. (2006, l. 854).

A tradução de archontic poderia ser "arquivista", mas se teme que muito se perca ao escolher esta palavra. Seu uso poderia deturpar o real sentido pretendido por Derecho. Prosseguindo com texto, explica a mencionada autora que as discussões que teve acerca do assunto (as origens e natureza das fanfictions) basicamente, giram em torno de três hipóteses. A primeira, que elas surgiram há milênios, com as histórias dos mitos, e continua até hoje, incorporando os trabalhos daqueles que se autodenominam fãs. A segunda, que o início se deu com as culturas de fã, no começo dos anos 1960, com as fanzines de Star Trek. Finalmente, a terceira acha que a primeira hipótese pode ser ampla demais e a segunda, estreita demais; então talvez os traços das fanfictions estejam mais seguramente situados em gênero mais amplo da literatura. A autora filia-se a esta hipótese (Op. cit. l. 876-877). Derecho constrói sua argumentação no fato de que, segundo ela, o termo fan fiction deve ser reconhecido como subgênero de um gênero maior e mais antigo de literatura, geralmente chamado de "derivativo" ou "apropriativo". Propõe, no entanto, substituir estes termos e chamar este tipo de escrita de archontic. Archontic, como explicado acima, remonta à palavra 22

Disponível em: . Acesso em: 04/11/2013. Tradução livre de: "The first part of the essay defines fan fiction as a subgenre of a larger type of writing that is usually called 'derivative' ou 'appropriative' literature, but which I choose to call archontic, a term borrowed from Jacques Derrida's definition of archives as ever expanding and never completely closed". 23

26

"arquivo", tomada do trabalho de Derrida, Archive Fever. Para este autor, todo e qualquer arquivo permanece aberto para novos lançamentos, novos artefatos, novos conteúdos. (Idem, l. 891). Embora derivativo e apropriativo impliquem em intertextualidade, também trazem, cada um, conotação negativa. Derivativo, apesar de aplicado à obras de arte, carrega o sentido de inferior; como se entre duas obras, a derivada fosse imitativa e inferior, enquanto a originária, um trabalho puro. Apropriativo confere o sentido de "tomar" e pode facilmente flexionar para "furto" ou "roubo". Portanto, ambos se lançam nas questões de criatividade, originalidade e legalidade do gênero. A autora prefere o termo archontic porque este não está apoiado em referências de propriedade intelectual ou em julgamento de mérito entre os trabalhos ascendente e descendente (ibidem, l.905). Derecho diz que um arquivo archontic de um texto não é idêntico a este, mas uma construção virtual circundando-o, incluindo todos os textos relacionados. Estes textos são impelidos pelo mesmo princípio: ampliação e crescimento que todos os arquivos possuem. E, mais importante, é a relação específica entre novas versões e as versões originárias dos textos, o fato que as obras entram no arquivo conscientemente, por nitidamente se localizarem dentro do mundo do texto archontic, que faz o conceito da literatura archontic diferente do conceito de intertextualidade. Ou seja, o texto gera variações que explicitamente se anunciam como variações. (Ibidem, l. 905-920).

"Fanfics notoriamente se amarram a textos preexistentes; esta proclamação é uma convenção do gênero da fan fiction, realizada até nos cabeçalhos identificadores que precedem e classificam as fics individuais, ou pela localização de cada fanfic nas revistas do fandom específico ou websites"24. (DERECHO, 2006. l. 924).

A intertextualidade, diz Manoel J. Pereira dos Santos (2011) é um fenômeno frequente na produção cultural, sendo definida como "o diálogo de textos". Este seria um recurso criativo, marcado pela absorção e transformação de conteúdos preexistentes, com referência implícita ou explícita a textos de outros autores, ainda que de gênero diverso. Um fenômeno que, prossegue Santos, verifica-se tanto na literatura quanto nas artes. "A intertextualidade é, portanto, uma dinâmica natural da criatividade humana", conclui este autor.

24

Tradução livre de: "Fanfics tie themselves overly to preexisting texts; this annunciation is a convention of the fan fiction genre, performed either in the identifying headers that precede and categorize individual fics, or by the location of each fanfic in fandom-specific zines or Web sites".

27

Por esta razão escolheu-se o título do presente capítulo como sendo "fenômeno/gênero literário": a fim de expressar as duas faces (no mínimo) da prática - as circunstâncias históricas e culturais, bem como a classificação literária; esta última, finalmente, tornando um pouco mais claros, do ponto de vista teórico, os delineamentos da fanfiction. No entendimento de Abigail Derecho, a literatura archontic vem sendo utilizada como forma de obter a atenção dos leitores para as questões da injusta relação entre dominantes e dominados, políticas discriminatórias, preconceitos psicologicamente institucionalizados. Em suma, o perigo de estereótipos de raça, gênero, classe e nacionalidade (Op. cit. l. 983-988). Podemos citar os exemplos fornecidos por Derecho, colhidos da literatura de língua inglesa, de mulheres que, ao longo do século XVII, lançaram mão deste recurso para denunciar a situação de submissão imposta às mulheres. Estes textos eram tanto originais (embora paródicos ou vinculativos), continuações declaradas ou inserções escritas às margens de um exemplar do livro (acrescentando e/ou modificando)25. Aaron Schwabach (2011, p.66), menciona o caso do livro The Wind Done Gone, de Alice Randall, uma paródia de Gone With The Wind (E O Vento Levou). A paródia de Randall aborda o contexto racial através da história de uma personagem criada por ela, meia-irmã mestiça de Scarlett O'Hara, a heroína de E O Vento Levou. Embora seja possível que algumas práticas da escrita dos fãs sejam deste tipo, não é toda fanfiction que guarda em si uma expressão política como as acima citadas. Muitas, simplesmente, atendem ao desejo do fã de prolongar o contato com a obra admirada. Abigail Derecho reconhece este fator. Cita a autora o romance Lettres d'une peruvienne, de Graffingny.

No final deste livro (que critica instituições que limitam as oportunidades

femininas), a heroína, Zilla, recusa o pedido de casamento do seu salvador, preferindo uma vida de relativo isolamento. Os textos archontic de Letres d'une peruvienne não modificavam a maioria do corpo da obra, mas alteravam seu final, casando Zilla e reafirmando o casamento como a felicidade última para a mulher. Neste caso, os textos archontic reafirmaram as instituições as quais o texto condena (Idem, l. 969). Adentra-se no fenômeno, já nos dias atuais. Nas pesquisas sobre fandoms, a trajetória da saga Harry Potter parece ser fundamental ao menos, nesta nova fase cibernética. É o exemplo mais citado no paradigma pelo qual 25

Curiosamente, todos eles do mesmo livro, "The Countess of Pembroke's Arcadia" de Sir Philip Sidney. Lady Mary Wroth publicou, em 1621, a primeira obra original em língua inglesa escrita por uma mulher (texto archontic do livro de Sidney, que era seu tio): "The Countess of Montgomerys's Ucrania". Em 1654, Anna Weamys publicou "Continuation of Sir Philip Sydney's Arcadia". Finalmente, uma cópia pertencente a Lucy Hastings, onde ela escreveu inserções e continuações, entre 1624 e 1664. (DERECHO, 2006. l.942-946)

28

passou (e ainda passa) a indústria cultural e os seus "consumidores". Melissa Anelli (2011, p.112-120) relata o que ficou conhecido como "PotterWar", episódio ocorrido logo após a Warner Bros. ter comprado os direitos de adaptação dos livros para o cinema. J. K. Rowling, conforme relatou em entrevista à própria Anelli, disse que apreciava o que há de lisonjeiro nas fanfictions, mas que era desconfortável para o escritor ver "[...] aquele mundo que você criou ser erigida e ter as coisas trocadas de lugar" (p. 112). Ainda assim, como basicamente eram crianças escrevendo para outras crianças, resolveu a autora não intervir. Sua principal preocupação eram determinados tipos de uso que poderiam advir com a prática: "[...] Sempre existe a preocupação de que as coisas sejam sequestradas com propósitos realmente nefastos, e, veja bem, isto não tem nada a ver com dinheiro", disse Rowling (p. 114). Então, quando a Warner Bros. disse que iria "tentar conter um pouco" tudo isso [os sites de fãs], ela concordou. Lembra Melissa Anelli que "[...] o fandom de Harry Potter na internet era novo, em grande medida desconhecido, e ainda não compreendido por aqueles dentro e fora dele [...]" (p. 114). Os advogados foram acionados e, sugere Anelli, esqueceu-se de acrescentar ao comunicado dado ao departamento jurídico que, talvez, cartas ameaçadoras de "cessar e desistir" (cease and desist) não fossem a melhor escolha, já que estes sites eram administrados por crianças. No entanto,

"As cartas padrão para 'cessar e desistir' que foram enviadas para os donos de sites eram, em vez disso, em papel timbrado da Warner Bros., em uma cadência legal polissilábica que seria suficiente para fazer um adolescente de 13 anos tremer - que foi exatamente o que aconteceu". (ANELLI, 2011. p. 114).

A guerra fora iniciada: os jornais foram acionados pelos pais, surgiram campanhas na Internet visando o boicote dos produtos da empresa. "[...] A Warner Bros. parecia estar se esforçando para entender o que era ter uma base de fãs preexistente tão ardorosa e jovem [...]", diz Melissa Anelli (p. 117). Para completar, J. K. Rowling se opunha à comercialização excessiva da série. O resultado foi uma nova atitude dos estúdios no que tange aos fandoms. Hoje em dia, a única ação que a autora e seus representantes tomam é em relação aos que estão vendendo mercadoria ou associando a série à pornografia (p. 120). Pois bem, o fenômeno fanfiction também exibe outra faceta: a educacional. A área da educação se beneficia largamente com as práticas de fanfictions. São inúmeros os trabalhos nesta seara que a tratam como local de incentivo à leitura e, principalmente, lugar em que ocorre o chamado "letramento literário" (a exemplo do trabalho da Professora Maria

29

Lucia Bandeira Vargas, já mencionado no presente estudo). Inclusive, é possível acompanhar, pelas matérias jornalísticas, que muitos dos fanfiqueiros acabam adentrando no mercado editorial, tornam-se autores de seus próprios livros.26 Também chama a atenção de pesquisadores a produção de regras de conduta dentro das comunidades de fanfictions. Eduardo Antônio Martins de Oliveira, em artigo publicado recentemente (2012, p.198), comenta que estas comunidades online são unidas em torno de interesses em comum e, ao mesmo tempo, vão além do mero contrato entre partes do Direito Civil. Criam suas próprias regras e, mediante conveniência, divergem da normatividade brasileira oficial, ora desobedecendo a lei, ora seguindo-a. Caracteriza este espaço, portanto, como o de pluralismo jurídico, anunciando uma necessidade de "[...] aferição de juridicidade das ações do grupo quando entram em conflito com o ordenamento jurídico considerado legítimo". Clay Skirk faz a seguinte análise:

"Como todas as comunidades, o mundo do fanfiction é às vezes abalado por violações de suas normas culturais. Na comunidade Harry Potter, uma autora de fanfic com o psedônimo Cassandra Claire foi acusada de copiar em seu fanfic passagens de dois livros da autora de romances fantásticos Patrícia Dean. Pode parecer estranho que um grupo de pessoas publicamente engajadas numa violação de direitos autorais se preocupe com plágio, mas se preocupa, e muito. Não dar crédito a quem de direito é o crime nessa comunidade, uma violação não de direitos de propriedade, mas de normas éticas firmemente baseadas em crédito. [....] A lógica interna da comunidade fanfic torna-se mais clara à luz de outra acusação feita à Cassandra Claire; ela foi acusada de especulação, o que, na cultura fanfiction, significa tentar fazer dinheiro com o seu fanfic. Isso foi considerado prova ainda maior de suas más intenções. As declarações fanfic [os disclamers] exprimem a lógica de dar crédito público. [...] Isso é uma visão de 'dois mundos' dos atos criativos. O mundo do dinheiro, onde Rowling vive, é aquele em que criadores são pagos por seus trabalhos. Autores de fanfictions, por definição, não habitam este mundo e, mais importante, poucas vezes aspiram a habitá-lo. Em vez disso, em geral escolhem trabalhar no mundo do afeto, em que o objetivo é ser reconhecido pelos outros por fazer algo criativo num determinado universo ficcional. Uma sólida infraestrutura pública é essencial para esse reconhecimento mútuo". Grifo nosso. (SKIRK, 2011). 26

Neste sentido: (1) "Acampamento na Bienal atrai jovens leitores e escritores de Fanfiction", jornal O Globo, de 07 set. 2013, disponível em: , acesso em 10 nov. 2013; (2) "Fãs recriam na web novos caminhos para histórias consagradas", Notícias Terra, de 19 fev. 2012, disponível em: , acesso em: 10 nov. 2013; (3) "Jovens que criam fanfics", Gazeta do Povo de 15 jun. 2013, disponível em: , acesso em 10 nov. 2013; (4) "Fanfiction vira moda entre jovens e se torna nova forma de ler e escrever livros", Diário Catarinense de 15 jul. 2013, disponível em: , acesso em 10 nov. 2013.

30

Por outro lado, afirma Henry Jenkins, o fandom é um veículo para os marginalizados subgrupos culturais (mulheres, jovens, gays, e assim por diante), apropriando-se das representações dominantes e os relendo de um modo que serve o universo do fã de formas diferentes, "um modo de transformar cultura de massa em cultura popular". Continua o autor: "Nenhuma noção legalista de propriedade intelectual consegue adequadamente restringir a rápida proliferação dos significados circundando um texto popular". (2006, l.756-763). Apresentados, ainda que superficialmente, os significados e valores envolvendo a escrita de fã, é tempo de analisar os significados do direito autoral. Só então, na convergência dos dois, poder-se-á sondar a veracidade da afirmação de Jenkins.

CAPÍTULO II DIREITO DE AUTOR E COPYRIGHT

"Admiremos os grandes mestres, mas não os imitemos". (Vitor Hugo).

Sendo a fanfiction um fenômeno de escala mundial, é basilar que qualquer busca em torno dos significados e finalidades dos sistemas jurídicos que possam incidir tenham a maior amplitude possível. A Internet, conforme discorrido no capítulo anterior, é o locus virtualmente majoritário da prática, transbordando as barreiras nacionais e fugindo a uma abordagem meramente territorialista. Mesmo que se tentasse estreitar o foco de estudo, tal não seria possível, uma vez que a presença maciça de produtos da indústria cultural norte-americana (composta de verdadeiras gigantes, com vertentes globais) exigiria do intérprete a aproximação com o direito estrangeiro, a fim de auferir-lhe o entendimento sobre os direitos de seus nacionais. Aliás, o direito autoral tomou dimensões planetárias muito antes da Internet. Feita esta pequena introdução, reporta-se aos dois modelos que dominam o globo, o copyright e o droit d'auteur, que inicialmente fluíram da mesma fonte filosófica, tomando entendimentos diversos a partir de determinado ponto na História.

2.1 As origens em comum.

Ressalta-se, ab initio, que a história da evolução de qualquer direito não toma forma e lugar da mesma maneira em todos os países, cada qual dotado de suas próprias especificidades, sendo notório que, na transição de modelos, vários estágios de convivência concomitante são necessários. No entanto, é aceito que, antes que qualquer "direito autoral" propriamente dito existisse, a produção de arte dependia de um patrono, um mecenas, que protegesse e sustentasse o artista. Todos, incluindo o escritor, eram considerados "artesãos" e suas criações eram construídas em um processo cooperativo: os pintores e seus aprendizes, os copistas monges, e assim por diante. A assinatura ou marca de identificação do pintor no quadro, por exemplo, podia identificar de que oficina e mestre o mesmo procedia, mas não significava que para a sua criação não tivessem contribuído os aprendizes deste mestre. "Toda a produção cultural, como as artes, a literatura e as manifestações da consciência social como um todo, incluindo a

32

religião e a filosofia, é representativa de certo modo do existir da vida social". (FRAGOSO, 2012. p. 65). As guildas e lojas dominavam, então, o nascente grupo da burguesia. Ensina João Henrique da Rocha Fragoso (2012, p. 114) que, por volta do século XV, a produção intelectual se tornaria mais individual e solitária. Houve o alastramento das oficinas gráficas, com o aperfeiçoamento dos tipos móveis (existentes na Coréia desde o século XI). O desenvolvimento da tecnologia permitiu a desvinculação entre o criador intelectual e o copista/impressor na produção da obra. Ao mesmo tempo, grandes mudanças ocorriam no campo das ideias, com o mercantilismo ditando a forma de produção do mercado. Destas condições decorreriam a valorização do editor/livreiro em detrimento do autor e a valorização da propriedade como forma de liberdade do indivíduo - o que influenciaria enormemente o futuro direito autoral. Aliás, a lógica da propriedade passara a justificar todo o direito, conforme explica Fragoso:

"Não se duvida que a força pensada pelo filósofo [Spinoza] é a força dos proprietários privados. Tal divisão tem o condão de reforçar, antes de mais nada, uma posição predeterminada de ordem política e econômica: a dos proprietários privados, levando a que todo o Direito acabasse se transformando em Direito Privado - cuja representação é ditada pela instância máxima de um poder garantido e aquilatado pelos possuidores". (2012, p. 118).

A criação artística passa a ser uma mercadoria como qualquer outra. O artista, antes sustentado pelo seu patrocinador, agora era remunerado pela venda de sua obra, desvinculando dela, então, qualquer ligação de direito (nem mesmo pessoal) com o seu criador. Os primeiros privilégios reais para a exploração de obras literárias surgem ao longo do século XV, o que sedimentou mais um tijolo na construção do direito autoral vindouro, "[...] que resultaria, em terras inglesas, no Copyright, e, no continente, como desdobramento da Revolução Francesa, no sistema do Droit d'Auteur". (FRAGOSO, 2012. p. 132). A classe dos editores, a esta altura, tinha alcançado um papel de suma importância econômica e política. Assim, os privilégios e a censura prévia da Igreja constituíam um mútuo benefício entre o Estado, que auferia recursos das taxas e ainda controlava o fluxo de ideias; a Igreja, que mantinha o discurso legitimador de seu poder e do Estado, ditando o que se podia dizer; e, finalmente, os editores, que lucravam com a exclusividade de exploração. (FRAGOSO, 2012).

33

É neste cenário que nasce, em terras inglesas, o primeiro "direito autoral" (assim entendido no sentido mais amplo), marcadamente reconhecido como "Estatuto da Rainha Ana", de 1710. Esta é a origem do Copyright, estudado a seguir.

2.2 O Copyright.

Em um tempo anterior a Hegel e a Kant, que viriam a influenciar o direito continental, e no entanto, ajustada aos ideais de "propriedade como liberdade" de John Locke, editou-se na Inglaterra da Rainha Ana a primeira lei envolvendo obras literárias27. Em seu prefácio, o Estatuto de 1710 justifica sua criação como forma de prevenir as práticas de impressão não-autorizadas pelos autores e pelos proprietários (que os levava e às suas famílias "às ruínas"), investindo estes em certos direitos durante certo tempo. Apresentase, igualmente, como destinado a encorajar o aprendizado futuro e dos homens para compor livros "úteis". (FRAGOSO, 2012. p. 151). A declaração do preâmbulo pode até não corresponder, no que tange ao autor, às aplicações práticas da defesa que diz almejar; e, pode-se até discutir filosoficamente se a garantia de direitos exclusivos no campo de direitos autorais realmente encoraja o aprendizado. No entanto, o mérito vislumbrado neste preâmbulo é a demarcação dos postulados legais "certos direitos durante certo tempo" e "encorajar o aprendizado futuro e dos homens para compor livros". Por outro lado, a primeira legislação a regular o direito de cópia, na prática, deixava os autores no "vácuo legal". Isto porque, embora mencione o direito do autor de autorizar a cópia, quem detinha o direito de impressão na Inglaterra eram os editores, aos quais os autores tinham que vender o livro se quisessem vê-los publicados. Então, os verdadeiros destinatários do Estatuto de 1710 são os proprietários (proprietors) da mercadoria-livro: eram eles que detinham o direito de reprodução - e, comumente, também os manuscritos, já que os autores não costumavam fazer cópias para si (FRAGOSO, 2012. p. 152). Conforme ressalta João Henrique da Rocha Fragoso (2012, p. 152), os autores sequer detinham direito sobre parcela do lucro das vendas ou qualquer acréscimo sobre a valorização da obra. A garantia dada aos autores pelo Licensing Act, de 1662 (que estabelecia o registro 27

Diz João Henrique da Rocha Fragoso: "A Rainha Ana assumiu o trono em 1702, com a morte de seu cunhado Guilherme III [o qual Locke ajudara a entronar], e continuou sua política de governar com o apoio dos Tories, representantes do partido conservador e monarquista fundando em 1678 por conveniência, mas sem poder abrir mão do apoio dos Whigs [liberais]. Seu famoso estatuto, de fato, foi resultado de um projeto burguês". (2012, p. 151).

34

de licença, mais como uma censura), sobre o direito de remuneração proveniente da exploração de suas obras, só era aplicada se a exploração fosse exclusiva da Stationer's Company. Logo, tudo permanecia o mesmo para os criadores intelectuais. Já Márcio Pereira, no entanto, citando Patterson, vê positivamente este primeiro momento de inclusão do autor entre o rol de titulares. E acrescenta uma vantagem: o fim da perpetuidade da exploração da obra pelo editor, limitando-a a 14 ou 21 anos, prorrogáveis por igual período. Criou-se, assim, o domínio público (2013, p. 61-62). Nos Estados Unidos, a indústria gráfica era inicialmente incipiente. Mesmo depois de Benjamin Franklin ter iniciado, em 1740, a impressão de livros de autores americanos nas então colônias. A maior parte dos livros era impressa na Inglaterra, embora o índice de alfabetização entre os americanos (brancos e ricos, é claro) fosse maior do que os da Europa. Vigorava, então, o sentimento pragmático dos pioneiros puritanos, que relegaram certas formas de arte - incluindo a literatura e o teatro -, como supérfluas. (FRAGOSO, 2012. p. 171-183). A atividade editorial ainda era restrita quando a Constituição Americana de 1787 declarou, em seu artigo I, da Seção 8: "Será competência do Congresso: [...] Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas; [...]". (CARBONI, 2010. p. 428). Esta passagem da Carta Magna americana reflete o Estatuto da Rainha Ana em seu viés utilitarista e, ao mesmo tempo, privilegia as usefull arts, ou seja, a proteção das expressões de ordem científica e técnica em detrimento das artísticas. Os Estados Unidos aspiravam à autonomia econômica em relação à Inglaterra: por isso preocupavam-se com a produção de bens mais do que as artes. Quando o Copyright Act foi promulgado três anos mais tarde (1790), este cenário ainda não havia se alterado. Somente em meados do século XIX a atividade editorial se tornaria altamente rentável nos Estados Unidos (surgem então grandes nomes, como Edgar Alan Poe, Jack London e Mark Twain). (FRAGOSO, 2012). Voltando ao estatuto americano, declara o Copyright Act, já em seu preâmbulo, que é "Um Ato de Encorajamento da Aprendizagem, através da Proteção das Cópias de Mapas, Cartas e Livros ao Autor e Proprietário de Tais Cópias [...]" (Grifo nosso).28 Mais uma vez, reflete o sistema americano aquela introdução do Estatuto da Rainha Ana: "[...] uma declaração de princípios inspirada pela necessária livre circulação de ideias e dos bens intelectuais, um dos fundamentos da democracia", comenta Fragoso. Esse autor resume exemplarmente a evolução do Copyright Act, após a sua promulgação: 28

Tradução livre de: "An act of the Encouragement of Learning, by Securing the Copies of Maps, Charts and Books to the Autor an Proprietor of Such Copies [...]".

35

"[...] mais tarde emendada [a lei] para incorporar gravuras (1802); obras musicais (1831), composições dramáticas (1856) e fotografias (1865). Em 1897, já denunciando a percepção do desenvolvimento da técnica da fonografia (o fonógrafo foi inventado por Edson em 1877 e o gramofone fora desenvolvido por Berliner em 1877, inaugurando, por assim dizer, a indústria fonográfica), a lei foi, mais uma vez, emendada. Com a emenda, passaria a incluir, também, a proteção às execuções públicas não autorizadas, dirigidas, obviamente, para as execuções ao vivo, pois o rádio e a televisão ainda não haviam sido inventados. Sempre afinada com o desenvolvimento da técnica industrial aplicada às artes, em 1912 a lei passou a incluir as obras cinematográficas. Em 1947, o sistema passaria a ser codificado, não mais integrando o sistema do common law, como Título 17 do Código norteamericano. Esse título reúne e consolida uma amplíssima legislação, desde Copyright a ferrovias, passando por segurança doméstica, guarda-costeira, normas penais e outras. Em 1953 obras outras, não dramáticas, como livros de História, Economia, Religião, Medicina, ciências em geral, biografias, etc., e assim sucessivamente, também passaram a gozar da proteção da lei". (2012, p. 186-187).

Em relação à abordagem americana, no que tange o aspecto internacional do direito autoral, menciona-se o Internacional Copyright Act, promulgado em 1891, e que dava ao Presidente poder para reconhecer um país como sujeito ou não ao reconhecimento de direitos autorais (VALENTE, 2013. p. 195). Com o tempo, o monopólio dos editores foi rompido - tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos - e os autores passaram a receber percentuais sobre as vendas das cópias (royalties). Outras diferenças podem ser apontadas, como o tempo bem menor de proteção desta obra, em relação aos países influenciados pelo modelo europeu-continental; e a imposição do registro da obra para a proteção legal. (PEREIRA, 2013. p. 52-54). Mas a proteção de caráter pessoal (direito moral) não era concedida pelo sistema anglo-americano protegia-se a obra, não a personalidade do autor. Interessante, neste sentido, seguir o exemplo de Márcio Pereira e transcrever um trecho da carta de Thomas Jefferson a Isaac McPherson, trecho este obtido da obra de Pereira:

"Tem sido pretendido que os inventores teriam um direito natural e exclusivo sobre as suas invenções, e não meramente para as suas próprias vidas, mas herdado pelos seus sucessores. [...] Seria curioso, então, se uma ideia, uma fermentação furtiva do cérebro de um indivíduo, poderia, por direito natural, ser reivindicada como estável e exclusiva propriedade. Se a natureza fez algo menos susceptível de todas as outras propriedades exclusivas, é a ação do poder de pensar, chamada de ideia, que um indivíduo pode possuir exclusivamente desde que a mantenha para si mesmo; mas no momento em que é divulgada, força-se à possessão de todos e o receptor não pode se desapossar dela. [...] As ideias deveriam, livremente, espalhar-se de um para o outro pelo globo, para a instrução moral e mútua do homem e

36

melhora de suas condições [...]. A sociedade pode dar um direito exclusivo das vantagens que surgem delas (das criações intelectuais), como um encorajamento para os homens perseguirem ideias que possam produzir alguma utilidade". (2013, p. 65).

Estas são as linhas gerais do sistema americano que gostaríamos de destacar. No entanto, há peculiaridades que são fundamentais para o objeto do presente estudo. O primeiro, a questão dos direitos morais no Copyright dos dias atuais; bem como o conceito de "obra derivada" e as suas limitações (especialmente no que tange o chamado Fair Use) - este último assunto a ser analisado no terceiro capítulo, sendo se confunde com o tema nele a ser abordado. Mas estas são questões a serem analisadas em um momento mais a frente, pois, para se falar em direitos morais do autor é necessário, primeiramente, estudar o segundo grande modelo de direito autoral, no qual eles nasceram: o Droit d'Auteur.

2.3 O Droit d'Auteur.

No modelo continental, também foi influente o pensamento de John Locke quanto à existência de "direitos naturais", tal como a liberdade, que teria na propriedade a sua garantia mais "sagrada". No início não havia grandes dissensos do lado de cá ou de lá do Canal da Mancha (Inglaterra/Europa Continental), ou entre os dois lados do Oceano Atlântico. Pelo contrário. Informa-nos João Henrique da Rocha Fragoso (2012) que grande era a troca de ideias entre o eixo Londres/Paris/Philadelfia, incluindo a noção jusnaturalista de que o direito intelectual era um direito de propriedade. No entanto, em determinado momento crítico, deu-se a ruptura - "os franceses deram um passo à frente", diz Fragoso. Trata-se da adoção da teoria da personalidade de Hegel, que vê a criação intelectual como projeção do próprio ser, fruto de sua liberdade individual; e da concepção de Kant sobre os direitos imateriais, dentro da noção de "justiça retributiva". (VASCONCELLOS, 2013. p.66-69). Nada mais é do que a face do direito moral do autor, que tem, assim, suas raízes no pensamento filosófico alemão, "[...] quando este considera a criação como resultado de uma vontade individual 'traduzida por uma certa intenção'" (FRAGOSO, 2012. p. 142). Essa intenção é inseparável do autor, compondo parte de sua personalidade única e se refletindo na obra criada de forma indissociável. Deste ponto de vista, entende-se que existem certos direitos inalienáveis pertencentes ao autor, que não se confundem com o aspecto econômico.

37

Na prática, a dicotomia faz com que, no sistema continental, o direito autoral se divida em dois aspectos: o patrimonial (exploração econômica) e, é claro, o moral (ou pessoal/ extrapatrimonial). Embora, historicamente, situe-se a Revolução Francesa como marco do Droit d'Auteur (incluindo o importante conceito de que todos nascem iguais), o modelo foi se construindo lentamente, antes e depois dela, conforme lembra Fábio Ulhoa Coelho (2012). Antes, diz este doutrinador, não havia completa repulsa ao conhecimento de alguns direitos do autor, "[...] assim como, depois da Revolução Francesa, nem todos os direitos do autor foram imediatamente reconhecidos e respeitados". Fragoso (2012, p. 164-165) destaca a publicação, em 1777, na França, da primeira lei que visava a proteção do autor, abolindo-se os privilégios perpétuos, revertendo a propriedade da obra a seu autor ou herdeiro. Então, veio a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789 (instituto que Luiz XVI promulga sob pressão), destacando-se neste diploma a liberdade de imprensa, de comunicação, de culto, de comércio, de indústria, de associação. Seguiram-lhe outras leis francesas: em 1791, a necessária autorização do autor para encenar a obra em teatros públicos; e, em 1793, a extensão da proteção dos direitos de reprodução dos autores às obras de todos os gêneros. Os demais países da Europa Continental copiaram o exemplo da França nos anos que se seguiram. Ou seja, na sábia síntese de Fábio Ulhoa Coelho:

"Nasce, assim, o droit d'auteur no contexto de proteção dos interesses do autor perante os do editor. A preocupação central originária desse sistema não foi a de impedir a contrafação ou plágio, como avulta no copyright, mas assegurar ao autor condições favoráveis na negociação da publicação de sua obra com o editor. No contexto dessa preocupação, o droit d'auteur formula, ao longo do século XIX, uma das mais importantes premissas da proteção do autor: o conceito dos direitos morais. [...] Para sempre, mesmo depois da morte do autor ou a despeito da alienação ou extinção dos direitos patrimoniais, continua a obra de tal forma ligada à pessoa que a criou que certos direitos não podem ser desrespeitados - como o de divulgação do nome do autor, garantia de integridade da obra e outros". Grifamos. (COELHO, 2012).

Cláudio Lins de Vasconcelos (2013, p. 70) atribui aos interesses pragmáticos o fato dos países pertencentes ao Copyright não terem abraçado as ideias difundidas além-mar (as já mencionadas aspirações dos Estados Unidos, por exemplo, por dominar os meios de produção, como garantia de independência econômica). As diferenças basilares dos modelos são assim resumidas por este autor:

38

"Em suma, pode-se dizer que a principal diferença entre as justificativas filosóficas que estão na base dos sistemas droit d'auteur e copyright está no foco temporal de cada uma. Na tradição civilista, o direito autoral existe por causa da realização de um trabalho no passado, no qual o autor imprimiu sua personalidade, merecendo por isso ser honrado e remunerado. Entre utilitaristas, por outro lado, qualquer direito, inclusive autoral, só se justifica por sua capacidade de contribuir para o 'bem-estar comum'. O direito exclusivo é um meio para se atingir, no futuro, a um fim socialmente desejável (útil), que é o aumento das oportunidades de expressão e aprendizado" (2013. p. 72-73).

A área extrapatrimonial dos direitos autorais é de vital importância para o presente estudo. A prática das fanfictions pode, em tese, atingir princípios e atributos do direito moral (cuja noção foi inserida na Convenção de Berna), mesmo sendo realizada sem fins de obter lucro. Por esta razão, face à essencialidade da abordagem - mas sem a pretensão de adentrar em tão amplo tema, o que fugiria ao debate - listar-se-á estes princípios e atributos, muito brevemente, como forma de apresentação introdutória ao que será proposto no próximo capítulo.

2.4 Os Direitos Morais.

Os conceitos abaixo foram retirados da obra de João Henrique da Rocha Fragoso (2009, p.201-219): a) São princípios dos direitos morais29: a.1) Perpetuidade: sobrevivem ao autor, sem limitação de tempo. Cabe ao Estado a defesa da paternidade e da integridade da obra; a.2) Inalienabilidade: estão revestidos de faculdades insuscetíveis de negociação; a.3) Irrenunciabilidade: tem como pressuposto a impossibilidade fática e moral de renunciar-se à própria personalidade; a.4) Imprescritibilidade: a imprescritibilidade está diretamente relacionada aos direitos da personalidade; a.5) Impenhorabilidade: não podendo ser alienados, não podem, por conseguinte, serem penhorados.

29

Ou pessoais/extrapatrimoniais: a doutrina critica o uso da palavra "moral".

39

b) Os atributos do direito moral do autor dirigem-se à proteção da personalidade do autor através da obra e não se exaurem no rol do artigo 24 da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais do Brasil). b.1) Direito de Paternidade: direito de reivindicar a autoria; b.2) Direito à Nominação: direito do autor (e de seus sucessores) de ver seu nome vinculado à obra; b.3) Direito ao Inédito: cabe somente ao autor a decisão de publicar a obra (mesmo quando já registrada); b.4) Direito à Integridade: direito de opor-se a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação da obra, ou prática que atentem contra a honra e reputação do autor; b.5) Direito à Modificação: direito de fazer, impedir ou autorizar terceiros a fazer adições, abreviações, supressões, correções, etc., às quais, no entanto não alteram a sua estrutura íntima, a sua composição; b.6) Direito de Retirada: faculdade de, mediante justificativa (no atual direito brasileiro), de retirar de circulação a obra ou suspender sua utilização já autorizada (genericamente, "direito de arrependimento"); b.7) Direito de Acesso: ter acesso a exemplar único e raro de sua obra, com a finalidade de preservar a sua memória, através de reprodução ou cópia; b.8) Direito ao Repúdio: a antítese do direito de paternidade, garante-se ao autor o direito de negar repudiar a obra de cuja autoria não participou. Nota-se, assim, uma extensa área que o copyright deixou de considerar, ao menos no campo dos direitos extrapatrimonais de natureza autoral, dentro das relações envolvendo a criação intelectual. E, agora que os direitos morais foram apresentados no presente trabalho, volta-se a abordar o sistema anglo-saxão.

2.5 Os Direitos Morais no Copyright.

Segundo João Henrique da Rocha Fragoso, a Inglaterra reconheceu os direitos morais no Capítulo V de sua lei. Também o fizeram a Austrália e o Canadá (2012, p. 205). Os Estados Unidos aderiram à Convenção de Berna (sobre a qual se comentará à frente) em 1989, momento no qual reconheceram os direitos morais. Mesmo assim, este reconhecimento foi limitado às "obras de arte visual" (works of visual arts). Este reconhecimento se deu por uma emenda (Visual Artistis Rights Act - VARA) de 1990 no Copyright Law americano, acrescentando-lhe a Seção 106A.

40

Antes da emenda, desde os anos 1970, existiam algumas jurisprudências estaduais que reconheciam os direitos à paternidade e à integridade. Cita João Henrique da Rocha Fragoso os exemplos do California Art Preservation Act e do New York Artists and Authorship Rights Act, referentes a obras de pintura, escultura ou desenho, de "reconhecida qualidade" (2012, p. 205).

"A ideia de "reconhecida qualidade", aplicada a certo gênero de obras, perpassa o direito americano na área autoral, estando, inclusive, implícita na Copyright Law; para nosso melhor entendimento, equivale ao que chamaríamos de "obras de prestígio". Mas como medir ou estabelecer o dito prestígio? [...] A referência à "obras de prestígio" não deixa de ser um subterfúgio, circunscrevendo a extensão da área de aplicação dos direitos morais de paternidade e de integridade, de modo a não privilegiá-los, mantendo, em consequência, o sistema norte-americano o mais afastado possível do sistema do Droit d'Auteur". (FRAGOSO, 2012. p. 205-206).

A definição de "artes visuais" no USC/17 dos Estados Unidos (Seção 101) compreende a pintura, a gravura, a escultura e a fotografia. Determina, ainda, que serão protegidas as obras, desde que originais, assim como as suas cópias, limitadas estas a 200 exemplares (numerados sequencialmente e assinados pelo autor). As fotografias somente serão protegidas quando destinadas à exposição ou exibição. Estão excluídas expressamente da proteção (ou dos direitos morais de paternidade e integridade) os posters, mapas, cartas geográficas, desenhos técnicos, diagramas, modelos, arte aplicada, jornais, periódicos, revistas, obras audiovisuais, livros, publicações eletrônicas, anúncios, comerciais ou quaisquer itens correlatos. Há, ainda, o requisito de obra de prestígio, mesmo para que as obras elencadas sejam protegidas. Afasta as obras produzidas dentro de relações empregatícias ou criadas por encomenda (FRAGOSO, 2012. p. 207-208). Ou seja, a adesão dos Estados Unidos à Convenção de Berna, bem como a edição do VARA, não teve impacto significativo no reconhecimento dos direitos morais nos Estados Unidos. Faculta o artigo 106A do Copyright Act, ainda, o direito do autor de renunciar aos direitos de paternidade e de integridade, exigindo-se somente que tal ato ocorra de forma expressa, por instrumento escrito. Podem ser renunciados, mas não transferidos, ressalta Fragoso (2012, p. 208). E, em caso de coautoria, a renúncia formalizada por um dos autores atinge os demais coautores ou colaboradores.

41

2.6 Convenções e organismos internacionais pertinentes.

Certos instrumentos internacionais são muito importantes para o presente trabalho. De fato, não se consegue pensar em direito autoral nos dias atuais sem recorrer a estes estatutos, em algum momento. Em sede de questões que ultrapassam fronteiras - como as fanfictions - a aplicação do direito (que será feita no próximo capítulo), será de ordem fundamental. No entanto, tendo em vista o foco do presente trabalho, instrumentos internacionais que não trouxeram consequencias para o assunto do presente estudo foram omitidos, a fim de não se extrapolar o tema proposto. Ressaltamos, portanto, a Convenção de Berna, a Convenção Universal ou de Genebra, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e o Acordo TRIPS (Trade Related Intellectual Property Aspects).

2.6.1 A Convenção de Berna.

Até a Convenção de Berna, o universo dos direitos autorais no âmbito internacional se desenhava como um tanto caótico, apesar da aparente unidade filosófica. Tentativas foram feitas no sentido de mitigar o problema, como os acordos bilaterais - foram neles que o chamado "tratamento nacional", à frente mencionado, foi desenvolvido. (VALENTE, 2013. p. 192). Logo, em 1886, a convenção surgiu da necessidade de regulação internacional a respeito da matéria. Os tratados bilaterais firmados a partir da Revolução Francesa já não davam conta dos conflitos jurídicos que proliferavam, como por exemplo: as normas de direito autoral só eram aplicadas às obras produzidas no respectivo país. "[...] Desse modo, um escritor inglês estaria protegido na Inglaterra, mas não na França, onde seus livros poderiam ser reproduzidos e comercializados por qualquer pessoa, sem que o autor ou editor 'originário' recebessem por isso". (PEREIRA, 2012. p. 68). Fixou-se, então, diretrizes fundamentais a respeito da proteção autoral: orientação legal comum (padrões mínimos) - como a exclusividade da exploração exclusiva patrimonial das obras literárias e artísticas -, em regra, por toda a vida do autor mais 50 anos após a sua morte. No entanto, a convenção exige o consenso de todos os membros e, ainda, não previa nenhuma forma de enforcement específico para garantir seu cumprimento (VALENTE, Op. cit. p. 193). São princípios fundamentais da Convenção de Berna:

42

a) Tratamento nacional: o tratamento dispensado às obras estrangeiras deve ser o mesmo dado às obras nacionais (princípio da assimilação); "um país reconhece o direito de autores do outro de acordo com o seu direito nacional" (PEREIRA, Op. cit. p. 68; VALENTE, Op. cit. p. 192). b) Proteção mínima: os países ficam obrigados a assegurar, como nível mínimo de proteção, aquilo que é assegurado pela Convenção, como os gêneros de obras protegidas, os tipos de direitos assegurados, os limites permitidos e o prazo de duração da proteção (PEREIRA, Op. cit. p. 68). c) Proteção automática: o sistema de proteção pelo direito autoral, em um Estadomembro, não pode depender de nenhuma formalidade, tal como o registro ou depósito de cópias (PEREIRA, Idem. p. 68). A respeito desta convenção, critica Mariana Gorgetti Valente que, em um cenário onde a produção dos conteúdos a serem disseminados não eram igualmente as mesmas no mundo, o princípio do tratamento nacional, na realidade, significava que "[...] países periféricos devem respeitar as obras produzidas nos países centrais". (Idem, p. 193-195). Quanto à participação dos Estados Unidos, informa a mesma autora (idem, p. 195), que estes estiveram presentes na condição de observadores, declarando desde o início uma boavontade em relação ao tratado; no entanto, que era impossível o cumprimento dos padrões mínimos do acordo). Conforme Márcio Pereira (Op. cit, p. 69), com o tempo, a Convenção de Berna passou a ter a adesão esmagadora dos países, sendo que o Brasil a ela aderiu em 1922 (o primeiro país da América Latina). Mais cinco revisões foram feitas e a convenção continua sendo o instrumento-padrão do Direito Autoral Internacional.

2.6.2 A Convenção Universal ou de Genebra.

Os Estados Unidos, conforme mencionado, inicialmente não aderiram à Convenção de Berna, uma vez que entenderam haver incompatibilidade entre o seu sistema interno e o da convenção, o que causaria transtornos à legislação do país caso fosse aderida. No entanto,

"O crescimento político e econômico atingido pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial, somado ao fato de grande parte das indústrias culturais terem despontado naquele país, constituíram motivos suficientes para que os Estados Unidos procurassem encabeçar uma nova Convenção que se amoldasse melhor a seus interesses". (PEREIRA, 2013. p. 70).

43

Nasce, assim, em 1952, a Convenção Universal - porque os Estados Unidos assim a queriam apresentar, "universal", em detrimento da Convenção de Berna -, ou Convenção de Genebra. Seu objetivo era tentar estabelecer uma ponte entre os sistemas, o copyright e o droit d'auteur. (PEREIRA, 2013. p. 70). Houve a adesão maciça dos países, incluindo o Brasil (Decreto Legislativo n. 59, de 30 de julho de 1965). São princípios fundamentais da Convenção de Genebra (PEREIRA, Op. cit. p. 72): a) Tratamento nacional: tal qual estipulado na Convenção de Berna (acima descrito); b) Formalidade mínima indispensável: de acordo com este princípio, entende-se protegida a obra intelectual que, desde a primeira publicação, trouxer o símbolo © (copyright), acompanhado do nome do titular do direito de autor, seguido da indicação do ano da primeira publicação. A Convenção de Genebra foi revisada em 1971, juntamente com a de Berna. Márcio Pereira (2013, p. 72) acredita que, com a adesão dos Estados Unidos à Convenção de Berna, em 1989, muito da importância jurídica da Convenção de Genebra foi perdida.

2.6.3 A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI).

Por meio de convenção celebrada em 1967, em Estocolmo, surgiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). É uma das dezesseis agências especializadas da Organização das Nações Unidas e tem como principais objetivos promover a proteção da propriedade intelectual pelo mundo. (PEREIRA, 2013. p. 73). Conta com 184 membros e administra 23 acordos sobre o tema (incluindo a Convenção de Berna e a Convenção de Genebra). Relata Mariana Gorgetti Valente (2013, p. 195) que no momento em que a OMPI passa a administrar estas convenções, os países em desenvolvimento estavam descontentes com o sistema internacional de direitos autorais - e a OMPI passaria a auxiliar estes países no desenvolvimento de regras de direitos autorais: "[...] a pressão fez com que subsequentemente outras questões, como de conhecimentos tradicionais, passassem a ser tema de encontros e endereçadas pela comunidade internacional". A criação da OMPI e o TRIPS (estudado a seguir) inauguram o modelo atual de proteção dos direitos de propriedade intelectual (PEREIRA, 2013. p. 74). Adentra-se na fase global do direito autoral (VASCONCELOS, 2010. p.65).

44

2.6.4 O Trade Related Intellectual Property Aspects (TRIPS).

Criado juntamente com a Organização Mundial de Comércio (OMC), em 1994 - o Trade Related Intellectual Property Aspects (TRIPS) era um de seus 28 acordos multilaterais (mais precisamente, o Anexo 1, "C" ). Portanto, os países que assinaram o tratado que criou a OMC obrigaram-se também a cumprir o acordo TRIPS (incluindo o Brasil, que o adotou através do Decreto n. 1.355, de 1994). (PEREIRA, 2013. p. 74). Seu fundamento foi o crescente comércio de marcas e intensa difusão de produtos culturais - demandando que o comércio internacional terminaria por ser afetado caso não existissem padrões a serem adotados por todos os países. Logo, os motivos básicos que levaram ao TRIPS foram a necessidade de combater a pirataria, o impacto das novas tecnologias e a globalização dos mercados. Através do TRIPS, os estados-membros obrigamse a aceitar os princípios substantivos da Convenção de Berna e da Convenção da União de Paris30. Equiparou, ainda, os programas de computação à categoria de obra literária (PEREIRA, Op. cit. p. 76-79 e 82).

"No início da Rodada Uruguai [onde foi negociado], em 1986, predominava a ideia de que as negociações seriam feitas sem prejuízo de medidas de propriedade intelectual que poderiam ser tomadas no âmbito da OMPI. Em abril de 1994, no entanto, assinava-se o acordo multilateral mais extensivo que já existiu em termos de propriedade intelectual". (VALENTE, 2013. p. 198).

Como fruto das controvérsias em torno das questões culturais, foi gerado o conceito de "exceção cultural". Este conceito, por sua vez, propiciou que o governo francês fizesse inserir a "cláusula da exceção cultural" nas regras comerciais, excluindo o cinema e outros bens audiovisuais das suas disposições (PEREIRA, Op. cit. p. 80-81). São princípios do TRIPS, segundo o autor acima citado: a) Princípio do tratamento nacional: já abordado na Conversão de Berna e na Convenção de Genebra, acima exposto; b) Princípio do tratamento da nação mais favorecida: ao conceder uma vantagem, privilégio ou imunidade a um de seus nacionais, o membro deverá estendê-lo aos nacionais dos demais membros. c) Princípio da prevenção dos abusos: é permitido aos Estados adotarem medidas que evitem abusos no campo da propriedade intelectual praticados por quaisquer países-membros, 30

A Convenção da União de Paris tratava de direito industrial, fugindo da questão central do trabalho.

45

bem como as aquelas práticas que limitem o comércio e/ou prejudiquem a transferência internacional de tecnologia. d) Princípio da obrigatoriedade ou adesão sem reservas: nenhuma nação poderá integrar a OMC com condicionantes ou reservas. Quanto à estrutura cujo acesso possibilitou o TRIPS, merecem destaque os Órgãos de Exame das Políticas Comerciais e de Solução de Controvérsias da OMC, que têm a função de controlar o comprometimento dos membros com o cumprimento dos Acordos vigentes. O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), por exemplo, permite a denúncia e sanção dos membros que não cumprirem os acordos. O OSC é considerado uma inovação e um diferencial da OMC em relação às demais organizações internacionais. Caracteriza-se por: a) ser um tribunal temático; b) possuir dupla instância; c) não se ater à sanção moral, definindo recomendações e aplicando sanções de compensação e suspensão de concessões (retaliação comercial); e d) pela supervisão multilateral dos Membros em reunião no OSC (é admitido somente o consenso negativo, ou seja, uma decisão só não é aprovada se todos os membros a reprovarem). Assim, através da OMC e de seu órgão de Solução de Controvérsias, a influência e o poder de barganha nas decisões não são horizontais, havendo aqueles que são mais ou menos capazes de estabelecer as pautas e formular políticas. (VALENTE, 2013. p. 199-200). Comenta Márcio Pereira, citando o pensamento de José de Oliveira Ascensão: "[a OMC] passou a ser a entidade determinante do regime jurídico internacional do direito de propriedade intelectual, passando, portanto, o comércio mundial a influenciar decisivamente as normas de direito autoral". (2013, p. 84).

2.7 Alguns elementos essenciais dos direitos autorais. Os sistemas nacionais, por influência histórica e de tratados internacionais, costumam dividir o ramo da Propriedade Intelectual em dois grandes grupos: os direitos autorais de forma geral, onde estão inseridas a literatura, artes e ciência; e a propriedade industrial (marcas e patentes). Para fins do presente estudo, as leis e tratados que disciplinam os meios de expressão alheios (ou não-relevantes) às práticas adotadas pelos fãs, mormente a fanfiction, foram excluídos. Para um estudo comparativo, serão analisados os tratados internacionais (Convenção de Berna - CB; Convenção de Genebra - CG; e TRIPS), bem como a legislação

46

nacional (Lei n. 9.610/1998, Lei de Direitos Autorais - LDA) e o título 17 do Code dos Estados Unidos (doravante denominado pela sigla USC/17). Feita esta pequena introdução, aborda-se as categorias de obras citadas no item "1.3" do capítulo anterior, as mídias que carregam os universos sobre os quais são inspiradas as fanfictions: livros, filmes, desenhos animados, anime/manga, peças/musicais, programas de TV e histórias em quadrinhos.

2.7.1 O que se protege: as obras compreendidas na proteção legal.

As obras literárias e artísticas, categoria na qual se enquadram estas mídias, já eram tratadas pela Convenção de Berna em seus Artigos 1 e 2. Os acordos e legislações abrangem obras literárias e artísticas, também chamadas de "obras intelectuais da criação do espírito" (CG, preâmbulo; LDA, art. 7°. caput), expressas por qualquer meio (CB, art. 2; LDA, art. 7°, caput) ou fixadas em qualquer suporte tangível ou intangível (LDA, art. 7°, caput; USC/17, §102, "a" - somente em suporte tangível), suporte este conhecido ou que se venha a conhecer no futuro (USC/17, §102; LDA, art. 7°, caput), abrangendo todas as produções do domínio literário, científico e artístico (CB, art. 2). Abrangem, por exemplo: a) textos literários (LDA, art. 7°, I; CG, Artigo I; USC/17, §102, "a", "1"), tais como livros, brochuras e outros escritos (CB, art. 2); b) conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza31 (CB, art. 2; LDA art. 7°, II); c) obras dramáticas ou dramático-musicais (CB, art. 2; CG, Art. I; LDA, art. 7°, III; USC/17, §102, "a", "3"); d) obras coreográficas e pantomímicas (CB, art. 2; LDA, art. 7°, IV; USC/17, §102, "a", "4"), cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma (LDA, art. 7°, IV, in fine); e) composições musicais (CB, art. 2; CG, Art. I; LDA, art. 7°, V; USC/17, §102, "a", "2"), tenham ou não letra (idem, exceto pela CG); f) obras audiovisuais (CB, art. 2; LDA, art. 7°, VI; USC/17, §102, "a", "6"), sonorizadas ou não (idem, exceto a CG), inclusive as cinematográficas (CB, art. 2; CG, Art. I; LDA, art. 7°, VI; USC/17, §102, "a", "6"); g) obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo à fotografia (CB, art. 2; LDA, art. 7°, VII; USC/17, §101, §102, "a", "5"); h) obras de desenho, pintura, gravura, escultura (CB, art. 2; CG, Art. I; LDA, art. 7°, VIII; USC, §102, "a", "5"), litografia (todas, menos a CG) e cinética (LDA, art. 7°, VIII); i) as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza (CB, art. 2; LDA, art. 7°, 31

Este tipo de obra foi citada pois, sendo celebridades e demais pessoas públicas passíveis de terem suas vidas "ficcionadas" por fãs, seus discursos podem ser usados, também, na prática das fanfictions.

47

IX; USC/17, §101, §102, "a", "5"); i) as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova (CB, art. 2, "3"; LDA, art. 7°, XI; USC/17, §103 - e com as limitações impostas); j) as coletâneas, ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras32 que por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual (LDA, art. 7°, XIII). A Convenção de Berna faculta aos países-membros decidirem quais expressões não protegerão (art. 2, "2"). Já o TRIPS, em seu Artigo 9, "1", reporta-se à Convenção de Berna para referir-se às expressões protegidas (excluindo a obrigatoriedade do Artigo 6bis, que são os direitos morais). No tocante ao que não deve ser protegido, diz expressamente o TRIPS, em seu Artigo 9, "2": "A proteção do direito do autor não abrangerá expressões e ideias, procedimentos, métodos de operação ou conceitos matemáticos como tais". Na legislação pátria, o artigo 8° da LDA traz o rol das obras não-protegidas:

"Art. 8º Não são objeto de proteção como direitos autorais de que trata esta Lei: I - as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais; II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios; III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer tipo de informação, científica ou não, e suas instruções; IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais; V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas; VI - os nomes e títulos isolados; VII - o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras".

Ressalta-se que o título da obra é protegido se original e inconfundível com o de obra do mesmo gênero, divulgada anteriormente por outro autor (LDA, art. 10). Quanto aos Estados Unidos, o rol de exclusão genérica daquele país está na alínea "b", §102, do seu USC/17:

"§102 - Matéria do copyright: em geral (a) [...] (b) Em nenhuma hipótese haverá proteção de copyright para uma obra original de autoria estendida para nenhuma ideia, procedimento, processo, sistema, métodos de operação, conceito, princípio, ou descoberta, 32

Esta categoria foi citada em virtude do caso Lexicon HP, que será mencionado no próximo capítulo.

48

independentemente da forma na qual está descrita, explicada, ilustrada, ou incorporada em tal obra".33

Sendo estes os casos gerais de inclusão e exclusão da proteção dos direitos autorais, iniciar-se-á a abordagem da titularidade nos direitos autorais; em resumo, quem pode fazer uso das exclusividades garantidas pelos sistemas.

2.7.2 Para quem se protege: quem são titulares dos direitos autorais.

A titularidade no Brasil está regulada nos artigos 11 a 17 da LDA. Nos Estados Unidos, a questão está genericamente exposta na Seção §201 do USC/17. Nestes mesmos dispositivos cada país regula, também, a autoria coletiva e a obra encomendada. A legislação americana tem como "titular inicial" (inicial ownership) o autor ou autores da obra (USC/17, §201, "a"). A definição de autor não é fornecida. Por outro lado, o artigo 11 da LDA define como "autor" a pessoa física (ou "pessoa natural", conforme nova nomenclatura do Código Civil de 2002) que foi criadora da obra e, excepcionalmente, nos casos previstos naquela lei, a proteção poderá ser concedida à pessoas jurídicas. Os direitos autorais podem ser transferidos, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. A LDA disciplina o assunto em seu artigo 49 e seguintes; enquanto nos Estados Unidos, o assunto é tratado na §201, "d" e "e". A diferença é quanto aos direitos morais que, no Brasil, não podem ser transferidos totalmente, nem renunciados (artigos 27 e 49, I, LDA); enquanto nos Estados Unidos, no único caso de reconhecimento de direitos morais, o §106A, "c" (visual arts, conforme mencionado no item 2.4 deste trabalho), a transferência é vedada, mas não a renúncia. Os direitos autorais são transmitidos, ainda, pela morte do titular aos herdeiros deste (LDA, art. 24, §1° e 41; USC/17, §103, "2"). Cada legislação (brasileira e norte-americana) prevê tratamentos específicos para cada categoria de obra. No Brasil, por exemplo, os direitos morais das obras audiovisuais cabem ao diretor (LDA, art. 25). Em caso de obra anônima ou pseudônima, cabe a quem publicá-la o exercício dos direitos patrimoniais do autor (LDA, art. 40). Em apertada síntese, relacionou-se o quê se protege e quem pode invocar esta proteção. No entanto, falta elencar-se quais direitos são protegidos.

33

Tradução livre de: "§102 - Subject matter of copyright: in general. (a) [...] (b) In no case does copyright protection for an original work of authorship extend to any idea, procedure, process, system, method of operation, concept, principle, or discovery, regardless of the form in which is described, explained, illustred, or embodied in such work".

49

2.7.3 Como se protege: quais são os direitos exclusivos.

A Convenção de Berna fixa, em seu Artigo 6bis, os direitos morais mínimos - o de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou outra modificação dessa obra, ou qualquer dano à mesma obra, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação. Esta última faculdade, como visto no item 2.3, é o direito à integridade da obra ponto importante para o presente estudo, visto que, como se discutirá no capítulo seguinte, a paternidade da obra não é ocultada nas fanfictions. Como foi mencionado diversas vezes, os direitos morais não encontraram guarida na legislação americana, mesmo depois da adesão dos Estados Unidos à Convenção de Berna. Exceto, volta-se a dizer, pelas visual arts, cujo direito a reivindicar a paternidade e a integridade da obra foi concedidos na §106-A do USC/17. No Brasil, os direitos morais do autor estão elencados no artigo 24 e seguintes da LDA, e basicamente são aqueles mencionados no item 2.3 deste trabalho. Já os direitos patrimoniais estão dispostos no artigo 28 e seguintes:

"Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I - a reprodução parcial ou integral; II - a edição; III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações; IV - a tradução para qualquer idioma; V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual; VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra; VII - a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário; VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante: a) representação, recitação ou declamação; b) execução musical; c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos; d) radiodifusão sonora ou televisiva; e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva; f) sonorização ambiental; g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado; h) emprego de satélites artificiais; i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação

50

similares que venham a ser adotados; j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas; IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas".

No direito norte-americano, os direitos exclusivos são tratados, de forma geral, na §106 do USC/17:

"§106 - Direitos exclusivos em obras protegidas. Sujeito às seções 107 à 122, o proprietário do copyright neste título tem o direito exclusivo de fazer e autorizar quaisquer dos seguintes: (1) reproduzir a obra protegida em cópias ou fonocópias; (2) preparar trabalhos derivados baseados na obra protegida; (3) distribuir cópias ou fonogravações da obra protegida para a venda pública ou outra transferência de propriedade, ou para aluguel, arrendamento ou empréstimo; (4) no caso de obras literárias, musicais, dramáticas e coreográficas; pantomimas, filmes e outras obras audiovisuais; fazer a performance da obra protegida; (5) no caso de obras literárias, musicais, dramáticas e coreográficas; pantomimas, ilustrações, esculturas, incluindo imagens individuais de um filme ou outra obra audiovisual; a executar publicamente a obra protegida; e (6) no caso de gravações sonoras, a executar publicamente a obra protegida por meios de uma transmissão de áudio digital".34

Volta-se a lembrar que os dois sistemas possuem seções tratando de categorias em específico, bem como limitações a estes direitos (estas últimas serão apresentadas no capítulo seguinte).

2.7.4 Quando se protege: as condições para que uma obra seja protegida.

A Convenção de Berna já determinava que o gozo e o exercício dos direitos concedidos aos autores não devem ser subordinados a qualquer formalidade (Artigo 5, "2"). Nos termos

34

Tradução livre de: "§106 - Exclusive rights in copyrighted works. Subject to sections 107 through 122, the owner of copyright under this title has the exclusive rights to do and to authorize any of the following: (1) to reproduce the copyrighted work in copies or phonorecords; (2) to prepare derivative works based upon the copyrighted work; (3) to distribute copies or phonorecords of the copyrighted work to the public by sale or other transfer of ownership, or by rental, lease, or lending; (4) in the case of literary, musical, dramatic, and choreographic works, pantomimes, and motion pictures and other audiovisual works, to perform the copyrighted work publicly; (5) in the case of literary, musical, dramatic, and choreographic works, pantomimes, and pictorial, graphic, or sculptural works, including the individual images of a motion picture or other audiovisual work, to display the copyrighted work publicly; and (6) in the case of sound recordings, to perform the copyrighted work publicly by means of a digital audio transmission".

51

do artigo 18 da LDA, a proteção é independente de registro da obra. A Seção 408, "a", do USC/17, que trata das normas gerais de registro da obra, diz que tal registro não é indispensável para a proteção dos direitos autorais. No tocante à aplicação do direito no âmbito internacional, o Acordo TRIPS, em seu Artigo 3, consagrou o "princípio do tratamento da nação mais favorecida" (abordado no item 2.5.4 deste trabalho). Por ele, cada membro concederá, aos nacionais dos outros membros, tratamento não menos favorável que o outorgado a seus próprios nacionais. Excetua o artigo, no entanto, os casos previstos na Convenção de Berna - que, basicamente, deixará de fora os nacionais de Estados que não são membros daquela convenção, aqueles que não residem em nenhum país-membro ou que não publicaram a obra pela primeira vez (ou simultaneamente) em um país-membro (CB, Artigo 3). A Seção 104 do USC/17 segue, basicamente, a mesma lógica do mencionado artigo da Convenção de Berna, acrescentando dois pontos. Primeiro, que as obras não-publicadas gozarão de proteção, não importando a que país seu nacional pertença ou onde ele tenha seu domicílio (§104, "a"). Por fim, que o Presidente terá a possibilidade de, sob certas condições (verificando reciprocidade em determinado Estado), estender a proteção para os nacionais deste país - podendo revogar, limitar ou impor qualquer condição à proclamação na qual estendeu a proteção (§104, "a", "6"). Ressalte-se que este mesmo dispositivo determina:

"§104 - Objeto no copyright: origem nacional. [...] (c) Efeito da Convenção de Berna. - Nenhum direito ou interesse em uma obra elegível da proteção deste título poderá ser alegada em virtude de, ou sobre a confiança, das disposições da Convenção de Berna, ou da aderência dos Estados Unidos a ela. Qualquer direito em um trabalho elegível de proteção sob este título e que derive deste título, ou de outros estatutos federais ou estaduais, ou do common law, não deverá ser expandido ou reduzido em virtude de, ou sobre a confiança, das disposições da Convenção de Berna, ou da aderência dos Estados Unidos a ela". 35

Já a legislação brasileira não faz qualquer referência ao local da publicação da obra. Bastam três requisitos, dispostos na LDA: a nacionalidade brasileira do autor ou, se estrangeiro, domiciliado no Brasil; se o país do autor faz parte de tratado com o Brasil ou se trata com reciprocidade os brasileiros ou pessoas domiciliadas no Brasil: 35

Tradução livre de: "§104 · Subject matter of copyright: National origin. (c) Effect of Berne Convention.—No right or interest in a work eligible for protection under this title may be claimed by virtue of, or in reliance upon, the provisions of the Berne Convention, or the adherence of the United States thereto. Any rights in a work eligible for protection under this title that derive from this title, other Federal or State statutes, or the common law, shall not be expanded or reduced by virtue of, or in reliance upon, the provisions of the Berne Convention, or the adherence of the United States thereto".

52

"Art. 2° Os estrangeiros domiciliados no exterior gozarão da proteção assegurada nos acordos, convenções e tratados em vigor no Brasil. Parágrafo único. Aplica-se o disposto nesta Lei aos nacionais ou pessoas domiciliadas em país que assegure aos brasileiros ou pessoas domiciliadas no Brasil a reciprocidade na proteção aos direitos autorais ou equivalentes".

Carlos Alberto Bittar afirma que são requisitos básicos, traçados pela jurisprudência e pela doutrina, para o caráter privativo da obra: a) que ela se enquadre em determinada categoria de arte e cultura; e b) contenha originalidade, em concreto, para a abrangência dentro do Direito de Autor (2013, p. 51). Denis Borges Barbosa, no entanto, cita uma lista um pouco mais detalhada de requisitos mínimos:

"Segundo Carolina Tinoco Ramos, há sete requisitos para a proteção de um objeto pelo Direito de Autor brasileiro: (a) seu originador será pessoa natural; (b) o resultado final da criação será imputável a tal originador; (c) o objeto será uma criação intelectual (objetivada); (d) essa criação será exteriorizada, de forma possível a ser objeto de comunicação (algumas vezes, objeto de fixação); (e) não haver proibição legal à apropriação; (f) a obra ser nova, no sentido de não ser cópia da pré-existente; (g) ser dotada de um determinado grau mínimo de criatividade, de forma a justificar a exclusividade autoral (contributo mínimo)". ( 2013. p. 273-274).

Quanto à duração da proteção, a Convenção de Berna, em seu artigo 7, prevê um mínimo geral de cinquenta anos após a morte do autor. Os países têm a faculdade de estipular as regras quanto às obras cinematográficas, podendo este prazo contar a partir da data em que a se tornou acessível ou, se isso não tiver ocorrido, da sua realização. Nas obras anônimas ou pseudônimas o prazo é contado da publicação - volta-se, no entanto, à regra geral caso o autor se der a conhecer. As obras fotográficas tem um prazo mínimo de vinte e cinco anos. Conta-se este prazo a partir de 1° de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor ou da publicação/realização da obra. Por fim, faculta a Convenção aos países-membros a ampliação do prazo desta proteção. A Convenção de Genebra fixa um prazo não inferior a vinte e cinco anos após a morte do autor (Artigo IV). O Acordo TRIPS (Artigo 12) fixa, para as obras não-fotográficas - e caso se conte o prazo de proteção de forma diferente ao à vida de uma pessoa -, o período não inferior à cinquenta anos, contados da publicação ou, na ausência desta, da realização. No caso de fonogramas, o

53

prazo é de cinquenta anos contados a partir da fixação ou à apresentação ter sido realizada. A radiodifusão tem a proteção de vinte anos. O prazo sempre é contado a partir do fim do ano civil destas datas. No Brasil, o artigo 41 da LDA concede o prazo de proteção de setenta anos após a morte do autor; o mesmo é válido para as obras póstumas. As obras anônimas ou pseudônimas (artigo 43) têm este prazo contado a partir da publicação da obra, salvo se o autor se der a conhecer antes de expirar este prazo, caso em que se volta à regra geral do artigo 41. Na obra em coautoria, a partir do falecimento do último autor (artigo 42). Audiovisuais e fonogramas, setenta anos, da divulgação. A contagem sempre é feita a partir de 1° de janeiro do ano subsequente a estas datas. O Capítulo 3 do USC/17 cria uma série de regras para a contagem do prazo de proteção, levando-se em consideração o ano em que a obra foi publicada, mas, no geral, este período é de setenta anos. Feita esta apresentação da função dos direitos autorais, sua evolução histórica e legislativa - a qual, espera-se, tenha contribuído para a melhor compreensão "do que move" a concessão de uso exclusivo da produção intelectual -, passa-se, finalmente, ao confronto destes direitos com a prática (já difundida e consolidada) das fanfictions.

CAPÍTULO III A FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO FRENTE ÀS FANFICTIONS

"Um cão de caça, tendo visto um leão, correu ao seu encalço. Mas o leão o viu e começou a rugir, e o cão bateu em retirada, apavorado. Uma raposa que observava a cena disse: 'Ó idiota, perseguias um leão do qual nem sequer suportaste o rugido?' ". ("Fábulas" - Esopo).

Tomando-se a fábula acima como recurso metafórico, é difícil dizer quem representa o cão de caça e quem é o leão nas relações entre fãs-escritores de fanfiction e os titulares de direitos autorais - especialmente quando estes últimos são gigantes da assim chamada "indústria cultural" ou "indústria do entretenimento". O poderio econômico possibilita às empresas de entretenimento manter um "batalhão de advogados" a seu serviço, bem como um eficiente lobby junto às Casas Legislativas. Por outro lado, os fãs, consumidores leais do produto intelectual por aquelas comercializado, são seus maiores divulgadores e mantém vivo o interesse sobre estes "produtos". Já os autores, independentemente da existência de uma grande empresa a gerenciar (ou a compartilhar) seus interesses, têm nos admiradores de seus trabalhos a fonte da valorização econômica e cultural de suas obras. Há, é claro, o entendimento daqueles que vêem negativamente a relação entre "indústria cultural" e os apreciadores de seus produtos. Aqueles que os tomam como "alienados", acorrentados a uma espécie de Panem et Circum moderno, cuja finalidade é enriquecer as empresas de entretenimento e manter o status quo vigente. Esta visão remonta ao final do século XIX (aos fanáticos do esporte) e aos estudos do modelo fascista de propaganda, desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial - visão finalmente reforçada, por sua vez, pelos meios de comunicação da segunda metade do século XX (JENKINS, 2013). A outra face da moeda, proveniente deste preconceito, é exibida pelo mundo acadêmico nacional: a escassez (senão ausência, em determinadas áreas) de estudos que analisem o fenômeno. É de se questionar se as velhas máximas do século XIX devem ser simplesmente repetidas ou, ao contrário, é hora de ventilar-se o direito autoral, renovando seus ares com novas interpretações - nunca descuidando, é claro, da dignidade da pessoa humana, princípio-mor da Constituição Federal para qualquer esforço hermenêutico.

55

Jamais se poderia, é claro, esgotar o tema e, muito menos alcançar, com os modestos objetivos deste trabalho, uma resposta abrangente e definitiva para a questão. A ambição, pequenina como ela é, baseia-se na aspiração de entrever as possíveis direções que o assunto pode tomar. Para tanto, analisar-se-á, primordialmente, o direito autoral brasileiro frente a uma interpretação constitucional e funcionalizante. No entanto, sempre que possível, serão apresentados casos do sistema copyright (mormente o americano): a internacionalização do direito autoral incita-nos a tanto. Esta aproximação é importante, conforme lembra Leonardo Machado Pontes, "[...] em razão da crescente harmonização e convergência das legislações sobre o assunto, a propriedade intelectual se torna um direito prima facie internacional" (2012, p. 6).

3.1 O Direito Civil Constitucional: a interpretação funcionalizada do Direito Autoral Brasileiro.

A ideia de que o Direito é um sistema fechado em si mesmo, possuidor de todas as respostas dentro de suas disciplinas isoladas não impera mais. As guerras mundiais travadas no início do século passado nos mostraram o malefício da aplicação de um direito "purista", apartado do mundo que o cerca, acarretando as maiores injustiças e horrores. Assim, veio construindo-se uma interpretação multifacetada do Direito, buscando-se a unidade hermenêutica através da Constituição:

"A coexistência harmônica desse polissistema - formado pelo Código, pelos estatutos jurídicos e leis especiais - encontra um ponto lógico-formal de apoio e aplicação hermenêutica nos princípios e normas superiores de Direito Civil consagrados na própria Constituição". (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013. p. 93). O Direito Civil Constitucional, como uma mudança, representa uma atitude bem pensada, que tem contribuído para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sadio diálogo entre os juristas das mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interpretação dos dois ramos do direito - o público e o privado -, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer; isto é, exatamente o inverso". (TARTUCE, 2013. p. 55).

Assim, contextualiza Flávio Tartuce (2013, p. 56-57), o diálogo consubstancia-se primeiro na Constituição, máxime na proteção da pessoa humana: no superprincípio ou

56

"princípio dos princípios", a dignidade da pessoa humana. Relaciona-se também com o princípio da solidariedade social e o princípio da isonomia (ou igualdade lato sensu). Para que a proteção da pessoa humana seja possível, prossegue Tartuce, deve-se reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, as normas de proteção têm aplicação imediata nas relações entre particulares. (2013, p. 67). Ensina Carlos Alberto Bittar (2013, p. 2) que, no século XIX, a evolução do pensamento jurídico trouxe à tona duas categorias de direitos: a dos direitos da personalidade (nos quais estão os chamados "direitos morais" no autor) e os direitos intelectuais - estes divididos posteriormente em Direito do Autor e Propriedade Industrial. Bittar, inclusive, defende a autonomia científica desde ramo do Direito Civil (2013, p. 37). No entanto, é ramo do Direito Civil. Suis generis é verdade - mas ainda condicionado aos princípios gerais da disciplina, assim como aos princípios constitucionais. Os direitos da personalidade, por exemplo, estão presentes nos artigos 11 a 21 do Código Civil. Perfeitamente possível, portanto, que o Direito de Autor seja tratado sob o viés civilconstitucional (FIGUEIREDO, 2012. p.22-27). São princípios do direito civil, de acordo com a nova sistemática do Código Civil de 2002: (a) a eticidade (boa-fé, reconhecimento da participação dos valores), (b) a sociabilidade (preservação do sentido de coletividade) (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013), e (c) operalibilidade (simplicidade na interpretação e aplicação dos institutos; e concretude, aplicação de cláusulas gerais). (TARTUCE, 2013. p.48). Explana Flávio Tartuce que a filosofia contida no Código Civil se expressa pelo Culturalismo Jurídico (no plano subjetivo), onde "[...] cultura, experiência e história, que devem ser entendidas tanto do ponto de vista do julgador como da sociedade, ou seja, do meio em que a decisão será prolatada". E, no plano objetivo, a Teoria Tridimencional do Direito: o "fato, valor e norma" de Miguel Reale. (2013, p. 50-51). Em termos técnicos, valor e função não são a mesma coisa. No entanto, para fins deste trabalho, entende-se que o valor dado ao direito autoral está diretamente ligado à função ou funções que ele desempenha dentro do ordenamento pátrio. Assim, passemos às funções do direito de autor. Para Guilherme Carboni (2008, p. 71-89) são funções do direito autoral: a) Função de Identificação do Autor: apesar de normalmente ser adotada dentro de uma ótica privada, há um interesse da coletividade na identificação do autor da obra. Respeitado o direito de anonimato, é claro (art. 5°, VIII, b, da LDA). O direito de paternidade, assim, deve

57

ser entendido como um interesse social na transparência e na veracidade das informações (acesso às fontes). b) Função Promocional: o Estímulo à Criação Intelectual. Essa função está calcada no artigo 216, §3°, da Constituição Federal, "[...] a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais". Entende Carboni (2008, p. 73), que este estímulo não é só o fiscal, mas deve ser entendido também pelos direitos de uso exclusivo constituídos pelo direito de autor. c) Função Econômica. O direito de autor possibilita a apropriação da informação enquanto mercadoria. Na economia capitalista, há um interesse de "aprisionamento" da informação enquanto mercadoria, o que se choca com a "era do acesso", onde a informação é "presenteada" (gift economy) - qualquer usuário pode enviar um livro ou uma música para um amigo, sem que isso importe na retirada de um bem de sua posse. A função do direito de autor é justamente permitir esse aprisionamento da informação enquanto mercadoria, baseando-se na concessão exclusiva ao titular, conferindo-lhe poder de barganha na sua comercialização. d) Função Política. O direito de autor, enquanto instrumento que tem por função promover o desenvolvimento cultural, econômico e tecnológico, deve ser entendido como uma política de liberalismo cultural, que recai a todas as obras, independente de juízos de valor sobre o interesse nacional em sua proteção (o que, segundo Carboni, só tem lugar em regimes totalitários). Logo, o intérprete dos direitos autorais (mormente o magistrado, frente ao princípio da operalização), deve levar em conta todos estes fatores - não para sacrificar um direito frente a outro, mas verificando se a medida tomada verdadeiramente atende à demanda social. Se sua aplicação está garantindo o máximo aproveitamento de todos os direitos envolvidos, principalmente, dos direitos fundamentais.

"A relação individual-coletivo na produção criativa do espírito é de grande valor para a compreensão não só do ato criativo, como também de uma série de princípios que regem a própria legislação que se debruça sobre a área do direito de autor, na tentativa de construção de um sistema de normas que tutele de forma justa a esfera da produção autoral, sem desprover a sociedade de seu papel e sem desacreditar na capacidade de criação humana. [...] Relevante, portanto, o binômio interesse público e interesse privado na obra estética, de um lado, a mitigar o excesso de limitações decorrentes do direito sobre a propriedade intelectual, que decorreria da leitura liberal do gênio como criador singular, e a mitigar, por outro lado, o excesso de coletivismo amorfo, que decorreria da leitura socializante, que impediria a formação da autonomia necessária à expressão do espírito humano. O direito de autor se caracteriza, pois, pela fusão de ambas as faces: a face social e a face liberal da obra estética". (BITTAR, C.A., 2013. p. 21).

58

A Constituição Federal, por seu turno, traz as seguintes diretrizes a respeito do autor:

Art. 5° (...) (...) XXVII - aos autores, pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; (...) XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas.

A doutrina, majoritariamente, não reconhece nestes dispositivos qualquer menção aos direitos morais - a Constituição, portanto, regulou apenas os direitos patrimoniais36. No entanto, defendem Fábio Vieira Figueiredo (2012) e Guilherme Carboni (2008), que a ausência de dispositivo expresso na Carta Magna brasileiro não impede a defesa dos direitos morais, sendo estes diretamente tutelados pelo Princípio da Dignidade Humana. Feita esta apresentação da hermenêutica a ser aplicada, inicia-se o contato fanfiction/Direito a fim de entender a primeira dentro do Direito Autoral. Para fins do presente estudo, o foco serão textos - não se discutirá os outros tipos de fanwork -, e que se enquadrem nos seguintes requisitos: a) serem escritos por um admirador ou fã da obra; b) terem uma declaração explícita ou implícita que os ligam indiscutivelmente à(s) obra(s) originária(s), nos termos expostos por Abigail Derecho, mencionados no Capítulo I do presente trabalho (no próprio texto ou no local de armazenamento); c) não terem fins lucrativos (o que Aaron Schwabach denominou de fanfic).

3.2 Fanfiction: a obra derivada.

Dizia Aristóteles, em sua Poética: "[...] Imitar é natural ao homem desde a infância - e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação - e todos têm prazer em imitar". (1996, p.33). Ao tomar o universo e/ou os personagens de outrem, expandindo este universo ou transformando-o em gênero diverso, não deixam os fãs - ficwriters ("fanfiqueiros") - de imitar 36

Neste sentido: Carlos Alberto Bittar, Fábio Vieira de Figueiredo e Guilherme Carboni.

59

o criador ou criadores da obra que é objeto de sua admiração. Ainda que a imitação seja meramente na forma em que aquela determinada expressão se apresenta, ou quanto a alguns elementos e personagens. E, através da imitação, no entanto, estes fãs criam algo novo. A fanfiction, assim, não é "modificação da obra". Antes, ela é uma transformação da obra chamada "originária" (atente-se: "originária", não original). Senão, vejamos:

"A transformação consiste numa alteração criativa da obra intelectual. A obra transformada ganha nova estrutura, linguagem, língua ou forma de expressão, possibilitando que seja desfrutada por mais pessoas ou simplesmente por um modo diferente. [...] O objetivo da transformação, como dito, é ampliar ou modificar o desfrute da obra intelectual. [...] registro que a transformação e modificação da obra são figuras diferentes do direito autoral. A transformação, como se viu, consiste na produção de uma obra nova. Trata-se da mudança ou aperfeiçoamento na obra pelo próprio autor, com vistas a ajustá-la às suas mutantes justificativas". (COELHO, 2012).

Diz José de Oliveira Ascensão, citado por Eduardo Salles Pimenta:

"A transformação distingue-se assim da modificação. Esta visa a substituir a obra existente por uma nova versão, que contém diferenças no original, mas não representa por si uma criação. A transformação coloca ao lado da obra primitiva outra obra, que representa a obra adaptada a um novo meio de expressão". (2009, p. 65)

Portanto, a fanfiction não fere o artigo 24, V, da LDA (direito de modificação). É de se indagar, inclusive, se e quando é possível caracterizar o inciso IV do mesmo artigo (direito à integridade), uma vez que este dispositivo define textualmente que o direito à integridade é "[...] o de assegurar a integridade da obra a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra" (Grifo e sublinhado nosso). Mas esta é uma discussão futura. O uso da palavra "modificação" é frequentemente confuso na doutrina. Pode, como visto acima, designar a simples diferença que não altera o original ou, então, a prerrogativa oposta ao direito moral à integridade. Se este é a imutabilidade da obra, o direito de modificação é o contrário, o direito de modificá-la (FIGUEIREDO, 2012. p. 115). Ainda que neste último sentido, salvo melhor juízo, o fanfiqueiro não impede o exercício deste direito autoral. Também não se enquadraria a fanfiction no conceito de plágio. O delito de plágio configura o atentado ao direito de paternidade do autor, apresentando-se obra alheia como sendo sua. Na definição de Carlos Alberto Bittar, trata-se de "imitação servil" ou fraudulenta

60

de obra alheia, ainda que dissimulada, frustrando a paternidade - afastando-se, no entanto, o aproveitamento remoto ou fluido, de pequeno vulto. (2013. p. 164). Ressalte-se que nem a figura inversa, a "usurpação de nome" (também mencionada por Bittar), englobaria as fanfictions. Os fanfiqueiros não anunciam seus textos como sendo de autoria deste ou daquele autor: e sim a ele pertencentes, originários, creditados (o crédito, como visto no primeiro capítulo é muito importante nestas comunidades). O senso comum, quando não as próprias regras, presente no locus destas atividades, determina que os escritos são inspirados na obra precedente - variando o grau de proximidade com esta - sendo, no entanto, fruto do acréscimo imaginativo do fanfiqueiro. O auxílio do conceito de "autor" e "escritor" ajudaria nessa diferenciação. Nara Marques Soares37, utilizando-se do pensamento de Michel Foucalt, define "autor" como sendo aquele que foi legitimado por instituições do regimento da escrita (como as instituições literárias). O escritor, no entanto, está em outro patamar em relação a estas instituições, "[...] principalmente se pensarmos que o escritor não é o sujeito que necessariamente quer publicar uma obra; que queira inclusive ter ou fazer uma obra". (2011, p. 58). O direito, no entanto, não cria uma diferenciação de classes entre estas duas funções, limitando-se a proteger o autor, tendo-o, pura e simplesmente, como o criador intelectual de uma obra. Já a contrafação (cuja face mais conhecida é a "pirataria"), é a publicação ou reprodução abusiva da obra de outrem. Diz Carlos Alberto Bittar, que o elemento presuntivo é a falta de consentimento do autor, não importando a forma externa que toma ou a finalidade da violação. Segundo este autor, pode ser total ou parcial, incluindo-se a derivação sem consentimento, visto que sempre visa ao aproveitamento econômico da obra. (2013, p.164). Portanto, na contrafação o direito atingido não é a paternidade da obra, mas o direito de disposição patrimonial exclusiva da propriedade intelectual (ainda que por derivação). Logo, conclui-se que, tanto por não ser simples reprodução da obra originária e, principalmente, por não possuir fins econômicos, a fanfiction não constitui contrafação. Fábio Ulhôa Coelho conceitua o que seja "obra originária" e "obra derivada":

"Originária (primígena ou primária) é a obra cuja criação não decorre de nenhuma outra preexistente. Já a derivada é a que, incorporando uma criação intelectual nova, provém da transformação da obra originária. [...] Trata-se 37

Diz a autora: "Se como diz Foucault, o autor é aquilo que permite explicar 'a presença de certos acontecimentos numa obra'. [...] Deixando claro que o escritor parece ter pouco a ver com tanta autoridade sobre o que escreve, consciência prévia dos acontecimentos e responsabilidade no momento em que se coloca a escrever; assim como sobre aquilo que ainda está por acontecer, no futuro da obra". (SOARES, 2011. p. 64-65).

61

da transformação de uma obra em outra: aquela que não resulta de transformação é originária". (2012).

Por "derivação" entende-se o processo pelo qual se produz uma "obra derivada". A definição desta que, por sua vez, é assim apresentada nas legislações estudadas:

"Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: [...] VIII - obra: [...] g) derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária". (LDA). "§101 - Definições [...] Uma 'obra derivada' é uma obra baseada em uma ou mais obras preexistentes, tal como uma tradução, arranjo musical, dramatização, ficcionalização, versão cinematográfica, gravação sonora, reprodução artística, resumo, condensação, ou qualquer outra forma na qual uma obra pode ser remodelada, transformada, ou adaptada. Uma obra que consiste de revisões editoriais, anotações, elaborações, ou outras modificações, que, como um todo, representam uma obra original de autoria, é uma 'obra derivada'".38 (USC/17).

De plano, percebe-se que a legislação americana, apesar de deixar de lado o requisito "novidade", exigido por sua correspondente brasileira, é bem mais detalhista sobre o que seria obra derivada. E mais: reconheceu que uma obra derivada pode ser baseada em uma ou mais obras preexistentes - seria o que, em fanfiction, chama-se de crossover (Capítulo I). O elemento "novo" mencionado pela legislação brasileira não é sinônimo de ausência total de precedentes que lhe constituem a forma. Deve ser compreendido, portanto, como "intervenção criativa" sobre a obra nova "[...] causando o surgimento assim de um novo trabalho intelectual". (PEREIRA, 2013. p. 125). Ora, entende Fábio Ulhôa Coelho (2012) que o rol de transformações contido no artigo 29, III da LDA (adaptação, tradução, arranjo e orquestração) não esgotam todas as hipóteses, sendo apenas as usuais. Não é possível antever todas as formas possíveis de transformação as quais a criatividade dos autores possam vir a realizar. Percebe-se, assim, que as fanfictions, por serem virtualmente ligadas à obras originárias - em realidade, esta vinculação é seu 38

Tradução livre de: "§101 · Definitions [...] A “derivative work” is a work based upon one or more preexisting works, such as a translation, musical arrangement, dramatization, fictionalization, motion picture version, sound recording, art reproduction, abridgment, condensation, or any other form in which a work may be recast, transformed, or adapted. A work consisting of editorial revisions, annotations, elaborations, or other modifications, which, as a whole, represent an original work of authorship, is a “derivative work”.

62

pressuposto -, configuram-se como obras derivadas. São, assim, "[...] obras que só existem por força e existência de outras obras que nasceram primeiro". (FIGUEIREDO, 2012. p. 76). O mencionado artigo 29, inciso III da LDA versa sobre o direito do autor de explorar economicamente as transformações de sua obra. É, portanto a face patrimonial de obras derivativas. Este dispositivo, em conjunto com o art. 24, IV desta mesma lei (direito à integridade), será alvo de nossa análise posteriormente, pois seriam possíveis pontos de choque entre o direito autoral e as fanfictions. Mas, antes, é preciso conhecer os limites do direito autoral.

3.3 Limitações à exclusividade do direito autoral.

De plano, deve-se fazer uma ressalva quanto à afirmação anterior de que, também para os Estados Unidos, a fanfiction seria uma obra derivada. Isso em razão do peso que o conceito de transformação tem para a legislação daquele país no que tange às limitações ao copyright. Enquanto o Brasil adotou um rol (taxativo ou não, depende do entendimento jurisprudencial ou doutrinário), os norte-americanos preferiram um sistema de análise dos casos concretos. Então, além de priorizar o aspecto econômico, o copyright americano, diante da alegação do que é chamado de fair use, mede o atendimento de certos requisitos para determinar se a obra "derivada" é, na realidade, um transformative work (obra transformativa) - quando estará sob o amparo do mencionado instituto.

3.3.1 Fair Use.

O sistema americano, conforme a Seção 107 do USC/17, prevê a utilização de obra alheia diante do balanceamento de quatro fatores definidos por ela. Nestes casos, o uso é considerado fair (justo):

"§107 - Limitações sobre os direitos exclusivos: Uso justo. Não obstante as disposições das seções 106 e 106A, o uso justo de uma obra protegida, incluindo aquele uso por reprodução em cópias ou fonogravações ou por qualquer outro meio especificado por aquela seção, para propósitos tais como crítica, comentário, reportagem, ensino (incluindo cópias múltipla para uso em sala de aula), conhecimento, ou pesquisa, não é uma infração do direito autoral. Para determinar se o uso de uma obra em um caso particular é uso justo, os fatores a serem considerados devem incluir (1) o propósito e o caráter do uso, incluindo se tal uso é de natureza comercial ou se é para propósitos educacionais sem fins lucrativos; (2) a natureza da obra protegida;

63

(3) a quantidade e a substancialidade da porção usada em relação à obra protegida como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial ou o valor da obra protegida. O fato de uma obra ser inédita não deve, por si só, impedir a constatação de uso justo se tal constatação é feita mediante consideração de todos os fatores acima".39

Portanto, as limitações previstas na lei americana são apenas exemplificativas, deixando a hipótese em aberto para a apreciação - se chegar a tanto - do magistrado. O sistema, assim, é construído ao longo do tempo e permite sua sobrevivência prolongada, pois é baseado em princípios, não no entendimento estático do momento em que foi criado. Robert S. Want (2008, p. 24) admite que não há respostas fáceis diante da Seção 107, "[...] milhões de dólares em honorários têm sido gastos na tentativa de definir o que se qualifica como um uso justo"40. No entanto, ressalta que o sistema aberto à interpretações foi criado pelos juízes e legisladores justamente para não ser limitado - pois o fair use foi pensado como liberdade de expressão e deveria ter um significado extenso. Aaron Schwabach, no entanto, aponta que estes quatro fatores tem sido criticados por sua nebulosidade; é difícil, quase impossível, determinar em um litígio quando um uso em particular é justo. (2011, p. 64). No caso em específico das obras derivadas, tanto Want quanto Schwabach (WANT, 2008, p. 08; SCHWABACH, 2011, p. 64) lembram que o autor tem, sob a Seção 106 do USC/17, o direito de criar obras derivadas baseadas em sua obra original. O uso justo deve ser contrabalanceado a este direito - conforme determinação da própria Seção 107 do USC/17. Assim, diz Schwabach, citando diferentes exemplos de casos americanos, o caráter lucrativo (ou não) da obra não será suficiente, sem se considerar outros caracteres desse uso. É levado em consideração a natureza da obra (algumas, como a música e o cinema, tem níveis mais altos de proteção); a quantidade que foi tomada da obra originária (para uma enciclopédia, por exemplo, é aceitável uma quantidade maior). Finalmente, o impacto que a obra derivada causará no mercado ou no valor da obra originária. Nenhum desses requisitos é 39

Tradução livre de: "§107 · Limitations on exclusive rights: Fair use [...] Notwithstanding the provisions of sections 106 and 106A, the fair use of a copyrighted work, including such use by reproduction in copies or phonorecords or by any other means specified by that section, for purposes such as criticism, comment, news reporting, teaching (including multiple copies for classroom use), scholarship, or research, is not an infringement of copyright. In determining whether the use made of a work in any particular case is a fair use the factors to be considered shall include— (1) the purpose and character of the use, including whether such use is of a commercial nature or is for nonprofit educational purposes; (2) the nature of the copyrighted work; (3) the amount and substantiality of the portion used in relation to the copyrighted work as a whole; and (4) the effect of the use upon the potential market for or value of the copyrighted work. The fact that a work is unpublished shall not itself bar a finding of fair use if such finding is made upon consideration of all the above factors". 40 Tradução livre de: "[...] millions of dollars in legal fees have been spent attempting to define what qualifies as a fair use".

64

definitivo em abstrato: no caso concreto, um deles pode ser mais significativo do que os outros e determinar o entendimento do magistrado sobre a licitude ou não da obra derivada. Ressalte-se que, quanto às obras transformativas, a doutrina americana a separa em categoria especial ou até mesmo diferente da "obra derivada". De acordo com a Suprema Corte dos Estados Unidos, o requisito "propósito e caráter do uso" significa determinar até que ponto a obra originária foi transformada para um fim social adequado. (SANTOS, 2011). Explica Aaron Schwabach que, quanto maior for o grau de criatividade, mais próxima a obra está de ser transformativa e menos de ser derivada. Por outro lado, uma obra que é derivada no sentido literário, mas transformativa no sentido legal não é "derivada" para os propósitos do copyright. Exemplifica o autor, que isto acontece mesmo que a fonte da obra seja evidente. Por exemplo, uma obra que reconta os eventos de E O Vento Levou do ponto de vista de uma escrava (como a obra citada no final do primeiro capítulo) pode ser transformativa. Mesmo que as personagens, os cenários, e muitos dos eventos descritos forem os mesmos. A mudança dramática de ponto de vista, e a reformulação dos relacionamentos entre as personagens, torna a nova versão da história uma obra original, comentando e criticando a primeira obra (2011, p.67). E continua o autor:

"Toda fanfic é derivada no sentido literário; uma vez que é uma fanfic, ela deve incluir elementos subjacentes suficientes da obra original para por a fanfic dentro do fandom. A maioria das fanfics, no entanto, não é derivada no sentido da seção 106(2)"41. (Op. cit., p.68).

Em razão dessa diferença, iniciativas como a Organization for Transformative Works (OTW) foram criadas. A OTW, organização sem fins lucrativos administrada "por fãs e pelos fãs", visa proporcionar e preservar a história das obras e as culturas de fãs.42 O esforço que a doutrina brasileira faz para compreender as obras transformativas, dentro do ordenamento pátrio, não consegue desvincular a obra derivada da obra transformada. O trabalho mais abrangente por nós encontrado foi o de Manoel J. Pereira dos Santos, chamando-a de uso transformativo ou uso criativo. O tema será abordado em seguida, na análise das limitações ao direito autoral na legislação pátria. Mesmo com o problema de definição de conceitos, percebe-se a clara vantagem da legislação americana em um requisito (ao menos): sua direta e clara ligação com a

41

Tradução livre de: "All fanfic is derivative in a literary sense; in order to be a fanfic, it must include enough elements of the underlying original work to place the fanfic within the fandom. Most fanfic, however, is not derivative within the meaning of section 106(2)". 42 Disponível em: . Acesso em: 15/11/2013.

65

funcionalização do direito autoral. Item em que, assim nos parece, a legislação brasileira falha vergonhosamente.

3.3.2 Art. 46 da Lei n. 9.610/98: número aberto?

O Capítulo IV, do Título III, da LDA traz as limitações dos direitos do autor. O termo "limites" é controversa, alguns preferindo usar "exceções ao direito de autor", a exemplo de Eduardo Vieira Manso. Este autor considera tais hipóteses como de matéria de defesa de quem é demandado judicialmente pelo titular do direito autoral (COELHO, 2012). A listagem é longa, porém não traz nada de novo - em alguns casos, até retrocede em relação à legislação anterior (a Lei n° 5.988/73), como por exemplo, a subtração da exceção do intuito do lucro em diversas das hipóteses (agora independe de intuito de lucro ou não). Assim, eis o artigo 46 e seguintes:

"Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;

66

VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais".

Diante desse dispositivo, certos autores o consideram uma listagem exaustiva, ou seja, que não admite ampliação por meio de interpretação. É o caso de Carlos Alberto Bittar (falecido em 1997, cuja obra vem sendo atualizada por seu filho - um exemplo de limitação ao direito autoral que não está no rol da lei). Este autor acredita que o rol é fechado, tendo em vista a interpretação estrita estipulada no artigo 4° da LDA: "Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais". (BITTAR, 2013. p.94). Já Denis Borges Barbosa (2013, p. 496) entende, primeiramente, que as limitações não devem ser tomadas como exceções: são confrontos de fundo constitucional. Logo, não há como serem interpretadas restritivamente. É o campo onde ocorrem as ideias de ponderação ou de balanceamento, surgindo para resolver "casos de tensão". "[...] Assim, não é interpretação restrita, mas equilíbrio, balanceamento e racionalidade que se impõe", diz ou autor. Tão pouco é caso de interpretação favorável ao autor, tendo em vista que a lei direciona este pender da balança quanto às disposições negociais - ou seja, contratos entre particulares, tais como os de cessão de direitos. Não a lei. Na interpretação da lei, diz Barbosa, "[...] a racionalidade e a funcionalidade são os critérios heurísticos relevantes não o viés pro autorem, que se aplica no contexto privado" (Grifo nosso). Guilherme Carboni (2008, p. 147-217) segue o entendimento de Barbosa sobre o rol do artigo 46 e seguintes não ser taxativo. A compreensão de Carboni sobre as limitações do Direito Autoral têm relação direta com a função social que este exerce (sejam intrínsecas, contidas na própria lei; ou extrínsecas, oriundas da interpretação conjunta com outros direitos e princípios do ordenamento). Entende este autor que é aplicável ao Direito Autoral tanto a função social da propriedade quanto a função social em si, como princípio não restrito à propriedade, mas como viés pelo qual a aplicação de todo o direito deve visar. Eduardo Salles Pimenta chama a esta funcionalização do direito autoral de princípio da livre utilização, que é resultante do prevalecimento, sobre os interesses individuais, da

67

necessidade do desenvolvimento social e intelectual da sociedade (fruição da informação, preservação e difusão da cultura) - que são subprincípios da função social dos direitos autorais (2009, p. 80). Neste sentido, sabendo que muitos doutrinadores se questionam se a função social seria realmente um limite da propriedade ou parte integrante dela, talvez discutir a função social dentro dos "limites" do Direito Autoral não seja conceitualmente correto. No entanto, deve-se entender a inclusão do item na presente discussão como uma tentativa de antever a possível extensão do Direito Autoral. Voltando a Denis Borges Barbosa, este doutrinador lembra que, na esfera internacional se aplicam as chamadas "Regra dos Três Passos" (Convenção de Berna, artigo 9.2, e Acordo TRIPS, art. 13). Estes acordos internacionais admitem que os países permitam limitações ou restrições: [1° Passo] diante de casos especiais (restritos e definidos); [2° Passo] que não afetem a exploração normal da obra43; e [3° Passo] que não prejudiquem injustificadamente os interesses legítimos44 do particular. (BARBOSA, 2013. p. 496-497). Guilherme Carboni, por sua vez citando José de Oliveira Ascensão, aponta para a inconstitucionalidade da previsão de rol taxativo quanto às limitações, especialmente em razão da função social. Declara aquele primeiro autor que é a favor da regulamentação das limitações do direito de autor através de princípios gerais - como o fair use americano -, porque pode ser moldado pelo juiz ao caso concreto e "[...] sobreviver mais facilmente às mudanças sociais e tecnológicas" (2008, p. 172). Quanto ao fair use, ou como Fábio Ulhoa Coelho (2012) o chama "uso de boa-fé", entende este doutrinador que o instituto encontra-se, de certo modo, referenciado no direito brasileiro através do inciso VIII, do art. 46, da LDA (licença para reprodução não prejudicial à exploração normal econômica da obra). O inciso, no entanto, menciona apenas a "reprodução", silenciando quanto aos demais usos da obra. Permite-se na legislação, textualmente, o uso de paráfrases, citações e paródias. As duas primeiras fogem ao presente estudo, uma vez que não são recursos afeitos às fanfictions. Já a paródia, é a imitação da obra de outro, desde que não seja reprodução servil, com o objetivo cômico ou não (COELHO, 2012; SANTOS, 2011). Alguns textos de fãs são, de fato, paródias

43

"'Normal' inclui, no caso, tanto o que vem ocorrendo no mercado, como o que potencialmente possa a vir a ocorrer; a regra é que a limitação não possa transformar o seu beneficiário em competidor do titular de direitos". (BARBOSA, 2013. p. 497). 44 "Os 'interesses' podem ser tanto os patrimoniais ou de outra natureza. 'Legítimos' serão tanto os interesses decorrentes de norma jurídica, quanto aqueles não conflitantes com os sistema jurídico. A noção de 'injustificadamente' seria distinta do simplesmente razoável". (BARBOSA, 2013. p. 497).

68

(como as badfics, mencionadas no primeiro capítulo). Mas esta definição não se enquadra a todas as fanfictions. De volta ao plano das limitações que estão fora do rol do artigo 46 da LDA, encontram-se as derrogações. Eduardo Salles Pimenta define-as como sendo os "[...] usos que não estão previstos nas limitações de direitos autorais, mas com a permissibilidade da lei e contemplado pela jurisprudência". (2009, p. 89-90). Mais uma vez, trata-se da tutela do interesse coletivo. Ou seja, a jurisprudência pode estender, sob estas circunstâncias, o rol de limitações. Um exemplo clássico é a atualização de obras feitas pelos herdeiros do autor, ou por eles autorizadas. Finalmente, existe a teoria do uso transformativo. Utilizada entre os norte-americanos, como visto quando se discorreu sobre o fair use, não se vislumbra, ainda, qualquer decisão de tribunal que a aborde. Talvez porque, conforme diz Manoel J. Pereira dos Santos (2011), os tribunais sejam mais maleáveis quando se trata de liberdade de informação, estando pouco familiarizados com a liberdade de criação, elevada em tão alta consideração entre os norteamericanos. Conceitua este autor:

"'Transformação criativa' é o processo pelo qual é gerada uma nova forma de expressão, que incorpora elementos substanciais de uma obra preexistente mas que constitui uma obra nova original. Portanto, a transformação implica uma nova criação baseada em outra. Com isso, distingue-se desde logo a transformação das simples modificações ou melhoramentos. Em tese, esse conceito de transformação criativa enquadra-se na definição da obra derivada, conforme contida no art. 5°, VIII, g, da Lei de Direitos Autorais: '[obra] derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária". Portanto, poder-se-ia de início dizer que a 'obra transformativa' (transformative work) é uma 'obra derivada' ". (SANTOS, 2011).

Nota-se, assim, que se trata do mesmo conceito dado por Schwabach, quando discorreu-se sobre o fair use. No entanto, devido à própria construção legislativa brasileira, é preciso partir do conceito de uso transformativo para a conclusão de que este origina uma obra derivada. Já na construção norte-americana, parte-se do conceito de obra derivada para diferenciá-la de uso transformativo: quanto mais transformativa, menos derivada. Este tipo de exercício (como outros semelhantes, tão comuns na jurisprudência americana), calcado sobre a análise do processo criativo, não é afeito aos tribunais do sistema romanístico - o que revela, conforme diz Santos, a sua propensão a interpretar restritivamente o uso da obra alheia.

69

"[...] Caberia, pois, perquirir porque a Lei de Direitos Autorais veda qualquer forma de utilização mesmo que não seja mera reprodução parasitária. [...] Em outras palavras, o chamado 'diálogo de textos', embora constitua uma dinâmica natural da atividade criativa, é visto como uma prática irremediavelmente prejudicial ao autor. Parece, pois, necessário redefinir essa esfera de exclusividade do autor de maneira a permitir que outras formas legítimas de reutilização do conteúdo preexistente sejam permissíveis como recurso criativo, desde que não prejudiquem a exploração normal da obra preexistente nem causem prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores". (SANTOS, 2011).

O projeto de reforma da LDA previa o uso livre das obra desde que aplicado como recurso criativo, conforme nos informa Antônio Carlos Morato. Este autor, em artigo em que pretende defender o audiovisual, critica o conceito duramente, sob o argumento de ser "vago demais" e propenso ao mal uso (2013, p. 39-62). "[...] Nas redes sociais, o termo "recurso criativo" continua a ser utilizado constantemente; quase sempre acompanhado de uma total incompreensão da existência de uma distinção entre a obra originária e a derivada", afirma Morato (p.40). A alteração, ainda conforme o texto de Mortato, foi feita pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual, e inclusive retirou da redação do novo caput do artigo 46 a dispensa da prévia e expressa autorização do titular para os (novos) usos livres daquele artigo. Acrescentou-se, em vez disso, a autorização prévia do Poder Judiciário em casos análogos (à reprodução, que foi limitada à docentes), desde que cumulativamente: "I- não tenha finalidade comercial nem intuito de lucro direto ou indireto; II - não concorra com a exploração comercial da obra; III - que sejam citados o autor e a fonte, sempre que possível". (Morato, p. 43-44).

3.4 As fanfictions e a Responsabilidade Civil no Direito Autoral.

Estabeleceu-se, nos itens anteriores, que a fanfiction pode ser enquadrada no que a LDA chama de obra derivada (art. 5°, VIII, g), e que, por sua vez, entende a doutrina que essa classe de obra pertence aos usos patrimoniais exclusivos do autor ou do titular do direito (art. 29, III, LDA). No campo dos direitos morais, pode-se evocar o art. 24, IV (direito à integridade), também da LDA. A definição de obra derivada no direito norte-americano consta na Seção 101 do USC/17 e reflete a legislação brasileira no que tange à modalidade ser direito exclusivo do autor, ainda que patrimonialmente (exceção às visual arts, §106A, USC/17). Tem o sistema norteamericano, no entanto, a particularidade de adotar um método aberto e interpretativo dos

70

casos de limitação desta exclusividade, o fair use. Soma-se à diferenciação entre os sistemas a aplicação do conceito de uso transformativo, que influi na decisão dos magistrados norteamericanos na consideração se determinado uso é ou não "justo". Quanto ao direito brasileiro, demonstrou-se o entendimento de que as hipóteses que excluem a incidência dos direitos autorais não se resumem ao rol do art. 46 da LDA. Abre-se, assim, espaço para a interpretação funcionalizada frente ao caso concreto. Com base no acima exposto, e se tomando por certa a suposição de que as fanfictions promovem os princípios e direitos consagrados na Constituição (educação, cultura, liberdade de expressão), no Código Civil (eticidade) e no próprio direito autoral, lança-se tais atividades como possíveis hipóteses de uso livre das criações intelectuais protegidas. Relembra-se que, para os fins do presente estudo, denomina-se fanfiction textos que a) são escritos por admiradores das obras (fãs); b) possuem declaração explícita ou implícita que a identifique como tal; c) não possuem fins lucrativos. Havendo delimitação do caso especial, pode-se dizer que, em relação à "Regra dos Três Passos" (acima mencionada), os dois requisitos ou "passos" faltantes também seriam satisfeitos: pois a fanfiction não afeta a exploração normal da obra (ou, ao menos, não costuma) e não prejudica injustificadamente os interesses legítimos do titular. Finalmente, mesmo para aqueles que entendem que há um ilícito civil na prática, a responsabilização do fanfiqueiro, frente ao direito pátrio, exigiria a comprovação de violação a direito e a ocorrência de dano. Estes dois requisitos devem estar presentes, conforme a redação do artigo 186 do Código Civil, ainda que o dano seja exclusivamente moral (TARTUCE, 2013. p. 427).

3.4.1 O dano.

No campo patrimonial, entende Patrícia Scorzelli (2012, p. 18), que as utilizações privadas ou públicas são válidas, desde que não haja intuito de lucro. Esta autora diz que a fundamentação da proteção legal é a exploração econômica da obra, logo, não podem haver utilizações que façam concorrência com o autor nesta exploração. Ora, a criação e disponibilização da fanfiction não configura cópia da obra original, sequer pode ser considerada plágio. Não compete com a obra do autor no mercado - a fanfiction sequer está à venda no mercado. Ninguém deixa de comprar o livro do autor porque já leu histórias de fãs na internet ou em uma fazine, pelo contrário: é possível que venha a consumir a obra daquele autor porque gostou das fanfictions. E, se não gostou, não se pode

71

culpar a obra original, pois se sabe que não foi o autor quem as escreveu, em nada implicando que a obra original seja tão ruim quanto a sua fanfiction. Quanto ao intuito de lucro, este é o entendimento da doutrina norte-americana:

"Não é razoável, ou legal, para qualquer um, fã ou qualquer outro, tomar o trabalho duro de um autor, reorganizar seus personagens e tramas, e o vender para seu próprio ganho comercial. Por mais que um indivíduo argumente amar a obra de outra pessoa, não significa que ela se torne sua para vender". (WANT, 2008. p. 06)45.

Com uma diferenciação, no entanto: para os americanos, o intuito de lucro, por si só, não desmerece a proteção pelo fair use; assim como a simples ausência de fins lucrativos, não a garante (SCHWABACH, 2011.p.63). Um exemplo prático, já fornecido no primeiro capítulo, é o livro The Wind Done Gone, de Alice Randall, que aborda o contexto racial através da história de uma personagem criada por ela, meia-irmã mestiça de Scarlett O'Hara, a heroína de E O Vento Levou. Acionada judicialmente pela instituição que administra os direitos da autora de E O Vento Levou (falecida sem herdeiros), Randall teve o caso julgado a seu favor. Entendeu a corte que, mesmo visando fins lucrativos (pois o livro foi posto à venda), e claramente mencionar cenários e personagens de E O Vento Levou, o segundo livro era paródico e, portanto, lícito. (SCHWABACH, 2011.p.68). Mas, é claro, o livro de Randall, não era exatamente escrito por um fã de E O Vento Levou, ao contrário do caso do Harry Potter Lexicon, uma enciclopédia que começou sua "vida" online, gratuitamente, e que teve uma tentativa de publicação impressa. Tentativa porque J.K. Rowling, a autora da série Harry Potter, e a Warner Bros., detentora dos direitos de adaptação para o cinema, tomaram medidas judiciais contra Steven Vander Ark, o autor do Lexicon. Resumidamente, apesar da própria autora admitir que ela mesma se utilizava da versão online enquanto escrevia a série (quando precisava se lembrar de algo ou quando não queria se contradizer com algo já dito), ela não concordou com as intenções lucrativas de Vander Ark. Rowling argumentou que ela mesma pretendia lançar uma enciclopédia e que o livro do norte-americano lhe fazia concorrência. Ao final, o juiz federal responsável deu ganho de causa para Rowling, mas não por causa da concorrência, mas sim pela quantidade que foi

45

Tradução livre de: ""It is not reasonable, or legal, for anybody, fan or otherwise, to take an author's hard work, re-organize their characters and plots, and sell them for their own commercial gain. However much an individual claims to love somebody else's work, it is not become theirs to sell".

72

tomada de sua obra. A quantidade, em razão da natureza e propósito da obra (uma enciclopédia), teria uma amplitude maior de tolerância, argumentou o juiz. No entanto, como os demandantes apontaram, a enciclopédia possuía passagens ipses literis (verbatim puro, como os americanos dizem) da obra de J. K. Rowling - sem nem ao menos constarem entre aspas ou a indicação de onde a passagem havia sido retirada. (WANT, 2008). Conforme Robert S. Want (Op. cit, p. 17), em seu depoimento no tribunal, Vander Ark "[...] mal podia falar quando instigado a refletir no que o caso tinha feito com seu relacionamento com a comunidade de fãs de Harry Potter"46. Compreensível e previsível, visto o rígido código existente nos fandoms. A fanfiction também não impede (ou não deve impedir) que o autor faça ou autorize obras derivadas. Se tal situação fosse permitida, chegar-se-ia ao absurdo do autor ser impedido de trabalhar a sua própria obra. Defende-se que, ao escrever, o fanfiqueiro esteja consciente de que não poderá reclamar qualquer exclusividade do direito autoral frente ao legítimo titular da obra . Obra esta, aliás, que ele está usando para fins justos (que podem ser exaltação da obra, crítica, meio de expressão, aprendizagem, entretenimento, socialização, etc). No campo do direito moral, viu-se que o direito à integridade (ou seja, o de não alterar a obra) é o único que exerce alguma possibilidade de agressão pela prática das fanfictions. No entanto, como se demonstrará a seguir, acredita-se que também este direito moral não é ferido. Assim dispõe o artigo 24 da LDA:

"Art. 24. São direitos morais do autor: [...] IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra". Grifo nosso.

Nota-se, de plano, que o direito ao qual se refere o dispositivo está condicionado às modificações ou alterações que possam prejudicar a obra ou atingir o autor em sua reputação ou honra, enquanto autor. Neste sentido é o entendimento de vários doutrinadores:

"Tal direito consiste na prerrogativa do autor de exigir o respeito à integridade da obra e impedir qualquer deformação, modificação, alteração 46

Tradução livre de: "[...] could barely speak when asked to reflect on what the case has done to his relationship with the community of Harry Potter fans".

73

ou atentado aos seus legítimos interesses, que possam prejudicá-lo ou atingilo, em sua honra ou reputação, como autor". Grifo nosso. (PIMENTA, 2009. p. 64). "Tal direito extrapatrimonial protege o autor quanto a possíveis modificações de sua obra. É necessário, contudo, que reste claro que não será qualquer modificação da obra que irá gerar a agressão a referido direito extrapatrimonial do autor. Adriano de Cupis pontifica que, seja como for, o certo é que, com base no referido preceito legal, não é tutelada a simples paternidade da obra intelectual, visto que a ofensa contra a qual o autor pode reagir é somente aquela que, a par da paternidade intelectual, atinge também a honra ligada a ela. Oliveira Ascensão destaca que o autor não poderá reclamar o direito à integridade da obra nos casos em que não reste prejudicada a sua reputação ou a sua própria obra. Realça que há casos em que a modificação poderá inclusive beneficiar a obra, mas, por óbvio que é, isso não justifica qualquer alteração, ainda que corretiva sobre a obra sem a autorização do autor". Grifo nosso. (FIGUEIREDO, 2012. p. 113). "O inciso IV refere-se à faculdade do autor em opor-se a qualquer modificação em sua obra e seu direito de impedir quaisquer atos que prejudiquem sua honra e reputação". Grifo nosso. (CARVALHO, 2011. p 26).

Assim, é preciso que a modificação prejudique a obra (ou, no pensamento de Eduardo Salles Pimenta, prejudicar a obra no sentido de prejudicar o autor); ainda, que atinja a honra ou imagem do autor, enquanto autor. Note-se, a determinação do que prejudicaria a obra e o que atingiria a honra e imagem do autor não compete ao titular. Pelo que se denota pela doutrina e jurisprudência pátria, é necessário a averiguação do magistrado acerca se houve realmente um prejuízo à obra ou à reputação do autor. A título de exemplo, cita-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

"[...] Versa a demanda sobre ação de indenização que os agravantes ajuizaram contra os agravados, tendo em vista que são detentores dos direitos autorais da música denominada Amar Não é Pecado, cedida e interpretada, com exclusividade, pelo cantor Luan Santana, a qual foi parodiada e divulgada pelos réus-agravados. Afirmam que a paródia foi realizada de forma grotesca, com indiscutível intenção de denegrir a imagem do cantor e, por extensão, dos autores, que gozam de prestígio no meio musical. Aduzem que ficaram emocionalmente perturbados, pois a referida paródia conduz a uma apologia a homofobia, pois faz uma ligação falaciosa deles com o abominável preconceito e discriminação fato que traz junto aos seus fãs e ao público em geral, inegável prejuízo moral, à reputação e à imagem dos requerentes que, sempre, fizeram uso do talento e vocação

74

exclusivamente voltados ao enaltecimento do amor nas suas obras musicais”. [...] Sabe-se que é regra geral, no âmbito do direito autoral, segundo art. 29 da Lei n. 9.610/98, a de que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades. Outrossim, a mesma lei, ainda, que são direitos morais do autor o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem”, como se vê do inciso VI do artigo 28 da Lei 9.610/98. Entretanto, a própria lei que dispõe sobre os direitos autorais estabeleceu limitações ao mencionado direito assegurado aos autores, permitindo, em hipóteses determinadas, a utilização de obra sem a anuência do titular dos direitos, sendo o caso das paródias, permitidas pelo art. 47 da citada lei. Esse dispositivo estabelece: Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.” Vê-se, então, que se de um lado a lei 9.610/98 protege o direito autoral contra a utilização da obra e de retirá-la de circulação ou suspender qualquer forma de sua utilização quando seu emprego afrontar à sua reputação e imagem, de outro tanto, também, permite a paráfrase e paródia, as quais não se constituem verdadeiras reproduções da obra originária, tampouco importando em descrédito, no caso, da letra da música, criada pelos autores agravantes. [...] Pelos documentos anexados aos autos, denota-se a característica indiscutível de paródia à reprodução veiculada pelo humorista Marcus Vinícius Vieira, que, através do personagem Luan Sentado, imita o cantor Luan Santana, cantando a versão parodiada da canção Amar não é pecado, a qual intitulou Dar Rosca Não é Pecado, conferindo indubitável tom cômico à canção, mas com intuito de imitar o cantor, ainda que de maneira desagradável e de gosto discutível, fazendo piada com a sua sexualidade. O mau gosto é evidente, mas do ponto de vista da proteção do direito autoral e em sede processual atinente ao juízo de verossimilhança, requisito para concessão da antecipação dos efeitos da tutela de mérito, é de se ver que a paródia é tão tosca que de pronto é descartada como apta à causar descrédito à composição original, dela sobressaindo, ictu oculi, um claro conteúdo humorístico, de forma tal que é até mesma inapta a causar qualquer espécie de confusão com a obra original. Nem mesmo a letra original é repetida, exceto algumas poucas palavras. Assim, se de um lado a lei proíbe a reprodução desautorizada, de outro lado permite a paródia ou a paráfrase, encaixando-se a espécie no artigo 47 da Lei 9.210/98, o que retira o juízo de verossimilhança, para fins de concessão de antecipação da tutela. [...].47

Ainda que tenha sido exarada em sede de antecipação de tutela, o acórdão traz importantes considerações. Ou seja, mesmo sob a alegação de que a paródia tinha intenção clara de denegrir a imagem do cantor "e por extensão, a dos autores", e que estes ficaram "emocionalmente perturbados" em razão da paródia fazer uma "apologia à homofobia", não se 47

TJMG. Quarta Câmara Cível. Agravo Regimental em Agravo n. 13142 MS 2012.013142-9/0001.00. Des. Rel.: Paschoal Carmello Leandro. Data: 5.6.2012.

75

reconheceu o direito de intervenção na obra secundária. O argumento: a paródia era tão grotesca que se caracterizava "inapta a causar qualquer espécie de confusão com a obra original". Pode-se encontrar fanfictions "grotescas", infelizmente. Ou, nas palavras mais diplomáticas de Aaron Schwabach, "não tão boas" (2001, p. 92), mas não quer dizer que não sejam transformativas. Assim como nas paródias, diz o autor, elas nem precisam ser particularmente engraçadas. Logo, no direito norte-americano, assim como no brasileiro (exemplificado acima), não deve ser feito nenhum juízo quanto ao mérito artístico da obra ao menos, no que tange a aplicação das hipóteses de proteção ou limitação da proteção do direito autoral. No que tange à aplicação deste direito moral (ou extrapatrimonial), volta-se a chamar a atenção para o fato de que a fanfiction liga-se à obra originária, sem ser cópia dela (o que tiraria o objetivo deste tipo de texto). E, principalmente, por ser fanfiction, não há como confundir-se esta com a obra original, a exemplo do descrito na paródia acima. Assim, não há como o autor sentir-se ofendido, como autor, em obras desta natureza: paródias ou fanfictions trazem em seu cerne a declaração implícita, compreendida por todos: "não somos o original". O autor pode ser ofendido, sim, em sua honra e imagem, mas não como autor - ocasião que se utilizará nos mecanismos normais de defesa destes direitos personalíssimos, como em qualquer outra situação externa à sua condição de autor. Aliás, aqui cabe fazer uma exceção, exemplificada por um caso citado por Schwabach (2011, p. 110). É o ocorrido com a autora Marion Zimmer Bradley, mais conhecida por sua obra As Brumas de Avalon, transportada para o cinema com as interpretações marcantes de Anjelica Houston e Juliana Margulies. Mas, entre os fãs de ficção científica, Bradley é conhecida como a autora da série de livros Darkover, cuja trama envolve um futuro distante, onde a Humanidade faz viagens interestelares, com muita interação com espécies alienígenas. MZB (como é chamada pelos fãs) de início dava apoio irrestrito às fanfictions, criticando os autores que as suprimiam dos mundos que haviam criado. A autora costumava convidar os fãs para "brincar no seu jardim mágico com ela". (Schwabach, 2011. p. 111). Lia as fazines regularmente e em 1980, com a aprovação de Bradley, o primeiro volume de fanfictions de Darkover foi oficialmente publicado. Como explica Schwabach, a autora não via nenhuma necessidade de se preocupar com a possibilidade de que fanfictions pudessem impedir que ela publicasse certas histórias. Infelizmente, isto aconteceu. Relata Schwabach que, em 1992, a autora estava trabalhando em um novo romance, Contraband. Enquanto isso, uma fã-autora, Jean Lamb, publicou uma fanfiction de Darkover,

76

Masks, na fanzine "Moon Phases". Bem, Masks, como as partes parecem concordar, era similar à Contraband - e ficou claro que MZB tinha tido oportunidade de ler Masks (Lamb enviara uma cópia à MZB), mas Jean Lamb não tivera acesso à Contraband. A fanfiqueira acusou Bradley de tentar suborná-la com uma dedicatória e quinhentos dólares, o que ela teria recusado, culpando Bradley de plagio. A autora, diante disso, foi aconselhada por seus advogados a não publicar Contraband. Bradley, então, mudou de ideia quanto às fanfictions. Não foi um final feliz nem para a fã: a própria editora do Moon Phases disse que houve maus entendidos pelas duas partes, mas que Lamb errou tremendamente ao achar que a autora queria plagiar seu texto. "[...] as ações dela me deixaram positivamente doente. Jeane era minha boa amiga, mas não mais depois do que ela fez aqui e as acusações infundadas que fez sobre Marion"48. (SCHWABACK, 2011. p. 113). Ou seja, além de não conseguir publicar seu livro (que foi recusado pela editora que publicava as fanfictions), Lamb foi hostilizada pelo fandom ao qual pertencia, marcada como desonesta - um crime que, conforme visto no primeiro capítulo deste trabalho, é considerado imperdoável. No caso de Marion Zimmer Bradley, com toda a certeza, existe o dano patrimonial - a autora viu frustrada, injustamente, a intenção de publicar sua obra - e o dano moral. Prejuízo este nos moldes do artigo 24, IV, da LDA, pois a escritora foi atacada em sua imagem e honra como autora. No caso de Bradley, o prejuízo econômico já seria o bastante para que se tivesse um direito de ressarcimento com base no Copyright Act. Infelizmente, a reação extrema da autora não lhe causou benefícios:

"O banimento de fanfics matou o fandom de Darkover. Apesar de existirem muitos sites de referência a Darkover na web, o banimento das fanfics evitou a vida mais ativa online que muitos fandoms desfrutam. MZB morreu em 1999, os romances de Darkover continuaram a ser publicados, com MZB como primeira autora, mas Darkover desvaneceu da proeminência que gozava no gênero de ficção nos anos de 1970 e 1980"49. (SCHWABACH, 2011. p. 116).

No entanto, os casos trágicos não devem servir de base para regramento do universo de milhões de fanfictions que coexistem com suas respectivas obras originárias. Se identificado dano (e dano injustificado), o infrator deve ser responsabilizado. Ressalte-se, deve haver

48

Tradução livre de: "Her actions made me positively sick. Jean was my good friend, but no more after what she did here and the unfounded accusations she made about Marion". 49 Tradução livre de: "The fanfic ban killed Darkover fandom. Although there are several Darkover reference sites on the web, the fanfic ban has prevented the more active online life that many others fandoms enjoy. MZB died in 1999, Darkover novels continue to be published, with MZB listed as first author, but Darkover has faded from the proeminence it enjoyed in genre ficcion in 1970s e 1980s".

77

dano - ainda que, futuramente, os magistrados entendam que este dano possa ser presumido. Mas no momento atual que se vive no Direito e mais, no direito internacional, tal atitude de presumir o dano moral, talvez, não seja o mais adequado.

3.4.2 O abuso de direito.

O ato ilícito não é somente aquele praticado pela violação de um direito e que gera dano. Também comete ato ilícito aquele que exerce um direito excedendo-se nos limites do fim econômico e social, da boa-fé e dos bons costumes (art. 187 do Código Civil). Esta é teoria do abuso de direito, também conhecida como teoria dos atos emulativos (TARTUCE, 2013. p.427). Flávio Tartuce aponta que, pela análise do art. 187 do Código Civil, a teoria está baseada em quatro conceitos legais (indeterminados, cláusulas gerais): fim social, fim econômico, boa-fé e bons costumes. "[...] O conceito de abuso de direito é, por conseguinte, aberto e dinâmico, de acordo com a concepção tridimensional de Miguel Reale, pela qual o Direito é fato, valor e norma" (2013, p. 428). Lembra Guilherme Carboni (2008, p. 188) que são duas as correntes acerca do abuso de direito: a subjetiva, que credita o abuso ao prejuízo; e a objetiva, que compreende que o abuso do direito está na utilização anormal ou antifuncional do direito. O Código Civil Brasileiro adotou a teoria objetiva. O estudo do abuso de direito, quanto à propriedade intelectual, tem sido particularmente feito em relação às patentes, mas a jurisprudência americana e européia a aplica nas análises de abuso no âmbito do direito autoral. Diz Denis Borges Barbosa que o seu alcance no campo autoral já está consolidado (2013, p. 973-979). Neste sentido, determina o art. 8º, item 2, do TRIPS: "[...] poderão ser necessárias medidas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus proprietários". Carlos Affonso Pereira de Souza (2013, l. 2317) aponta que o instituto é naturalmente aberto e em permanente construção, permitindo ao intérprete dele lançar mão para restringir o exercício de direitos que excedem aqueles quatro itens mencionados por Flávio Tartuce (fins econômicos, fins sociais, boa-fé e bons costumes).

"O exercício abusivo do direito de autor fere a ordem jurídica, pois constitui um desvirtuamento da sua finalidade social. De fato, o titular de direitos autorais sobre uma obra que, na utilização desse direito, vem a causar dano a

78

outrem, contraria o espírito do próprio instituto, caracterizando ato ilícito". (CARBONI, 2008. p.188).

Entende Flávio Tartuce que a responsabilidade decorrente de abuso de direito é objetiva, ou seja, independe de culpa (2013, p. 429). Quanto às finalidades sociais do direito autoral, Carlos Affonso Pereira de Souza (2013, l.2323) aponta que a doutrina não é unânime sobre quais e quantas seriam (as funções listadas por Guiherme Carboni foram apresentadas ao início deste capítulo). Souza, no entanto, aponta para duas funções básicas: função promocional, ou seja, a exclusividade de exploração da obra como estímulo para novas criações; e a função social, que resume como sendo o acesso ao conhecimento. Logo, a questão que se quer apresentar neste subcapítulo é: o autor (ou titular) que, a despeito de qualquer dano moral ou patrimonial (como discorrido anteriormente), utiliza-se de seu direito para obstar fanfictions, não estaria praticando abuso de direito? Lembre-se, por exemplo, das ameaçadoras cartas de "pare e desista" que, conforme Aaron Schwabach (2011), declaram a detenção de todos os direitos ao autor, sem levar em conta o fair use da Seção 107 do USC/17. Estas pessoas, aproveitando-se (conscientemente ou não) do pouco entendimento sobre as leis autorais, ameaçam até mesmo crianças com ações judiciais. E, na ignorância se estão mesmo cometendo algum ato ilícito e, principalmente, por não desejarem se indispor com o seu ídolo, cedem à "ameaça". Na experiência americana, desenvolveu-se o conceito de copyright misuse (mau uso do direito autoral), que denota a situação em que o titular do direito autoral o exerce de forma a extrapolar os limites desse mesmo direito, atingindo terceiros (SOUZA: 2013, l.2361-2495). Ressalta Carlos Affonso Pereira de Souza que o fator econômico, nestes casos, pode ser valioso para caracterizar a conduta abusiva, mas não é somente quando existem efeitos negativos em um determinado mercado que o abuso está presente. O fato-chave é o desatendimento aos valores que inspiram a proteção ao direito autoral. O conceito, como mencionado anteriormente, foi recepcionado pelo artigo 187 do Código Civil. A doutrina nacional parte da noção que [...] os interesses do autor e dos titulares do direito autoral não podem ser os únicos guias para o exercício desses direitos" (SOUZA: 2013, l.2536). A teoria do abuso do direito, portanto, é um vetor de aplicação da função social dos direitos, portanto é um vetor de aplicação da função social dos direitos autorais.

79

3.5 Quando os elementos e personagens são protegidos. A celebridade-personagem.

No presente estudo, partiu-se do pressuposto que a evidente intenção da fanfiction de ligar-se à obra originária seria suficiente para caracterizá-la como obra derivada ou, em alguns casos, obra transformativa. Ora, seja pelo local onde ela está disponível, seja por declaração explícita de seu escritor, a fanfiction se amarra a aquele texto precedente - por mais diferente que o uso dos seus elementos tenha sido. Logo, se a fanfiction será considerada lícita ou ilícita, acredita-se que esta peculiaridade não pode ser deixada de lado. No entanto, na hipótese de se entender que esta declaração não seja suficiente, poder-se-ia questionar onde está a linha divisória entre uma obra literária derivada (e/ou transformativa) e outra, originária. Por exemplo, é sabido que o best-seller "Cinquenta Tons de Cinza" nasceu como uma fanfiction de outro fenômeno de vendas, a série Crepúsculo50. A "fanfiction" é de tal forma diferente de sua fonte, que bastou a autora trocar os nomes dos personagens e algumas situações (bem como retirar a declaração de atamento ao universo Crepúsculo) para que pudesse publicá-la como obra original. Então, o que se questiona aqui é, caso se desconsidere este elemento vinculativo, quais poderiam ser os parâmetros para determinar a licitude da fanfiction frente a outra(s) obra(s). O famoso caso Salinger v. Colting debruçou-se sobre a legalidade de uma auto-declarada continuação de O apanhador no campo de centeio. Esta não era exatamente uma fanfiction (no sentido trabalhado neste estudo) porque o autor da obra em questão (Colting) tencionava explorar economicamente a história que criou. Conforme Schwabach (2011, p.54-56), a maior parte do julgamento centrou-se na discussão se o livro de Colting era paródico ou não. Ao final, a tentativa tardia e oportunista do autor de recaracterizar sua obra como paródia - depois de ter feito constar no prefácio do livro que se tratava de uma "continuação" - é que parece ter lhe pesado desfavoravelmente, tendo o magistrado declarado a ilicitude da obra. Ressalte-se que no caso Colting havia a intenção de lucro. E uma vez publicado fora de um fandom, o pressuposto da ausência de autorização do titular da obra originária não fica tão claro para o leitor. Finalmente, o magistrado identificou a má-fé do demandado, selando, assim, a diferenciação radical deste caso com a eticidade inerente às fanfictions. Já no caso do livro The Wind Done Gone, citado no primeiro capítulo, o magistrado do caso não teve problemas em reconhecer o uso transformativo da obra, que se utilizava de 50

Op. Cit., "Fanfiction vira moda entre jovens e se torna nova forma de ler e escrever livros", Diário Catarinense de 15 jul. 2013. Disponível em: . Acesso em 10 nov. 2013.

80

elementos de E O Vento Levou para narrar, da perspectiva de sua personagem "original" da obra derivada, o contexto racial que a obra originária deixou à margem. Neste caso, a decisão foi favorável à autora do segundo livro. Nem sempre as fanfictions utilizam-se do universo inteiro da obra originária. Às vezes, apenas uma personagem, cenário ou elemento é representado. Nestes casos, as doutrinas brasileiras e norte-americana têm respostas relativamente parecidas.

3.5.1 Personagens e elementos da história.

Para Denis Borges Barbosa, a personagem, como parte de uma obra literária, artística, audiovisual, dentre outros, é protegida pelo direito autoral quando é expressiva, ou seja, quando é elemento de um universo constructo. Ressalta o autor que existem personagens inexpressivos, incapazes de se destacarem da obra na qual se inserem. "A objetivação da personagem é crucial para se transformar em objeto singular de direitos". (2013, p. 397). São estes personagens, segundo o mencionado autor, personagens-constructos; e os personagens inexpressivos, meros personagens-ideias. A distinção, diz Barbosa, citando André Andrade e Carolina Tinoco Ramos, é que da personagem-construto podem ser feitas obras derivadas (não mera derivação de imagens, mas da personagem como um todo). A personagem protegida é, então, o conjunto de suas características, não apenas a sua imagem (que é protegida no direito autoral como desenho) ou o seu nome. O conjunto das características de uma personagem é o "[...] seu modo de se comportar, de se vestir, de se relacionar com outros, de agir de determinada maneira diante de determinadas condições, seus sentimentos, suas características físicas etc.[...]". (BARBOSA, 2013. p. 399). Esta noção alinha-se, ao que parece, com o teste suficientemente delineado ("sufficiently delineated"), surgido nos Estados Unidos, na Corte do Nono Circuito de Apelações (caso Nichols v. Universal Pictures Corporantion). Segundo Schwabach, este teste pressupõe que, quanto menos desenvolvida a personagem, menos ela pode ser protegida, sendo esta a penalidade pelo autor tê-la feito muito indistinta. "Tipos" de personagem, prossegue este autor, não são protegidos - a exemplo de uma espécie humanóide mutante ou alienígena que lembre felinos -; já personagens individuais, o são. (2011, 42-44).

81

Esta exigência de que uma personagem seja suficientemente construída ou delineada, diz Denis Borges Barbosa, encontra respaldo da própria OMPI. O texto oficial é citado por Barbosa51:

"2.622 Desenhos ou cartoons (obras bidimensionais) podem ser protegidos independentemente, se forem cumpridos os requisitos fundamentais de proteção de direitos autorais. A esse respeito, de salientar-se que uma obra que é original não é necessariamente nova, já que uma adaptação gráfica de um personagem literário já existente (quer ele caído ou não em domínio público) pode qualificar-se para proteção de direitos autorais (por exemplo, os personagens literários Pinóquio ou Cinderela adaptada à forma dos desenhos animados de Walt Disney Company). O mesmo se aplica ao desenho de uma criatura comum (por exemplo, o desenho animado do Pato Donald). Além disso, deve notar-se que, principalmente no caso de tiras de desenhos animados e nos desenhos animados, o direito autoral protege cada pose original diferente adoptada pelo carácter. 2.623 Obras tridimensionais (principalmente esculturas, bonecas, fantoches ou robôs), que podem ser trabalhos originais ou adaptações de personagens ficcionais originais bidimensionais ou audiovisuais, geralmente se beneficiam da proteção independentemente do trabalho em que eles aparecem se atender aos critérios pertinentes. 2.624 Obras audiovisuais, incluindo personagens de ficção (filmes, jogos de vídeo, fotografias, quadros de filmes ou fotografias) se beneficiarão como um todo (imagem e trilha sonora), da proteção se satisfizerem os critérios exigidos. Isso vai ser ainda mais provável já que personagens ficcionais audiovisuais via de regra começam sua vida como storyboards (desenhos animados ou histórias em quadrinhos) ou foram descritos em uma obra literária. A proteção de direitos autorais pode se estender aos tributos visuais individuais, ou às aparências físicas ou pictóricas (fantasias, disfarces ou máscaras) de um personagem fictício". (BARBOSA, 2013. p. 400).

Quanto à imagens, uma personagem-constructo, diz Denis Borges Barbosa, é aquela que exerce uma função criativa de expressão e, neste caso, é protegida pelo direito autoral. Se a função que exerce é de marca ou de desenho industrial, então pode ser protegida, mas não pelo direito autoral, mas pela lei de marcas e patentes. (2013, p. 388). No entanto, como mencionado acima, Schwabach lembra que tipos de personagens não são protegidos. Este autor cita o exemplo de uma empresa que estampou em camisetas a imagem de tartarugas mutantes, sendo por isso acionada judicialmente pelo estúdio produtor do desenho animado Tartarugas Ninjas (caso Mirage Studios v. Counter-Feat Clothing Co., Ltda). Portanto, este caso, ocorrido no Reino Unido, envolvia personagens gráficas.

51

O texto é do WIPO Intelectual Property Handbook: Policy, Law and Use.

82

Em sua decisão, o magistrado britânico ressaltou, desde logo, as diferenças entre as tartarugas humanóides estampadas nas camisetas e as personagens de desenho animado. Apesar de serem quatro, como no desenho mencionado e, óbvio, terem características humanas, as personagens das estampas apresentavam características diversas. Tinham nomes diferentes e eram esportistas, não ninjas. Não usavam máscaras, como os personagens americanos, mas bandanas ou capuzes em forma de capas, bem como cotoveleiras e joelheiras coloridas e assim por diante. Enfim, decidiu o magistrado que "[...] apesar de que existem semelhanças na reprodução gráfica no produto dos demandados com aquelas do produto dos demandantes, elas são principalmente reproduções de um conceito, da tartaruga humanóide em uma natureza agressiva"52. (SCHWABACH, 2011. p. 102). As diferenças gráficas e de contexto também são levadas em consideração pela jurisprudência brasileira, a exemplo do julgado abaixo:

"APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO AUTORAL. CONTRAFAÇÃO. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE ENTRE AS CRIAÇÕES. DANOS MORAIS. INOCORRÊNCIA. 1.Caso em que o postulante busca reparação moral e material decorrentes da utilização indevida da imagem de seu personagem (Radicci), sem qualquer autorização e/ou cessão de direito, mediante a confecção de um boneco, para fins publicitários, colocado na fachada de um centro comercial em Caxias do Sul/RS. 2.Importante asseverar que a criação artística tem proteção legal, resguardado o direito do autor para a sua utilização segundo, dispõe o art. 7º, VIII e 29 da Lei de Direitos Autorais. 3.Laudo pericial que aponta três semelhanças e dez diferenças dentre um total de treze itens analisados quanto a traços e aspectos gerais das criações do autor e da empresa demandada. 4.Embora as criações sejam similares, estas remetem a contextos diametralmente opostos. O boneco colono, registrado sob o nome de Pierinos, tem uma confecção rudimentar e precária, com significativa desarmonia de formas. A figura do personagem Radicci, por seu turno, apresenta uma perfeição técnica diferenciada, confeccionado em linhas precisas, próprias de um cartunista profissional. 5.Não foi comprovada a ocorrência de prejuízo extrapatrimonial, ônus que se impunha à parte postulante e do qual não se desincumbiu, a teor o que estabelece o art. 333, inc. I, do Código de Processo Civil. 6.Danos morais. Somente os fatos e acontecimentos capazes de abalar o equilíbrio psicológico do indivíduo são considerados para tanto, sob pena de banalizar este instituto, atribuindo reparação a meros incômodos do cotidiano. Negado provimento aos recurso. (Apelação Cível Nº 70025850710, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 26/11/2008)".

52

Tradução livre de: "[...] although there are similarities in the graphic reproduction of the defendants' product to those in the plaintiffs' product, they are mainly reproductions of a concept, of the humanoid turtle of an aggressive nature".

83

Segundo Schwabach (2011, p.50), citando jurisprudência americana, outros itens pertencentes ao universo da obra originária também podem ser protegidos, bastando que os mesmos sejam suficientemente reconhecíveis, ainda que não sejam dotados de personalidade humana (a nave Enterprise, da série Star Trek, por exemplo). Existe, ainda, uma outra modalidade de fanfiction que não se utiliza, necessariamente, da obra de alguém. Refere-se ao próprio artista, sua pessoa, sua história (ou suposta história), tratando-o como personagem. Ainda, como quase tudo na prática da escrita por fãs, essa regra não é rígida e o artista pode virar personagem dentro de sua obra. Estes são os assuntos do tópico seguinte.

3.5.2 A celebridade como personagem. Ao se pensar em uma pessoa real, tal qual um artista ou uma celebridade (uma celebridade-artista, talvez), representada como personagem ficcional, questiona-se se o direito de imagem desta pessoa não estaria sendo ferido. Difere-se, de plano, a personagem histórica, que não seria apropriável e, portanto, livremente representável (SCHWABACH, 2011. p. 45-49). Denis Borges Barbosa, no entanto, defende uma abordagem diferente da simples aplicação dos direitos da personalidade. Este autor classifica a imagem externa que esta celebridade faz de si, diferente da pessoa real, como sendo a noção de persona como constructo, considerando-se

"A noção de persona, como sinônimo de imagem de celebridade, ou seja, a exteriorização de um constructo que não se identifica com a pessoa natural. Seria o valor de reconhecimento da celebridade. [...] No entanto, cabe-nos apontar uma faceta específica da proteção da persona das celebridades, que é a sua deliberada construção como personagens de si mesmas, como um dos heróis de nossa contemporaneidade, mas herói ficcional ou pelo menos fabular. [...] A fabulação da celebridade é construir-se como um personagem que, no entanto, mantém a verossimilhança" (2013, p.740-780). Barbosa distingue o personagem como imagem-retrato (protegido pelos direitos da personalidade); o personagem-encenação, que é construção pertencente aos direitos conexos; e a personagem como persona, ou elemento autoral (Op. cit. p. 767). Neste último sentido, o autor menciona os doutrinadores que ressaltam a escassa discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto em nosso país, como André Andrade e Carolina Tinoco

84

Ramos; aqueles defendem a sua proteção, como Antônio Chaves; e, finalmente, aqueles que se posicionam contrários, como Eliane Abrão. (Idem, p. 772-773). Lembra Barbosa que esta construção, a exemplo das literárias, possui limitações (mesmo para aqueles que a considerem um direito da personalidade). E as limitações específicas do direito autoral tem seu cerne no interesse público: "[...] a celebridade é parte da cultura e deve à cultura sua criação". (2013, p. 788-793). Portanto, seja como direito da personalidade ou como construção expressiva protegida pelo direito autoral, as limitações e ponderações acima expostas também se aplicariam às fanfictions de celebridades ou que as contenham - pois é a sua imagem pública, fabular.

3.6 Um novo ator sobre ao palco: o Kindle Worlds.

O jornal A Folha de São Paulo publicou a seguinte matéria em 17 de julho de 2013: "Alguma coisa está muito fora do padrão quando a maior livraria on-line do mundo abraça uma causa que há mais de uma década cresce às margens do mercado e à revelia de alguns de seus autores mais vendidos. Isso aconteceu duas semanas atrás, quando a Amazon estreou a plataforma Kindle Words, pela qual fãs que gostam de criar histórias baseadas em bestsellers --a chamada "fan fiction", que reaproveita cenários e personagens de outros escritores-- podem não só fazer isso legalmente como vender suas criações"53.

A Amazon surpreendeu ao ir em direção oposta das demais empresas do mercado de livros (e séries de TV). Ela conseguiu os direitos dos titulares de certas obras para autorizar outros a usarem os elementos destas obras. Assim, uma plataforma especial foi criada na página da Amazon, chamada Kindle Worlds, como a matéria menciona. Basicamente, a livraria compra fanfictions para as revender online. De plano, percebe-se que um dos requisitos deste estudo para qualificar uma fanfiction, a ausência de fins lucrativos, foi subvertida. A plataforma funciona, como mencionado, online. O interessado deve primeiro se cadastrar como Author (Autor) do Kindle Worlds. Para isso, ele tem que aceitar o Kindle Worlds Agreement54, um contrato online que traz, já de início, em letras maiúsculas e em

53

Disponível em: . Acesso em: 01 set 2013. 54 Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2013.

85

negrito: "Este contrato nos dá direitos exclusivos sobre o conteúdo que você contribuir para o Kindle Worlds". O contrato tem, de um lado, o usuário (autor) e de outro, a Amazon e qualquer de seus parceiros ou afiliados. Através dele, a Amazon permite que este usuário use os elementos de um dos Kindle Worlds (que nada mais são do que os universos das obras originárias das quais a livraria conseguiu os direitos), para criar uma nova obra. Este uso deve ser feito respeitando os termos do Content Guidelines (o guia de conteúdo) de cada World (Mundo). Ou seja, o usuário tem determinações específicas sobre o que não pode fazer ao utilizar os elementos da obra originária. O conteúdo varia dependendo da obra (ou Mundo), mas maioria dos Guias proíbe pornografia ou uso de linguagem racista. O usuário ou autor, ao aceitar o contrato, declara ser maior de 18 anos - ou ter a idade legal de seu país, caso maior -, ser capaz de responder pelo contrato, não ser nacional ou residente de país com o qual o os Estados Unidos mantém embargo econômico e, se for empresa, o usuário que fizer a transação deve ter poderes para a representar. Os direitos conferidos são, como mencionado, o de usar os elementos de um "Mundo" Kindle, na conformidade de seu Guia, e/ou então os elementos originais do trabalho de outro usuário. Esse direito só pode ser exercido dentro da plataforma, mediante a submissão do texto. O direito conferido ao usuário é limitado, não extensivo, não transferível e revogável. E a Amazon, por sua vez, obtém do usuário o direito exclusivo e irrevogável de usar o trabalho submetido, inclusive para reproduzir, imprimir, publicar, distribuir, traduzir, representar, fazer obras derivadas, dentre outros. Em troca, o usuário, ao que parece, só terá direito de receber o percentual de 8% (oito por cento) a 35% (trinta e cinco por cento), dependendo do tipo do trabalho, em conformidade com uma tabela que é apresentada no contrato. Resta saber se os escritores de fanfiction vão se sentir atraídos pela possibilidade certa de algum retorno financeiro de algo que, antes, era feito com mais segurança dentro do "não rentável". Ou, quem sabe, em troca da satisfação de ver seu nome publicado no mercado formal. No entanto, só o tempo dirá se a Amazon acertou em trazer estes trabalhos para o mundo comercial, ou se na realidade a empresa não entendeu o valor social e afetivo da fanfiction produzida dentro de um fandom, com o suporte que ele traz consigo. Enfim, se os valores ali depositados e exercidos - o de solidariedade, aprendizagem e compartilhamento -, poderão ser substituídos pelo Kindle Worlds.

CONSIDERAÇÕES

Produzir textos que são baseados em obras precedentes não é novidade. Ao longo da história, a prática é facilmente exemplificada. A fanfiction é apenas a sua face moderna, exercida de forma bem particular à nossa época. A facilidade de comunicação e compartilhamento de arquivos, propiciada pelo avanço da tecnologia, alargou a rede de informações que antes era limitada pelo tempo, espaço e idioma. As especificidades da escrita de fã que encontramos nos dias atuais se formaram lentamente, sendo que o final do século XIX e a passagem do século XX a moldaram. A difusão de cultura provoca a produção de mais cultura. É de se esperar que pessoas sejam atraídas por aqueles que compartilham seus interesses. O surgimento da comunicação em massa e da Internet potencializou o encontro destes grupos de pessoas e a manutenção de seus vínculos. Experiências são trocadas; e conceitos, adaptados, tudo em velocidade e escala impensáveis para os padrões de outrora. Criam-se regras, valores e cultura próprias dentro das comunidades formadas pelo apreço à uma obra. A pesquisa realizada para o presente estudo revelou que a criação artística, que reflita os interesses comuns da comunidade, é considerada normal e necessária. Neste ambiente, habilidades tais como leitura, interpretação, crítica e escrita são desenvolvidos. Por sua vez, os envolvidos na criação, armazenamento e compartilhamento de textos não vêem mal algum em suas práticas. No papel de comunidade de admiradores de determinada obra ou artista, sua última finalidade é prejudicar a obra ou denegrir o artista: suas interpretações são suas interpretações. Fica claro que não é "compreensível" à estas comunidades de que forma sua expressão criativa possa ser ofensiva ao Direito. Buscou-se respostas para o dilema dentro da história recente do Direito Autoral, descobrindo-se origens calcadas nas ideias liberais de John Locke a respeito de liberdade através da propriedade. O ser humano é aquilo que possui; e o possui porque, em algum momento, houve trabalho para o obter. Logo, a criação intelectual, no nascedouro do direito autoral, tem pouca relação com justiça social - ela é conquista da propriedade, a ser usada exclusivamente por seu titular, em detrimento de todas as demais pessoas. Esta raiz exclusivista nos seguiu até os dias atuais, ainda que se tenha posto sobre ela rótulos que esboçavam funções de interesse coletivo. Este é o caso do Estatuto da Rainha Ana (1710). A primeira legislação autoral a reconhecer o direito dos autores visava, na realidade, satisfazer interesses da burguesia editorial da época, ameaçada com a "pirataria" de livros que

87

assolava a Inglaterra. No entanto, sua declaração de finalidade - estímulo aos homens para que se educassem e criassem mais livros - é um farol que hoje clarifica não só o sistema do copyright, nascido diretamente deste estatuto, mas também as legislações do mundo todo. O sistema francês do droit d'auteur, adotado pelos países da Europa Continental (e por suas respectivas colônias), apropriando-se do mesmo conceito de trabalho e propriedade, concentrou seu esforço finalístico não no futuro, como fez o copyright, mas no passado. A exclusividade patrimonial é a retribuição pelo trabalho realizado. Posteriormente, acrescentou-se a ideia de "criação como exteriorização da personalidade do autor" (Hegel e Kant), dotando-o e a seus herdeiros de exclusividades de cunho extrapatrimonial sobre a obra. Os dois sistemas acreditavam, no entanto, que a proteção ao autor era suficiente, atingia um fim em si mesma. Grandes mudanças ocorreram após a Segunda Guerra Mundial. O eixo do Direito, até então individualista e patrimonialista, deslocou-se para o social. No Brasil, foi um caminhar lento até a promulgação da Constituição de 1988, que consagrou a função social da propriedade. Mesmo após, a propriedade intelectual não gozou da mesma atenção que foi dedicada à propriedade de direito real e imobiliária. Finalmente, o Código Civil de 2002 veio a consagrar a função social em todos os institutos de direito civil: contratos, família, responsabilidade civil, dentre outros. Não há razão para excluir-se os direitos autorais. A função social do direito autoral, no entanto, permanece pouco discutida. Mas é certo que as respostas do Direito para a questão da fanfiction não podem se ater ao direito autoral de outrora, liberal e individualista. Identificou-se quatro funções dos direitos autorais, assim descritas por Guilherme Carboni: função de identificação, função promocional (criação intelectual), função econômica e função política. Carlos Affonso Pereira de Souza as resume em duas: a promocional e a social (acesso ao conhecimento). Em análise quanto a como as fanfictions - como criações sem fins lucrativos, declaradamente "obras de fãs" - poderiam frustrar tais objetivos da lei autoral brasileira, chegou-se à conclusão de que dificilmente isto ocorreria. A paternidade da obra não é afetada, não impede a criação de novas obras, não interfere economicamente em sua exploração e, longe de interferir negativamente no programa político-cultural, está sintonizado com ele: a prática facilita e estimula a leitura e a escrita, desenvolve habilidades críticas, cria espaços de lazer e cultura. Ressalte-se que, mesmo o caso da escritora Marion Zimmer Bradley, citado neste trabalho, não pode ser tomando extensivamente, pois é fato atípico e raro. Escrever fanfictions

88

é tão potencialmente danoso quanto dirigir um carro todos os dias. Além disso, Bradley se correspondia assiduamente com os fanfiqueiros, e esta troca intensa de informações pode ter contribuído para o evento. Na era digital, diz Schwabach, os fãs-escritores sentem pouca vontade deste tipo de interação direta com o autor - a interação nas fanfictions acontece entre os fãs. E, hoje em dia, autores são mais reservados quanto às fanfictions, dificilmente admitindo que as lêem. Lembre-se que as fanfictions são inaptas para causar confusão entre ela e a obra originária - o que parece ser fato importante no tocante à outra limitação do direito autoral, as paródias. Não parece lógico, portanto, entender que as exclusões ou limitações descritas nos artigos 8° e 46 da LDA sejam taxativas. É perfeitamente possível o reconhecimento de hipóteses além das constantes em lei; que estão em consonância com uma interpretação funcionalizada e harmônica com a Constituição Federal, o Código Civil e demais disposições do ordenamento jurídico. O intérprete, conforme mencionado neste estudo, deve realizar uma análise interdisciplinar dentro da cultura, experiência e história na qual está inserido (culturalismo jurídico). O Direito é fato, valor e norma. Ao se fazer pequenas pontuações quanto ao modelo norte-americano (país do qual são a maioria das obras nas quais as fanfictions são inspiradas), visualizou-se a mesma possibilidade de recepção da prática, através da Seção 107 do USC/17 (fair use). Ressalte-se que, desde a sua origem, a funcionalização do copyright estava presente de forma declarada. De outro vértice, no direito brasileiro, a análise da responsabilidade civil deve atender à visão deste instituto introduzida pelo Código Civil de 2002. A responsabilidade extracontratual quanto à violação de direito exige a presença do dano (artigo 186). Ora, as fanfictions não visam lucro e não interferem, via de regra, na exploração da obra (os direitos patrimoniais). O dano extrapatrimonial, salvo melhor juízo, estaria concentrado no direito moral à integridade da obra. No entanto, o inciso IV, do artigo 24, da LDA menciona explicitamente o prejuízo à obra ou à honra e imagem do autor, enquanto autor. Estas condições devem estar presentes para a caracterização deste dano moral em específico, sendo papel do magistrado apreciar o efetivo descumprimento da lei. Mas o dano deve haver, ainda que se entenda ser presumido - hipótese esta que não parece ser a adotada pela jurisprudência brasileira. Conclui-se, no entanto que, em via de regra, danos não são causados pelas fanfictions. Portanto, a aceitação da prática está de acordo com as exigências de acordos internacionais quanto às limitações para os direitos autorais, também conhecida como "Regra

89

dos Três Passos" (Convenção de Berna, artigo 9.2, e Acordo TRIPS, art. 13): a presença de caso especial, que não afeta a exploração normal da obra e que não prejudica injustificadamente os interesses legítimos do particular. Entende-se que, para que problemas de ordem ética e jurídica não venham a desvirtuar nenhum dos institutos, é de suma importância que o escritor de fanfiction entenda que não possui qualquer direito sobre aquilo que cria e, caso venha a sua criação a assemelhar-se à obra que futuramente o autor ou detentor dos direitos autorais venha a criar, não poderá reclamar qualquer direito de natureza protetiva para a sua obra. É o risco que assume com a própria prática da fanfiction. Não se pode presumir a má-fé do autor, creditando a ele um "plágio reverso", quando não se faz essa pressuposição de má-fé quanto ao escritor de fanfiction. A boa-fé é inerente aos ambientes de produção destes textos, sendo que o fã não tem intenção de violar o direito autoral. Por outro lado, nem toda obra derivada e produzida sem a permissão do autor é uma obra parasitária. Talvez, esteja na hora do Direito questionar-se se a "visão de dois mundos" adotada pelos fãs e descrita por Clay Shirk, não deve ser adotada também no mundo jurídico. Uma coisa é o mundo do dinheiro, o mundo dos autores; outra, é o mundo do afeto, onde estão os fãs. Assim, a fanfiction não contradiz o caráter protetor e de "retribuição de um trabalho" (futuro ou passado) oriundos do nascedouro do copyright e do direito de autor. E tem a vantagem de promover as aspirações de cultura, educação, conhecimento e lazer encontradas na legislação nacional e internacional dos dias atuais.

REFERÊNCIAS

ACAMPAMENTO na Bienal atrai jovens leitores e escritores de Fanfiction. Globo News. 07 set. 2013.Disponível em: . Acesso em 10 nov. 2013. ACORDO TRIPS. Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS ou Acordo ADPIC), 12 de abr de 1994. Disponível em: . Acesso em: 09 nov 2013. ANELLI, Melissa. Harry e seus fãs. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. ARISTÓTELES. Os Pensadores: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BALL, Caroline. Who Owns What in Fanfiction: Perceptions of Ownership and Problems of Law. 2007. 91p. Dissertação (Mestrado em Artes). Loughborough University Loughborough. Disponível em: . Acesso em: 01 nov 2013. BARBOSA, Denis Borges. Direito de Autor: Questões fundamentais de direito de autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2013. ______. Lei nº 9.610, de 28 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 09 nov 2013. ______. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 17 nov 2013. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 5.ed.rev. atual. e ampl. por Eduardo C.B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense, 2013. BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de direito. (ebook).11.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BUSSE, Kristina, HELLEKSON, Karen. Introduction: Work in Progress. IN: ______ Fan Fiction and Fan Communities in the Age of Internet: New Essays. (ebook). McFarland & Company, Inc., Publishers: Carolina do Norte, 2006. l.51-458. CARBONI, Guilherme. Função Social do Direito de Autor. Curitiba: Juruá, 2008. ______. Conflitos Entre Direito de Autor e Liberdade de Expressão, Direito de Livre Acesso à Informação e à Cultura e Direito ao Desenvolvimento Tecnológico. In: CARVALHO,

91

Patrícia Luciane de (Coord). Propriedade Intelectual: Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso. 1.ed. 5.reimp. Curitiba: Juruá, 2010. p.421-449. CARVALHO, Carlos Eduardo Neves de. Antecipação dos Efeitos da Tutela Específica para a Proteção dos Direitos Autorais. São Paulo: LTr, 2011. CAVALIERI, Felipe Oliveira. Fanfiction no jornalismo digital: nova matriz da produção jornalística na Web. 2011. 57f. Projeto Experimental (Graduação em Jornalismo) Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Bauru. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: direito das coisas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v.4. CONVENÇÃO DE BERNA. Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, set de 1886, revista em Paris, a 24 de jul de 1971. Disponível em: . Acesso em: 09 nov 2013. CONVENÇÃO DE GENEBRA. Convenção Universal sobre o Direito de Autor, set 1952. Disponível em . Acesso: 09 nov 2013. COPPA, Francesca. A Brief History of Media Fandom. IN: BUSSE, Kristina, HELLEKSON, Karen (Org.). Fan Fiction and Fan Communities in the Age of Internet: New Essays. (ebook). McFarland & Company, Inc., Publishers: Carolina do Norte, 2006. l. 588/848. CORDEIRO, Luciane. Jovens que criam fanfics. Gazeta do Povo. 15 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em 10 nov. 2013. COZER, Raquel. Escritores e editores viram produtores de obras coletivas em várias plataformas. Folha de São Paulo. 17 jul. 2013. Disponível em: < Disponível em: . Acesso em: 01 set 2013. DERECHO, Abigail. Archontic Literature: A Definition, a History, and Several Theories of Fan Fiction. IN: BUSSE, Kristina, HELLEKSON, Karen (Org.). Fan Fiction and Fan Communities in the Age of Internet: New Essays. (ebook). McFarland & Company, Inc., Publishers: Carolina do Norte, 2006. l. 854/1112. FALCHETTI, Maurício. Fan Film: a produção e a interação dos fãs na internet. 2011. 178p. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Poéticas Contemporâneas). Universidade Federal de Mato Grosso - Cuiabá. FÃS recriam na web novos caminhos para histórias consagradas. Notícias Terra. 19 fev. 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2013.

92

FIGUEIREDO, Fábio Vieira. Direito de Autor: Proteção e Disposição Extrapatrimonial. São Paulo: Saraiva, 2012. FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológicos. São Paulo: Quartier Latin, 2012. ______. Direito Autoral: Da Antiguidade à Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2009. GAGLIANO, Paulo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 15ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1: parte geral. JENKINS, Henry. Fans, Bloggers, and Gamers: Exploring Participatory Culture. New York, New York University Press, 2006. ______. Textual poachers: television fans and participatory culture - updated 20th aniversary ed. (ebook). New York: Routledge, 2013. MAGALHÃES, Henrique. O que é fanzine. 1.ed. Brasiliense: São Paulo, 1993. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça, Agravo Regimental em Agravo n. 13142 MS 2012.013142-9/0001.00. Des. Rel.: Paschoal Carmello Leandro, 2012. MORATO, Antonio Carlos. As obras derivadas na sociedade de informação: crítica ao termo "recurso criativo" e ao risco de sua utilização na obra audiovisual derivada. In: NALINI, José Renato (Org.). Propriedade Intelectual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 39-62). OLIVEIRA, Eduardo Antônio Martins de. O Pluralismo Jurídico nas Comunidades de Escritores de Fanfictions. Revista de Filosofia do Direito, Estado e Sociedade. Natal: FIDES. v.1, n. 2. p. 197-210. jul./dez 2012. PADRÃO, Márcio. Ascensão de um subcultura literária: ensaio sobre a fanfiction como objeto de comunicação e sociabilização. Ciberlegenda: revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro: UFF, n. 19, 2007. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2013. PEREIRA, Márcio. Direito de Autor ou Direito de Empresário? Considerações, Críticas e Alternativas ao Direito Autoral Contemporâneo. Campinas: Servanda, 2013. PIMENTA, Eduardo Salles. A Função Social dos Direitos Autorais da Obra Audiovisual nos Países Ibero-Americanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. PONTES, Leonardo Machado. Direito de Autor: A Teoria da Dicotomia Entre a Ideia e a Expressão. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. SAMPAIO, Theane Neves. Estudo de Recepção Através de Fanfiction: Uma Proposta. In: Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio, 8, 2011, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Disponível em: . Acesso em: 30 out 2013. SANTOS, Manoel J. Pereira dos. Direito de Autor e Liberdade de Expressão. In: ______ Direito do Autor e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011. SCHWABACH, Aaron. Fan Fiction and Copyright: Outsider Works and Intellectual Property Protection. (ebook). Ashgate: Burlington (USA), Surrey (UK), 2011. SCORZELLI, Patrícia. O Regime do Direito de Autor em Ambiente Digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. SILVA, Cesar. Fanfictions na Era Pré-Internet [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 10 nov. 2013. ______.______. Mensagem recebida por em 12 nov. 2013. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Abuso do direito nas relações privadas. (ebook). 1.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. SKIRK, Clay. A Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Tradução de Celina Portocarrero. (ebook). J. Zahar: Rio de Janeiro, 2011. SOARES, Nara Marques. Sendo Escritor. 2011. 202p. Tese (Doutorado em Literatura). Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis. Disponível em: . Acesso em: 14 nov 2013. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, Apelação Cível Nº 70025850710, Des. Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, 2008. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 3.ed., rev. atual. e ampl. vol. único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. UNITED STATES. Copyright Law of United States. Seção 17, Títulos 1 a 8 e 10 a 12, inc. emendas de dez 2010. Disponível em: < http://www.copyright.gov/title17/circ92.pdf>. Acesso em 09 nov 2013. VALENTE, Mariana Giorgetti. Direitos autorais como comércio internacional. In: NALINI, José Renato (Org.). Propriedade Intelectual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 189-209). VARGAS, Maria Lucia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras no meio eletrônico. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005. VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ______. Novos rumos do direito autoral brasileiro. In: NALINI, José Renato (Org). Propriedade Intelectual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 63-90.

94

VENTURA, Layse. Fanfiction vira moda entre jovens e se torna nova forma de ler e escrever livros. Diário Catarinense. 15 jul. 2013. Disponível em: . Acesso em 10/11/2013. WANT, Robert S. Harry Potter and the Order of the Court. (ebook). New York: NationCouts.com, 2008.

Sites visitados: (1) FanFiction.Net. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2013. (2) Nyah!Fanfiction. Disponível em: . Acesso: 19 out. 2013. (3) Organization for Transformative Works (OTW). Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013. (4) Amazon. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2013. (5) Potterish. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2013

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito e que se fizerem necessários, que isento completamente a Universidade Anhanguera-Uniderp, a Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes e o professor orientador de toda e qualquer responsabilidade pelo conteúdo e idéias expressas no presente Trabalho de Conclusão de Curso. Estou ciente de que poderei responder administrativa, civil e criminalmente em caso de plágio comprovado.

Criciúma, 25 de novembro de 2013.

Isabel Anacleto Placido

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.