A Genealogia da Ética Naturalizada (The Genealogy of Naturalized Ethics)

September 10, 2017 | Autor: V. Brito Júnior | Categoria: Naturalism, Naturalism and Normativity, Naturalismo
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A Genealogia da Ética Naturalizada Valdenor Monteiro Brito Júnior RESUMO: Este artigo tem por objetivo responder às críticas feitas por André Coelho ao artigo “Sobre o Naturalismo em Ética e Política”, avançando uma proposta de naturalização da ética e objetando aspectos de seus questionamentos contra o naturalismo. Apresentamos duas propostas para a naturalização da ética: a primeira é um critério evolucionário para a demarcação de normas éticas e não éticas, que forneça uma forma de teoria da verdade como correspondência para a ética à luz da sua função na evolução humana; a segunda, é a proposta de Owen Flanagan para tornar a ética normativa parte da ecologia humana, determinando que normas éticas são mais bem-sucedidas na promoção do bem-estar humano, considerados aqueles objetivos inerentes aos sistemas motivacionais do Homo Sapiens. Abordamos os questionamentos de André Coelho à filosofia de Willard Van Orman Quine, sua distinção entre pretensão forte e fraca no naturalismo ético e político, a tese do privilégio epistêmico conferido ao método experimental e da parcialidade ideológica do naturalismo ético-político ao desenvolvimento histórico do capitalismo liberal. Concluímos que o naturalismo é o mais importante desenvolvimento em filosofia do século XX e que a naturalização de campos filosóficos normativos – desde a ética à filosofia política – é possível. PALAVRAS-CHAVE: Naturalismo. Quine. André Coelho. Owen Flanagan. Evolução. Ecologia. Ética. Filosofia Política. The Genealogy of Ethics Naturalized ABSTRACT This article has, as objective, to respond to the criticals made by André Coelho about the article "About Naturalism in Ethics and Politicals", progressing to a propose of naturalization of ethics and aiming aspects of his questionings against naturalism. We show two proposals to the naturalization of ethics: the first is an evolutionary criteria to the demarcation of ethical norms and non-ethical norms, that gives a form of truth theory as corresponding to the ethics on the lights of its function in human evolution; the second is, the proposal of Owen Flanagan for turning ethical normative as part of human ecology, determining that ethical norms are more well succeed on promoting human well-being, considering those objectives inherents to the motivacional system of Homo Sapiens. We approach the questionings of André Coelho to the philosophy of Willard Van Orman Quine, his distinction between strong and weak pretension to the ethical and political naturalism, the thesis of the epistemical privilege, confered to the experimental method and the ideological partiality of ethical-political naturalism to the historical developing of liberal capitalism. We conclude that naturalism is the most important developing in the philosophy of the XX century and that the naturalization of normative philosophical camps - from ethics to political philosophy - is possible. KEY- WORDS: Naturalism. Quine. André Coelho. Owen Flanagan. Evolution. Ecology. Ethics. Political Philosophy.

Valdenor Monteiro Brito Júnior

1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo responder as críticas formuladas por André Coelho ao meu artigo “Sobre o Naturalismo em Ética e Política”, questionando a pretensão naturalista em filosofia, bem como o uso do saber naturalista para decidir questões em ética e filosofia política. A minha resposta às suas críticas será realizada em duas partes. Na primeira, respondo ao desafio apresentado por ele de que o campo normativo não pode ser naturalizado, apresentando duas formas de conceber a naturalização da ética: uma delas, de minha elaboração, propõe um critério evolucionário para demarcar a diferença entre conteúdos éticos e não éticos e fornece uma forma de “teoria da verdade como correspondência” para a ética; a outra é uma proposta com a qual simpatizo, elaborada por Owen Flanagan, para tornar a ética normativa um ramo da ecologia humana. Na segunda parte, respondo às objeções formuladas por André Coelho no que diz respeito à crítica de “Dois Dogmas do Empirismo” de Quine, a queixa contra o privilégio epistêmico que o naturalismo concederia às ciências naturais e a ideia de que o naturalismo em ética e política é um prolongamento da evolução do capitalismo liberal. 2 A GENEALOGIA DA ÉTICA NATURALIZADA 2.1 A ÉTICA DENTRO DA ESTRUTURA DO MUNDO OBJETIVO: UM CRITÉRIO EVOLUCIONÁRIO PARA DEMARCAÇÃO DE NORMAS ÉTICAS Em meu artigo inicial, apesar de ter feito algumas observações acerca do impacto do saber naturalista sobre a estrutura de campos normativos como a ética e a filosofia política, não desenvolvi explicitamente de que modo penso que um campo normativo tal como a ética poderia ser naturalizado. Então me deixe explicar. Nós buscamos um saber sobre a realidade que nós permita explicá-la, entender a ordem subjacente às informações que nos são bombeadas por intermédio de nossos órgãos sensoriais. Denominamos isso de “ciência (em sentido amplo)”. A própria seleção natural esculpiu nossos cérebros de modo que eles tentam organizar essas informações advindas de fora para que seja útil ao organismo (isso já acontece nos animais; isso nem sempre prioriza que vejamos a realidade como ela realmente é), em termos de sobrevivência e reprodução. Assim, nossos sistemas cognitivos já incorporam inatamente “teorias sobre o mundo, a mente, etc.”. Mas temos um aparato cognitivo que consegue aprender e transmitir informação

não genética de um modo bastante eficaz. Por isso, temos como corrigir essas teorias ao longo do tempo. O mundo é, basicamente, partículas interagindo em campos de força (ou outra descrição mais aprimorada fornecida pela física fundamental) que tem como seus efeitos, consequências ou modos de organização todo o resto da realidade (SEARLE, 2000, s.n.). É nessa estrutura objetiva de mundo que precisamos encontrar um lugar para a ética, de modo que possamos perguntar adequadamente pela objetividade e verdade em ética.Um dos meios para fazer essa conexão é ver a ética como um ramo do raciocínio prático: What I’m doing now in my book on rationality is to try to show how we shouldn’t be thinking in terms of ethics vs. science. We ought to think of what we call ethics as a branch of practical reasoning–how the conscious, intentional organism reasons about what to do, particularly if the organism’s got a language. If you think of it that way, then the traditional debates between ethics and science seem kind of irrelevant. (SEARLE, 2000, s. n.) Em entrevista, Brian Leiter (2011, s. n.) pontua que a principal linha divisória na filosofia contemporânea é entre naturalistas e anti-naturalistas, sendo que os naturalistas pensam que os seres humanos são apenas outro tipo de animal, que podem ser entendidos pelos mesmos métodos empíricos que se usa para entender os animais, e que a filosofia não tem nenhum método exclusivo dela para demonstrar o que há, o que sabemos e o que são os seres humanos. Por isso mesmo, esclarecer a ética como um braço do raciocínio prático mais geral não deve ter como ponto de partida uma concepção teleológica ou kantiana de razão prática da qual se derive a racionalidade do “seguimento de regras”, mas sim um entendimento da natureza dos seres humanos como já sendo “seguidores de regras” (devido à evolução) e da natureza das emoções morais e atividades cooperativas que acompanham o “seguimento das regras”. Isto é também a reformulação que o Gerald Gaus (VALLIER, 2011, s. n.) pretende para a public reason em filosofia política. Como podemos, então, começar essa análise? Penso que Robert Nozick (2001), em “Invariances“, no capítulo “The Genealogy of Ethics“, sugeriu um caminho promissor: encaixar a ética na estrutura do mundo objetivo por meio da função evolucionária desta. Na teoria evolucionária, a condição para o surgimento de normas éticas tem relação com a evolução da cooperação. Nós temos modelos matemáticos gerais de como e por que a

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cooperação evolui. Não faz parte do propósito do presente artigo discuti-los, mas, para uma ideia visual de como eles se parecem, destaco a imagem abaixo:

Fonte: NOWAK, 2006, p. 1562. Voltando ao “Invariances“, Nozick (2001, p. 239) observa que, para explicar adequadamente a emergência da capacidade das normas éticas, precisamos de uma função que não seja descrita em termos éticos explícitos. E esta função se encontraria nas vantagens de coordenação/cooperação em benefício mútuo que as normas éticas tornam possível. As normas éticas permitem que os agentes possam obter ganhos mútuos maiores do que seus respectivos “níveis de segurança”, um conceito de teoria dos jogos (NOZICK, 2001, p. 243246). Um raciocínio interessante que Nozick (2001, p. 263) faz diz respeito à formulação de um core principle of ethics: esta regra ética seria sempre estável, de um ponto de vista da teoria dos jogos, porque ela determina que a extensão da cooperação de um grupo G1 para um grupo G2 não pode prejudicar os membros de G2, uma vez que, caso isto ocorra, os membros de G2 fariam melhor sem interação com G1 do que interagindo com este e, assim, a distribuição correspondente não seria estável. Isso excluiria, por exemplo, o assassinato arbitrário ou escravização dos membros de G2 pelos membros de G1. Eis a citação original:

I have spoken until now about extending cooperation with another group in a way that benefits the members of both groups. The other facet of this is not to extend relations with group G2 in a way that worsens the situation of G2 (without their consent). The resulting distribution should not be such that G2 could do better on its own, not interacting with G1. This excludes a group G1′s murdering the members of G2 or enslaving them for the benefit of G1. Such prohibitions apply also within the group G1 itself. There should be no subgroup S within G1 such that S does better on its own, without any interactions with the rest of G1, where S alone would actually constitute a stable coalition. This excludes G1′s enslaving or greatly oppressing a subset of its members. The norm we are proposing is that of voluntary cooperation, the norm of unforced cooperation. We might appropriately term this the core principle of ethics. (NOZICK, 2001, p. 263) A partir desse raciocínio, eu penso que poderíamos desenvolver um critério sobre a natureza do “ético”, de modo naturalístico, que o próprio Robert Nozick não forneceu (ou pelo menos não explicitou). Também entendo que esse critério fornece um princípio geral subjacente às tentativas de usar explicações evolucionárias para discernir questões éticas que eu li em alguns autores, mas que estes também não forneceram nem explicitaram. Um dos temores que algumas pessoas têm quanto à visão de um mundo naturalista é que a ética poderia ser qualquer coisa. O relativismo radical tornaria qualquer tipo de norma, por mais cruel, injusta e opressora que seja, como sendo igualmente ética, desde que alguém formule a regra com tal conteúdo e creia que isso é sua ética. O que abre espaço para isso é que as teorias éticas respondem apenas a uma “teoria da verdade como coerência (entre as crenças)”, mas não uma “teoria da verdade como correspondência (das crenças com os fatos do mundo)”, o que levou mesmo que Quine dissesse que a ética é metodologicamente débil comparada à ciência (QUINE, 1979, p. 477478), com opções restritas de melhoramento metodológico, como a redução causal de alguns valores a outros em uma estrutura meios-fins (QUINE, 1979, p. 478-479). Minha sugestão é que usemos um critério evolucionário para fornecer uma forma de “teoria da verdade como correspondência” para a ética. Esse critério não diz “o que a ética deve ser”, mas sim “o que a ética não pode ser”, com base em uma correspondência suficiente ou não de uma norma aparentemente ética específica com a funcionalidade evolucionária primeira da ética, que é a cooperação em benefício mútuo, portanto, uma correspondência

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para com o papel que as normas éticas “fizeram diferença faticamente” dentro da estrutura de um mundo objetivo. Deixe eu dar exemplos para uma melhor compreensão. Entendendo a ética como uma forma de cooperação, você não pode dizer que um grupo G1 estende a cooperação ética para um grupo G2 quando admite normas que aceitam o assassinato arbitrário dos membros de G2. Essas normas não contém uma função distintivamente ética, porque a capacidade para a ética não precisava ter evoluído para que os membros de G2 pudessem ser assassinados arbitrariamente. Ou seja, sem a ética ter evoluído e com a ética tendo evoluído, o resultado fica essencialmente o mesmo, não contendo a ética qualquer papel factual discriminativo aqui. Outro exemplo seria uma regra ética dizendo que matar sempre é certo. O resultado dessa norma não precisava de uma regra ética para ser alcançado, e, portanto, novamente a ética, “o caráter ético da norma”, não tem qualquer papel factual discriminativo aqui. Vamos entender um pouco mais a dinâmica desse critério. Existem achados e provas que são consistentes com a ideia de que um dos principais fatores para a evolução da moralidade foi o contexto de intenso conflito intertribal na pré-história. O conflito entre as tribos humanas criou uma pressão seletiva para o incremento na cooperação dentro do grupo, e essa intensificação da cooperação social foi veiculada por meio de normas éticas, instintos tribais, etc. A hipótese que mais desenvolve essa ideia é a “Tribal Instinct Hypothesis” (RICHERSON; BOYD, 2000, p. 4; VUGT; PARK, 2008, p. 11), mas é bem claro que Edward O. Wilson (2013, p. 76-77 e 82-83) e Frank de Wall (2007, p. 262) aceitam essa abordagem acerca das pressões seletivas. Neste caso, você vê que a função da ética em promover a cooperação em benefício mútuo apenas teria sido vantajosa reprodutivamente, por conta da vantagem de melhor combater os outros grupos, melhor se defender, etc. Mas o critério de demarcação da ética não pode ser “a função de melhor predar e combater outros grupos humanos”, porque a função direta é a intensificação da cooperação intragrupo. Ou seja, para predar os outros grupos, o ser humano não precisava de normas éticas. Mas para cooperar mais intensamente dentro de grupos, o ser humano precisava, e nisto reside o que a emergência da capacidade para normas éticas “fez a diferença faticamente” no mundo real, mesmo que, acidentalmente, isso tivesse a ver com combater outros grupos no passado evolucionário. E por isso falamos de “expansão do círculo moral” (termo do Peter Singer), ao longo da história. Você pode imaginar que a funcionalidade da ética começa a tomar o espaço que antes ficava com a “função de combater outros grupos”. Esta última funcionalidade, ao tornar

possível a vantagem reprodutiva necessária para a evolução da capacidade para normas éticas via função de cooperação em benefício mútuo, acabou por perder espaço para sua cria. As normas éticas passam a incluir mais gente dentro de seu âmbito de ser, abolindo as restrições à sua expansão cuja razão de ser principal era a “função de combater outros grupos”.

2.2 A ÉTICA NATURALIZADA COMO PARTE DA ECOLOGIA HUMANA?

O leitor deve ter percebido que a abordagem proposta anteriormente, apesar de cortar éticas que sejam insuficientemente correspondentes à função evolucionária da ética, ao papel discriminativo factual real desta, ainda assim parece incompleta do ponto de vista prático, ao deixar muitas opções de raciocínio ético como igualmente válidas. Alguém poderia pensar que, daqui pra frente, a escolha entre raciocínios éticos alternativos seja puramente subjetiva. Eu suspeito que não seja exatamente assim: uma posição com que simpatizo muito e que parece bastante plausível é a do Owen Flanagan (2006), em seu paper “Naturalizing Ethics“, escrito com Hagop Sarkissian e David Wong. Flanagan (2006, p. 17-18) começa criticando a posição de Quine acerca da naturalização da epistemologia, como proposta em “Epistemology Naturalized“. Quine defendia a substituição das questões epistemológicas normativas por explicações causaisnomológicas oriundas da psicologia empírica. Mas Flanagan entende que a epistemologia precisa ter, para além de um componente genealógico-descritivo, um componente normativo. Esse componente normativo da epistemologia naturalizada não seria fundacionalista, mas sim pragmático, validando práticas epistêmicas bem-sucedidas. (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 18-19) Da mesma forma, a ética naturalizada teria um componente genealógicodescritivo e um componente normativo (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 20). Agora, você poderia pensar: isso não levaria a ética naturalizada ao niilismo ou ao relativismo extremo? Flanagan (2006, p. 26) pensa que não, por um motivo simples: os fins da criatura restringem o que é bom para elas. Nós somos um certo tipo de animal social em relação ao qual nem tudo pode ser considerado como sendo bom para nós. Vários fatores fáticos, intrapessoais e interpessoais, afetam o escopo das éticas possíveis: How does naturalistic ethics avoid extreme relativism, or – even worse – nihilism? The answer is simple: the ends of creatures constrain what is good for them. The relativist is attuned to relations

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that matter, to relations that have relevance to the matter at hand. Not all kinds of food, clothing, and shelter suit us animals, us members of the species Homo sapiens. Nor do all interpersonal and intrapersonal practices suit us. Thus, there are substantial constraints on what might count as an adequate morality stemming from intrapersonal and interpersonal factors. We are social animals with certain innate capacities and interests. Although the kinds of play, work, recreation, knowledge,communication, and friendship we seek have much to do with local socialization, the general facts that we like to play, work, recreate, know, communicate, and befriend seems to be part, as we say, of human nature. (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 26) Aqui Flanagan (2006, p. 26) menciona a abordagem de David Wong em “Natural Moralities“, onde Wong (2006) defende um “relativismo pluralista”, que é a visão segundo à qual existem várias verdadeiras moralidades e que existem restrições universais significativas, baseadas na natureza humana e nas circunstâncias, sobre o que pode contar como uma moralidade verdadeira. Eu não conheço em detalhes a abordagem do Wong, mas me parece que a ética naturalizada também se serviria bem do “funcionalismo contextual” do David Schmidtz (2009), em seu “Elementos da Justiça“. Neste livro, apresenta-se que a teoria da justiça deve ser: 1) pluralista: nenhum dos quatro elementos primários ligados à ideia de justiça – merecimento, reciprocidade, igualdade e necessidade – constitui um padrão abrangente em relação ao qual os outros possam ser reduzidos (SCHMIDTZ, 2009, p. 24); 2) contextual: os elementos anteriormente mencionados dominam sobre classes limitadas, que são tópicos mais ou menos mutuamente exclusivos, e cujas fronteiras são como as de placas tectônicas, se modificando à medida que nossas concepções evoluem (SCHMIDTZ, 2009, p. 24-25); funcionalista: “podemos tentar resolver as incertezas sobre aquilo em que devemos crer ao indagarmos para que serve a justiça. (…) Quando considerações internas ao conceito de justiça (por exemplo, analisar o conceito de ‘devido’) não conseguem decidir em qual das concepções rivais devamos crer, podemos indagar o que tem importância fora do campo da justiça” (SCHMIDTZ, 2009, p. 25), sendo que a justiça serve principalmente ao propósito de internalizar externalidades negativas: A justiça é um sistema destinado a reduzir o custo de viver em comunidade: o motivo principal para adotarmos esse sistema é que ele nos deixa livres para nos concentrarmos menos na autodefesa e mais nas vantagens mútuas, ao mesmo tempo que nos concede uma

oportunidade de tornar o mundo um lugar melhor, isto é, uma oportunidade de gerar externalidades positivas, em vez de negativas. (SCHMIDTZ, 2009, p. 16) Voltando ao Flanagan (2006, p. 26), ele entende que o componente normativo da ética deve dar conta de explicar o porquê de algumas normas (incluindo normas que governam a escolha das normas), valores e virtudes são bons ou melhores que outros, sendo que uma razão comum para favorecer uma norma ou um conjunto de normas é que seja adequado para modificar, suprimir, transformar ou amplificar alguma característica ou capacidade pertencente à nossa natureza, seja como animais ou como seres socialmente situados. Isso reduziria a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos que envolvem assegurar um certo alvo, por exemplo: “se você quer assegurar cooperação social, então você deve _______”. No mínimo, esta ética naturalizada não poderia admitir imperativos categóricos que sejam concebidos como independentes dos interesses e valores humanos. (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 27) Dessa forma, há um número limitado de bens/objetivos que seres humanos buscam, dado sua natureza e potencialidades, e esses bens/objetivos limitam aquilo que pode estar localizado como antecedente nos condicionais hipotéticos referidos acima. (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 26) A força “categórica” disso adviria da referência às razões mais básicas e fundamentais decorrentes da natureza humana, que ajudam a moldar e canalizar as propensões particulares de um dado indivíduo, de modo que os objetivos da ética naturalizada são internos aos sistemas motivacionais do Homo Sapiens, mas externos a qualquer dado membro individual da espécie (FLANAGAN ET AL, 2006, p. 26). Flanagan (2006, p. 28-29) entende que podemos usar os cânones de raciocínio dedutivo e indutivo, estatística e teoria da probabilidade para apoiar o conhecimento ético, mas também qualquer fonte útil de informação, como psicologia, ciência cognitiva, as ciências humanas (como história e antropologia), literatura, arte e conversação ordinária baseada em observações do cotidiano. Flanagan (2006, p. 30) conclui: se ética é como uma ciência ou parte de uma ciência, ela é a parte da ecologia humana preocupada em determinar o que contribuir para o

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bem-estar de humanos, grupos humanos e indivíduos humanos, em ambientes naturais e sociais específicos.

3 RESPOSTA ÀS OBJEÇÕES DE ANDRÉ COELHO

3.1 SOBRE OS TIPOS DE PRETENSÃO NATURALISTA

Considero que a divisão entre tipos de pretensão naturalista em ética e política, como delineados por André Coelho, pode causar certos mal entendidos. Como primeiro aspecto problemático, temos que a pretensão forte e fraca do naturalismo ético-político não estão adequadamente relacionadas aos tipos de naturalismo na filosofia mais ampla. O problema da pretensão forte é negar que existam questões filosóficas não sujeitas à revisão empírica (no caso, questões da filosofia moral) ou adotar uma espécie de não cognitivismo moral? E mais: a pretensão fraca que demanda responsabilidade empírica de teorias filosóficas com dimensão empírica pode ser chamada de naturalista em qualquer um dos sentidos, metodológico ou substantivo, do termo? Outro aspecto questionável é a ideia de que a pretensão forte seria refutada por conta do dualismo metodológico entre natural e cultural, e entre empírico e normativo. Isso porque: a) não está claro qual a relação do dualismo metodológico entre natural e cultural tem com a pretensão forte ser verdadeira ou não, uma vez que ela não se refere à dissolução da distinção entre natural e cultural, mas sim entre empírico e normativo; b) o dualismo rígido pressuposto na ideia de dualismo metodológico também pode ser posto em dúvida por motivos outros que não sejam sua confusão com um dualismo metafísico. Voltando-se para o naturalismo ético-político em sua pretensão fraca, mais especificamente aquele que demandaria a exigência lógico-sistemática de um saber total unitário e coerente, pareceu-me estranho que sua refutação esteja garantida pela crítica da metafísica da totalidade, inclusive no contexto da crítica ao círculo de Viena. Isso porque atrelar o naturalismo ao círculo de Viena não é muito esclarecedor, pois o naturalismo metodológico de Quine nasce em contraposição às pretensões fundacionalistas daquele grupo. O holismo de Quine contrapõe-se a certo tipo de reducionismo do círculo de Viena quanto a relação entre linguagem e realidade. Portanto, esta crítica não é muito informativa. Por fim, resta-nos falar do naturalismo ético-político em sua pretensão fraca que se volta como um chamado para a responsabilidade empírica. Não posso aceitar o rótulo de naturalismo para o tipo de argumento que André Coelho chama de “divergência justificada

com relação ao saber naturalista”. O artifício da “divergência justificada” privaria de utilidade qualquer recurso à ciência empírica. A pretensão de um saber unitário é coextensiva com a pretensão da responsabilidade empírica (como decorre do holismo quineano e de minha exposição acerca da integração conceitual no artigo original). Por exemplo, o Modelo Padrão das Ciências Sociais (e seu dualismo metodológico) é inconsistente com o que temos vindo a descobrir na biologia. Contudo, a suposta “divergência justificada” anularia este meu argumento, usando o próprio Modelo Padrão para afirmar que as descobertas biológicas não poderiam ser aplicadas dessa forma, por adotarem o objetivismo, mensuração quantitativa, etc. Essa postura é antinaturalista: você assume, aprioristicamente, que os métodos das ciências naturais não podem ser informativos às ciências humanas, ao invés de fazer um argumento empírico robusto contra aplicar tais e tais resultados de um campo ao outro. O dualismo metodológico, assim defendido, não é falseável e, portanto, adentraria as fileiras da pseudociência. 3.2 SOBRE QUINE E “DOIS DOGMAS” André Coelho, em sua resposta, faz um resumo do argumento de Quine em “Dois Dogmas do Empirismo”. Em sua percepção, apesar desse artigo ter implicações para o naturalismo, esta associação deve ser feita com cautela, porque a pretensão de “Dois Dogmas” seria atacar certo tipo de filosofia analítica que se fazia à época, e não preparar caminho para o naturalismo. Considero esta afirmação problemática. André Coelho está correto ao dizer que o objetivo direto de “Dois Dogmas” era criticar o modo como Carnap caracterizou a relação entre enunciados analíticos e empíricos. Mas a perspectiva que Quine coloca para substituir aquela de Carnap é o naturalismo. Apesar de Quine não mencionar o termo “naturalismo” aqui, é bem claro no texto que a expressão “empirismo sem dogmas” poderia ser substituída por “naturalismo metodológico”. Em fato, “Dois Dogmas” foi a gênese do “naturalismo metodológico”, como expliquei no artigo original. O que Quine começou em “Dois Dogmas” e desenvolveu ao longo de sua carreira filosófica foi a rejeição da filosofia primeira, e por isso mesmo, o empirismo sem dogmas é o anti-fundacionalismo naturalista (naturalismo metodológico):

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Aqui, portanto, temos a rejeição da filosofia primeira. Não chegamos aqui demonstrando que a filosofia primeira seja impossível. Ao contrário, descobrimos que as tentativas de se conquistar uma filosofia primeira, devidas a Kant e a Carnap, falharam de maneiras reveladoras. As melhores razões para se rejeitar formas puras da intuição e do entendimento como verdades necessárias são empíricas. (…) Afirmações consideradas especiais, distintas ou exigidas como uma fundação para a ciência acabam por revelarem-se provisórias e abertas a refutação empírica da mesma maneira que o são as teorias científicas ordinárias. (RITCHIE, p. 53) Daí a metáfora do barco de Neurath, onde a ciência é como se fosse um barco que, para ser reconstruído, tem de se reconstruir prancha por prancha enquanto se permanece flutuando nele. Não há como pensar a nossa ciência a partir de fora, e a busca por tais fundações “de fora” é inútil. Isso me conecta com uma segunda crítica que tenho de fazer ao comentário de André Coelho sobre a posição de Quine em “Dois Dogmas”. Ele omite um aspecto essencial da posição de Quine: as razões pragmáticas para aderir à ciência, já comentadas no artigo original. É o pragmatismo que dá força à sua posição. E o argumento pragmático, que certos filósofos detestam, é a base real sobre a qual diversos cientistas justificam sua adesão à ciência. Nós hoje somos acostumados a ter em mãos os produtos da ciência, e isso torna fácil esquecer o quão incrível é, por exemplo, colocar um foguete no espaço para chegar na Lua, o que isso envolve e o que implica sobre a natureza da ciência. Não foi a vaidade dos filósofos que fez o homem chegar na Lua ou mesmo descobrir a relatividade do espaço e do tempo, conceitos inicialmente tratados como filosóficos. André Coelho faz um ponto específico sobre o holismo de Quine, que pode confundir o leitor: “Aliás, não me parece que qualquer conhecimento empírico das ciências naturais possa contribuir em nada para a verificação de um enunciado como ‘todos os solteiros são não casados’.”. O leitor pode se perguntar como Quine poderia realmente acreditar que um enunciado como “todos os solteiros são não casados” é empírico. Ou que “2 +2 = 4″ pode ser refutado pelo método experimental e assim por diante. Onde estaria Quine com a cabeça ao pensar isso? Mas esse tipo de confusão é dissipada quando se recorre a outros aspectos de sua obra. Uma das pretensões de Quine foi a de “naturalizar” a epistemologia. E pode-se dizer que há três níveis na ciência: afirmações de observação (observation sentences); a ciência em sentido

amplo (hipóteses, teorias, etc.); a lógica e a matemática (RITCHIE, 2008, p. 59-60). Enquanto as observation sentences estão na periferia, próximas da experiência, a lógica e a matemática estão no centro, distantes da experiência. Contudo, como recorremos à lógica e à matemática, exatamente para falar do mundo real, é por isso que é com o “todo da ciência” que defrontamos à experiência e, potencialmente, mesmo a lógica e a matemática podem ser revisadas. A crítica de André Coelho ao argumento contra a analiticidade de Quine é a de que o saber empírico que sustenta o enunciado “todos os solteiros são não casados” não precisa ser o conhecimento científico, mas o tipo de conhecimento empírico que o participante de uma comunidade de fala pode ter com segurança sem recorrer ao saber científico, que pouco poderia ensinar a este respeito a alguém que já não fosse um falante bem treinado daquela comunidade. Mas este argumento é inadequado. Primeiro, a linguagem é sujeita a estudo científico também. Quine mesmo era um behaviorista, e por isso mesmo pretendeu explicar a “significatividade” dos enunciados em termos comportamentais: If one thinks of this as a matter of knowing (or grasping, or being acquainted with) the meanings of its words and constructions, then a denial that there are meanings will seem to be a denial that we understand our language. Quine, however, takes this as a quite misleading picture. Language mastery is, rather, to be construed in naturalistic (chiefly behavioural) terms. The details of this construal, giving an account of what it is to understand a language, and how a child comes to achieve that happy state, form part of the project of naturalized epistemology. (HYLTON, 2010, s. n.) No famoso 2º capítulo de “Palavra e Objeto”, Quine (2010, p. 53) aborda a chamada “tradução radical”, ou seja, a tradução da língua de um povo com a qual não se teve nenhum contato. Ali ele mostra que o trabalho do linguista envolve distinguir as “condições de estimulação” que levam a um falante da língua assentir ou dissentir a certa frase: Viemos refletindo de forma geral sobre como irritações de superfície geram, por meio da linguagem, o conhecimento próprio do mundo. E é por meio do ensino de como associar palavras com palavras e outras estimulações que emerge algo reconhecível como fala sobre as coisas, não distinguível da verdade sobre o mundo. A fala volumosa e estruturada de forma intricada que surge carrega pouca correspondência evidente com a passada e a presente enxurrada de estimulação não verbal; todavia é nessa estimulação que devemos Amazônia em Foco. Castanhal v.3, n. 1, p. 5-21, jan/jun., 2014.

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procurar por qualquer conteúdo empírico que possa existir. Neste capítulo nós devemos considerar de quanto da linguagem pode fazer sentido em termos de suas condições de estímulo, e qual o espaço que isso deixa para a variação empiricamente incondicionada no esquema conceitual próprio. (QUINE, 2010, P. 50) Segundo, o problema do naturalismo com a filosofia analítica e o método conceitual é que não temos boas razões para acreditar que as práticas linguísticas das massas – ou mesmo aquelas de seus irmãos de classe alta de Oxford e de Cambridge – contenham um veio de sabedoria ou que sejam esclarecedoras para verdades acerca do mundo real, e que, ao contrário, se queremos iluminar questões filosóficas sobre o conhecimento, a mente e as motivações morais é preciso que a filosofia acompanhe as ciências como seu ramo abstrato e reflexivo (LEITER, 2012, p. 37). Terceiro, outro motivo pelo qual o argumento não se sustenta advém das três formas como se pode “naturalizar” a teoria do Direito, conforme o Brian Leiter (2008). Ao invés de confiar nas intuições (expressas na linguagem) dos teóricos de Oxford, poderíamos usar filosofia experimental e isso seria empírico: If ‘ordinary’ intuitions are to be decisive in fixing the extensions of concepts, why not investigate, empirically, what those intuitions really are? Why not find out, to borrow Hart‟s phraseology, what the ‘ordinary man’ really thinks? (…) Raz himself emphasizes that the concept ‘law’ is one ‘used by people to understand themselves,’ adding that ‘it is a major task of legal theory to advance our understanding of society by helping us to understand how people understand themselves.’ It is curious, indeed, then, that no one has made any effort tofigure out what ‘people’–as distinct from the subset of them who work in the vicinity of High Street — actually understand by the concept. General jurisprudence awaits, andstands in need of, colonization by experimental philosophy. (LEITER, 2008, p. 9-10) Assim, se o argumento de André Coelho realmente funcionar, ele funciona contra o projeto original da filosofia analítica, e em favor de uma colonização da análise conceitual por filosofia experimental, como um naturalista favoreceria. Inclusive a menção de André Coelho ao Hart é interessante, já que, na minha monografia (ainda não publicada), busquei desenvolver uma forma de criticar a análise conceitual feita por Hart, quanto ao escopo da norma de reconhecimento, por meio de pressuposições naturalistas. Talvez minha crítica não tenha sido bem-sucedida, mas de fato é plenamente possível rever mesmo a análise conceitual interessante feita por Hart. Leiter (2012, p. 261 e 263) também concorda: a análise conceitual esclarece nossos conceitos, nosso

discurso, não o referente que queiramos compreender, e a tese de Hart da generalidade de suas intuições linguísticas sobre o conceito de Direito estão abertas à refutação empírica. Quanto ao argumento de André Coelho contra o holismo quineano, dizendo que “é difícil saltar daí para a ideia bastante contraintuitiva de que, se levássemos em conta todas as hipóteses auxiliares que estão sendo testadas, chegaríamos ao conjunto de todo o conhecimento disponível“, isso é uma interpretação equivocada. Quine (2010, p. 2), em sua introdução à edição revisada do “De Um Ponto de Vista Lógico”, esclarece que: O holismo de “Dois Dogmas” afastou muitos leitores, mas acho que seu problema está na ênfase. Tudo de que realmente precisamos no caminho do holismo, conforme os propósitos com que ele é proposto nesse ensaio, é perceber que o conteúdo empírico é compartilhado pelos enunciados da ciência em aglomerados e que não pode ser distribuído entre eles. Na prática, o aglomerado em questão não é nunca o todo da ciência; há uma gradação e eu reconheci isso mencionando o exemplo das casas de tijolo em Elm Street. (QUINE, p. 2) Dessa forme, entendo que as críticas formuladas pelo meu interlocutor não sejam bemsucedidas.

3.3 PRIVILÉGIOS EPISTÊMICOS E PARCIALIDADE IDEOLÓGICA

André Coelho me critica por conferir um status privilegiado ao método experimental e que eu assumiria isso tão aprioristicamente quanto os defensores do Modelo Padrão das Ciências Sociais e dualismo metodológico de que eu falo contra: Mas o problema aqui é que há uma compreensão equivocada da minha queixa em relação ao dualista metodológico. A resposta a isso também responderá a queixa acerca de que a tese do privilégio epistêmico pressupõe que os resultados recentemente obtidos pelo novo saber naturalista seriam, sem quaisquer fundamentos, mais verdadeiros e mais definitivos que os obtidos no passado. Se há algo de trágico nesse tipo de debate, é que os dualistas metodológicos trabalham como se o instrumental teórico e tecnológico da ciência para expandir o método experimental não tivesse progressos ao longo do tempo. Se você analisar os argumentos dos dualistas metodológicos, você percebe que são argumentos feitos em uma dimensão estática, não dinâmica, isto é: geralmente não se mostra Amazônia em Foco. Castanhal v.3, n. 1, p. 5-21, jan/jun., 2014.

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porque novos métodos não alcançam o sucesso pretendido, mas apenas são feitas observações gerais do porquê “o método experimental” não ser bem-sucedido em explicar questões das ciências humanas/sociais. Enquanto novas formas engenhosas de conferir um tratamento experimental para áreas antes deficitárias nisso vão sendo criadas e aperfeiçoadas, os dualistas metodológicos esgrimam argumentos gerais, que não derrotam o sucesso de instrumentos novos específicos de um ponto de vista empírico. A posição naturalista não exige que você pense que todas as dimensões da realidade, atualmente, estejam sujeitas ao método experimental de forma ótima e sem ambiguidade, ou com o mesmo sucesso das explicações no campo da física. O argumento do naturalista é baseado em pragmatismo: aderimos ao método experimental das ciências naturais, porque ele funciona, e ele funciona por causa de seu sucesso preditivo e explicativo; e aderimos à ampliação do método experimental para as ciências humanas/sociais, porque não há nada que impeça esta extensão, a princípio; no mínimo, temos que tentar fazer isso, já que é o melhor método disponível para fazer predições bem-sucedidas, com base em considerações pragmáticas a posteriori. Meu artigo mostra como essa extensão já está ocorrendo com sucesso. Alguns poderiam ser tentados a argumentar que a natureza humana não seja observável/objetiva, contudo, como sabemos a partir da ciência bem-sucedida da biologia, o ser humano é apenas outra espécie animal, que evoluiu a partir de descendência em comum, de modo que a pretensão de singularidade humana já foi refutada. Um aspecto preocupante da argumentação do André Coelho é que os ataques religiosos em relação à ciência poderiam ser igualmente legitimados sob a base de “temos apenas paradigmas diferentes”. Afinal, o criacionista não pode exigir do naturalista um argumento criacionista/religioso robusto contra o criacionismo, mas o naturalista pode exigir do criacionista um argumento “empírico” (ou seja, empírico-experimental, isto é, naturalista) contra a teoria da evolução? Os criacionistas são bons em achar brechas e “lacunas no conhecimento” das atuais explicações científicas, assim como os anti-naturalistas. Contudo, isto enseja apenas “argumentos de ignorância” sofisticados, de que, porque não sabemos (ainda) como estender explicações evolucionárias para certos âmbitos ou ampliar o método experimental para certos aspectos do fenômeno humanos, não temos como fazê-lo e nem teríamos motivos para acreditar nessa possibilidade. Portanto, a renúncia de André Coelho à suposta assimetria que eu postulo abre a porta para todas as pseudociências terem o mesmo status epistemológico que a ciência natural.

Todas elas podem fazer uso do argumento de que o naturalista pode exigir dos outros uma explicação naturalista, mas não pode ser exigido dele uma explicação não naturalista; e, portanto, não é um bom argumento. Temos razões a posteriori para considerar os métodos observacionais e experimentais mais bem sucedidos que outros na tarefa preditiva e explicativa, e que não há nada de singular quanto ao ser humano que impeça a priori seu estudo por meio desses métodos. E isso nos leva ao outro argumento feito por André Coelho, o de que o naturalismo está ligado ao desenvolvimento do capitalismo liberal, e sua hegemonia. Primeiro, muito do que hoje se acredita sobre o darwinismo social do século XIX é errôneo. Vou ser claro: Herbert Spencer e William Graham Sumner nunca foram darwinistas sociais (WEINSTEIN, 2012, s. n.; LEONARD, 2009, p. 37-51; ZWOLINSKI, 2013, s. n.; ZWOLINSKI, 2011, s. n.). Quando você lê os textos deles na fonte, você descobre que Herbert Spencer era feminista (SPENCER, 1884, p. 289-291; SPENCER, 1885, p. 750) e que ele acreditava que a forma superior da sociedade industrial seria um sistema de cooperativas de trabalhadores e não o trabalho assalariado (SPENCER apud LONG, 2007, s. n.), e que William Graham Sumner era um ferrenho crítico da plutocracia (SUMNER, 1913, s. n.; SUMNER, 1876, p. 89-94) e que via o trabalhador pobre comum como “o homem (injustamente) esquecido“ (SUMNER, 1883, p. 56-60). Aliás, será que foi uma ‘afortunada’ coincidência histórica que tenha sido um historiador marxista (LEONARD, 2009, p. 37-51) a criar e difundir essa má interpretação de Spencer e de Sumner, a difamá-los perante o público? Segundo, explicar algo por meio da alegação de que “foi culpa do capitalismo” não é uma explicação real. Capitalismo, ou capitalismo liberal, por si só é um termo ambíguo e confuso. Sei que os marxistas têm uma compreensão histórica desse conceito, mas eles têm uma tendência de usar termos como “capitalismo” como panacéias explicativas que não explicam nada de fato. Terceiro, o Brian Leiter, que eu venho mencionando repetidamente aqui, gosta do pensamento Karl Marx. Ele até fala que o capitalismo enriquece os ricos e empobrece os pobres em uma entrevista (LEITER, 2011, s. n.). Penso que ele está fazendo uma afirmação que vai contra todo o peso da evidência em prol de (algumas formas de) economias de mercado, e que inclusive um dos motivos dele cometer esse erro imenso é não aceitar a economia como ciência, mas ainda assim não diria que ele não é um naturalista. Amazônia em Foco. Castanhal v.3, n. 1, p. 5-21, jan/jun., 2014.

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Quarto, é um erro achar que a biologia evolucionária (ou o naturalismo pautado nela) muda com os ventos da política partidária. Temos de tomar cuidado quando apontamos o erro de cientistas como resultado de ideologia, e não erros científicos, como James Buchanan (2011, p. 1-2) bem alertou. Pensar a análise da evolução de instintos sociais antes da criatividade e originalidade científicas surpreendentes de personalidades como W. D. Hamilton e Robert L. Trivers (este último inclusive criando a hipótese da self-deception ao prefaciar [!] o “O Gene Egoísta” de Richard Dawkins) e do trabalho sistematizador monumental de Edward O. Wilson em “Sociobiology“, em meados do século XX, é ver o quão a disciplina ainda estava despreparada antes disso. Não será possível abordar isso com mais detalhes aqui, mas acreditar que o rigor científico desses tipos de tentativa de explicação não mudou após o trabalho dessas pessoas, ou que ao contrário a mudança ocorreu porque o neoliberalismo queria colocar o egoísmo no centro de tudo, é atestar desconhecimento acerca da ciência biológica. Aliás, a sociobiologia sofreu intensa resistência, como até hoje, principalmente por motivos políticos. Uma campanha de difamação similar àquela contrária ao Spencer e ao Sumner foi voltada contra a sociobiologia, com atores políticos bastante similares, como você pode ver o relato de Steven Pinker (2003, 157-165). Parece-me incrível a disposição de rebater ciência com não ciência, explicações científicas com tabus políticos, para defender o Modelo Padrão das Ciências Sociais e o dualismo metodológico. Quinto, eu entendo a postura marxista defensiva em relação ao naturalismo. Afinal, a evidência explícita na economia neoclássica aponta que a economia de mercado é eficiente e que, em geral, os mercados funcionam bem na microeconomia, e que o crescimento econômico via uma economia mais livre tira as pessoas da pobreza. A controvérsia mesmo reside quanto à intervenção do Estado no campo dos fenômenos em que o mercado não é tão eficiente (bens públicos, externalidades, etc.) e da macroeconomia. E muitos economistas que aceitam isso que falei estão longe de serem adeptos de um livre mercado tão irrestrito assim; vide Amartya Sen (2001, p. 41) e Paul Krugman (2011, p.13-14), para exemplos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, é possível perceber que as principais objeções ao naturalismo em filosofia giram em torno da ideia de que, na verdade, o naturalismo é apenas um paradigma, tão apriorista quanto os outros. Entretanto, o que distingue o naturalismo das demais correntes

filosóficas é seu anti-fundacionalismo, e sua adesão à ciência sustenta-se em razões pragmáticas. O pragmatismo impede a incomensurabilidade. Apresentei duas formas pela qual a “naturalização da ética” pode ocorrer, e, com isso, foi possível responder à objeção de que haveria um espaço normativo que não está sujeito a nenhum controle empírico. Os próprios enunciados éticos precisam fazer diferença no mundo real, considerada a evolução, e normas éticas podem ser avaliadas conforme seu sucesso pragmático em alcançar o que é bom para seres como nós. É corrente considerar que a filosofia, de uma perspectiva naturalista, como o ramo mais abstrato e reflexivo das ciências. Será que, no futuro, conheceremos a ética normativa como o ramo mais abstrato e reflexivo da ecologia humana, considerada a funcionalidade evolucionária da moralidade? REFERÊCIAS BUCHANAN, James. Ideology or error: economists and the great recession. 2011. Disponível em: Acesso em: 04 Jan. 2014.

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