A Gestalttheorie e a Fenomenologia de Edmund Husserl: uma Investigação de seus Antecedentes Intelectuais Comuns e de suas Relações Teóricas e Metodológicas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

A GESTALTTHEORIE E A FENOMENOLOGIA DE EDMUND HUSSERL: UMA INVESTIGAÇÃO DE SEUS ANTECEDENTES INTELECTUAIS COMUNS E DE SUAS RELAÇÕES METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS

FLÁVIO VIEIRA CURVELLO

Rio de Janeiro Fevereiro / 2014

A GESTALTTHEORIE E A FENOMENOLOGIA DE EDMUND HUSSERL: UMA INVESTIGAÇÃO DE SEUS ANTECEDENTES INTELECTUAIS COMUNS E DE SUAS RELAÇÕES METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS

FLÁVIO VIEIRA CURVELLO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira

Rio de Janeiro Fevereiro / 2014 2

CURVELLO, Flávio Vieira. Título / Flávio Vieira Curvello: Rio de Janeiro: UFRJ / IP, 2014. A Gestalttheorie e a fenomenologia de Edmund Husserl: uma investigação acerca de seus antecedentes intelectuais comuns e suas relações metodológicas e conceituais. 400 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia ) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2014. Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira 1. Gestaltismo 2. Fenomenologia 3. História da Psicologia 4. Psicologia da Percepção I. Arthur Arruda Leal Ferreira (Orientador). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. CDD:. 3

À memória de José de Alencar Fonseca Curvello. 4

Agradecimentos: Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), pela bolsa de mestrado concedida ao meu primeiro ano de estudos, e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pela bolsa de excelência acadêmica concedida ao meu segundo ano de estudos. Sem ambos os suportes, esta dissertação não teria sido possível. Ao meu orientador Arthur Arruda Leal Ferreira, pela profunda confiança em meu trabalho – muitas vezes maior do que a minha própria – e pela imensa liberdade com que me permitiu pensá-lo e executá-lo, até os últimos dias de sua escrita. A Ricardo Jardim de Andrade, pela co-orientação de meu estudo monográfico, o qual me ofereceu o impulso para a realização desta dissertação. Ao professor Fernando Rodrigues, por participar de minha banca e por todo o auxílio prestado a este estudo após a sua qualificação, sobretudo pela cuidadosa revisão de muitas das traduções do alemão aqui presentes. Ao professor Dario Teixeira Filho, por participar de minha banca, pelo interesse demonstrado na leitura deste trabalho e pelas observações críticas valiosas. Ao professor Saulo de Freitas Araújo, por participar de minha banca de qualificação e exigir esforços para a unificação deste trabalho que, sem as suas indicações, não teriam ocorrido. A Marcos Antonio da Silva Filho, meu preceptor no alemão, cuja postura intelectual – forte, precisa e obstinada – em muito me influenciou durante nosso curto contato e em muito influencia ainda agora. A Ethel Rocha, pelos cursos rigorosos e pela profunda marca deixada em minha formação. À equipe do Baukurs, pelo oferecimento das condições adequadas ao meu ingresso na instituição, cuja importância para o desenvolvimento desta dissertação e para a minha formação intelectual é de grande monta. A Ana Arcos, secretária do PPGP, cuja atenção e eficiência tornaram imensamente mais leve a minha passagem pelo programa. Aos amigos do interior: Rennê Duarte, Marco Antônio II, Aldamir Rezende, Plínio Vieira, Rodrigo Arimori, Arthur Barcellos, Eduardo Fettermann, Aureliano Angra, Marlon Garcia, Allan Gomes, Lauro Bastos, Monyque Gomes. Aos amigos do Rio de Janeiro e aos demais colegas que contribuíram para o meu percurso nestes dois anos: Bernardo Souza, Flávia Lana, Felipe Hautequestt, Rômulo Ballestê, André Vieira, Filipe Carijó, Heitor Victor, Antonio Carlos de Oliveira.

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A Sônia Coutinho e João Marcos Fonseca Pereira, sem os quais meu ingresso na academia e a minha opção pela vida intelectual não teriam sido possíveis. A Rehan Pra Baldi, Rosângela Cassol, Rosana Cavalcante e William Freitas, pela imensa generosidade e constante apoio. A Joana Santos Pra Baldi, por todo o afeto, dedicação e companheirismo sem iguais.

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Resumo: Esta dissertação tem por interesse estudar as relações teóricas e metodológicas entre a fenomenologia de Edmund Husserl e a Gestalttheorie, tal como proposta por Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka, os principais representantes da chamada Escola de Berlim. Na literatura secundária – seja esta a historiografia tradicional da psicologia, certas obras filosóficas já clássicas ou pesquisas mais recentes em ambas as áreas – encontramos, em geral, a afirmação de uma influência direta do pensamento husserliano sobre as investigações da psicologia berlinense. Mas, quando nos dedicamos ao estudo das obras envolvidas, à literatura primária oferecida por ambas as escolas, encontramos grande dificuldade em afirmar tal proximidade. Para clarificar a natureza desta relação, nosso percurso será o de expor: (1) alguns aspectos relevantes do cenário intelectual em que tiveram origem tanto a fenomenologia quanto o gestaltismo; (2) as propostas gerais de cada uma das escolas acerca de seu método e de sua compreensão da experiência; (3) os critérios gerais, calçados em literatura primária, pelos quais a relação entre ambas pode ser efetivamente pensada.

Palavras-chave: gestaltismo; fenomenologia; história da psicologia; psicologia da percepção.

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Abstract: This dissertation aims at studying the theoretical and methodological relations between Edmund Husserl’s phenomenology and Gestalt psychology, as proposed by Max Wertheimer, Wolfgang Köhler and Kurt Koffka, the main figures in the so-called Berlin School. Among secondary sources – the traditional historiography of psychology, certain classic philosophical works or more recent researches in both areas – we generally find the assertion of a direct influence from the husserlian thought over the investigations of the berliner psychology. But, when we attempt to study the works considered there, the primary sources offered by both schools, we find it very hard to ascertain such a proximity. In order to clarify the nature of this relationship, our path will be that of exposing: (1) some relevant aspects of the intellectual scene in which phenomenology as well as Gestalt psychology have been originated; (2) the general proposals from each school concerning their methods and their comprehension of experience; (3) the general criteria based on primary sources through which the relations between both schools can be effectively thought.

Key words: Gestalt psychology; phenomenology; history of psychology; psychology of perception.

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Sumário: Introdução.......................................................................................................................... 15 Apresentação do problema.................................................................................................. 15 A possibilidade de um estudo histórico............................................................................... 21 Delimitação da investigação e critérios de seleção de fontes bibliográficas....................... 25 Algumas observações acerca das traduções........................................................................ 29 Capítulo 1 - O estudo experimental da consciência........................................................31 1.1.

A teoria das energias sensoriais específicas de Johannes Müller............................ 32

1.1.1. O conceito de sensação e o afastamento moderado do realismo............................. 32 1.1.2. As leis gerais da sensibilidade................................................................................. 35 1.1.3. Do exame da sensibilidade à psicologia.................................................................. 45 1.2.

A teoria das inferências inconscientes de Hermann von Helmholtz....................... 48

1.2.1. Estimulação anômala e erro sensível....................................................................... 49 1.2.2. A natureza da constituição inconsciente de objetos................................................ 52 1.2.3. Os modos da percepção e a sua estruturação silogística..........................................58 1.2.4. A introspecção experimental................................................................................... 62 1.3.

A psicofísica de Gustav Fechner............................................................................. 65

1.3.1. O recurso à mensuração da sensibilidade em Ernst Weber..................................... 66 1.3.2. A formalização da lei de Weber e o cálculo de logaritmos..................................... 68 1.3.3. A tese do panpsiquismo........................................................................................... 73 1.4.

Considerações gerais sobre o quadro teorético da psicologia experimental............74

1.5.

O elementarismo recrudescido de Ernst Mach........................................................ 78

1.5.1. As pretensões anti-metafísicas................................................................................. 79 1.5.2. O conceito de substância e a estruturação das idéias de corpo e eu....................... 81 1.5.3. O problema da transcendência e os complexos elementares................................... 85 1.5.4. A solução monista: elemento como sensação e propriedade................................... 88 1.5.5. A economia psíquica e a experiência de Gestalten................................................. 92 9

1.6.

Conclusão................................................................................................................ 95

Capítulo 2 - O estudo descritivo da consciência............................................................. 97 2.1.

A psicologia do ato de Franz Brentano....................................................................98

2.1.1. A evicção de pressupostos filosóficos e científicos e a unidade da psicologia....... 99 2.1.2. O recurso aos fenômenos e a relevância cognitiva e prática da psicologia........... 102 2.1.3. Empirismo intuitivo e percepção interna............................................................... 107 2.1.4. A distinção inicial entre fenômenos físicos e psíquicos........................................ 110 2.1.5. A inexistência intencional e as distinções ulteriores............................................. 113 2.1.6. A auto-compreensão da consciência e os tipos fundamentais de ato.................... 120 2.1.7. A distinção entre psicologia genética e descritiva................................................. 122 2.1.8. A relevância da psicologia descritiva e a experiência de Gestalten...................... 126 2.2.

As Gestaltqualitäten de Christian von Ehrenfels.................................................. 129

2.2.1. A delimitação do problema da apreensão das Gestalten....................................... 130 2.2.2. As condições de estruturação das Gestalten.......................................................... 134 2.2.3. A demonstração da existência das Gestalten.........................................................139 2.2.4. A difusão das idéias de Ehrenfels nas escolas de Graz e Leipzig......................... 143 2.3.

A psicologia das funções e a fenomenologia experimental de Carl Stumpf......... 144

2.3.1. Mereologia nas representações de espaço e som................................................... 146 2.3.2. Aparecimento, relação e função psíquica.............................................................. 151 2.3.3. O vínculo entre aparecimento e função, percepção e formações psíquicas.......... 154 2.3.4. A fenomenologia experimental............................................................................. 160 2.4.

Conclusão.............................................................................................................. 164

Capítulo 3 - A Gestalttheorie da Escola de Berlim........................................................167 3.1.

As investigações antropológicas de Max Wertheimer.......................................... 169

3.1.1. Pensamento quantiativo não-formal, grupos naturais e estruturas........................ 170 3.1.2. Tipo, outras estruturas numéricas e operações com estruturas.............................. 174 10

3.1.3. O valor prioritário do todo sobre as partes............................................................ 177 3.2.

A percepção visual do movimento........................................................................ 178

3.2.1. Os três estágios fundamentais e a descrição do psiquicamente dado.................... 180 3.2.2. As variações do movimento visto..........................................................................183 3.2.3. A hipótese do curto-circuito e das funções transversais........................................ 185 3.3.

Os fundamentos da teoria da percepção................................................................ 188

3.3.1. A crítica às hipóteses do mosaico, da associação e da constância....................... 188 3.3.2. Um novo conceito de Gestalt................................................................................ 195 3.3.3. Exemplos de fenômenos perceptuais.................................................................... 199 3.4.

Os fatores da Gestalt............................................................................................. 202

3.4.1. Os fatores de proximidade e igualdade................................................................. 204 3.4.2. Os fatores de destino comum, boa forma e orientação objetiva........................... 210 3.4.3. Os fatores de boa continuidade, closura e boa curva.............................................216 3.4.4. O fator do hábito.................................................................................................... 220 3.4.5. O fator de figura e fundo....................................................................................... 223 3.5.

A fenomenologia gestaltista.................................................................................. 227

3.5.1. As contribuições de Koffka e Köhler.................................................................... 229 3.5.2. As contribuições de Metzger e Katz...................................................................... 236 3.6.

Desenvolvimentos ulteriores do gestaltismo......................................................... 241

3.6.1. O problema dos valores......................................................................................... 242 3.6.2. As críticas a Husserl.............................................................................................. 244 3.6.3. A insuficiência da fenomenologia......................................................................... 252 3.6.3. A fisiologia gestaltista e o isomorfismo psicofísico.............................................. 255 3.6.3. As teses físicas e o naturalismo............................................................................. 261 3.7.

Conclusão.............................................................................................................. 263

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Capítulo 4 - A fenomenologia de Edmund Husserl...................................................... 265 4.1.

O problema do psicologismo................................................................................. 267

4.1.1. A lógica como doutrina das ciências e a definição de psicologismo.................... 268 4.1.2. Alguns elementos relevantes de sua refutação...................................................... 272 4.2.

A fenomenologia enquanto psicologia descritiva..................................................275

4.2.1. Características fundamentais do método............................................................... 276 4.2.2. As relações entre descrição e teoria psicológica................................................... 281 4.2.3. A mereologia fenomenológica.............................................................................. 283 4.2.4. O conceito de vivência e as vivências intencionais e reais................................... 287 4.2.5. A polissemia do conceito psicológico de consciência e a intencionalidade.......... 295 4.3.

As técnicas descritivas da fenomenologia............................................................. 302

4.3.1. A distinção entre fato e essência e a redução eidética........................................... 303 4.3.2. As atitudes natural e fenomenológica e a redução transcendental........................ 309 4.3.3. Algumas considerações acerca do idealismo fenomenológico............................. 317 4.4.

A estrutura da percepção....................................................................................... 326

4.4.1. A percepção transcendente.................................................................................... 326 4.4.2. A percepção imanente........................................................................................... 332 4.4.3. Algumas considerações acerca da relação da percepção com outros atos............ 335 4.5.

Conclusão.............................................................................................................. 335

Capítulo 5 - Sobre a relação entre a Gestalttheorie e a fenomenologia de Husserl... 337 5.1.

Exame geral da relação.......................................................................................... 337

5.1.1. Posição perante a ciência positiva......................................................................... 337 5.1.2. A autonomia da descrição e as conseqüências de sua radicalização..................... 340 5.1.3. Recursos empregados na descrição....................................................................... 342 5.1.4. Compreensão da estrutura da consciência............................................................. 343 5.1.5. Relevância geral da percepção e seu caráter diferencial....................................... 349

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5.1.6. Ingenuidade e concretude da percepção................................................................ 351 5.1.7. A função da mereologia.........................................................................................353 5.1.8. Reflexões de súmula.............................................................................................. 356

5.2.

Problemas ulteriores.............................................................................................. 358

5.2.1. A possível influência da fenomenologia experimental de Carl Stumpf................ 358 5.2.2. Comentários finais................................................................................................. 362

Apêndice: citações originais da literatura primária.................................................... 365 Referências bibliográficas...............................................................................................387

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In dem bestimmten Zusammen, der bestimmten Getrenntheit sehe ich es; und in welcher Art des Zusammen, der Getrenntheit ich es sehe, das steht nicht einfach in meinem Belieb; ich kann durchaus nicht etwa nach Belieben jede irgend andere gewünschte Art der Zusammengefatheit einfach realisieren. Max Wertheimer, 1923.

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Introdução Apresentação do problema: O problema ao qual este trabalho se dedica é o de analisar a relação entre a psicologia da Gestalt, tal como proposta pela Escola de Berlim, e a fenomenologia de Edmund Husserl, amplamente defendida na literatura secundária sobre ambas as escolas como uma relação de proximidade e compatibilidade geral, ou ainda, uma relação de influência direta do pensamento husserliano sobre o gestaltista, mas que é consideravelmente difícil de se estabelecer pela análise da literatura primária. O desconforto geral que motiva nosso trabalho pode ser resumido na dificuldade de se encontrar nos textos gestaltistas e husserlianos a proximidade alardeada pelos comentadores, uma vez que ambos os movimentos, apesar de oriundos do mesmo país e, grosso modo, da mesma época, fazem pouquíssimas referências um ao outro em suas grandes obras e, quando as fazem, elas parecem ser quase sempre marginais e não ocupar um espaço de considerável importância no contexto em que surgem1. Todas as argumentações decisivas de ambas as escolas ocorrem sem menções do tipo e não há nenhum indício preciso de que haja filiação intelectual de uma a outra. É perfeitamente possível que suas propostas e a evolução de seus respectivos pensamentos sejam acompanhados e compreendidos sem que seja preciso presumir qualquer espécie de comunicação entre elas. Não obstante este grande silêncio, não nos faltam referências à sua proximidade, estejam estas referências na historiografia norte-americana da psicologia, representada por Edwin Boring e Richard Herrnstein; nas narrativas apresentadas por trabalhos nacionais, como os de Antonio Gomes Penna e Nilton Campos; em alguns registros esparsos em obras

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No que se refere às obras do gestaltismo por nós consultadas, podemos encontrar basicamente a afirmação de Koffka segundo a qual as propostas de sua escola não configuram um psicologismo, presente nos Principles of Gestalt Psychology (1935) e a crítica de Köhler a Husserl por ele se manter em uma perspectiva filosófica que situa a necessidade fora do âmbito dos fatos, presente em The Place of Value in a World of Facts (1938). Nenhum diálogo surge nos livros Gestalt Psychology (1947) e Dynamics in Psychology (1940), de Köhler; no extenso artigo Perception: introduction to Gestalttheorie (1922), de Koffka; e nos diversos textos dispersos de Wertheimer. No que se refere a Husserl, as menções mais freqüentes ao gestaltismo se dirigem à Escola de Graz, como em diversas passagens das Logische Untersuchungen (1900-1901), nas Amsterdam Vorträge (1928) e nas Pariser Vorträge (1929), ou à Escola de Leipzig, como em Die Krisis der Philosophie und europäischen Menschentum (1935). Algumas destas referências receberão tratamento sistemático em nosso estudo, de modo que é apropriado mantê-las apenas como simples menções aqui.

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filosóficas como as de Jean Piaget, André Dartigues e Jean-François Lyotard; ou mesmo na produção intelectual mais recente, como em Victor Rosenthall, Yves-Marie Visetti, Olivier Gapenne e Katia Rovira – todas parecem assentar em um ponto comum: a afirmação de algum tipo de influência intelectual da filosofia de Husserl no trabalho de Wertheimer e seus companheiros, seja esta influência da ordem do método – o gestaltismo devendo, em alguma medida, à fenomenologia sua ênfase na descrição da experiência imediata – ou dos conceitos – a idéia de uma referência necessária do sujeito a um objeto; a relevância conferida pelos dois movimentos à percepção; as conclusões a que ambos chegam em sua descrição da experiência; etc. Consideremos algumas destas passagens para termos uma melhor apreensão do que afirmamos aqui. Em A Source Book in the History of Psychology, destinado a compilar e comentar brevemente uma grande quantidade de textos considerados relevantes para a compreensão da psicologia e seus problemas fundamentais, Herrnstein e Boring (1971) escrevem uma pequena introdução ao fragmento de texto intitulado The Phi-phenomenon as an example of nativism in perception, extraído dos Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung (1912), de Max Wertheimer. Nesta introdução, os autores afirmam que na época de tal trabalho: [...] a fenomenologia estava no ar, a fenomenologia de Husserl; e Külpe conhecia Husserl na época em que Wertheimer estava obtendo seu doutoramento com o primeiro. Stumpf, em Berlim, estava adotando o tipo de fenomenologia de Husserl e durante algum tempo Wertheimer esteve em Berlim. A nova idéia de Wertheimer, segundo a qual o movimento é percebido apenas em si mesmo, até quando o deslocamento de seu estímulo é discreto e não contínuo, é o início de sua fenomenologia e um equivalente moderno do nativismo, que se limita à observação e não procura causas. (p. 199 e 200)

Nesta passagem – a despeito do quão problemática possa ser, pois, como veremos na seção especialmente dedicada ao experimento, há sim procura por estabelecer com clareza suas causas físicas – encontramos não apenas a afirmação de uma influência generalizada de Husserl no cenário em que Wertheimer se formou, mas, sobretudo, a idéia de que uma das primeiras evidências experimentais apresentadas pelo gestaltismo para se opor ao paradigma clássico em psicologia, o chamado fenômeno , padeceria da mesma influência. Figuras próximas a Wertheimer, como Carl Stumpf e Oswald Külpe, as quais também foram próximas a Husserl, surgem como o ‘elo’ que justificaria, na perspectiva dos

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autores, a projeção do pensamento do filósofo sobre aquele do psicólogo. Argumentação similar nos é oferecida em um artigo somente da autoria de Boring (1953), intitulado A history of introspection: Em 1912 [ano de publicação dos Experimentelle Studien de Wertheimer], a noção de fenomenologia estava no ar. Husserl empregou o termo para a descrição livre e sem pré-juízos da experiência [...] e Stumpf o tomou para si. Assim, Köhler e os outros psicólogos da Gestalt passaram sempre a falar dos dados da experiência direta como fenômenos, evitando todas as palavras associadas à introspecção clássica. Mais tarde esta observação fenomenológica se tornou uma técnica para afastar a introspecção. (p. 177; acréscimo nosso)

Aqui já podemos ver com clareza que Boring estende a influência ao trabalho dos demais gestaltistas quando diz que a noção de fenômeno e certo modo de analisá-lo – a assim chamada ‘observação fenomenológica’ –, ambos presumidamente advindos do pensamento de Husserl, foram incorporados por esta psicologia em suas investigações de um modo geral, consistindo na via mesma pela qual ela se afastava da perspectiva clássica e concebia a sua crítica. A fenomenologia seria um recurso tanto para evitar os conceitos da psicologia precedente, quanto para desarticular o seu método introspectivo. Um exame mais atento e conceitualmente sustentado destes possíveis fatos, contudo, não é oferecido pelo historiador. Outra posição que assume este caráter histórico, mas já sugere alguns elementos conceituais importantes para a possível influência fenomenológica no gestaltismo, é aquela apresentada por Piaget (2003) em sua obra Le Structuralisme (1968). Nas palavras do autor: A teoria da forma ou Gestalt se desenvolveu na ambiência da fenomenologia, mas não reteve dela senão a noção de uma interação fundamental entre o sujeito e o objeto, e, resolutamente, engajou-se na direção naturalista, devido à formação de físico que Köhler havia recebido e ao papel que representaram, para ele e outros, os modelos de ‘campo’. (p. 50)

De acordo com isto, haveria compatibilidade entre a

idéia geral de

‘intencionalidade’ – ou, em formulação simples e provisória, a correlação fundamental entre sujeito e objeto – e o tratamento dispensado à experiência imediata pelos gestaltistas, ainda que Piaget não indique o que neste tratamento poderia oferecer tal ponto de articulação. Além disto, ao ressaltar que a psicologia em questão engajou-se em uma

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direção naturalista, parece não enxergar a mesma compatibilidade metodológica que Boring afirmava nos excertos acima recuperados. Entre as produções mais recentes, podemos indicar o artigo Gestalt Psychologie et cognition sans langage: actualité d’une figure historique, de Gapenne e Rovira (1999), como outra fonte que nos oferece informações similares. Não apenas reitera a afirmação de uma relação estreita entre gestaltismo e fenomenologia, como privilegia também, da mesma forma que Piaget, o conceito de intencionalidade como o fio condutor desta relação: [...] de forma alguma, este trio [Wertheimer, Koffka e Köhler] ignorava que a teoria que eles estavam prestes a desenvolver era claramente o ápice de um percurso filosófico já antigo (após Leibniz, em particular) e sempre vivo à sua época (notavelmente nas contribuições contemporâneas de Husserl) concernente à questão da intencionalidade. (p. 234; acréscimo nosso)

Pelo que nos consta, no entanto, há uma diferença sensível de ênfase na maneira como os autores afirmam aquela perspectiva, pois, de acordo com eles, não se trata apenas de entender que o gestaltismo é uma ‘continuidade’ de um projeto filosófico mais extenso, o qual incluía o pensamento de Husserl, mas também que ele era algo como a sua ‘expressão mais elevada’. O que se diz aqui é, sem rodeios, que o gestaltismo herda o problema da intencionalidade e o leva a um outro patamar de relevância – afirmação consideravelmente mais forte e pretensiosa do que as anteriores. Ainda o mesmo problema é considerado de maneira um pouco mais detida por Lyotard (2008) em La Phénoménologie (1954). Ao dizer que ambas as escolas voltam-se ao estudo da experiência buscando encontrar o aspecto estrutural que a determina, o âmbito primordial que possibilita a gênese de cada experiência definida, o filósofo diz: [...] é essencial que esta originalidade tenha sido procurada, quer pelos psicólogos da forma, quer pelos fenomenólogos, não apenas no que diz respeito ao organismo fisiológico, mas no interior da própria relação. Não se trata de buscar a sua explicação num dos pólos da relação, pois, afinal, é a própria relação que confere sentido aos dois pólos que une. Encontramos novamente, inerente ao conceito de Gestalt, a noção central da fenomenologia: a intencionalidade. (p. 76)

Ao afirmar que as estruturas fundamentais da experiência postuladas por cada uma das escolas são compatíveis – i.e., a intencionalidade, ou a correlação necessária entre o objeto aparecente e o sujeito para o qual este aparece, no caso da fenomenologia, e o conceito de Gestalt, ou de que a experiência é um todo integrado e significativo, no caso do

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gestaltismo –, Lyotard parece dar um passo adiante na constatação de Piaget, Gapenne e Rovira, apontando com maior especificidade em que sentido as teorias podem ser ditas próximas. Ele não torna esta aproximação um tema para maiores discussões, no entanto, oferecendo poucos recursos para que a pensemos. Também entre publicações mais recentes que endossam a idéia de que a intencionalidade é o principal ponto de aproximação entre as escolas, temos o artigo de Rosenthal e Visetti (1999), Sens et Temps de la Gestalt. Os autores afirmam explicitamente a influência husserliana no gestaltismo, mas introduzem ressalvas quanto à compatibilidade de suas propostas metodológicas: Da fenomenologia de Husserl, que certamente a influenciou, a escola de Berlim reteve, a seu modo, a idéia de uma análise intencional da experiência, que neutraliza em alguma medida a oposição entre interior e exterior, favorecendo uma abertura constitutiva da consciência a objetos que não são mais que correlatos de sua própria atividade (mesmo que, em sua abordagem naturalista desta abertura, os gestaltistas tendessem a reduzi-la a uma organização de formas intrinsecamente dotadas de valor). (p. 155)

As afirmações de ambos os autores são bastante ousadas, pois eles afirmam não apenas que existiria no gestaltismo algo como uma análise intencional, mas também que a sua compreensão do objeto de experiência o tornaria basicamente um correlato da consciência, o fruto de um processo constitutivo. De acordo com esta perspectiva, características centrais da compreensão husserliana da experiência estariam presentes de algum modo no gestaltismo, ainda que, por força de uma tendência naturalista, eles tenham dado a elas um outro direcionamento. Rosenthall e Visetti parecem expor com um número ligeiramente maior de detalhes o que as fontes anteriores apenas citam. No que diz respeito a outras aproximações teóricas, André Dartigues (1972/2008), em Qu’est-ce que la Phénoménologie?, dá atenção não tanto ao conceito de intencionalidade como ponto privilegiado de diálogo entre as escolas, mas sim ao conceito de ‘essência’. Quando o gestaltista avalia as leis de configuração do campo fenomenal, ele estaria se dedicando a uma atividade que corresponderia à do fenomenólogo quando este se pergunta pela estrutura fundamental do fenômeno perceptivo, i.e., pelos caracteres essenciais, ou eidéticos, a partir dos quais toda manifestação fática possível do fenômeno se dá. Para Dartigues, portanto, a Gestalt seria mais próxima da essência, ou eidos: “Se a essência pode ser designada como o invariante que persiste a despeito de todas as variações

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a que a imaginação submete o exemplo que serve de modelo, não será uma aberração aproximar a noção de essência da de forma [...]” (p. 38) Além disto, o autor afirma certa proximidade das tarefas descritivas de ambas as escolas, mas aponta também que o conceito de ‘isomorfismo psicofísico’ e a gradativa conversão do gestaltismo em uma ‘filosofia da natureza’ teriam colocado um limite severo àquelas aproximações. No âmbito do trabalho nacional, basicamente a mesma idéia é apresentada por Nilton Campos (1945), em sua tese O Método Fenomenológico na Psicologia. Por fim, também entre as contribuições brasileiras, duas aproximações conceituais diferentes são oferecidas por Antonio Gomes Penna (2001) em sua Introdução à Psicologia Fenomenológica. Uma delas consiste em dizer que a distinção fenomenológica entre ‘tema’ – o aspecto diretamente apreendido do objeto em uma experiência específica – e ‘horizonte’ – as formas potenciais pelas quais este mesmo objeto pode ser dado de outras maneiras – é análoga à distinção gestaltista entre ‘figura’ e ‘fundo’. Outra, mais detalhada, é apresentada em sua defesa da teoria gestaltista ante as críticas do movimento americano New Look in Perception. Segundo este, o gestaltismo negligenciaria as variáveis afetivas e motivacionais do fenômeno perceptivo, o que Penna busca justificar dizendo que ele se atém apenas ao essencial da percepção, operando segundo a redução eidética de Husserl: Ocorreu, sim, a aplicação da técnica de redução, que expressou a preocupação de se detectar o ‘eidos’ da própria atividade perceptiva. Cabe, ainda, assinalar que a relevância concedida pela teoria da Gestalt ao estudo da percepção decorreu rigorosamente da tese fenomenológica que atribui à consciência perceptiva a condição de forma suprema de manifestação da consciência. (p. 70)

Estes exemplos nos bastam para percebermos que as interpretações veiculadas pela literatura secundária são bastante díspares em suas afirmações sobre como a possível influência da fenomenologia no gestaltismo se deu, ainda que não tanto sobre se este evento realmente aconteceu. Como ponto de discordância, ressaltamos apenas a afirmação de Spiegelberg (1986) em sua obra Phenomenology in Psychology and Psychiatry, segundo a qual os gestaltistas possuíam pouco interesse em filosofia durante as primeiras décadas de seu trabalho, tendo começado a procurar maior instrução neste sentido apenas quando tiveram de se assentar nos Estados Unidos em função da Segunda Guerra Mundial, lá travando contato com muitos fenomenólogos expatriados pelo mesmo motivo. Uma grande

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quantidade de estudos fundamentais para a escola já havia sido realizada nesta época; suas bases empíricas já estavam, em ampla medida, construídas: Pode ser importante que se faça uma observação geral aqui, uma vez que ela afeta toda a história da fenomenologia após Hitler. Poder-se-ia chamá-la de o ‘efeito de fusão’ do exílio nas psicologias emigradas. No novo cenário, diferenças entre escolas tais como a psicologia da Gestalt e a fenomenologia, por exemplo, se tornaram menos importantes e seus elementos comuns, e, de fato, sua natureza complementar, tornaram-se claros. Assim, veremos os gestaltistas se referindo à fenomenologia como seu método básico e mesmo fenomenólogos como Aron Gurwitsch adotando princípios gestaltistas em sua teoria da percepção. A distância e a rivalidade prévias cederam espaço a uma atitude cordial de mútuo suporte. (p. 39)

Diante deste quadro, nosso propósito maior, antes mesmo do delineamento destas discussões entre comentadores, é compreender a partir do recurso às obras dos próprios pensadores envolvidos, à literatura primária, como as relações entre gestaltismo e fenomenologia podem ser estabelecidas e pensadas.

A possibilidade de um estudo histórico: A via pela qual escolhemos examinar o problema da relação entre gestaltismo e fenomenologia é, em alguns de seus aspectos essenciais, histórica. Ainda que o nosso interesse central incida sobre as relações metodológicas e conceituais entre as duas escolas, a maneira como introduzimos as questões mesmas de método e conceito segue uma ordenação histórica semi-cronológica, a qual nos guiará, inicialmente, por um exame das concepções científico-naturais e descritivas da consciência e, posteriormente, pelo exame direto da Gestalttheorie da Escola de Berlim e da fenomenologia de Edmund Husserl. A escolha deste percurso se deve ao fato de que, em nossos estudos antecedentes, bem como nos estudos diretamente ligados à elaboração do projeto para a presente pesquisa, encontramos uma grande quantidade de fontes que atestavam a relevância de alguns antecedentes intelectuais comuns para o surgimento e o desenvolvimento de ambas as escolas. Com efeito, encontramos gestaltismo e fenomenologia como duas importantes expressões do pensamento do século XX que estiveram diretamente às voltas com os problemas da investigação genética e descritiva do psiquismo, tendo, em linhas gerais, repulsa por um mesmo conjunto de doutrinas experimentais – seja pelo seu conteúdo, como no caso do gestaltismo, seja pelo simples fato de serem experimentais, como no caso da

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fenomenologia – e tendo franco apoio em uma abordagem mais compreensiva da experiência para desenvolverem as suas próprias teses – seja no sentido de assumir esta abordagem como via para fortalecer um estudo positivo, como no gestaltismo, seja no sentido de assumi-la como inspiração para a fundação de uma ciência nova e autônoma, como na fenomenologia. Por razões diferentes e com interesses diferentes, portanto, ambas se afastam de um mesmo conjunto de propostas, e o fazem por meio do apoio em outro conjunto que é também o mesmo para ambas. Sendo o nosso propósito compreender as relações entre as duas escolas, não pôde nos parecer indiferente tamanha semelhança estrutural em seus movimentos de fundação e consolidação, nem mesmo o fato de seus interlocutores, em linhas gerais, coincidirem ou serem pelo menos aparentados. É precisamente por valorizarmos esta peculiaridade por elas compartilhada, que nos decidimos por explorar o nosso problema por meio de um recuo histórico. Daí a estrutura deste trabalho consistir em um primeiro capítulo para ‘O estudo experimental da consciência’, um segundo para ‘O estudo descritivo da experiência’, um terceiro para ‘A Gestalttheorie da Escola de Berlim’, um quarto para ‘A fenomenologia de Edmund Husserl’ e um quinto ‘Sobre a relação entre Gestalttheorie e fenomenologia’, destinado à discussão de nossas conclusões parciais nos capítulos anteriores e à apresentação de uma conclusão geral para o nosso percurso. Vejamos, portanto, algumas das fontes que orientam esta nossa decisão. No que se refere ao gestaltismo, temos a afirmação de Katz (1948) em sua Gestaltpsychologie (1944), segundo a qual, pela origem sumamente negativa de suas teses, apresentadas como oposições frontais e possíveis superações das teses da psicologia experimental precedente, a Escola de Berlim não poderia ser efetivamente compreendida sem o recurso aos trabalhos daquela psicologia. Dificilmente o gestaltismo poderia ser explicado sem uma passagem pela psicologia atomista, assevera o autor (p. 9), no que estão de acordo uma série de outras introduções à escola às quais pudemos ter acesso, uma vez que não assumem outro ponto de partida (ASH, 2011; BORING, 1950; DOUCET, 1971; ECKARDT, 2010; ENGELMANN, 2002; GUILLAUME, 1966; HERRNSTEIN e BORING, 1971; LÜCK, 2009). Não será necessário nos fiarmos apenas na literatura secundária para comprovarmos o quão pertinente é esta maneira de colocar a coisas, pois o ataque à psicologia precedente se encontra diretamente registrado em diversas fontes da

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literatura primária, como poderemos ver em nosso terceiro capítulo. Textos introdutórios, como Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt I (1922), Perception: Introduction to Gestalttheorie (1922), Über Gestalttheorie (1924), Gestalt Psychology Today (1959), para não mencionarmos os grandes manuais escritos por seus representantes, partem diretamente desta crítica para indicar e delimitar o que o gestaltismo tem de próprio. Junto a isto, temos a habitual recondução do pensamento berlinense à psicologia descritiva tal como praticada pela Escola de Brentano, a qual não apenas introduziu um modo de se fazer psicologia que destoava do privilégio incontinente ao procedimento experimental, examinando a experiência a partir de si mesma, como também foi a escola na qual antecedentes intelectuais imediatamente relacionados ao gestaltismo berlinense se desenvolveram, como Christian von Ehrenfels, introdutor do conceito de Gestaltqualität na psicologia e na filosofia alemãs, e Carl Stumpf, fundador do Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim, no qual o gestaltismo surgiria, e professor de seus primeiros representantes. A relevância da psicologia descritiva brentaniana para o gestaltismo berlinense, dada a sua inteira obviedade, foi ressaltada por grande número de pesquisadores (BOUDEWIJNSE, 1999; CHISHOLM et al., 1995; FISETTE e FRÉCHETTE, 2007; HUEMER, 2007; JACQUETTE, 2004a e 2004b; MORAN, 2002; MULLIGAN e SMITH, 1988; SCHUHMANN, 2004; SIMONS, 1995; SMITH, 1988; SPIEGELBERG, 1994 e 1986). À diferença da relação entre gestaltismo e psicologia experimental, não encontramos aqui um número tão generoso de fontes na literatura primária que indiquem esta herança intelectual. Decerto existem referências ao conceito de Ehrenfels e à maneira como a Escola de Berlim o interpreta, bem como à relevância das teses e dos métodos descritivos de Stumpf entre os psicólogos precedentes, mas estas referências se encontram com menos freqüência e destaque na literatura primária. O que não as torna, decerto, menos relevantes. No que se refere à fenomenologia, a relevância da psicologia experimental para a compreensão de suas propostas é ressaltada por um grande número de pesquisadores que se dedicam a examinar os primeiros momentos do pensamento husserliano ou as relações gerais do método com o naturalismo em psicologia e filosofia (CERBONE, 2012; DARTIGUES, 1972/2008; FISETTE, 2009; MORAN, 2002; NIVELEAU, 2013;

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SPIEGELBERG, 1994 e 1986; TATARKIEWICZ, 1968; XIRAU, 1966)2. Com efeito, a compreensão da experiência como fenômeno natural a ser analisado e manipulado através de recursos laboratoriais, a ser reduzido a cadeias causais complexas que mostrem a origem dos fatos psíquicos em eventos não-psíquicos será, para Husserl, o exemplo por excelência de um procedimento que perde de vista o que a consciência tem de essencial. Para tal afirmação, há suficiente sustento em diversas obras de Husserl, em particular o primeiro volume das Logische Untersuchungen (1900-1901) e as seções das Ideen zu einer reinen Phänomenologie (1913) dedicadas ao afastamento da reflexão fenomenológica em relação a toda espécie de reflexão apoiada em realidades e em fatos. Compreender isto que aparece como ponto constante de repulsão, como exemplo preciso da deturpação da consciência por métodos e interesses explicativos que lhe são inteiramente exteriores, é de considerável utilidade para compreendermos as propostas divergentes. Por fim, acerca da relevância das relações entre a psicologia descritiva e a fenomenologia, não é preciso sequer que argumentemos ou citemos fontes, dado o caráter elementar desta afirmação. Qualquer texto que se refira ao início do pensamento de Husserl destina certo espaço a tais relações, mesmo que este espaço seja uma simples menção, e as possibilidades de atestarmos a relevância disto na literatura primária são extremamente amplas, posto que em diversas de suas obras fundamentais, Husserl está em estreito contato com teses psicológico-descritivas, tendo de se haver ao mesmo tempo com o valor teórico latente nas propostas brentanianas e os erros que diagnosticava junto a ele. Deste modo, torna-se suficientemente clara a estreita relação que ambas as escolas têm com o cenário experimental e descritivo em psicologia, bem como o fato de que, considerando mais atentamente as propostas de ambas as vertentes, em capítulos especificamente dedicados a elas, obtemos um ganho relevante em clareza quando nos couber apresentar as teses gestaltistas e fenomenológicas, bem como evitamos digressões mais extensas em meio a estas passagens. Nossa esperança, portanto, é a de que a opção 2

É digno de nota que a quinta destas referências advenha de um seminário recente, organizado entre 2012 e 2013 pelos Archives Husserl de Paris e coordenado por Charles-Edouard Niveleau e Michel Bitbol, o qual se intitulava Le naturalisme à la limite: perspective historique, épistémologique et experimentale sur les rapports entre phénoménologie et psychologie scientifique. Como denuncia o próprio título, o seminário por inteiro era consagrado ao exame das relações entre fenomenologia e psicologia científica, sendo possível encontrar no texto de sua apresentação, a afirmação de que a emergência da fenomenologia não pode ser compreendida sem referência à crise naturalista que marca a filosofia e a fundação da psicologia científica no século XIX (ARCHIVES HUSSERL, 2013).

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pelo percurso histórico fortaleça a nossa compreensão dos temas por virem, bem como nos poupe esforços de explicação em uma grande quantidade de momentos decisivos para pensarmos o nosso problema maior. Em nosso capítulo conclusivo, teremos condições de ver que algumas características da relação entre gestaltismo e fenomenologia se tornam mais claras e têm a sua extensão mais bem definida quando dispomos destes recursos.

Delimitação da investigação e critérios de seleção de fontes bibliográficas: Indicado o problema que nos move e o interesse em abordá-lo a partir do exame dos vínculos das escolas supracitadas com o cenário psicológico que as antecede, resta-nos delimitar melhor o recorte que faremos em um campo ainda tão abrangente de investigações e explicar os nossos critérios de seleção de fontes bibliográficas. A escolha das fontes como um todo está vinculada à decisão fundamental de limitarmos o escopo de nosso estudo à consideração dos três mais destacados representantes do gestaltismo berlinense, Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler, e às fases psicológicodescritiva e transcendental do pensamento de Edmund Husserl. Vejamos individualmente as razões para essa decisão. No que se refere ao gestaltismo, é importante ressaltar, como faz Guillaume (1966, p. X) que a idéia geral de uma tal psicologia foi sustentada e desenvolvida – em sentidos muitas vezes díspares – por certa quantidade de escolas e pesquisadores autônomos entre o fim do século XIX e o início do XX, de modo que a Escola de Berlim seja apenas uma perspectiva entre toda esta diversidade. É certo que ela se consolidou e se expandiu de uma forma tal, já em suas duas primeiras décadas de existência, que nenhum outro esforço que possa reivindicar para si o título de ‘gestaltista’ pode efetivamente ombreá-la em termos de influência e relevância para o quadro geral dos saberes científicos – não apenas a psicologia, vale salientar. Por conta desta disparidade entre o espaço conquistado pelos berlinenses e aquele reservado aos seus contendores, a maior parte das vezes em que ouvimos falar em gestaltismo, sem especificações maiores, temos uma referência àquela proposta e não às outras que poderiam igualmente ser designadas pelo termo. Ainda que algumas poucas idéias anteriores à Escola de Berlim façam parte do nosso estudo, ele será direcionado primariamente a ela, como a própria colocação do problema, no início desta introdução, deixa claro. Dada a grande quantidade de pesquisadores que nela foram se

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revelando ou que a ela foram sendo apensados ao longo dos anos, dada a quantidade de incursões de seu pensamento por áreas científicas e filosóficas as mais divergentes, decidimos restringir o nosso exame aos seus três representantes iniciais, àqueles que mais colaboraram para a sua consolidação e para a conquista de toda a relevância citada. Alguns dos outros pesquisadores gestaltistas de peso serão evocados apenas quando as suas contribuições forem úteis para considerarmos algum tópico que foi introduzido a partir das considerações de algum daqueles três. Por fim, como última especificação de nossa abordagem desta escola, atentaremos principalmente à sua psicologia da percepção, uma vez que é nesta área que a maior parte de seus estudos se desenvolveu e os seus principais conceitos, muitos posteriormente aplicados a outros fenômenos psíquicos ou extrapsíquicos, foram postulados. Deste modo, o nosso interesse é voltar ao cerne mesmo da Escola de Berlim, tomando por referências seus principais autores e as áreas mais relevantes de suas respectivas obras, de modo a lidarmos, basicamente, com fundamentos3. No que se refere à fenomenologia, decidimos enfocar o trabalho de Husserl por ser ele o pensador indicado nas citações que nos auxiliaram a identificar o problema ao qual nos voltamos – senão nominalmente indicado, pelo menos indicado de forma lateral, uma vez que a fenomenologia referida é a dele. A decisão pelas fases psicológico-descritiva e transcendental de seu pensamento se deve basicamente ao fato de estas serem as duas fases em que a fenomenologia deu os seus passos capitais através de obras que nunca deixariam de ser referência para os demais estudos de seu próprio criador e que estenderiam amplamente sua influência às obras de outros pensadores do início do século XX. Estas obras, as Logische Untersuchungen e as Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, não apenas definem, respectivamente, as duas etapas do pensamento husserliano às quais nos referimos, mas também acabam restando como as mais relevantes introduções à metodologia em questão – mais basilares mesmo do que as outras introduções que podemos encontrar no conjunto de sua obra4. Da mesma forma que em relação ao gestaltismo, o nosso interesse aqui é lidar com fundamentos. Além disto, outra razão que nos move a centrar a nossa análise nessas duas fases é o fato histórico de

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O que não deve ser entendido como se tivéssemos a pretensão de esgotar qualquer assunto aqui considerado. Vale salientar que a maior parte dos livros publicados por Husserl em vida eram introduções à fenomenologia. Que as duas obras citadas tenham um lugar especial em relação às demais, portanto, parecenos relevante. 4

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que, sendo as Logische Untersuchungen de 1900 e 1901 e as Ideen de 1913, e sendo o primeiro trabalho em percepção da Escola de Berlim, os Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung, de 1912, é de se supor que qualquer influência direta da fenomenologia nas origens do gestaltismo tenha se dado a partir de uma daquelas duas grandes obras de Husserl – a primeira por já ter se propagado suficientemente bem no meio intelectual alemão à época dos experimentos citados, a segunda por ser publicada no ano posterior a estes, tendo o seu período de difusão e avaliação crítica pela comunidade acadêmica coincidindo, grosso modo, com o período de expansão e solidificação do pensamento berlinense. É certo que o gestaltismo possui obras muito relevantes que são lançadas após a década de 1930, quando os interesses tardios de Husserl em problemas de filosofia da cultura e da história já demarcaram uma nova orientação de seu pensamento, bem representada por obras como Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie (1936). Poderíamos nos empenhar, deste modo, em encontrar razões satisfatórias para compreender as possíveis relações entre as escolas quando o representante de uma delas oferece as suas últimas contribuições em vida e os da outra se encontram em um movimento de franca expansão de suas teorias, junto a grande número de colaboradores. Estender a nossa pesquisa até aí, no entanto, seria torná-la irrealizável dentro dos limites que nos são impostos ou mesmo dentro de limites mais generosos. Ademais, já não estaríamos lidando com os temas básicos de ambas as escolas, os quais dissemos ser o nosso interesse maior, mas sim com fases tardias. Assim, justificadas as nossas abordagens do gestaltismo e da fenomenologia, cabe voltarmos ainda uma vez ao percurso histórico pelo qual buscaremos introduzi-las e indicar ali os autores e temas que acreditamos serem relevantes para tal fim. No que se refere ao primeiro capítulo, em que serão examinadas algumas idéias gerais da psicologia experimental, o nosso percurso terá início com o exame de algumas teses da fisiologia sensorial que tiveram particular relevância para o desenvolvimento de métodos e conceitos psicológicos. Buscaremos compreender, deste modo, o conceito de sensação como variação laboratorialmente observável e controlável de ‘energias sensoriais específicas’ (spezifische Sinnesenergien), tal como formulado por Johannes Müller, bem como o modelo sumamente empirista da experiência e o método de introspecção experimental propostos por Hermann von Helmholtz e sustentados por sua teoria das ‘inferências inconscientes’ (unbewusste

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Schlüe). Ambos os autores, por mais que se dedicassem principalmente ao domínio fisiológico, viam com clareza o valor de suas contribuições para uma psicologia científiconatural, havendo mesmo circunstâncias em que eles próprios o ressaltavam, como veremos dentro em pouco. Em seguida, acompanharemos os esforços de Gustav Fechner por desenvolver um tratamento quantitativo rigoroso das sensações, por meio de sua psicofísica, e veremos como pôde se definir uma compreensão geral de psicologia científica orientada por estes antecedentes – o enfoque em sensações, os procedimentos introspectivos de avaliação e a mensuração psíquica. Ainda que existam diversos outros pesquisadores imensamente relevantes para o desenvolvimento da psicologia experimental nesta mesma época, uma quantidade substancial de trabalhos em história da psicologia – ou que lidam com temas geralmente pertinentes à história da psicologia – tende a valorizar especificamente estes três pensadores como pontos chave para compreendermos o que foi aquela psicologia (ASH, 2011; BORING, 1950 e 1953; CRARY, 2012; ECKARDT, 2010; FERREIRA, 2006; FUCHS e MILAR, 2003; GREENWOOD, 2006; HERGENHAHN, 2009; HERRNSTEIN e BORING, 1977; MICHELL, 2004; PLOTKIN, 2004; RIBOT, 1909; STUMPF, 1895)5. Decidimos acompanhar estas indicações – extremamente variadas em termos de época e proveniência – e procurar compreender a psicologia experimental com o seu auxílio. Após isto, o psicólogo cujo projeto será mais detidamente analisado, devido às suas ricas relações com o gestaltismo em geral, não apenas o berlinense, é Ernst Mach, a um só tempo representante por excelência desta psicologia de fins do século XIX e o primeiro a se dar conta de fenômenos gestálticos da percepção. Em nosso segundo capítulo, atentaremos aos psicólogos descritivos já citados e cuja presença justificamos pelo fato de serem antecedentes intelectuais mais próximos de ambas as escolas – Brentano, Ehrenfels e Stumpf. Se as mais influentes propostas em psicologia descritiva do século XIX advêm do primeiro e incidem diretamente no pensamento husserliano, é por meio dos últimos que elas encontrarão seu caminho até os proponentes da Escola de Berlim. O fato de certos conceitos relevantes dos últimos terem acolhida

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É particularmente relevante que possamos encontrar esta ênfase em trabalhos tão antigos quanto os de Carl Stumpf e Théodule Ribot, os quais datam de uma época em que a psicologia científica possuía as características que procuramos aqui explorar. É também significativo que uma de nossas fontes mais recentes, a saber, Eckardt (2010), destine um capítulo de sua obra aos antecedentes científico-naturais da psicologia experimental e aborde precisamente os três autores indicados e nenhum além.

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também na obra de Husserl, como veremos em sua mereologia, mostra-nos que, apesar de menos relevantes que Brentano, eles também são interlocutores para a fenomenologia.

Algumas observações acerca das traduções: Antes de passarmos ao estudo efetivo, é importante que indiquemos algumas informações relevantes acerca das traduções de nossas fontes primárias. Um interesse de base do presente trabalho foi oferecer citações que tenham sido traduzidas diretamente dos textos originais, de modo a afastar as eventuais corrupções ocasionadas por traduções de tradução. Como o nosso recurso aos textos originais se deu junto ao recurso a algumas traduções, tendo-nos sido possível cotejar ambas as fontes, alguns exemplos destas corrupções serão indicados no próprio desenvolvimento de nosso estudo, ainda que muitos outros de menor relevância não figurem aqui. Por conta desta preocupação, quando traduções para o nosso idioma não eram disponíveis, tivemos de oferecê-las nós mesmos, conscientes, no entanto, de que são traduções livres e que não se amparam em estudo crítico prévio de cada autor considerado, de modo a se munirem de justificativas exegéticas detalhadas ou se valerem de uma visão de conjunto satisfatória das obras do autor. O capítulo que menos precisou deste tipo de amparo foi aquele dedicado a Husserl, uma vez que pudemos nos servir de algumas traduções brasileiras avulsas e das traduções portuguesas feitas pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL). A única necessidade que tivemos foi a de traduzir uma pequena passagem da preleção Über die psychologische Begründung der Logik. O capítulo dedicado à Escola de Berlim, apesar de dispormos de alguns textos básicos em português, não pôde ser inteiramente estruturado a partir destas fontes, tendo sido necessário recorrer a alguns trabalhos originais, tanto em inglês, quanto em alemão. Os dois primeiros capítulos, no entanto, foram aqueles que nos exigiram trabalho mais intenso, na medida em que nunca existiram traduções desta literatura para o português. Considerando a completa indisponibilidade mesmo de trabalhos em literatura secundária que se voltem a esta literatura, discutam estes mesmos temas e ofereçam algumas traduções iniciais das passagens devidas, cremos haver uma possível contribuição no fato de trazermos aqui textos que não são acessíveis em português de outro modo. É em função desta preocupação com as fontes que incluímos um apêndice ao texto contendo as passagens originais da literatura primária cuja tradução foi de nossa

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responsabilidade. Apenas três textos relevantes para o nosso percurso não puderam ser consultados no original. O primeiro deles foi Über das Denken der Naturvölker, de Max Wertheimer, atualmente de difícil acesso em sua versão alemã. No entanto, o fato de termos recorrido a uma tradução americana que foi avaliada de forma generosa por um dos introdutores do gestaltismo, Kurt Koffka, parece minimizar os prejuízos oriundos da ausência do texto alemão. O segundo foi De pulsu, resorptione, auditu et tactu: annotationes anatomicæ et physiologicæ, de Ernst Weber, o qual não foi consultado na versão latina por não termos conhecimento suficiente do idioma para assegurar uma leitura de qualidade. Aqui, tivemos de nos valer da compilação de Herrnstein e Boring, traduzida por Dante Moreira Leite. O terceiro, por fim, foi o excerto do discurso de Max Wertheimer para o septuagésimo aniversário de Carl Stumpf, o qual tivemos de recuperar apenas a partir do livro de Mitchell Ash (2011).

A preocupação mais viva deste escrito e que acompanhou cada passo dado para a sua composição foi a de ser um trabalho voltado aos fundamentos, como já dissemos repetidas vezes. Se, com o que segue, tivermos tido condição de cercar de maneira minimamente satisfatória os assuntos aos quais nos voltamos, de modo a termos uma imagem clara e justa dos mesmos e podermos dar relevo aos problemas que nos inquietam, colocá-los à vista, ao alcance do eventual leitor, teremos logrado êxito em nosso esforço.

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Capítulo I O Estudo Experimental da Consciência O presente capítulo tem por interesse examinar algumas das principais contribuições no campo da ciência positiva para o estudo da percepção ao longo do século XIX, pelas razões já indicadas em nossa introdução. Nosso percurso contará com o exame de alguns dos trabalhos fundamentais da fisiologia experimental alemã, especificamente aqueles voltados à atividade sensorial e aos vínculos que ela estabelece com os eventos da consciência. A relevância destes estudos para o campo psicológico, já demarcada pelos próprios fisiólogos que os propuseram, é consideravelmente grande, tendo a fisiologia oferecido um amplo piso teórico e metodológico para o desenvolvimento da psicologia experimental no século em questão. Deste modo, buscaremos considerar algumas das idéias fisiológicas de maior relevância e que mais se projetaram sobre os estudos experimentais da consciência que vieram em sua seqüência. Em primeiro lugar, consideraremos o trabalho de Johannes Müller e o seu conceito de ‘energia sensorial específica’, o qual ofereceu para este cenário uma definição precisa do objeto de estudo ao qual ele mais se dedicou, a saber a sensação enquanto fenômeno corpóreo, analisável em suas causas mecânicas e diretamente vinculado à definição da experiência em seus aspectos mais rudimentares. Em seguida, avaliaremos os grandes avanços teóricos e metodológicos de Hermann von Helmholtz neste mesmo setor, os quais não apenas ofereceram uma explicação mais detalhada de como os processos fisiológicos têm expressão psíquica e como eles se abrem à aprendizagem, mas também uma metodologia profícua e muito influente para as ciências em questão. Em um terceiro momento, avaliaremos como os esforços de Gustav Fechner, orientado pelos experimentos de percepção diferencial de Ernst Weber, possibilitaram uma expressa formalização matemática da relação entre a sensação e os excitantes físicos, ampliando os recursos para que a psicologia se firmasse como ciência positiva em conformidade ao estatuto científico de outros campos. Por fim, veremos como o importante projeto psicológico de Ernst Mach desenvolveu uma concepção de consciência profundamente vinculada a muitas destas preocupações e que servirá para termos uma imagem clara das teses às quais tanto gestaltismo, quanto fenomenologia se opõem de maneira firme. Com este percurso abarcamos algumas das teses fundamentais acerca do 31

objeto de estudos da psicologia científica, de seu método e da matematização possível a este, além de observar um projeto psicológico específico que deve bastante a todas estas determinações. Comecemos, então, o nosso percurso.

1.1. A teoria das energias sensoriais específicas de Johannes Müller: O anatomista e fisiólogo Johannes Müller ocupa aqui um lugar central porque foram suas algumas das primeiras contribuições teóricas para a estruturação da fisiologia experimental, bem como o primeiro grande esforço de sistematização deste campo. Müller foi o proponente da já citada ‘teoria das energias sensoriais específicas’ (spezifische Sinnesenergien), uma concepção acerca do funcionamento da periferia sensorial do organismo e das expressões psíquicas de seus processos que não apenas fundou um paradigma para o desenvolvimento de grande parte dos trabalhos posteriores em fisiologia, mas também influenciou a passagem da psicologia ao campo científico experimental. Todos os autores a serem avaliados neste capítulo encontram-se no rol de grandes nomes da fisiologia e da psicologia cujas obras foram concebidas no lastro das concepções de Johannes Müller6.

1.1.1. O conceito de sensação e o afastamento moderado do realismo: Em sua obra maior, intitulada Handbuch der Physiologie des Menschen (1837), Müller afirma que os sentidos nos permitem conhecer tanto os estados viscerais de nosso próprio corpo, quanto as condições externas em que ele se encontra, uma vez que ambas as formas de estimulação – respectivamente, as estimulações endógena e exógena – impõem alterações no funcionamento geral de nossos nervos. A sensação (Empfindung), considerada como um elemento genérico e qualitativamente indeterminado de nossa experiência, é sempre função de uma seqüência de eventos mecânicos que tomam lugar no organismo: a aferência de um estímulo físico objetivo em certa região de nosso aparelho sensório; a subseqüente estimulação deste aparelho, que deve ser, por sua constituição anátomo-fisiológica própria, responsivo ao estímulo específico que afere sobre ele,

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Diversos autores relevantes que não serão considerados aqui também sofreram influência direta de Müller, como Emil du Bois-Reymond, Ernst Häckel, Wilhelm Wundt, Ewald Hering, entre outros.

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tornando o estímulo um excitante periférico ou uma afecção; a atividade conversiva do tecido receptivo, que produz uma energia sensorial específica que conduzirá aos centros nervosos as informações sobre o que o estimula; e, por fim, a formação de um elemento fenomenal mínimo, irredutível, a própria sensação, que é a contraparte psíquica da estimulação pontual – aquilo que nos permite ter consciência do que nos ocorre, seja em termos de impressões externas, seja em termos de disposições viscerais. Esta descrição genérica se aplica a toda operação corpórea de conversão de estímulos e produção de sensações correlatas, ainda que as sensações in concreto sejam sempre específicas a uma determinada modalidade sensorial. A discriminação qualitativa de nossas percepções no projeto de Müller, entretanto, vai bastante além da constatação da especificidade de certas sensações a certos sistemas sensórios de nosso corpo – i.e., das sensações de luz e cor aos órgãos visuais; das sensações de tato, temperatura e dor aos órgãos táteis; das sensações de paladar ao órgão gustativo; das sensações acústicas aos órgãos auditivos; e das sensações de odor ao órgão olfativo. Ela deve se ocupar também da grande quantidade de variações que cada sistema sensorial pode apreender no interior de cada uma das sensações que lhe são próprias, discriminando gradativamente quais são as correlações possíveis entre os eventos mecânicos em certas bases materiais de nosso organismo e as modulações pelas quais passa a sensibilidade, que é respondente a estes eventos. Um exame fino das diferentes qualidades sensoriais deflagradas pelos diferentes agentes físicos que estimulam o nosso organismo é, portanto, o propósito geral do pesquisador – ou, em outros termos, um detalhado mapeamento das relações de causalidade natural que regem o vínculo do psiquismo com o corpo. Neste sentido, a propósito das impressões táteis, Müller (1837) afirma: Por tato [Gefühl]7, entende-se aqui [...] sempre um tipo peculiar de sensação [eigenthümliche Empfindungsart] dos nervos táteis [Gefühlsnerven], como o nervo trigêmeo, o vago, o glossofaríngeo e os nervos espinhais, i.e., a sensação de cócegas, prazer, dor, calor, frio, as sensações táteis. (p. 249)

Cada modalidade sensorial comporta um amplo espectro de respostas às condições de estimulação, havendo um vasto número de esquemas fisiológicos específicos na base 7

Ainda que a tradução habitual da palavra Gefühl seja ‘sentimento’, e não ‘tato’, no vocabulário próprio à fisiologia de Müller (1837) é justamente este último sentido que é visado por ela. Os modos da sensação, segundo o pesquisador, são: Lichtempfindung, Tonempfindung, Geschmack, Geruch e Gefühl (p. 249) – i.e., ‘sensação de luz’, ‘sensação de som’, ‘paladar’, ‘olfato’ e, evidentemente, ‘tato’.

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destas diferentes respostas, os quais devem ser investigados e explicitados. Se o corpo em sua inteireza pode ser considerado um organon que concilia o funcionamento de diversos sistemas sensoriais, cada sistema destes possui as suas subdivisões ulteriores, comporta subsistemas que têm uma trama própria de relações que resta a ser conhecida pelo fisiólogo. Crary (2012) caracteriza da seguinte maneira o retrato mülleriano do corpo: [...] Müller revela uma imagem do corpo como algo multifacetado, semelhante a uma fábrica, constituído de processos e atividades diversificados, gerenciados por quantidades mensuráveis de energia e trabalho. [...] Em sua exaustiva análise do corpo em uma multiplicidade de sistemas físicos e mecânicos, Müller reduziu o fenômeno da vida a um conjunto de processos psicoquímicos observáveis e manipuláveis em laboratório. A idéia de organismo torna-se equivalente a um amálgama de aparatos adjacentes. (p. 90)

Esta subdivisão escrupulosa de nossas capacidades perceptuais em sistemas cada vez mais simples e que, em última instância, ordenam-se com precisão, será a base para o desenvolvimento da psicofísica experimental no século XIX e a formulação de concepções explicitamente atomistas do organismo e do psiquismo, como veremos adiante. Outra característica importante da fisiologia de Müller e que devemos notar aqui é a sua reserva em aderir a certo realismo ingênuo e atribuir diretamente aos corpos externos aquilo que podemos perceber acerca deles. O fisiólogo afirma que a sensação é fundamentalmente um resultado de alterações nervosas, e não pode ser diretamente projetada em um mundo natural, extra-perceptivo, como se fosse um retrato em alguma medida adequado daquilo que existe independentemente de nós. Seria pela intervenção de certos hábitos e crenças, oriundos da imaginação e de uma razão mal empregada, que faríamos ingenuamente aquela atribuição: O que chega à consciência [Bewustsein] por meio dos sentidos são inicialmente apenas propriedades [Eigenschaften] e estados [Zustände] de nossos nervos, mas a representação [Vorstellung] e o juízo [Urtheil] estão prontos a interpretar como propriedades e alterações [Veränderungen] dos corpos exteriores a nós os processos [Vorgänge] em nossos nervos deflagrados pelas causas externas [äussere Ursachen]. (MÜLLER, 1837, p. 249)

Em sentidos cujas causas são, em sua maioria, externas, como a visão, esta identificação habitual entre ‘percebido’ e ‘causa objetiva de percepção’ é ainda mais comum, sendo apenas por meio de cuidadosa reflexão que ela pode ser desautorizada. Em

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sentidos que possuem causas internas mais freqüentes, como o tato, temos maior facilidade de entender que o percepto é basicamente uma condição dos nervos, e não algo que pode ser atribuído direta e literalmente ao estímulo que o deflagra. As sensações de prazer e dor são bons exemplos disto: é algo simples e de inferência praticamente imediata que aquilo que nos causa determinada sensação de satisfação ou insatisfação não nos impõe nenhuma qualidade que ele, enquanto estímulo ou fonte de estímulos, possui em si mesmo. Em vez disto, ele apenas nos afeta de uma tal maneira que nos faz, por uma tendência de nossa sensibilidade, por determinações de nosso sistema sensório e dos processos que nele são conduzidos, atribuir àquela interação específica a qualidade de ser prazerosa ou desprazerosa. Esta atenção de Müller à distinção entre uma realidade percebida, comunicada pelos processos sensoriais, e outra realidade natural, caracterizada pelas efetividades físicas que afetam o organismo, foi por vezes citada como episódio central da chamada ‘reinterpretação fisiológica de Kant’ entre cientistas naturais do século XIX (FERREIRA, 2006, p. 86), da qual fariam parte ainda outros autores que estudaremos mais adiante. Ela mostraria por argumentos científicos, experimentalmente sustentados, a pertinência da distinção entre ‘númeno’ e ‘fenômeno’ proposta pela filosofia transcendental, uma vez que a determinação dos processos psíquicos pelos processos nervosos explicitaria uma distinção radical e, em muitos aspectos, incontornável entre a ordem da experiência e aquela das efetividades físicas8.

1.1.2. As leis gerais da sensibilidade: Esta posição do fisiólogo pode ser mais bem compreendida por meio daquilo que ele entende serem dez leis gerais de nossa sensibilidade, as quais deveriam ser consideradas antes de se proceder ao estudo da fisiologia de cada sentido em particular. Podemos perceber, na enumeração destas leis, uma gradativa tentativa do cientista de encerrar o 8

Ainda que desejemos registrar aqui esta interpretação – em reconhecimento à sua importância histórica –, parece-nos relevante também indicar a necessidade de se ter certa reserva em relação a ela, já que o estudo experimental é, por definição, diretamente dependente da admissão de teses acerca do que transcende a vida fenomenal – i.e., do mundo em sua estrutura mesma. Afirmar a possibilidade de um kantismo de fundamento laboratorial, portanto, parece-nos uma contradição em termos, uma vez que equivaleria a afirmar que podemos obter uma teoria que nega a nossa possibilidade de conhecer o que é pertencente ao mundo mesmo por meio de um conjunto de procedimentos que não dependem senão de certa compreensão do que seria este mundo mesmo.

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âmbito da sensibilidade nele mesmo, descolá-lo de sua relação com as condições físicas de estimulação e aproximá-lo mais de uma seqüência de eventos nervosos que ocorrem em nosso organismo. Passemos às leis para entender como isso ocorre. (1) A primeira delas afirma que “[...] nós não podemos ter nenhum tipo de sensação por meio de causas externas que não possamos também ter sem causas externas, pela sensação dos estados de nossos nervos.” (MÜLLER, 1837, p. 250). Não há, deste modo, sentido que seja responsivo apenas a estímulos que nos vêm de fora, do mundo físico, e seja também, no mesmo movimento, completamente alheio à ação dos estímulos oriundos do próprio organismo. Podemos ter percepções táteis de temperatura e dor, e.g., em nossas interações com o ambiente em que nos encontramos – como no contato com superfícies quentes ou frias ou quando nos lesionamos –, mas também a partir de processos que o corpo ele mesmo conduz – como na percepção de nossa própria temperatura ou em fenômenos de hiperalgesia. Sensações de odor podem advir do contato com substâncias odoríferas, mas também de processos químicos no próprio nervo olfativo. Sensações gustativas podem advir de alterações da saliva ou do muco da boca, bem como dos alimentos consumidos, mas também podem ocorrer pela ação de excitantes endógenos, como em casos de náusea. Sensações de luz podem ocorrer pela contemplação dos objetos reais que nos circundam, mas também podem vir na forma de lampejos que o próprio olho produz quando está fechado e não se volta ao mundo. Sensações acústicas podem advir de eventos físicos que resultam na pressão da membrana timpânica, mas podem também ocorrer por produção espontânea dos nervos auditivos, como a percepção de um zumbido baixo, mais ao fundo dos outros sons que podemos perceber9. Para cada sensação possível ao nosso corpo, portanto, há tanto causas externas quanto causas internas que podem deflagrá-las. Não há resposta perceptiva específica ao trato com o mundo. (2) A segunda lei afirma: “A mesma causa interna [innere Ursache] evoca, em diferentes sentidos, diferentes sensações, de acordo com a natureza [Natur] de cada sentido, a saber, o sensível [das Empfindbare] deste sentido.” (MÜLLER, 1837, p. 251; grifo nosso). Isto quer dizer: há determinadas condições objetivamente verificáveis de nosso

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Müller afirma, praticamente a cada sentido considerado, que existem exemplos patológicos que permitem avaliar melhor esta produção endógena de dados sensíveis, como certas afecções do ouvido que levam o sujeito a perceber zumbidos ou sons de campainha constantemente; irritabilidade do nervo olfativo, que traz percepções olfativas; etc.

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organismo que atuam em diferentes nervos sensoriais de forma a estimulá-los e fazer com que produzam suas energias específicas. Uma mesma estimulação endógena, portanto, faz com que os diferentes sentidos operem da maneira que lhes é natural, formando, cada qual, a sua sensação particular. Para uma causa unívoca, o próprio sistema sensório possui uma variedade de respostas irredutíveis umas às outras e que traduzem o modo de operação da via sensorial afetada. Como exemplos disto, temos os casos de acúmulo de sangue em vasos capilares de um determinado nervo sensorial, como ocorre na constipação ou congestão, as quais conduzem à sensibilidade retiniana, à percepção de sons de campainha no ouvido e à sensação de dor na face. Algumas substâncias narcóticas ministradas no organismo por via intravenosa também causam esses efeitos múltiplos, gerando sintomas peculiares a cada sentido na medida em que alteram o funcionamento de cada nervo: faíscas luminosas nos olhos; formigamento cutâneo; tinnitus aurium10; etc. (3) A terceira lei afirma: “A mesma causa externa irrita [erregt], nos diferentes sentidos, diferentes sensações, de acordo com a natureza de cada sentido, a saber, o sensível do nervo sensorial em questão.” (MÜLLER, 1837, p. 251). Esta lei consiste, basicamente, na aplicação do mesmo raciocínio da lei anterior aos casos em que a estimulação não é advinda do próprio organismo, mas sim do mundo exterior. Temos, assim, que uma causa externa unívoca afeta cada sentido apenas da maneira como este sentido pode, por um princípio de constituição, ser afetado. Uma pressão mecânica aplicada sobre as pálpebras fechadas é exemplo disto, pois gera sensações táteis na medida em que afeta a pele e gera também sensações luminosas na medida em que excita os olhos. Trata-se, nesta percepção visual, de uma luz que não existe em lugar nenhum no mundo, mas apenas no próprio sistema de conversão dos olhos quando excitado pela pressão11. Do mesmo modo, a irritação mecânica do palato mole, da raiz da língua e da epiglote pode provocar náuseas, que são sensações gustativas, da mesma maneira que provocam impressões táteis em cada uma daquelas estruturas anatômicas. 10

Ruído patológico persistente no ouvido interno. Müller cita alguns pequenos e curiosos experimentos por ele realizados para mostrar que esta luz percebida não é nada de objetivo, como se colocar em determinado ambiente não iluminado junto a outra pessoa, pressionar os próprios olhos fechados de forma a produzir a luz e constatar que esta não iluminou nada do ambiente, não o permitindo ver com mais distinção os objetos que ali se encontravam, nem foi percebida por seu companheiro, influenciando positivamente na visão que este poderia ter daqueles mesmos objetos. Não projetada sobre o ambiente, não percebida pelo outro observador presente, a luz deveria ter sua existência resumida ao próprio nervo. 11

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(4) A quarta lei afirma: “As sensações peculiares de cada nervo sensorial podem ser igualmente evocadas por meio de diversas influências [Einflüsse] internas e externas.” (MÜLLER, 1837, p. 253). Nela se encontra devidamente explicitada a maior novidade da descrição fisiológica de nossa percepção por Müller, a de que a atividade conversiva de um órgão sensorial é mais importante para entendermos o que experimentamos do que o próprio estímulo que a faz operar. Isto quer dizer: não se trata de buscar compreender experimentalmente a cópula entre uma condição física ótima de estimulação e um determinado sistema de recepção sensorial, mas sim a produção de energias sensoriais específicas ela mesma, já que estímulos de natureza diversa podem fazer com que um órgão dê início à sua atividade conversiva e gere os perceptos que é naturalmente constituído para gerar. Os exemplos oferecidos a propósito das leis anteriores já o indicam com clareza. Nem toda visão é fruto da aferência de luz sobre os olhos; nem toda sensação tátil é fruto de uma força exterior que é aplicada à pele; nem todo sabor sentido é fruto da ação de uma substância química sobre as papilas linguais; etc. Além destes, Müller busca oferecer outros exemplos de como estas condições físicas adversas podem nos fazer responder com a produção de perceptos absolutamente específicos a cada uma de nossas vias sensoriais: fluxos elétricos no corpo, o consumo de narcóticos e a estimulação sanguínea, como em casos de intumescimento dos capilares que se avizinham ao nervo sensorial, podem gerar perceptos de luz, som e tato. E nenhum deles é estímulo ótimo para nenhum sistema sensorial indicado. (5) A quinta lei afirma: A sensação não é a veiculação [die Leitung] de uma qualidade ou de um estado dos corpos externos à consciência [Bewustsein], mas antes a veiculação de uma qualidade, de um estado de um nervo sensorial à consciência, ocasionada por uma causa externa – e estas qualidades, que são diferentes nos diferentes nervos sensoriais, são as energias sensoriais [Sinnesnergien]. (MÜLLER, 1837, p. 254)

Seguindo o mesmo raciocínio da lei anterior, Müller se refere à hipótese já aventada pela fisiologia precedente de que a atividade dos nervos dos sentidos seria marcada por uma irritabilidade específica, i.e., por uma receptividade a um tipo de estimulação ideal que conduziria os eventos fisiológicos que estariam na base da percepção. O fisiólogo entende que esta demarcação tem a sua importância, mas não é suficiente e não descreve com precisão o modo como nosso aparelho sensório opera. É certo que 38

encontramos insensibilidade de alguns de nossos órgãos sensoriais a alguns estímulos físicos. As vibrações de alta velocidade, e.g., afetam a visão e fazem-na gerar percepção de luz, mas não afetam a pele, fazendo-a gerar sensações de tato. Do mesmo modo, vibrações lentas afetam a pele, mas não a vista. Substâncias odoríferas afetam apenas o órgão olfativo e substâncias gustativas afetam apenas o paladar. Esta insensibilidade ocasionalmente verificável, entretanto, não deve servir de base para atribuirmos apenas um tipo de estímulo físico a uma determinada via sensorial e crermos em uma relação biunívoca entre ambos – apenas aquele estímulo servindo para deflagrar aquela resposta nervosa e apenas aquela resposta sendo o evento orgânico suscitado por aquele estímulo – como sustentariam as descrições da fisiologia anterior. O que dá origem a certa sensação é a adaptação de um estímulo ao funcionamento do órgão: uma vez sensível, responsivo àquele estímulo específico, o órgão age e sua ação é sempre a produção de uma energia sensorial que lhe é própria. À hipótese da irritabilidade, portanto, deve-se acrescentar a existência de uma energia específica a cada nervo que converte a estimulação objetiva em experiência pontual. A sensação, portanto, é fundamentalmente uma energia sensorial. Aqui encontramos a formulação mais explícita da refutação de Müller (1837) ao realismo ingênuo: Nós constantemente sentimos a nós mesmos na lida [Umgang] com o mundo exterior sensível [sinnlichen Aussenwelt] e com isso produzimos para nós representações [Vorstellungen] da constituição dos objetos exteriores [äusseren Gegenstände], as quais podem ter uma correção relativa, mas nunca trazer a uma intuição imediata [unmittelbaren Anschuung] a natureza dos corpos mesmos – intuição a qual alcançam, no sensório, os estados das nossas partes corporais. (p. 258)

(6) A sexta lei afirma: Um nervo sensorial parece ser capaz de apenas uma espécie determinada de sensação e não daquela dos órgãos sensoriais restantes e não pode, portanto, também ocorrer nenhuma substituição de um nervo sensorial por um outro diferente dele. (MÜLLER, 1837, p. 258)

Cada via sensorial, deste modo, é fechada em si mesma, produzindo apenas determinado tipo de experiência e nunca podendo emular as funções de outra via. Mesmo diante de mudanças na intensidade do estímulo, e, por conseguinte, na qualidade da sensação, permitindo que ela se torne agradável ou desagradável, não há alteração da natureza específica da sensação. Se variarmos a intensidade de um conjunto de ondas 39

luminosas para que ele passe da condição de estímulo subliminar até a formação, no aparelho sensório do observador, de um dado cromático, podemos gerar sensações agradáveis. Se o intensificarmos a ponto de agredir e ofuscar a vista do mesmo, teremos gerado sensações desagradáveis que podem ser acompanhadas de dor e outras percepções de natureza tátil. As sensações de base, entretanto, serão ainda visuais. O mesmo pode ocorrer com a variação de estímulos de quaisquer outras naturezas: odores e sabores a princípio agradáveis podem se tornar repulsivos se muito intensificados, mas nunca deixarão de ser odores e sabores. As alterações admissíveis a uma sensação, portanto, são apenas de intensidade ou grau, e nunca de natureza. (7) A sétima lei afirma: Desconhece-se se as causas das diferentes energias dos nervos sensoriais se encontram nos próprios nervos ou no cérebro e em partes da espinha dorsal para as quais eles vão – mas é certo que as partes centrais dos nervos sensoriais no cérebro são capazes das sensações determinadas, independentes dos condutores nervosos. (MÜLLER, 1837, p. 261)

Esta lei é de menor relevância para a nossa interpretação, pois é índice apenas das condições técnicas da pesquisa fisiológica do tempo de Müller. De acordo com ele, a sensibilidade específica dos diferentes órgãos sensoriais é definida por seus nervos, sendo propriedade destes, mas a reação peculiar desta sensibilidade, que nos permite captar uma ampla gama de intensidades possíveis a cada tipo de sensação, seria definida por uma dentre as duas possibilidades seguintes: ou pela variedade de vibrações emitidas pelos próprios nervos aos centros encefálicos, ou pelas partes destes centros que se comunicam com os nervos, os quais emitiriam uma vibração invariável e que seria complexificada já a nível central. Devido à limitação técnica aludida, Müller afirma ser impossível provar qualquer uma destas proposições. (8) A oitava lei afirma: É verdade que os nervos sensoriais sentem, inicialmente, apenas seus próprios estados – ou que o sensório [das Sensorium] sente os estados dos nervos sensoriais; mas, devido ao fato de os nervos sensoriais, enquanto corpos, compartilharem as propriedades de outros corpos, de eles estarem estendidos no espaço [im Raume ausegedehnt], de a eles poder ser comunicada uma vibração e de eles poderem ser alterados quimicamente, por meio do calor e da eletricidade, eles indicam, por sua alteração através de causas externas, ao sensório, exterior ao seu estado, também as propriedades e as alterações do

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mundo exterior, distintas em cada sentido de acordo com as qualidades ou energias sensoriais deste. (MÜLLER, 1837, p. 263)

Esta lei estabelece o fim do progressivo afastamento de nossos perceptos em relação às efetividades físicas ao indicar que a condição natural dos nervos nos permite apreender certos traços da objetividade que a afeta. Os nervos seriam estruturas que, pelo simples fato de serem materiais, compartilhariam propriedades da matéria em geral, apresentando comunidades mesmo com a matéria inteiramente distinta do corpo vivo, a matéria nãoorgânica, inanimada, e isto os permitiria decodificar certas características do que nos afeta e ter segurança de que estas características são efetivamente presentes nos objetos reais. De acordo com Müller, extensão, movimento e mudanças químicas poderiam ser apreendidas deste modo, ainda que nem sempre com a mesma precisão. A extensão poderia ser melhor apreendida pelo tato e pela visão, e.g., combinada ou isoladamente, ainda que outros sentidos também a pudessem reconhecer. As qualidades sensíveis em geral passam a ser, portanto, divididas em basicamente duas grandes classes: a primeira delas, amplamente descrita nas sete primeiras leis, pode ser atribuída apenas às modificações dos nervos, consistindo na imensa variedade de conteúdos que apreendemos em nossas experiências perceptivas, como luzes, cores, sabores, odores, impressões térmicas, sensações prazerosas ou desprazerosas; a segunda classe poderia ser diretamente ligada à natureza externa, consistindo naquelas três dimensões da objetividade que podem ser entrevistas nos diversos dados sensoriais que nos aparecem12. (9) A nona lei afirma: Não é da natureza dos próprios nervos colocar o conteúdo de suas sensações como presentes fora de si – a representação, confirmada pela experiência [Erfahrung], que acompanha as nossas sensações, é a causa desta transferência [Versetzung]. (MÜLLER, 1837, p. 268)

Aqui, à diferença de todas as leis anteriores, que se referiam apenas às sensações, encontramos Müller voltando-se diretamente ao exame da relação entre as sensações e os 12

O que Müller parece fazer é reestruturar, no quadro de sua fisiologia sensorial, uma distinção tão velha quanto as primeiras expressões do pensamento moderno, a saber, a distinção entre ‘qualidades primárias’ e ‘qualidades secundárias’ – aquelas sendo poderes causais dos objetos que nos comunicam propriedades que a estrutura mesma destes objetos guarda em si, estas sendo poderes causais dos objetos que nos comunicam propriedades ausentes de sua estrutura real, presentes apenas no horizonte de nossa sensibilidade, sendo caracteres meramente subjetivos. Esta distinção, introduzida por Newton, mas presente nos pensamentos de Descartes, Locke e outros empiristas, seria também incompatível com uma posição presumidamente kantiana, uma vez que mostraria certos caracteres do mundo efetivo que nos podem ser diretamente dados.

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objetos que conseguimos, por meio delas, visar. Se a operação dos nervos nos permite ter consciência de qualidades sensoriais diversas, a tendência que temos de prontamente atribuir estas qualidades a um determinado tipo de unidade real, exterior a nós e à totalidade de nossos processos psicofísicos, não pode ser ela mesma considerada também uma função dos nervos. Se a base nervosa da experiência nos permite acesso apenas ao fundamento material do que nos é diretamente dado, há que se remeter a outras fontes a nossa capacidade e, com efeito, a nossa pronta disposição a tomar este fundamento como se ele espelhasse algo outro – algo que é essencialmente diferente da ordem própria da experiência. De acordo com Müller, isto é um efeito de nossa aprendizagem, que nos permite ter como que guardadas e prestes a agir certas representações do que vivemos outrora, as quais intervêm na estruturação dos dados sensoriais e nos permitem ter a consciência de um objeto íntegro, presumidamente real. Posto que esta perspectiva acerca da relação entre sensação e aprendizagem é sumamente importante para o desenvolvimento das demais teorias psicológicas que veremos ainda neste capítulo – por mais que estas sejam, em grande parte, mais elaboradas do que se mostram as poucas considerações de Müller quando da enunciação desta nona lei –, cabe-nos considerá-la aqui com maior vagar. Para o estudioso, nossa tendência a tomar os objetos dados como coisas externas se deve à intervenção de representações primitivas, oriundas da experiência tátil, a partir das quais é possível a formação da idéia de um mundo exterior a nós. Com as nossas primeiras experiências táteis, teríamos uma capacidade gradativa de distinguir o nosso corpo próprio e o mundo que se lhe opõe, apreendendo a nós mesmos como algo que padece de certa influência, da ação de algo essencialmente distinto de nós, quando sensações táteis nos sobrevêm. O fundamento desta experiência residiria em nossa possibilidade de encontrar basicamente duas formas de exterioridade à nossa vida mental: (1) uma que nos oferece pouca resistência e que está diretamente vinculada aos imperativos de nossa vontade; e (2) outra que nos oferece um grau máximo de resistência e à qual a nossa vontade não pode se impor senão de forma indireta e limitada. À primeira destas exterioridades, chamamos corpo; à segunda, mundo. A consciência seria capaz de assegurar um domínio amplo do que ocorre em certa parte daquilo que surge como distinto dela; em relação a outra parte, não exerceria influência similar. Os movimentos dos próprios membros, as possibilidades de apreensão manual de objetos, a locomoção, toda sorte de experiência de motilidade

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corpórea seriam índice da relação mais livre que a nossa consciência trava com a primeira exterioridade. A plena impossibilidade de se exercer o mesmo tipo de controle dos outros itens materiais que nos cercam, índice da relação mais restrita. A isto, juntar-se-iam ainda as experiências em que o próprio corpo se toca, gerando duas séries de sensações. Nestes casos, teríamos consciência, tanto na parte que toca, quanto na parte tocada, de sensações táteis distintas, ocasionadas pela pressão de cada parte do corpo na superfície do outro. Cada parte, ao mesmo tempo, age tocando e padece sendo tocada. Quando em interação com as coisas que nos cercam, o caso é evidentemente distinto e temos apenas uma série de sensações, referentes apenas a uma porção de nosso corpo. A coisa que a toca não figura como parte de nossos processos sensoriais, sendo também sede de sensações que nos são comunicadas. Elas são completamente exteriores a estas possibilidades. Assim teríamos a origem da idéia de mundo exterior. Na medida em que as outras atividades sensoriais fossem se compassando gradativamente aos dados táteis – uma coisa não mais visível escapando das possibilidades de apreensão física, uma coisa visível inserindo-se nestas possibilidades, e.g. – teríamos uma extensão desta idéia ao plano dos demais sentidos. Transporíamos às outras possibilidades de percepção a idéia de que os conteúdos nelas dados são referentes a objetos exteriores. É isto que permitirá ao fisiólogo afirmar: “Para a consciência, para o eu, cada sensação, cada determinação do exterior, cada paixão [Passion] é já algo exterior” [ein Aeusseres]” (MÜLLER, 1837, p. 268; grifo nosso). Todas as nossas percepções de objeto, deste modo, seriam marcadas pelo concurso destas representações, de modo a tornar-nos sempre conscientes de algo além do que nos é efetivamente dado ao fim de nossos processos nervosos13. (10) A décima lei, por fim, afirma: A alma [Seele] não apenas apreende o conteúdo das sensações dos sentidos e as interpreta como representadas; ela tem influência sobre o conteúdo ele mesmo, pois confere a agudez [Schärfe] da sensação. Esta intenção pode se isolar, nos sentidos com distinção da extensão espacial, nas partes individuais do órgão sensível, e, no sentido com distinção fina dos momentos temporais, 13

Como veremos, a tendência de associar à percepção certa crença tácita na realidade do objeto é presente também na obra de outros autores, como Helmholtz e Husserl. Além disto, cabe salientar que, à diferença de muitas discussões que marcariam o cenário psicológico-experimental nos anos posteriores, o que Müller faz aqui não é se pronunciar sobre a gênese psicológica da noção de espaço – se ela é obtida por meio de experiências primitivas de qualquer ordem, ou se ela é dada a priori, ao modo da intuição pura de Kant –, mas sobre a gênese do mundo exterior. O estudioso claramente põe em suspenso, pelo menos nesta passagem de seu longo tratado, o problema do espaço.

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nos atos individuais da sensação. Ela pode também conferir a um sentido uma preponderância [Übergewicht] sobre o outro. (MÜLLER, 1837, p. 272)

Além do movimento descrito na lei anterior, no qual os dados sensíveis são tomados como base para a inferência de efetividades exteriores à percepção, a consciência seria capaz, por meio de um desempenho específico de atenção, de modular a própria forma pela qual as sensações discretas são dadas, e isto de três maneira fundamentais: (1) intensificando ou reduzindo a diferença de nitidez ou patência da sensação, possibilitando condições em que elas nos são dadas mais de maneira direta e impositiva do que seria natural, bem como outras em que elas são ofuscadas e deixadas em segundo plano; (2) discriminando as sensações de acordo com o vínculo próprio a determinada modalidade sensorial com o espaço e com o tempo, permitindo, assim, uma individualização mais precisa dos conteúdos sensíveis e uma explicitação da exterioridade de uns em relação aos outros14; e (3) enfatizando uma daquelas modalidades, de forma que os conteúdos por meio delas veiculados se tornam mais vívidos e acessíveis do que os conteúdos de outras modalidades. A atenção, por meio destas três operações que lhe são possíveis, mostrar-se-ia como uma faculdade essencialmente exterior aos conteúdos dados na vida psíquica e que pode se impor a eles de maneira a rearranjá-los e fazer de seu aparecimento algo distinto

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Para compreendermos efetivamente o caráter desta afirmação, teríamos que encontrar no desenvolvimento desta décima lei uma posição mais explícita de Müller quanto à relação de nossas percepções com o espaço e o tempo, o que, como já indicamos na lei anterior a propósito do espaço, acaba não ocorrendo. Não temos, a partir desta passagem do texto, um posicionamento explícito do autor acerca da possibilidade destes conceitos serem empiricamente construídos, na medida em que, pelas sucessivas experiências da vida mental primitiva, a distinção das experiências em um contínuo temporal fosse constatada, bem como a sua referência a um plano extenso caracterizado essencialmente por três dimensões, ou serem dados de antemão, como se fossem parte estruturante de nossa capacidade mesma de perceber, sem as quais percepto algum poderia ser concebido. A ausência destas informações, no entanto, não nos impede de compreender o tipo de eficiência que o fisiólogo resguarda à atenção. Quando ele nos diz que esta faculdade pode discriminar espacialmente as sensações dadas em um sentido que guarda certo vínculo com a idéia geral de espaço, o que ele diz é que podemos, e.g., situar em certa porção de nossa extensão corpórea, uma determinada impressão tátil, térmica ou dolorosa, bem como distinguir onde, na diversidade de pontos espaciais que se abrem perante o nosso campo visual, encontra-se cada qualidade cromática ou matiz de brilho. Quando nos diz que a faculdade supracitada pode discriminar temporalmente as sensações de sentidos que guardam relação com o tempo, o que nos parece se estender a toda atividade sensorial possível, ele quer dizer que podemos intuitivamente isolar o conteúdo que nos é dado a certo momento do conteúdo que nos havia sido dado poucos instantes antes e do que poderá vir a ser dado dentro em pouco, como ocorre facilmente na experiência auditiva. A atenção, deste modo, se estende a todos os nossos processos sensíveis com um claro poder de análise que nos possibilita reduzir a complexidade imediatamente dada em uma experiência aos elementos fundamentais que a constituem, i.e., aos dados sensíveis que nos são comunicados à consciência pela operação das energias sensoriais específicas.

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daquilo que ele, em um primeiro momento, é15. Os exemplos oferecidos por Müller são, como nas leis anteriores, diversos: homens que se encontram tomados por paixões muito intensas afastam de muitas de suas sensações presentes a clareza que teriam se tal estado de comoção não se houvesse instaurado; pessoas cegas, em geral, aprendem a refinar os demais sentidos de que dependem para se situarem no mundo, sobretudo o tato, que habitualmente é capaz de reconhecer as mais ínfimas asperezas das superfícies sobre as quais é exercido; a qualquer indivíduo dotado do sentido de visão, é facultada a capacidade de tornar mais patentes as sensações periféricas de seu campo visual, atentando a elas e obscurecendo as que se encontram ao centro deste campo e que, nas condições normais de visada, estariam em primeiro plano.

1.1.3. Do exame da sensibilidade à psicologia: Estas seriam, portanto, as características centrais da sensibilidade segundo Müller. Ainda que elas pareçam gravitar em torno de temas bastante próximos entre si, oferecendo argumentos que quase se repetem e tendo exemplos simples que parecem corroborar diversas leis em um só movimento, há um claro percurso de expansão de idéias em sua exposição, o qual pode ser dividido em basicamente duas fases: uma primeira em que a especificação do conceito de sensação é o propósito maior, bem como uma tentativa de dar um sustento experimental cada vez mais amplo à sua tese não-realista central – teríamos aí as oito primeiras leis16 –; e uma segunda em que a sensação assim descrita é examinada em sua relação com certas funções psíquicas, que não se confundem com o próprio conteúdo sensorial. Se a maior parte de sua argumentação, portanto, define cuidadosamente o conceito que depois será um dos principais, senão o principal, sustentáculo da psicologia experimental, outra parte se dedica explicitamente a referir este conceito a temas psicológicos, mostrando como este campo pode surgir em direta ligação com o fisiológico. Justifiquemo-nos. Ao mostrar que tanto agentes externos quanto internos deflagram sensações qualitativamente próximas, ou, por vezes, idênticas, como afirma a primeira das leis, Müller ataca a idéia recorrente de que a sensação nos informa sempre – ou na maior parte dos casos – acerca de qualidades reais dos objetos com os quais travamos contato. Ao 15

Tal perspectiva será criticada por Koffka em seu texto Perception: introduction to Gestalttheorie (1922), ainda que sem menção nominal a Müller. 16 Excetuando-se, evidentemente, a sétima, que não oferece senão uma especulação anatômica.

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mostrar que causas unívocas de nossas respostas sensoriais, sejam estas causas exógenas ou endógenas, só nos afetam na medida em que ocasionam os processos específicos de produção de dados sensíveis de cada via sensorial, como afirmam a segunda e a terceira leis, ele oferece um conjunto de indícios iniciais da absoluta especificidade de cada uma de nossas vias sensoriais. Ao mostrar que as sensações podem ser excitadas por estímulos distintos daqueles que são considerados seus estímulos ótimos, como afirma a quarta lei, ele explicita a existência de maior intimidade na relação entre processo orgânico e sensação do que naquela existente entre sensação e estímulo. O que é intensificado pela quinta lei, quando ela afirma que o que conhecemos por determinada via sensorial é, na maior parte das vezes, a nossa capacidade de sermos afetados, as condições de nossos nervos, e não tanto as coisas que os estimulam. Quando atesta que as variações empíricas possíveis de uma determinada resposta sensorial podem, no máximo, trazer sensações de prazer e desprazer junto às sensações originais, além das modulações de qualidade desta, como faz na sexta lei, ele mostra que nem mesmo as mais radicais perversões da atividade de um nervo fazem com que ele responda por algo que não a sua energia sensorial específica. Por fim, tendo caracterizado esta relação da imensa maioria de nossos dados sensoriais com o funcionamento de nossos nervos, e não com os objetos reais, em uma atividade mimética simples, ele nos permite encontrar pelo menos três características do mundo externo que nos surgem de maneira confiável, estabelecendo, na oitava lei, os últimos contornos deste seu realismo moderado. A sua posição acerca das sensações, portanto, está introduzida, desenvolvida e delimitada. Mas consideremos a segunda fase da argumentação de Müller, na qual encontramos uma direta inflexão de seu pensamento por temas psicológicos. A tentativa de examinar a relação entre sensação e representação através de certos aprendizados ocorridos nos primeiros momentos da vida mental, como ocorre na nona lei, é índice disto e marca uma problemática que não cessará de ser retomada e elaborada pelos trabalhos de investigadores posteriores. Como veremos a seguir em Helmholtz, esta distinção entre o que é um puro resultado dos processos mecânicos de conversão de nosso organismo e o que é uma intervenção da memória e uma recondução daquele resultado a novas paragens, é sistematicamente tratada, de modo a dar lugar a uma teoria mais detalhada da forma como objetos são dados aos nossos atos psíquicos. Com Ernst Mach não será diferente. Para isso

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também contribui a consideração dos processos de atenção na décima lei, os quais revelam como uma função psíquica pode estabelecer rumos novos para o curso da experiência. Decerto, a concepção de um poder mental capaz de alterar os arranjos imediatos do que nos é sensivelmente dado, enfatizando certos aspectos, enfraquecendo ou mesmo suprimindo outros, constitui claramente um reforço da idéia de sensação como uma realidade sumamente individual, fechada em si mesma, que só estabelece relações exteriores com outras sensações. Mais uma vez, caberá a outro investigador oferecer uma visão mais detalhada da sensação enquanto elemento, como veremos logo adiante em Helmholtz e seu recurso à concepção de objeto na filosofia natural. Estudiosos de Müller como Germain e Sacristán (1946, p. VII), afirmarão, no entanto, que o autor pode ser já considerado um psicólogo por haver concebido os perceptos desta maneira em sua décima lei. É o próprio Müller, no entanto, que nos oferece evidências de uma ligação muito mais extensa e profunda entre a sua fisiologia e uma psicologia experimentalmente sustentada. Ele o faz em um estudo anterior ao próprio Handbuch, intitulado Über die Phantastischen Gesichtserscheinungen (1826), no qual afirma: Para o autor, a alma é apenas uma forma particular da vida entre as múltiplas formas de vida as quais são o objeto da investigação fisiológica; ele nutre, por isso, a convicção de que a investigação fisiológica, em seus últimos resultados, deve ser ela mesma psicológica. A teoria da vida da alma [Leben der Seele] como uma forma especial de vida do organismo é, por isso, apenas uma parte da fisiologia no sentido mais amplo da palavra. (p. III e IV)

A clareza e a objetividade do estudioso são suficientes e passam sem maiores comentários de nossa parte. Tendo condições de remontar aos próprios interesses de seu trabalho esta relação tão próxima entre fisiologia e psicologia, torna-se mais facilmente compreensível que a sua concepção de sensação, sistematizada de forma até então nova, bem como as suas observações acerca de algumas funções mentais tenham se projetado amplamente sobre os projetos posteriores de ambas as áreas. É, segundo o que nos consta, precisamente um destes movimentos de apoio, reformulação e redirecionamento que encontramos nos trabalhos de outro cientista bastante relevante para o nosso percurso, Hermann von Helmholtz, discípulo de Müller (STEINER, 1894, p. 341).

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1.2. A teoria das inferências inconscientes de Hermann von Helmholtz: Hermann von Helmholtz, fisiólogo, físico e matemático, destaca-se como uma das principais figuras de um grande número de campos de conhecimento no século XIX. Como nos indica Kline (1962), recuperando as palavras do matemático W. K. Clifford, Helmholtz teria sido um fisiólogo que aprendeu física para aprimorar a sua fisiologia, bem como matemática para aprimorar a sua física, e que restou como representante de primeira linha em todos estes domínios17. No que se refere ao estudo da sensibilidade e às suas contribuições para a fisiologia e a psicologia, ele se destaca, entre outras razões, pelo desenvolvimento de uma teoria mais sistemática da percepção sensível do que aquela proposta por Müller e pela criação de um procedimento de pesquisa específico para o tratamento experimental das sensações, a chamada ‘introspecção experimental’. As contribuições de Helmholtz seguem na esteira das de Johannes Müller, de quem fora aluno nas cátedras de anatomia e fisiologia no Friedrich-Wilhelms Institut, em Berlim, entre os anos de 1838 e 1842, conduzindo as suas pesquisas de doutoramento sobre a histologia do sistema nervoso com o mesmo no inverno de 1841 e trabalhando em seu laboratório nos anos posteriores (BENEKE, 1999, p. 107; TREUTLER, 2002, p.1). Deste modo, ele herda diretamente as contribuições de Müller acerca da teoria das energias sensoriais específicas, desenvolvendo trabalhos a partir dela (1868/1903, p. 295 e 296). Uma inovação teórica bastante consistente do estudioso, no entanto, foi descrever um conjunto de operações que permitem a integração, ao nível da experiência imediata, dos diferentes tipos de sensações que o aparelho sensório nos comunica, creditando essas operações a uma espécie de inconsciente mecânico que tem a sua gênese, assim como a sua constante definição, no próprio curso da vida perceptiva. Buscaremos discorrer sobre tais idéias nos itens a seguir.

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Em física, especificamente, o trabalho de Helmholtz teve a responsabilidade de propor o até então aceito ‘Princípio de Conservação de Força’ (Prinzip von der Erhaltung der Kraft), que busca afirmar, ao nível das trocas de energia dos fenômenos naturais, algo similar ao ‘Princípio de Conservação da Matéria’, de Lavoisier – i.e., que as diferentes formas de energia dispendidas ou emitidas nos processos físicos em sua diversidade não são nunca perdidas, mas reconduzidas ao que seria um sorvedouro natural de energia, passando de lá para outros processos quaisquer em que certo dispêndio de energia possa ser necessário. Em sua preleção Über die Wechselwirkung der Naturkräfte und die darauf bezüglichen neuesten Ermittelungen der Physik, ele afirma: “[...] a totalidade da natureza possui uma reserva de força capaz de produzir efeitos [...] que não pode ser nem aumentada, nem reduzida de maneira alguma” e, por conseguinte, “[...] a quantidade de força capaz de produzir efeitos [...] na natureza inorgânica é tão eterna e inalterável quanto a quantidade de matéria.” (1854/1903, p. 65)

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1.2.1. Estimulação anômala e erro sensível: No §26 de seu Handbuch der physiologischen Optik (1867), Helmholtz introduz a sua teoria da percepção a partir de uma discussão bastante afim às contribuições de Müller sobre a relação entre nossas energias sensoriais e as condições físicas que as deflagram. Trata-se de uma discussão acerca das possibilidades de gerarmos perceptos de mesma natureza a partir de estímulos de naturezas diferentes. O interesse de Helmholtz, no entanto, vai bastante além da simples explicitação da natureza não-mimética de nossa sensibilidade, buscando examinar, em vez disso, as conseqüências da origem diversa dos perceptos na própria experiência que temos deles, sobretudo no caráter de realidade que podemos lhes conferir. A partir de um breve confronto entre as experiências oriundas de estimulação ótima com as experiências oriundas de estimulação anômala, ou não-ótima, ele nos oferece as bases de sua compreensão do fenômeno perceptivo, mostrando como é possível entrever de forma bastante clara, em experiências essencialmente ilusórias, um mecanismo atuante na vida psíquica em sua inteireza18. Vejamos como isto ocorre. De acordo com Helmholtz, toda atividade perceptiva é marcada por uma espécie de regra geral, que consiste na tendência de ultrapassarmos o material sensível que nos é oferecido por nossos processos fisiológicos e afirmarmos, em seu lugar, a existência de objetos reais, situados em um mundo efetivo, que nos apareceriam por meio daquele conjunto de dados. Quando percebemos algo por qualquer via sensorial, portanto, o que fazemos é inferir a existência de objetos a partir das excitações dos terminais nervosos de nosso aparelho sensorial, havendo um claro movimento em que as sensações fisiologicamente explicáveis são vertidas em objeto e este objeto é admitido como coisa independente. Apreensão de sensações, constituição de objeto e presunção de uma realidade inerente ao objeto, portanto, seriam três momentos de uma só cadeia de processos, que é o próprio ato perceptivo. No que respeita à percepção visual, e.g., substituímos determinada impressão sensível – i.e., o aparecimento de luz em uma parte específica do campo visual – pela existência de um objeto real naquela porção do espaço que nos circunda. Assim, se somos afetados por uma onda luminosa na altura do cavalete do nariz, temos a percepção de luz naquela parte específica do campo visual e dizemos que 18

Este percurso não é proposto apenas no Handbuch, constando também nos cursos de 1868, em Frankfurt e Heidelberg, intitulados Die neueren Fortschritte in der Theorie des Sehens (1868/1903, p. 357 e 358), ao qual recorreremos com freqüência nesta exposição.

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tal ou qual objeto se encontra lá, efetivamente perante nós. Se apreendemos um conjunto de sensações táteis pontuais, resultantes da estimulação mecânica dos nervos de certa porção da pele, passamos sem dificuldade à idéia de um corpo extenso específico, que seria a causa objetiva daquelas sensações. Cada via sensorial, com as sensações que lhe são específicas, poderia exemplificar este movimento ao seu modo. Um problema, entretanto, insinua-se com facilidade nesta discussão. É certo que, na imensa maioria de nossas percepções diárias, a cada momento sucessivo do contato com os objetos que cremos estarem na base de nossas representações, podemos corroborar o que estas mesmas representações mostram ser já desde a sua estruturação. Entretanto, há casos em que somos persuadidos de algo que não se mantém perante um exame rigoroso, ou ainda, casos em que temos plena certeza de que o julgamento que somos instados a ter acerca de um percepto é necessariamente errado, ainda que não consigamos evitá-lo. Estas possibilidades se situam em pleno terreno das chamadas ‘ilusões dos sentidos’ (Sinnestäuschungen). Se aqueles primeiros erros de percepção seriam enganos completamente ordinários, como a simples percepção de um vulto humano onde só há uma sombra qualquer, de contorno análogo ao de um homem, os últimos erros seriam mais facilmente encontrados em casos patológicos. O exemplo de base para a argumentação de Helmholtz é a percepção da dor fantasma em amputados – i.e, de uma dor específica referida a um membro efetivamente inexistente, mas experimentado como existente por razões a princípio obscuras. Pacientes que apresentam esta peculiaridade podem atestar de inúmeras formas a inexistência factual do membro, mas não podem evitar a experiência que explicitamente o presume ali, ocasionada pela estimulação dos nervos rompidos no coto ou por contrações do tecido cicatricial. Como podemos compreender este movimento específico da percepção, que parte de um conjunto bastante vívido de sensações e afirma, a partir delas, um objeto que é desmentido por todas as demais vias possíveis de nossa experiência? Como podemos compreender situações em que o modus operandi da percepção, exitoso na maior parte das vezes em que o vemos atuar, erra de maneira grosseira, deixa-nos inteiramente cônscios de seu erro, mas, ainda assim, não o retifica? A explicação de Helmholtz para tal problema vem basicamente em duas etapas. Na primeira destas, ele afirma que a própria natureza do estímulo atua na estruturação do engano: estímulos não-ótimos oferecem material sensível, mas não

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permitem, na maior parte das vezes, a formação de concepções adequadas dos objetos. A percepção de um membro fantasma, portanto, seria um efeito enganoso de estímulos adversos, da mesma forma que a crença na existência efetiva de uma luz que é mero efeito de irritação mecânica da vista. Não perceberíamos a dor pela afecção do corpo por um estímulo atual, que vem de fora e se aplica ao membro, como na maior parte dos episódios de nossa vida em que sentimos alguma dor, mas sim por estímulos anômalos de um tecido lesionado, por excitações ocasionadas pelo próprio nervo. Nestes episódios em que um estímulo impróprio afeta um órgão receptor qualquer, nada opera de maneira errônea durante a formação do percepto, senão, diz-nos Helmholtz, uma espécie de juízo que direcionamos às sensações dadas: a estimulação afeta normalmente o organismo e este responde normalmente a ela com os processos fisiológicos habituais à sua conversão; o corpo segue o que é constituído para seguir. A ilusão ocorre na interpretação ou no julgamento (Beurteilung) que dirigimos ao material apresentado aos sentidos. Isto nos conduz precisamente à segunda via da explicação de Helmholtz, que consiste na afirmação da existência de um mecanismo de inferências psíquicas que opera a cada vez que um objeto surge em nossa experiência, permitindo-nos passar das sensações reais, do material empírico diretamente constituído pelas operações nervosas, ao objeto estável. Tais inferências seriam uma espécie de operação sintética originária do psiquismo, sem a qual os objetos da vida mental não poderiam, em absoluto, ser dados. Elas seriam, por natureza, inconscientes, posto que anteriores ao aparecimento de todo e qualquer conteúdo psíquico objetivo. Seriam, em suma, a condição genética da existência destes mesmos conteúdos. Helmholtz (1867) as descreve inicialmente da seguinte maneira: As atividades psíquicas [psychischen Tätigkeiten] através das quais nós chegamos ao juízo de que esteja presente [vorhanden sei] um objeto [Object] determinado, de constituição determinada, em um lugar determinado, externo a nós, não são, em geral, atividades conscientes [bewusste Tätigkeiten], mas inconscientes [unbewusste]. Elas são, em seu resultado, similares a uma inferência [Schluss], uma vez que nós, a partir do efeito observado em nossos sentidos, obtemos a representação [Vorstellung] de uma causa deste efeito, enquanto nós, no entanto, podemos perceber, de fato, diretamente apenas as irritações dos nervos – i.e., os efeitos, e nunca os objetos externos. (p. 187)

Agora vejamos. No que respeita à explicação das ilusões dos sentidos, bastaria a Helmholtz indicar que o erro no qual eventualmente incorremos – ou cronicamente, no exemplo citado – consiste em aplicar uma determinada imagem ou expectativa de objeto a

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um conjunto de dados sensoriais que não o substancia verdadeiramente: nós transferimos certas noções de objetos externos, que estariam corretas em condições normais, a condições anormais, em que estímulos indevidos afetam nossos órgãos. Se não conseguimos formar uma imagem clara do que as sensações efetivamente são porque elas nos surgem de maneira excessivamente inabitual, nós as julgamos a partir de sua semelhança mais próxima (1868/1903, p. 357 e 358). A dor no coto, portanto, se torna dor em um membro inexistente; a figura parecida com um vulto se torna efetivamente um vulto. O propósito do fisiólogo, no entanto, não é de modo algum apenas explicar tal problema, mas tomá-lo como fio condutor para introduzir a descrição destas operações conclusivas por meio das quais os objetos de nossa experiência são dados. A breve discussão acerca do erro perceptivo parece servir apenas de ocasião para que este princípio geral do funcionamento psíquico – ele sim importante – seja explicitado e se torne, doravante, o objeto efetivo de atenção do autor. Antes de acompanharmos os desdobramentos imediatos de sua argumentação, no entanto, cabe notarmos, a partir da citação acima recuperada, que Helmholtz adere claramente à idéia geral dos fisiólogos de seu tempo, segundo a qual nosso contato primário, no curso normal de nossa experiência, é com as nossas sensações em seus múltiplos agregados, e não tanto com as efetividades que se encontram na origem de nossas respostas nervosas. Junto a Müller, portanto, Helmholtz foi considerado representante da já mencionada releitura fisiológica de Kant, ainda que sobre ele pesem as mesmas ressalvas feitas a qualquer cientista que busque endossar esta perspectiva e, ao mesmo tempo, recorrer a procedimentos experimentais – sobretudo físicos.

1.2.2. A natureza da constituição inconsciente de objetos: Em sua tentativa de explicar a natureza desta inferência que opera sobre as sensações, Helmholtz busca ressaltar não apenas o fato de elas serem inconscientes e não envolverem, por conseguinte, nenhuma espécie de deliberação ou ato de pensamento, mas também a sua proximidade de um tipo específico de inferência consciente, a chamada ‘inferência por analogia’. Esta não seria nada além da aplicação, a novos casos, de opiniões obtidas por uma indução simples a partir de certo número de episódios em que determinado fenômeno nos foi apresentado. Ao constatar uma regularidade na sucessão de um evento,

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passamos a crer que aquela regularidade é representativa de todo e qualquer evento daquele tipo e aplicamos tal idéia a situações que nos parecem afins a ele. Passamos, portanto, de uma conclusão mais ou menos ponderada, obtida a partir de um número finito de experiências, ao que é potencialmente infinito – passamos do conhecido ao desconhecido. Trata-se, claramente, da formação de um hábito psicológico que nos permite trazer o que nos ocorre para uma trama de sentidos já familiar, para o que é já dominado e bem estabelecido. Na vida prática, um sem-número de certezas morais ou conhecimentos acerca de fenômenos naturais são obtidos precisamente desta maneira, como quando inferimos que de tais ou quais tipos de pessoa podemos esperar tais ou quais condutas, ou, ainda, quando afirmamos o nascer do sol a cada dia não por sabermos as justificativas astronômicas disto, mas simplesmente porque tem sido assim desde sempre. A tese de Helmholtz, não será difícil constatar, é profundamente empirista, pois entende que o simples fato de vivermos com certa freqüência uma determinada circunstância modula a nossa capacidade de perceber esta mesma circunstância nos momentos posteriores em que a vivermos novamente. O cerne da percepção seria uma espécie de aprendizado possibilitado pela própria vida perceptiva, em que os conteúdos que a cada vez nos são dados – inteiramente contingentes, específicos e parciais, deve-se salientar – retroagiriam sobre a nossa faculdade perceptiva e a abririam para a afirmação de semelhanças. O movimento essencial da percepção, portanto, seria algo como uma dobra sobre si mesma – um movimento de recognição19. As [...] inferências inconscientes da sensação para a sua causa são, em seus resultados, equivalentes às chamadas inferências por analogia [Analogienschlüsse]. Uma vez que, na ampla maioria dos casos, a irritação de pontos da retina no canto externo do olho advém de luz externa, a qual atinge 19

O que encontramos como recurso explicativo da tese de Helmholtz, é, em teoria do conhecimento, um problema candente desde o Novum Organum (1620) de Francis Bacon (1972). A tentativa de se sistematizar a indução como via segura para o conhecimento de generalidades exige, da parte daquele que a pratica, escrupulosa atenção à dependência direta do conhecido em relação ao conjunto de dados particulares que oferece a sua base, do qual é abstraído. Não há conjunto de particulares suficientemente amplo para substanciar uma afirmação de generalidade que a coloque na condição de generalidade absoluta, válida para todo e qualquer caso possível de um dado fenômeno, mesmo os casos ainda não observados. O valor epistêmico deste tipo de procedimento é sempre dependente de um número de observações, de um acúmulo prévio de dados e só pode encontrar nele a sua justificativa. A tentativa de efetuar a passagem de uma generalidade induzida a um campo exterior às observações realizadas é, portanto, mera estimativa, nunca se despindo de valor probabilístico. O empirista ou o filósofo natural deveriam contornar a todo custo esse tipo de mazela (OLIVA, 2007). Dada a aproximação, por Helmholtz, entre os nossos processos psíquicos e este tipo de conclusão, podemos dizer sem dificuldades que, para o fisiólogo, a estrutura de nossa experiência cometeria naturalmente o erro que o empirista cônscio de sua tarefa deveria evitar.

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o olho pela região do cavalete do nariz, nós julgamos que seja assim em cada novo caso que ocorra, em que o mencionado ponto da retina seja irritado – da mesma maneira que asseveramos que cada homem individual que está vivendo agora morrerá, pois, até então, a experiência deu como resultado que morreram todos os homens que antes estavam vivos. (HELMHOLTZ, 1867, p. 430)

É precisamente o fato de não serem atos livres do pensamento consciente que faz destas operações processos irresistíveis, que simplesmente nos ocorrem, passando inteiramente ao largo de nossa vontade e não podendo ser superados por uma compreensão mais fina ou complexa das relações reais entre os conteúdos percebidos. Mesmo o estudo rigoroso das condições fisiológicas de todo ato perceptivo não impede que a percepção ordinária afirme a existência de coisas externas, que seriam, presumidamente, as causas efetivas do dado20. O recuo crítico do sujeito percipiente é sempre possível – e logo veremos o quanto esta possibilidade foi investida de considerável valor metodológico –, mas isto não muda a natureza do processo e o seu realismo inerente. É certo, entretanto, que esta modulação é possível no plano da qualidade do objeto. Por objeto, Helmholtz entende apenas uma composição arbitrária de idéias sensoriais específicas, a qual seria estritamente dependente de forças de ligação (Verbindung), que atuariam unindo aquelas idéias umas às outras pelo simples critério da freqüência de seu aparecimento conjunto. De acordo com o fisiólogo, o mesmo princípio que nos permite tomar certos eventos ou idéias como signos que aludem a outros eventos ou idéias atua na feitura dos objetos que surgem à vida psíquica. Isto quer dizer: desempenham um papel fundamental na definição destes as mesmas forças pelas quais podemos, e.g., ter consciência de uma coisa por ouvirmos o som articulado ou o registro escrito que exprimem o nome convencionalmente atribuído à coisa em questão. A palavra dita e o nome escrito são a tal ponto apresentados junto à idéia da coisa designada, que aprendemos a inferi-la pela simples apresentação de um daqueles termos. Aprendemos a unir um signo a um designado, de maneira que uma relação extremamente forte se estabelece entre ambos e eles passam, para muitos efeitos práticos, a se igualar, a surgir como se um copertencimento natural os resumisse. Isto ocorre ao nível das sensações que se unem para a 20

Como afirma em Die neueren Fortschritte in der Theorie des Sehens: “É precisamente esta atestação contínua da exatidão das imagens visuais [Gesichtsbilder] através de nossas ações que nos produz a convicção firme acerca de sua verdade e fidelidade imediatas e perfeitas; uma convicção que não é abalada por quaisquer objeções, não importa o quão bem fundamentadas se mostrem, da filosofia ou da fisiologia.” (1868/1903, p. 272)

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composição do objeto: por percebermos que determinadas afecções surgem em nosso corpo quando travamos contato com determinado objeto e que isto ocorre vez após vez, a cada contato ulterior com o mesmo objeto ou com outro que lhe seja aparentado, aprendemos a unir por um vínculo aditivo intenso cada uma daquelas qualidades sensoriais. Elas surgem sempre como índices umas das outras, compondo uma totalidade que se deve não exatamente a uma relação intrínseca de implicação de um conteúdo por outro, mas simplesmente ao fato de termos aprendido que as coisas se dão deste modo21. Objeto aparecente, portanto, é um ‘agregado de sensações’ (Verbindung von Empfindungen) e a força pela qual este agregado se afirma nada é além de uma costura operada pelas nossas próprias experiências. A educação é a base a partir da qual todo processo psíquico pode vir a ocorrer e afirmar suas qualidades. Ao contrário do que vimos a propósito da interpretação do objeto como coisa existente, aqui, certo treinamento ou certa disposição voluntária perante as qualidades do objeto pode modular o seu aparecimento: [...] para muitos fisiólogos e psicólogos, a ligação das sensações com a representação do objeto da mesma costuma parecer tão firme e cogente que eles são pouco inclinados a reconhecer que essas ligações, pelo menos em grande parte, baseiam-se em experiência adquirida, i.e., em atividade psíquica [...]. Com relação a isto, são de grande significado todas as experiências que comprovam como, através da experiência e do exercício em circunstâncias diversas, o ajuizamento acerca das sensações pode ser alterado e adaptado a novas condições, de maneira que se aprenda, em parte, particularidades da sensação que não seriam de outro modo observadas e que não produzem nenhuma intuição do objeto [Anschauung vom Object] [...]. (HELMHOLTZ, 1867, p. 431)

A isto está intimamente ligada outra característica importante da teoria de Helmholtz, que é a afirmação de certa economia inerente aos nossos desempenhos psíquicos, a qual faz com que atentemos apenas às sensações que são importantes para percebermos objetos e deixemos as demais de lado, fora do campo atual de nossa percepção, como dados tácitos e, a depender das circunstâncias, evocáveis, mas nunca presentes por si mesmos22. Tais sensações são chamadas ‘subjetivas’ pelo fisiólogo, na 21

Esta perspectiva, bastante difundida na psicologia experimental do século XIX, será criticada tanto pela fenomenologia quanto pelo gestaltismo, como poderemos ver nos capítulos seqüentes. Ambas afirmarão, cada qual ao seu modo, que há dados fenomenais que apresentam uma relação essencial de implicação, não sendo sempre a aprendizagem que define o enquadramento assumido pelos objetos. 22 Em outra de suas preleções, ministrada em Bonn em 1857 e intitulada Über die physiologischen Ursachen der musikalischen Harmonie, Helmholtz afirma: “[...] é uma lei geral de todas as nossas percepções sensíveis que apenas nos atentemos às nossas sensações enquanto elas podem nos servir para reconhecermos objetos

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medida em que não se prestam a fornecer base para aparecimento de objeto algum 23, exigindo, em sua maioria, um treinamento especial para que as possamos apreender. Helmholtz nos oferece, entre diversos exemplos, o dos movimentos específicos das órbitas oculares que nos permitem ver que as imagens geradas na contemplação binocular de um objeto são, em origem, duplas – uma para cada olho, dependente de ângulos de visada diferentes. Quando isto ocorre, nós, que estamos habituados a enxergar tão somente a imagem resultante da combinação das imagens parciais, ficamos surpresos e pensamos estar diante de algo impróprio à experiência visual. Tais imagens distintas, no entanto, sempre estiveram lá, constituindo um campo visual cingido em basicamente três partes – uma na qual prevalecem os dados oriundos de um olho, outra na qual prevalecem aqueles oriundos do outro olho, e, por fim, uma última em que os dados se misturam, conjugando os campos parciais. Isto se dá justamente pela atuação daquela economia perceptual. Outro exemplo é oferecido em Die neueren Fortschritte in der Theorie des Sehens, quando o fisiólogo afirma a existência de uma defasagem no campo visual que não é ordinariamente perceptível a nós e que se deve à existência de vascularização na superfície anterior da retina – raios luminosos que venham a passar pela pupila e pelo humor vítreo podem ainda assim não excitar a retina se incidirem sobre um capilar, simplesmente não sendo registrados no quadro final de nossa experiência, ainda que tenham estado prestes a fazer isso (1868/1903, p. 288)24. A rigor, o quadro visual deveria ter, nesta região, uma fissura ou uma descontinuidade se um princípio econômico e integrador não nos privasse desta percepção fina. Por fim, ao lado destes exemplos do próprio estudioso, poderíamos ainda sugerir o da percepção acústica de um músico treinado, que passa a escutar em uma nota isolada a altura referente à quinta justa desta nota, que sempre se encontrou lá, como um harmônico ou uma parte componente do som ouvido, mas não pode ser inferida pela

externos. Com relação a isto, nós somos, todos, mais do que supomos, partidários sem consideração e unilaterais da utilidade prática. Todas as sensações que não têm relação direta com objetos externos, acostumamo-nos a ignorar plenamente no uso ordinário dos sentidos, e só nos tornamos cientes delas pela investigação científica da atividade sensível [...]” (1857/1903, p. 146) 23 Como se pode facilmente depreender de tudo o que foi dito até então, toda sensação é subjetiva, já que ela consiste, se considerada pelo ponto de vista psíquico, em um simples elemento da vida representacional, e, se consideradas pelo ponto de vista fisiológico, em um processo nervoso específico. Sensações não têm valor formal para além da integridade psicofísica do homem. Ao chamar algumas delas de ‘subjetivas’, Helmholtz não lhes acrescenta um predicado relevante, segundo entendemos, mas apenas busca enfatizar que elas não servem ao aparecimento de objetos, não sendo, neste sentido, ‘objetivas’. 24 Trata-se do ‘ponto cego’.

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maioria daqueles que a percebem. Na vida ordinária, sensações como estas, ‘sensações subjetivas’, não desempenham importância alguma, podendo ser, muitas vezes, apenas curiosidades. Seu valor para a pesquisa científica, no entanto, é elevado – a vida sensível se revela um vasto campo a ser perscrutado, no qual, por mais que tudo nos pareça claro, patente, sempre há o que ser descoberto, explicitado e compreendido. [...] a experiência nos leva a tomar conhecimento de um agregado composto [zusamengesetztes Aggregat] de sensações como o sinal [das Zeichen] para um objeto simples; habituados a considerar o complexo de sensações [Empfindungscomplex] como um todo co-pertencente [zusammengehöriges Ganze], nós não podemos, via de regra, sem auxílio e apoio externos, nos tornar conscientes das partes componentes simples de um tal todo. [...] Mesmo no caso de sensações muito mais compostas, que correspondem apenas a objetos compostos recorrentes freqüentemente, a análise da sensação se torna, através da mera observação, tanto mais difícil quanto mais freqüentemente esse composto [Zusammengesetzung] recorreu e quanto mais nos tornamos habituados a considerá-lo como sinal normal da constituição [Beschaffenheit] real do objeto. (HELMHOLTZ, 1867, p. 433)

Antes de passarmos à próxima seção, cabe considerar ainda um outro detalhe da teoria da percepção de Helmholtz, já presente na citação acima recuperada. Trata-se da concepção das sensações como signos (Zeichen) ou símbolos (Symbole) das coisas do mundo, pela qual o fisiólogo busca explicitar em que medida os conteúdos que nos são dados na experiência podem ser legitimamente referidos ao mundo de efetividades físicas, re-apresentando sob a forma de fato psíquico aquilo que guarda, em si mesmo, realidade e consistência. Em sua preleção Über Goethes naturwissenschaftliche Arbeiten, Helmholtz (1853/1903) nos oferece uma interessante imagem pela qual podemos pensar aquela relação. Ele afirma que as sensações: “[...] nos dão, com efeito, informação sobre as pecularidades [Eigenthümlichtkeiten] do mundo exterior [Aussenwelt], mas não uma informação melhor do que nós podemos oferecer a um cego acerca de cores, por meio de descrições verbais.” (p. 41 e 42). A relação da percepção com um mundo de efetividades seria, no entender de Helmholtz, estruturalmente similar à relação entre signos lingüísticos e os objetos por eles designados: um esforço essencialmente referencial, que alude a algo, põe em cena certos conteúdos que têm direta ligação com este algo, voltando-se incisivamente a ele, sem, contudo, alcançá-lo e consumar a sua pretensão de união. A percepção é uma seta disparada em direção ao real, mas que não é inteiramente exitosa em tocá-lo ou traduzi-lo de maneira fidedigna. É um movimento sem realização, na maior parte

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dos casos. A única razão pela qual não se pode estender esta caracterização à totalidade das relações entre percepção e mundo é porque, de maneira intensamente próxima à de Müller, Helmholtz afirma que há certos caracteres dos objetos que se manifestam diretamente na vida psíquica. Tratam-se, mais uma vez, das relações de caráter matemático, como relações temporais, espaciais, de igualdade, número, tamanho, regularidade de coexistência e seqüência, as quais são comuns aos mundos exterior e interior, podendo-se mesmo esperar que haja uma plena correspondência entre estes (1868/1903, p. 365). Deste modo, por mais que tenhamos, na ampla maioria dos desdobramentos da percepção, uma espécie de velamento da realidade, que estabelece para o homem, em termos que lhe são inteiramente próprios, um mundo habitável, de dados organizados, há momentos em que algo daquela realidade se torna acessível. Segundo entendemos, reside nesta tese um dualismo bastante evidente e que compromete o projeto fisiológico-psicológico de Helmholtz com a admissão de uma distinção categórica, quase ao modo de uma distinção substancial, entre o que são as propriedades efetivas do mundo real e o que são as expressões psíquicas destas mesmas propriedades. Além de desabonar a qualificação do estudioso como um kantista, isto parece sugerir uma dependência de suas propostas em relação ao quadro metafísico moderno que seria, não tarde, questionado por pensadores extremamente relevantes da psicologia clássica, como Gustav Fechner e Ernst Mach. Mas estes problemas não serão perseguidos aqui.

1.2.3. Os modos da percepção e sua estruturação silogística: Após esta explicação preliminar dos processos constitutivos do objeto, Helmholtz nos oferece definições que são importantes para compreendermos o quadro geral de sua teoria da percepção, bem como as propostas metodológicas dela oriundas. O fisiólogo afirma que, entre as diferentes percepções (Wahrnehmungen) que nos são possíveis, temos: (1) ‘representações’ (Vorstellungen), que são experiências de objetos que nos aparecem sem serem acompanhados por impressões sensíveis presentes – i.e., sem que seu aparecimento seja por ocasião de um desempenho perceptivo atual, que se volte diretamente a uma condição real, objetiva, que produza afecções em nossos terminais nervosos; (2) ‘intuições’ (Anschauungen), que são experiências de objetos que têm tal acompanhamento, surgindo como apreensões diretas de eventos mundanos, interpretados

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ao modo realista já discutido; e (3) ‘percepções imediatas’ (Perzeptionen), que consistem na apreensão do fundamento sensorial que nos traz o objeto à consciência, sem recurso a recordações de quaisquer tipos – um movimento no qual apenas o que é efetivamente vivido pelo sujeito percipiente, de maneira mais crua e simplória, torna-se o conteúdo do ato perceptivo25. Se percebo diretamente um objeto extenso que se encontra perante mim, portanto, efetuo uma intuição. Se recupero este conteúdo sensorial por qualquer via da experiência que dependa de uma percepção prévia, mas não se dê ao modo de uma percepção, como ocorre com a rememoração, efetuo uma representação. Agora, se me volto ao conjunto de impressões sensíveis simples que serviram de ocasião para o aparecimento daquele mesmo objeto de percepção, ao complexo sensorial que o definiu, efetuo uma percepção imediata, retrocedendo do objeto aos elementos que o possibilitam. Como veremos dentro em pouco, é precisamente esta passagem das intuições às percepções imediatas que a psicologia científica deve buscar. Por estas distinções e por tudo o que fora dito antes, podemos entender a problemática inerente ao estudo experimental da percepção, que é a de entender o que, no complexo sensorial objetificado que se nos apresenta, pode ser efetivamente remontado às excitações de nossos terminais nervosos, e o que, por outro lado, pode ser um simples aporte de nossa memória, ou um efeito de hábitos psicológicos adquiridos em experiências passadas atuantes na estruturação da forma objetual do complexo. Helmholtz (1867) afirma: [...] as imagens mnêmicas [Erinnerungsbilder] provindas de experiências prévias atuam em conjunto com as sensações atuais a fim de produzir uma imagem visual [Anschauungsbild], a qual se impõe à nossa faculdade perceptiva [Wahrnehmungsvermögen] com força cogente, sem que aí se separe, na consciência, o que é dado através da memória e o que é dado através da percepção atual. (p. 436)

É justamente esta dúvida que a principal contribuição metodológica de Helmholtz, a introspecção experimental, visa dirimir. A duração e a consistência de ambas as formas de conteúdo constituintes de nossos perceptos é, no entanto, diferente, e é precisamente isto 25

Devemos salientar aqui que os vocábulos Wahrnehmung e Perzeption são essencialmente homólogos, sendo ambos, na maioria das vezes, traduzidos por ‘percepção’. A primeira palavra é apenas a palavra efetivamente germânica para ‘percepção’, ao passo que a segunda é de origem latina. Introduzimos o adjetivo ‘imediata’ para traduzir Perzeption acompanhando a tradução inglesa de Southall, que, de resto, nos parece não só evitar uma indesejável repetição de termos, como também acrescentar ao nome do conceito uma característica explícita em sua definição, o que não compromete em nada a compreensão.

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que torna possível a redução dos perceptos às sensações: enquanto as contribuições da memória podem ser eliminadas pelo devido esforço intelectual, que revela de pronto a sua impertinência ao quadro de apreensões efetivas do organismo, nenhum ato mental pode alterar a consistência de uma sensação presente. Podemos, é certo, não perceber algumas destas sensações se elas não forem relevantes para a configuração de um objeto, ou se forem por demais discretas e sutis. Se voltamos a nossa atenção para o âmbito da sensibilidade em que aquela sensação se afirma, no entanto, não temos condições de não identificar a sua presença lá. Não há esforço ou gesto de vontade que a apague ou altere. Assim, uma percepção térmica pode ser desprezível para um sujeito que se dedica à contemplação de uma imagem qualquer, uma vez que ela não seria importante para a percepção daquele objeto específico. No entanto, se, por qualquer razão, o sujeito se voltar às condições térmicas de seu corpo, terá de perceber diretamente aquelas sensações que antes não eram importantes. Não lhe é facultada nenhuma escolha. Para Helmholtz, é precisamente esta incapacidade de eliminarmos certas sensações de nosso quadro perceptual geral que faz com que nos deparemos com o fenômeno sensível efetivo, e percebamos o que verdadeiramente constitui os nossos processos psíquicos atuais: “[...] nada que, por meio de momentos que a experiência forneceu comprovadamente, possa ser superado na imagem visual e convertido em seu oposto pode ser reconhecido como sensação em nossas percepções sensíveis.” (HELMHOLTZ, 1867, p. 438) Antes de considerarmos como se dá o programa de estudos da sensibilidade por Helmholtz, cabe introduzirmos ainda a mais conhecida imagem por ele empregada para caracterizar os seus processos. A hipótese central de Helmholtz é a de que as nossas idéias e percepções se formam por conclusões indutivas, obedecendo a um processo constitutivo que se assemelha à figura lógica do silogismo. Como amplamente se sabe, silogismos são formas específicas do raciocínio lógico que buscam estabelecer conclusões válidas a partir do confronto de duas proposições previamente dadas, uma das quais deve compreender, em seu conteúdo, o conteúdo da outra. A primeira e mais ampla destas proposições é chamada premissa maior, e ela deve enunciar uma espécie de cláusula geral sob a qual certa quantidade de exemplos se agrupa. A segunda e menos ampla das proposições, necessariamente contida no sentido veiculado pela primeira, constando como um dentre os tantos exemplos compreendidos por sua regra geral, é chamada premissa menor. A

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conclusão consiste na proposição que resulta do simples gesto de coligir aquilo que ambas as premissas afirmam. Um silogismo, portanto, poderia ser encontrado nesta seqüência de proposições oferecida por Helmholtz: ‘Todos os homens são mortais. Caio é um homem. Caio é mortal’. Premissa maior, premissa menor e conclusão seguir-se-iam com clareza neste argumento. Aplicando este modelo silogístico às explicações prévias, teríamos: (1) na condição de premissa maior, as idéias oriundas da experiência passada, que assumem caráter normativo e orientam a estruturação dos objetos; (2) na condição de premissa menor, o conjunto de sensações difusas originadas das excitações nervosas de nosso corpo, quando em contato com certas efetividades físicas; (3) na condição de conclusão, o objeto dado na experiência atual, que nada é além da leitura das sensações pelo fundo de memórias e aprendizados. Deste modo, podemos ter a forma geral da experiência resumida pela seguinte seqüência de constatações: ‘tenho em mim tais e tais impressões sensíveis advindas de minha relação presente com o meio que me circunda. Elas me trazem de pronto as lembranças de tais e tais episódios em que estive em circunstâncias idênticas ou análogas. Disto, concluo que as condições experimentadas pela minha sensibilidade nada são além de uma reapresentação daquelas mesmas condições em que me encontrei no passado. Estou diante do mesmo.’ Evidentemente, esta seqüência de constatações não é em nada consciente, por mais que a nossa formulação sugira uma quase caricatural necessidade do sujeito de experiências refletir sobre o que lhe acontece antes que o menor percepto organizado possa se insinuar em sua consciência. Nada mais distante das teses de Helmhotz, que afirma repetidas vezes e com notável ênfase a natureza inconsciente destes eventos. Trata-se, aqui, apenas de uma descrição sucinta dos efeitos de um inconsciente de todo mecânico e anterior a qualquer experiência consumada. Considerando a comparação já feita por Helmholtz entre as conclusões por analogia e as inferências inconscientes e considerando também esta imagem lógica oferecida pelo fisiólogo, podemos dizer que a experiência se estrutura por um encadeamento específico de induções e deduções. Se a formação das premissas maiores é feita por uma indução ingênua que tem por base as experiências particulares, o objeto é deduzido do confronto entre estas premissas maiores e as menores, ou o material sensorial. Este duplo movimento é afirmado por Helmholtz da seguinte maneira:

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[...] toda aparição [Schein] se origina em induções prematuras e irrefletidas, pelas quais nós extraímos, de casos prévios, conclusões para casos novos, e na qual a tendência às falsas conclusões permanece, a despeito de um melhor discernimento da coisa, fundado em uma reflexão consciente. (HELMHOLTZ, 1867, p. 450)

1.2.4. A introspecção experimental e o elementarismo: A partir destas informações, temos já uma idéia clara da teoria da percepção de Helmholtz e podemos compreender adequadamente sua proposta metodológica para a fisiologia e psicologia científicas, a qual foi comumente chamada ‘introspecção experimental’. No interesse de compreender o que efetivamente ocorre na conversão de nossas reações nervosas em conteúdos mentais específicos, o que devemos fazer é afastar quaisquer aspectos socioculturais que possam conferir sentido à experiência e nos ater apenas ao que consta como dado empírico, sensível, na mesma. Deste modo, a tarefa da descrição experimental dos perceptos é decalcar o objeto em seu fundamento sensorial, pondo a descoberto apenas quais são as diferentes qualidades sensíveis que, uma vez unificadas pelos processos associativos de nosso psiquismo, tornam-se um percepto qualquer. Antes de designar a coisa que se encontra diante de mim pelo seu nome ou pela sua função culturalmente estabelecidas, pela forma unificada ou pelo contorno que parece fazer dela uma totalidade íntegra, estável, devo dizer o que caracteriza o seu simples dar-se a mim enquanto acontecimento de minha sensibilidade – se ela assume tais ou quais matizes cromáticos e condições de sombreamento, tais ou quais texturas e odores, e assim por diante. Devo, em uma palavra, dissolver a sua aparente integridade em um conjunto de dados sensíveis irredutíveis e que podem ser apreendidos individualmente. Conhecer este solo de uma dada experiência seria compreendê-la de maneira cientifica rigorosa. Se a ordem constitutiva de objetos, portanto, é um movimento sintético, que passa das sensações dadas ao objeto de um ato psíquico, a prática do método introspectivo é um movimento analítico, que passa do objeto às sensações dadas. Nos termos introduzidos no início deste item, trata-se de uma redução de intuições às percepções imediatas que se encontram em sua base. Ambas as propostas revelam-se, claramente, faces distintas de uma só moeda. Este processo deve ser conduzido de formas distintas para cada sentido dado. Em alguns sentidos, haveria certa facilitação deste procedimento analítico, e isto por conta da própria estrutura anátomo-fisiológica do órgão receptor. É o que podemos afirmar, de

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acordo com as descrições de Helmholtz em sua preleção Über die physiologischen Ursachen der musikalischen Harmonie, acerca da audição. O fisiólogo afirma: “Como nos mostra a experiência, o ouvido pode analisar [zerlegen], em suas partes, ondas de ar compostas” (1857/1903, p. 140), o que acompanharia com exatidão o postulado do matemático e físico Jean-Baptiste Fourier, segundo o qual toda onda pode ser decomposta em ondas mais básicas. Esta aptidão seria devida ao funcionamento do órgão de Corti, situado ao fundo da cóclea e sede dos processos de conversão do sentido auditivo. O órgão teria em sua extensão inúmeras placas microscópicas, arranjadas uma ao lado da outra, de maneira ordenada, como as teclas de um piano, as quais se ligariam em sua extremidade aos nervos auditivos. Estas ligações, que existiriam na casa dos milhares, seriam capazes de captar, cada uma delas, uma freqüência sonora específica, de forma que toda a extensão da nossa audição seria abarcada por este aparato orgânico estratificado, cujas partes teriam funções de todo individuais e estariam na base de processos fisiológicos também individuais. O ouvido seria capaz, portanto, de reduzir toda onda complexa que lhe sobrevêm a ondas simples, tendo estas como excitações, e não aquelas. As ondas seriam analisadas pelo próprio sistema de recepção e os processos de formação de energia nervosa seriam sempre iniciados por estímulos simples. Teríamos consciência destas sensações simples apenas de forma mediata, por um exercício de atenção, como em praticamente todos os outros sentidos. Esta facilitação do esforço analítico pelos próprios processos de recepção e conversão, no entanto, seria específica à audição. À visão, e.g., falta um tal poder natural de decomposição de estímulos: [...] o olho não pode separar sistemas de ondas luminosas compostos, i.e., separar cores compostas [zusammengesetze]; ele os sente em uma sensação simples, não-analisável [nicht aufzulösenden], a sensação de uma cor mista. Por isso lhe é indiferente se na cor mista estão unidas cores fundamentais de relações oscilatórias simples ou não-simples. Ele não tem nenhuma harmonia como o ouvido; ele não tem música. (HELMHOLTZ, 1857/1903, p. 154)

A despeito destas diferenças estruturais a cada sentido que demarcam a sua abertura ao procedimento redutivo de Helmholtz, a tarefa sendo mais fácil em uns que em outros, a tese geral de que sos perceptos devem ser remontados a seu fundamento sensorial permanece válida para todos os sentidos. Com vistas a concluir nossa passagem pelas contribuições de Helmholtz, cabe apenas ressaltar que ele buscou oferecer um sustento mais explícito à tese da sensação 63

como um núcleo irredutível e individual do conteúdo sensível. Se esta tese já se encontrava, como pudemos ver, na obra de Müller e se ela já é claramente endossada por este modelo analítico para o estudo experimental da consciência, ela é certamente fortalecida por meio da tentativa de Helmholtz de associá-la a um paradigma de ciência tal como aquele existente na modernidade, com os primeiros trabalhos em filosofia natural26. Com efeito, para tal paradigma, o esforço do estudo científico seria observar fenômenos complexos e encontrar meios precisos para que estes fenômenos pudessem ser reduzidos aos fenômenos mais elementares que operariam no interior daquela complexidade, bem como ao conjunto de princípios exteriores a estes fenômenos elementares que os conduziriam a uma interação específica, a qual teria como resultado o fenômeno complexo. O estudo de qualquer objeto científico, portanto, seria uma tentativa reduzi-lo a partes componentes e princípios extrínsecos de relação entre essas partes. É precisamente daí que advêm os qualificativos ‘elementarista’ – ou ‘atomista’ – e ‘mecanicista’ de uma determinada teoria científica: por sua ênfase em elementos unitários e indivisíveis e em princípios mecânicos exteriores que levam estes elementos a uma dada relação. Tal modelo seria, não apenas para Helmholtz, que o assumiu explicitamente, mas também para diversos outros pesquisadores em fisiologia e psicologia que vieram em sua esteira, o modelo por excelência para a compreensão do psiquismo, a estrutura mesma pela qual nossa experiência poderia ser compreendida. Como é óbvio a partir de tudo o que vimos no presente capítulo, aqui, os elementos seriam sensações e os princípios mecânicos seriam as forças de ligação. Referindo-se ao clássico artigo de Helmholtz Über die Erhaltung der Kraft, Ash (2011) nos diz: [...] Helmholtz afirmou claramente que o seu emprego da linguagem científica, como aquele de Isaac Newton, dependia de uma concepção do ‘universo como consistindo de elementos com qualidades inalteráveis’. Apenas em um tal mundo seria possível explicar fenômenos naturais mecanicamente – por referência apenas aos movimentos dos objetos tratados como pontos de massa, tendo ‘forças motoras inalteráveis que são dependentes apenas de relações espaciais’. Suas teorias da visão e da audição foram, em essência, tentativas de empregar esta linguagem determinista e mecanicista no estudo dos sentidos. (p. 52)

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Uma articulação direta deste modelo científico com a teoria de Müller é feita por Merleau-Ponty (1945/2006, p. 111) em sua Phénoménologie de la Perception.

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O conceito de sensação como elemento fundamental para a compreensão do fato psíquico foi de grande relevância não apenas para a profícua metodologia de Helmholtz, mas também para o desenvolvimento de novos recursos metodológicos para a psicologia. É precisamente a ele que darão uma relevância toda especial propostas de matematização de nossa sensibilidade, como a psicofísica de Gustav Fechner, central para o estabelecimento dos projetos de psicologia científica da segunda metade do século XIX. Consideremos, portanto, este outro desdobramento metodológico orientado pela sensação.

1.3. A psicofísica de Gustav Fechner: O médico e físico Gustav Theodor Fechner destacou-se no pensamento científico de sua época por ter sido responsável pela introdução de um novo método de estudos da relação entre psiquismo e mundo físico chamado ‘psicofísica’27. Esta contribuição, no entanto, não ocorreu cedo em sua carreira. Após seus estudos em medicina na Universidade de Leipzig, entre os anos de 1817 e 1819, nos quais estudou anatomia e fisiologia com Ernst Heinrich Weber, ele se dedicou à docência nesta mesma universidade e a certa quantidade de produções escritas não exatamente voltadas a método. Deste modo, o advento da psicofísica se deu em uma época de considerável maturidade intelectual de Fechner, podendo contribuir para a consolidação da psicologia enquanto ciência natural quando uma série de outras idéias fundamentais já estava em circulação, como já pudemos ver. Os esforços do estudioso primam por um rigor matemático ainda ausente nos trabalhos que o precederam, de modo que puderam oferecer justamente o tipo de recurso que uma ciência em fundação tende a valorizar imensamente – i.e., a possibilidade de facultar aos fenômenos cuja observação e explicação ela ambiciona um tratamento formal efetivo, vertê-los em proposições matemáticas. Neste aspecto, os Elemente der Psychophysik (1860), de Fechner foram a obra de maior relevância28 e um dos pilares da psicologia experimental. 27

É certo que o termo ‘psicofísica’ foi usado em sua forma adjetiva por alguns pensadores modernos, mas isto não anula o fato de Fechner ter definido um novo sentido estrito para ele e uma disciplina científica que o tem como nome (LALANDE, 1926/1999, p. 884). 28 Boring (1950, p. 281) oferece uma série de informações acerca da recepção do trabalho de Fechner entre os experimentadores da época: Helmholtz e Mach, por ocasião de produções menores, anteriores aos Elemente, mas que já anunciavam as suas propostas, reagiram sugerindo alterações nas teses de Fechner ou elaborando experimentos similares aos dele; W. Wundt citou a relevância da obra em seus primeiros escritos psicológicos; W. Volkmann. e J. R. L. Delboeuf buscaram desenvolver os seus próprios estudos psicofísicos;

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Como nos indicam Marshall (1988) e Jaeger (1988), esta obra é mais bem compreendida se tomada em relação com toda a produção extra-científica que a precedeu e sucedeu, voltada a reflexões algo filosóficas, algo místicas, acerca da natureza do cosmos, de sua organização, da animação dos diferentes entes materiais que o compõem, entre outros temas. Com efeito, uma grande quantidade de contribuições científicas do autor é diretamente ligada a tais interesses e oferece uma espécie de base concreta para que ele possa desenvolver certo número de teses metafísicas e cosmológicas29. Uma vez que a exegese fina de seu pensamento não deve nos ocupar aqui e que, por razões propriamente históricas, foi o lado experimental deste pensamento que efetivamente impactou na psicologia de meados do século XIX, voltaremos apenas a ele as nossas breves considerações. Importa-nos compreender, por conseguinte, como o método e os procedimentos de formalização de Fechner auxiliaram em ampla medida no desenvolvimento de uma concepção científico-natural mais articulada do psiquismo – aos modos do conhecimento da época. E para isto, um exame de passagens específicas dos Elemente nos parece bastante.

1.3.1. O recurso à mensuração da sensibilidade em Ernst Weber: Os Elemente der Psychophysik oferecem já em suas primeiras páginas uma definição do novo procedimento experimental de Fechner (1860a): “Por psicofísica, deve ser entendida aqui uma doutrina exata das relações funcionais ou de dependência entre corpo [Körper] e alma [Seele] – em geral, entre os mundos corpóreo e anímico, físico e psíquico”. (p. 8) O desenvolvimento deste procedimento, no entanto, não se deu de maneira inteiramente inédita, valendo-se o autor, em ampla medida, dos trabalhos de Ernst Heinrich Weber, fisiólogo e físico já citado há pouco, de quem fora aluno na Universidade de etc. Em sua preleção intitulada Leib und Seele, Stumpf (1896/1910, p. 92) coloca as teorias de Fechner como um dos maiores contributos de sua época à compreensão da relação entre corpo e alma, em um contínuo que partiria dos sistemas metafísicos de Descartes e Spinoza e chegaria a pesquisas sobre a localização anatômica das capacidades intelectuais. 29 Acerca destes dois aspectos do pensamento de Fechner, Crary (2012) afirma: “Fechner rompeu várias dicotomias convencionais que sustentam boa parte da história intelectual do século XIX. Interpretações mais aceitas têm insistido em um tipo de personalidade dividida: por um lado, ele parecia um místico romântico imerso na Naturphilosophie de Oken e Schelling, e também no panteísmo spinozista; por outro, fundou uma picologia rigorosamente empírica e quantitativa que seria crucial para os trabalhos de Wilhelm Wundt e de Ernst Mach, fornecendo-lhes a fundamentação teórica para uma completa redução da experiência perceptiva e psíquica a unidades mensuráveis. Mas essas duas dimensões da personalidade de Fechner sempre estiveram interligadas.” (p. 139)

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Leipzig. As obras de Weber foram dedicadas, sobremaneira, ao estudo da percepção tátil, examinando os fenômenos de discriminação de intensidades em estímulos diferentes, ou a nossa capacidade de percepção diferencial de sensações. A retomada de algumas idéias de Weber, portanto, deve nos servir de um bom guia para a introdução do projeto geral de Fechner, uma vez que este é concebido na esteira daquelas. Weber salienta o fato de que, ao sermos afetados por dois estímulos de mesma natureza, mas de intensidades diferentes, não temos em nossa sensibilidade a ocorrência de dois fatos isolados, que nos informam acerca de suas magnitudes individuais e, a partir destas, permitem-nos estabelecer juízos acerca de sua eventual diferença. Não teríamos, deste modo, consciência de um evento inicial, logo após consciência de um evento terminal, completamente intocado pelo primeiro, e, por fim, possibilidade de contrastar ambos livremente e chegar a uma conclusão qualquer orientada por suas grandezas autônomas. Em vez disto, teríamos um claro perpassamento de uma impressão por outra, dando-nos conta antes de uma relação estabelecida pelos estímulos entre si e, a partir desta, tornando-nos capazes de perceber a distinção mencionada. Este fenômeno poderia ser experimentalmente atestado de inúmeras maneiras. Em De pulsu, resorptione, auditu et tactu: annotationes anatomicæ et physiologicæ (1834), Weber o faz a partir de uma situação experimental em que dois indivíduos seguram, cada um deles, dois corpos específicos, um em cada mão. O primeiro indivíduo segura corpos que têm, respectivamente, 30 e 29 meias-onças de massa; o segundo, corpos que têm de 30 e 29 dracmas. A primeira destas medidas equivale a quatro vezes a segunda (i.e., 1 meia-onça = 4 dracmas), o que faz com que a diferença absoluta entre as massas dos corpos segurados pelo primeiro indivíduo seja consideravelmente maior que a diferença absoluta entre as massas dos corpos segurados pelo segundo indivíduo. Se a perspectiva adotada para se avaliar este pequeno experimento fosse a de que a diferença dos estímulos deveria ser percebida a partir da avaliação de suas magnitudes isoladas, seria de se pensar que o indivíduo que segura os corpos medidos em meias-onças perceberia a diferença mais facilmente que o indivíduo que segura os corpos medidos em dracmas, pois aqueles têm massa quatro vezes maior que a destes. Este não é o caso, no entanto, ambas as relações sendo percebidas com a mesma precisão e freqüência (WEBER, 1834/1971, p. 78).

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Segundo Weber, isto comprova que temos antes a percepção da proporcionalidade, pois a diferença entre as massas de um caso é proporcional à diferença entre as massas de outro caso. Isto quer dizer: a despeito da unidade de medida e do fato dos valores absolutos serem consideravelmente discrepantes, temos, em ambos os casos, que a diferença de massa do corpo menor para a do maior é apenas 1/30 da massa do corpo maior. Não se trata, portanto, de considerar os valores absolutos das massas e a distância entre eles estabelecida – 1 meia-onça sempre será quatro vezes maior que 1 dracma. Trata-se, em vez disto, de considerar os valores diferenciais – a diferença de massa entre 30 e 29 meiasonças é proporcional à diferença entre 30 e 29 dracmas. Tais conclusões orientariam estudos sobre as atividades de outros sentidos, como o visual. Aqui, dados similares poderiam ser encontrados. Se compararmos linhas que possuem 100 mm e 101 mm, perceberemos as suas diferenças com a mesma precisão do que se compararmos linhas de 50 mm e 50,5 mm, pois a relação de proporcionalidade é a mesma, os acréscimos sendo sempre de acordo com a razão 1/100 da medida original. Deste modo, Weber formulou um juízo sobre a nossa percepção diferencial de estímulos que foi amplamente valorizado nos estudos fisiológicos e psicológicos posteriores – sobretudo por Fechner: Como a observação foi confirmada na maioria dos sentidos – isto é, que as pessoas, ao observar disparidades, percebem, não as diferenças absolutas, mas as diferenças relativas entre as coisas – procurei repetidamente pesquisar a causa desse fenômeno, e espero que essa causa seja finalmente bem conhecida, de forma que sejamos capazes de julgar mais corretamente a natureza dos sentidos. (WEBER, 1834/1971, p. 79; grifo nosso)

Em seus Elemente, Fechner busca explorar criteriosamente este princípio, colocando-o em uma condição de importância tal que o fundamento mesmo da psicofísica pode ser considerado uma conseqüência direta dele, bem como uma expansão.

1.3.2. A formalização da lei de Weber e o cálculo de logaritmos: Apesar de ressaltar esta característica de nossa percepção diferencial e buscar mostrá-la por meio de estímulos medidos, não foi Weber quem efetivamente a elevou à condição de lei e conferiu a ela uma formulação matemática. Tal tarefa foi assumida por Fechner e executada justamente na obra supracitada (BORING, 1950, p. 280; NUTTING, 1908, p. 510). O seu esforço é basicamente o de mostrar que, ao indicar que não 68

percebemos as diferenças de estímulos por meio da avaliação das integridades individuais destes estímulos, mas sim por uma relação especial que ocorre entre eles, Weber descortina um princípio geral de nossa sensibilidade que define justamente a razão existente entre sensações vizinhas e que são percebidas como diferentes. Sabemos que, partindo-se de uma estimulação determinada, para cada sensação a ser percebida como nova, o estímulo tem de ser aumentado ou reduzido até certo ponto. Os pontos em que a sensação imediatamente mais intensa ou a sensação imediatamente menos intensa são deflagradas são chamados de limiares de percepção diferencial (Differentielle Wahrnembarkeitsschwelle)30 da sensação em questão. Isto quer dizer: podemos ter um estímulo inicial e uma determinada sensação a ele vinculada e podemos ter de aumentar – ou reduzir – a intensidade deste estímulo repetidas vezes até que uma sensação diferente da inicial possa ser percebida. Assim, uma sensação s pode ser resultante do estímulo e, mas também de (e + 1), (e + 2) e (e +3), cedendo lugar a uma sensação s’ apenas quando (e + 4) é ministrado. Estes três aumentos iniciais de e que não deflagram uma nova sensação, não obstante serem fisicamente distintos, contariam como estímulos subliminares e não teriam expressão psicológica alguma. Apenas a partir do quarto aumento este resultado seria obtido31. Este ponto de corte poderia ser matematicamente precisado se o considerássemos uma função da diferença existente entre os dois estímulos contrastados dividida pelo valor do estímulo menor. Isto quer dizer: chamando o estímulo inicial de  e o pequeno acréscimo, que origina o segundo estímulo a partir deste primeiro, de d, poderíamos já indicar o sinal diferencial (Differenzialzeichen) por meio de d Consideremos um exemplo banal, que não se compromete com uma modalidade sensorial específica ou com unidades de medida quaisquer, além apresentar cálculos de dificuldade primária. Se uma determinada sensação é associada a um estímulo que, em sua unidade de medida própria, possui valor 10 e se não encontramos uma declaração do sujeito experimental de que a sensação que lhe sobrevêm é outra senão quando este valor passa para 12, temos que o sinal diferencial pode ser estabelecido por meio do cálculo (12-10)/10, que equivale a 0,2. Nenhum estímulo que não se iguale ou exceda essa fração do estímulo 30

Na tradição anglófona, just noticeable difference, freqüentemente traduzido para o português como ‘diferença apenas percebida’. 31 Este tipo de raciocínio será também criticado por Koffka (1922) em Perception: introduction to Gestalttheorie, como veremos adiante.

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de base pode ser percebido como um estímulo diferente. É o caso do estímulo cuja medida é 11. Ele não ultrapassa o limiar e não dá origem a nenhuma sensação nova. Esta é, portanto, na formulação matemática que a confere Fechner, a chamada lei de Weber32. A posição geral do psicólogo em relação a esta lei é a de que ela é fundamental para a mensuração psíquica, ainda que haja limites para a sua aplicação. Apesar de sua fórmula poder abranger certa quantidade relevante de fenômenos sensíveis, seu trunfo maior seria guardar em si a possibilidade de servir de base para a dedução de outra fórmula, chamada por Fechner de ‘fórmula integral’ (Integralformel), a qual serviria para a mensuração das sensações em sua generalidade. Onde a lei de Weber não fosse diretamente aplicável, portanto, ela ofereceria ainda a condição adequada para que outros princípios matemáticos mais precisos pudessem operar. Fechner (1860a) afirma: [...] a lei de Weber define apenas o fundamento para as mais numerosas e importantes aplicações das mensurações psíquicas; mas não as gerais e necessárias. Os fundamentos mais gerais, mais basilares da mensuração psíquica se encontram precisamente naquele método, através do qual a relação entre o incremento dos estímulos e o incremento das sensações em geral, dentro e fora dos limites da lei de Weber, é determinada; e é da formação desse método, sempre com maior precisão e perfeição, que depende, antes de tudo, a teoria da mensuração psíquica. (p. 66)

A exploração sistemática destas possibilidades e o estabelecimento deste método é precisamente a tarefa da psicofísica introduzida nos Elemente. O primeiro passo decisivo para Fechner indicar a fórmula integral é o fato de ele associar o limiar diferencial às variações da sensação, que é considerada em sua correspondência ponto a ponto com os dois estímulos já compreendidos pela lei original. Ao estímulo menos intenso corresponde uma sensação menos intensa e ao estímulo mais intenso uma sensação mais intensa. Se chamarmos a sensação de poderemos chamar de do pequeno acréscimo que nela se dá, seguindo o mesmo procedimento que distingue  de d. O segundo passo é encontrar uma variável nova, a ser chamada de K, definida como uma constante dependente das unidades selecionadas para ee diretamente vinculada à modalidade sensorial pesquisada. O valor de K seria multiplicado pelo valor do limiar diferencial para que este pudesse equivaler ao

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Há algo de insólito no procedimento de Fechner, que se ocupa da formalização do postulado de Weber e decide nomeá-lo ‘lei de Weber’. Posteriormente, em reconhecimento ao esforço de Fechner, alguns alteraram o nome da lei para ‘lei de Fechner’ e outros espíritos mais conciliadores o fizeram para ‘lei Weber-Fechner’.

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acréscimo da sensação. Assim, teríamos a fórmula fundamental, da qual todas as demais fórmulas relevantes poderiam ser deduzidas: dKd As alterações impostas por Fechner não terminam aí – não se resumem a refinar o tratamento dispensado à contraparte sensível do postulado de Weber e a encontrar uma nova variável que torna mais precisa a avaliação de um determinado modo de nossa sensibilidade. Há um terceiro e mais complexo passo, que reside na derivação de outra fórmula, que está conectada a esta última por meio do cálculo de logaritmos. Ela mostraria a relação quantitativa geral entre a magnitude do estimulo, vista como uma soma de incrementos de estímulos (Reizzuwüchsen), e a magnitude da sensação, vista como uma soma de incrementos de sensação (Empfindungszuwüchsen). Fechner (1860b) afirma: “Pode-se notar com facilidade que a relação entre os incrementos d e dna fórmula fundamental equivale à relação entre os incrementos de um logaritmo e os incrementos do número correspondente.” (p. 11) O que isto pode querer dizer? Sabemos que um logaritmo não aumenta por acréscimos iguais se o número ao qual ele corresponde aumenta por acréscimos iguais. Se parto de um número n, do qual logn pode ser dito, para um número (n+1), do qual log(n+1) pode ser dito, e deste para um número (n+2), do qual log(n+2) pode ser dito, encontrarei certamente uma razão fixa na progressão numérica, pois há apenas acréscimos de unidades, mas não encontrarei razão fixa na progressão dos logaritmos. Eles não distam uns dos outros por quantidades homogêneas. Se o número de partida for 1, e.g., teremos log1, log2 e log3 nos casos previstos aqui. E os valores que lhes são correspondentes são 0; 0,30103 e 0,477121. Claramente não há razão homogênea, na medida em que log2 dista de log1 em 0,30103 e log2 de log1 em 0,176091. Quando o aumento do número se dá por acréscimos relativos iguais, no entanto, o aumento do logaritmo se dá por razão homogênea. A distância entre o logn para o log(n+1) é idêntica à distância entre o log(10n) e o log(10n+10). Mantendo ainda n como 1, temos que a distância entre log1 e log2 é 0,30103, como dissemos há pouco, e que a distância entre log10, que é 1, e log20, que é 1,30103 é exatamente 0,30103. Encontramos aqui, matematicamente expresso, o mesmo fenômeno constatado por Weber no exame da percepção diferencial: a relação peculiar entre um número e o seu

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logaritmo é estruturalmente análoga à relação peculiar entre a magnitude de um estímulo e a sensação que lhe é conseqüente. É a partir disto que Fechner justifica o recurso a esta forma de cálculo e a complexificação da fórmula fundamental: Se os incrementos de sensação e estímulo se encontram [...] em uma relação correspondente àquela entre logaritmo e número e se o ponto em que os valores perceptíveis da sensação começam a aumentar encontra-se também em uma relação com o estímulo similar àquela que o logaritmo tem com o número no ponto em que o logaritmo atinge valor positivo, então se pode esperar que também a sensação e o estímulo eles mesmos encontrem-se em uma relação correspondente àquela entre logaritmo e número, a qual pode ser considerada uma soma de sucessivos aumentos. (FECHNER, 1860b, p. 12)

Deste modo, a relação mais simples que se pode estabelecer entre os dois é expressa na fórmula:

log As demonstrações de Fechner seguem ainda além, mas estes três passos iniciais de seu programa bastam para a nossa avaliação. Apenas com eles, conseguimos já compreender o quanto o projeto de uma ciência psicofísica oferece de relevante para a fundamentação da psicologia conforme aos ditames científico-naturais. Os novos postulados teóricos, técnicos e metodológicos da fisiologia de seu tempo seriam, de algum modo, reforçados e expandidos com as contribuições de Fechner. Em Müller, como já vimos, pode-se encontrar claramente uma definição da unidade fundamental da experiência – a sensação – que a retira do plano puramente contemplativo ou reflexivo de análise – ao qual se resumia, e.g., a filosofia empirista – e a reconduz a fenômenos corpóreos que podem ser experimentalmente avaliados e controlados. Em Helmholtz, encontramos uma reflexão mais consistente acerca das maneiras pelas quais estes elementos sensoriais se ordenam em nossa experiência imediata, fazendo com que a nossa vida psíquica não seja um fluxo caótico de impressões sensoriais, em que a exterioridade essencial destes dados uns em relação aos outros seja preservada, mas sim um fluxo harmônico, marcado pela ligação dos dados através de fatores associativos. Aqui, com Fechner, temos o recurso matemático efetivo para a mensuração dos elementos, para entender como eles se vinculam de maneira ordenada aos excitantes que incidem sobre o organismo e são função direta destes – uma função que pode ser expressa matematicamente. Ressaltando o avanço que tal concepção pôde oferecer no conceito de sensação introduzido por Müller, Crary (2012)

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afirma: “A pesquisa de Fechner permitiu compreender a relação arbitrária ou aleatória entre a sensação e sua causa externa, que o trabalho de Müller sobre as energias nervosas já havia revelado.” (p. 143) Se a definição da sensação como energia nervosa específica nos mostrava uma franca explosão da cópula tradicional entre estímulo ótimo e resposta sensível, fazendo-nos entendê-la mais como função da atividade nervosa do que como impressão de algo externo em nós, Fechner mostrou em que medida esta gênese está realmente referida ao mundo externo – i.e., a harmonia profunda que existe entre as intensidades de um âmbito e as intensidades de outro. É justamente isto, no entanto, que mostra o quanto o tratamento por ele dispensado à vida psíquica aproximou esta de um plano formal e abstrato, afastando suas nuances e o que ela tem de propriamente qualitativo: A formalização da percepção, concebida por Fechner, faz com que os conteúdos específicos da visão sejam irrelevantes. Torna-se possível descrever a visão, assim como os outros sentidos, em termos de magnitudes abstratas e intercambiáveis. Se a visão havia sido concebida antes como uma experiência de qualidades [...], agora ela é uma questão de diferenças de quantidade de uma experiência sensorial que é mais forte ou mais fraca. (CRARY, 2012, p. 143)

Trata-se, ainda, de uma “[...] nova valoração da percepção [...]”, que promove uma “[...] destruição do qualitativo na sensação por meio de sua homogeinização aritmética” (CRARY, 2012, p. 144). Uma outra conseqüência teórica de grande relevância pode ser encontrada na explicitação desta razão matemática imanente aos nossos processos psíquicos, e ela se vincula claramente a uma daquelas teses cosmológicas ou metafísicas de Fechner às quais aludimos no início de nossa exposição. Referimo-nos ao chamado ‘panpsiquismo’ (Panpsychismus), tese cuja breve exposição nos cabe fazer a seguir a fim de concluirmos nossa passagem por Fechner.

1.3.3. A tese do panpsiquismo: No que respeita à relação entre mundo físico e psíquico, Fechner adota uma postura fundamentalmente diferente daquela assumida por Müller e Helmholtz, a qual se estenderia também por outros autores da psicologia experimental, como Ernst Mach, ao qual nos voltaremos dentro em pouco. Fechner defendia uma perspectiva segundo a qual não haveria exterioridade essencial entre aquelas duas dimensões, ao modo de um dualismo de

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substâncias, mas sim uma unidade absoluta em que matéria e espírito, corpo e mente, o mundo físico, real, e a ordem da experiência, não seriam senão modos de se mostrar de uma só e mesma realidade – duas faces de uma só moeda. Ainda que a maior parte das teses apensadas pelo autor a esta perspectiva sejam desinteressantes para o nosso estudo – como a existência de alma em animais, plantas ou demais entes materiais – ela é intimamente vinculada à demonstração das equações acima consideradas, uma vez que a existência mesma destas – i.e., de um padrão matemático que expresse uma legalidade necessária na relação entre estímulos e sensações –, seria índice do mútuo pertencimento, da indistinção daqueles pares de termos. O aspecto radical da tese de Fechner que nos importa aqui ressaltar é o fato de que não há nenhuma separação real entre estes dois aspectos do fenômeno psicofísico a serem considerados. O que nos é dado como parte de um mundo de efetividades físicas, como sua propriedade ou como sua grandeza, surge, em termos de expressão psíquica, como um componente sensorial discreto, sendo-nos sempre possível operar essas alterações de atenção em favor de um ou outro lado do fenômeno, como exigem as próprias disciplinas positivas que deles se ocupam. Formalmente, no entanto – i.e., em termos propriamente reais, concernentes à estrutura concreta do fenômeno – o que temos perante nós é uma só coisa. Assim, o próprio entrelace matematicamente constatado das intensidades de um e outro lado do fenômeno torna-se mais facilmente compreensível, uma vez que não é nada além de uma concordância interna de momentos subsumidos a uma só totalidade real. É a explicitação de uma harmonia ou de um nexo próprio ao sistema em questão e que atravessa todas as suas partes possíveis. Os aspectos místico-filosóficos desta tese são explorados principalmente em Zend-Avesta, oder über die Dinge des Himmels und des Jenseits (1851), bem como em outros escritos menores de Fechner. Uma vez que tais hipóteses se encontram intimamente vinculadas às demonstrações matemáticas do pensador e serviram de base para o desenvolvimento das obras de outros autores relevantes para o nosso estudo, julgamos pertinente registrá-la aqui.

1.4. Considerações gerais sobre o quadro teorético da psicologia experimental: A este ponto de nosso estudo, é importante que façamos algumas considerações gerais acerca da ciência psicológica tal como ela foi sendo estabelecida sob influência dos autores avaliados. Em seus primeiros momentos, uma parcela substancial da psicologia

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poderia ser concebida pela referência a estes três grandes conjuntos de idéias até então descritos: a teoria das energias sensoriais específicas de Müller; a teoria das inferências inconscientes e o método da introspecção experimental de Helmholtz; e a psicofísica de Fechner. É certo que cada pesquisador em psicologia se apropriou ao seu modo de tais projetos, conformando-os eventualmente a outras influências intelectuais e operando neles certas modificações para que melhor se coadunassem com as propostas que visavam apresentar33. Um delineamento, por mínimo que fosse, destas relações de apoio e desvio, por razões óbvias, excederia imensamente os propósitos de nosso estudo, bastando-nos aqui ter uma imagem do que significou para a constituição do campo psicológico científico a existência precisamente destes três interlocutores privilegiados. Que imagem teria sido esta? Que espécie de fundamento geral para os diferentes projetos emergentes nas décadas finais do século XIX poderia ser proposto ao partirmos daquelas idéias? É precisamente a tais perguntas que esta pequena seção visa responder, uma vez que todas as demais propostas psicológicas a serem consideradas nos próximos capítulos – i.e., tanto os projetos de psicologia descritiva, quanto a fenomenologia e o gestaltismo – assumem estas psicologias científico-naturais como ponto de repulsão. Pois bem. Uma psicologia assim fundamentada seria, basicamente, uma ciência experimental dedicada ao estudo das diferentes conformações de nossa experiência sensível, investigando os processos pelos quais as sensações, entendidas como base material de todos os fenômenos psíquicos, podem se arranjar e estabelecer diferentes conteúdos para os nossos atos. Ela buscaria discriminar rigorosamente esta base material das operações essencialmente extrínsecas que permitem os seus diversos arranjos, entendendo que o esquema definidor de qualquer objeto de experiência é uma via sintética simples, que faz passar os conteúdos elementares à condição de objeto complexo por critérios inteira ou predominantemente empíricos – i.e., oriundos de aprendizagem. Ela buscaria, ainda, assumir que a explicação propriamente científica destes arranjos deveria se dar por meio do exame de suas causas próximas – i.e., fisiológicas – e remotas – i.e., 33

Em uma passagem que nos serve para ilustrar este fato, Boring (1950) nos diz que, de acordo com Orig, a relação entre Wilhelm Wundt e Herman von Helmholtz foi análoga à relação entre Johannes Müller e Charles Bell, o segundo pesquisador de cada par sendo um teórico brilhante cujo trabalho experimental teve de sofrer certos reparos pelo primeiro. As tantas alterações pelas quais passou a lei do limiar de percepção diferencial também o mostram: ela foi inicialmente proposta como o delta entre duas magnitudes físicas específicas; Fechner as resumiu em uma só variável, afastando a importância do caráter diferencial presente na formulação original; e conferiu a ela uma expressão matemática específica por meio do cálculo de logaritmos.

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físicas –, endossando, de certo modo, a hipótese empirista clássica segundo a qual a origem dos conteúdos por nós experimentados é necessariamente extra-fenomenal. A manipulação laboratorial das condições de excitação do organismo seria acompanhada do estudo cuidadoso dos relatos introspectivos dos sujeitos experimentais acerca das experiências deflagradas pela ação do experimentador. Por fim, ela sustentaria a pretensão de discriminar matematicamente as constantes destes processos, por meio de escalas a cada vez mais complexas que delineassem as relações entre a magnitude dos estímulos e aquela das respostas sensoriais. No Prólogo à Segunda Edição de sua Krise der Psychologie (1927/2000), Karl Bühler nos oferece uma tentativa de resumir o quadrante teórico da psicologia experimental em quatro axiomas, os quais, dada a sua pertinência, reproduzimos a seguir: 1. O axioma subjetivista: o único ponto de partida legítimo da psicologia é a auto-observação [Selbstbeobachtung]; seu objeto são as vivências [Erlebnisse] 2. O axioma atomista: a análise das vivências encontra conteúdos elementares de consciência fortemente circunscritos; os assim chamados fenômenos complicados ou superiores são complexificações deles; 3. O axioma sensualista: conteúdos geneticamente originais são apenas os dados sensoriais [Sinnesdaten] [...] 4. O axioma mecanicista: a construção dos complexos e do curso de vivências subordina-se à lei de contigüidade [Kontiguitätsgesetz], ao princípio de associação [Assoziationsprinzip]; há ligações simultâneas e sucessivas. (p. 17)

Ainda que busque fazê-lo por meio de alguns termos não evocados em nossas exposições anteriores, os axiomas identificados por Bühler são facilmente relacionáveis a tudo que dissemos até este ponto de nosso estudo, na medida em que enfatizam: a importância do relato introspectivo para o estudo experimental; a distinção categorial entre os conteúdos a partir dos quais os objetos são formados e os objetos eles mesmos; a natureza empírica destes conteúdos; e os seus critérios arbitrários de ordenação. A partir de tais indicações, resta-nos considerar um projeto psicológico mais tardio e que possa nos servir em alguma medida de exemplo desta situação geral e de ponto de articulação para as demais passagens de nosso estudo. É de notável recorrência que, em tentativas de explicar os fundamentos históricos do gestaltismo, em específico, um autor seja colocado nesta condição e tomado como a antítese das teses da escola psicológica berlinense. Trata-se de Wilhelm Maximilian Wundt, estudioso de importância central para o cenário que examinamos aqui, freqüentemente tomado como o precursor da própria

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psicologia experimental por ocasião da fundação do laboratório de psicologia da Universidade de Leipzig (BORING, 1953; FRAISSE, 1969; HERRNSTEIN e BORING, 1971; KIM, 2006). A formação intelectual de Wundt foi bastante influenciada pela obra de Müller, de quem fora aluno na Universidade de Berlim, e de Helmholtz, do qual fora assistente entre 1858 e 1863, no Instituto de Fisiologia da Universidade de Heidelberg, tendo, além disto, estabelecido franco diálogo com a mensuração de sensações proposta por Fechner (ARAUJO, 2006, 2009a, 2009b, 2010; KIM, 2006). No entanto, por mais que o seu perfil se mostre, pelo menos inicialmente, adequado aos nossos propósitos, algumas razões de peso justificam a sua exclusão de nosso estudo. A primeira delas é que a oposição assim feita segue certa interpretação de Wundt que vem sendo questionada já há algum tempo, a saber, a de que ele seria um elementarista e um associacionista exemplar. Tal avaliação, no entanto, mostra-se mais uma compreensão enganosa de seu trabalho a partir dos trabalhos desenvolvidos em países anglófonos por alguns de seus estudantes mais conhecidos, entre os quais se destaca Edward Bradford Titchener. A segunda razão, de ordem mais pragmática, é a menor acessibilidade a fontes da literatura secundária que nos auxiliem a ter uma imagem satisfatória de Wundt que não seja concebida segundo estes critérios, bem como traduções fidedignas da literatura primária que nos facilitem o recurso ao texto alemão34. A terceira razão – e que assumimos como decisiva – é a de que existe um autor muito mais apropriado para ocupar este lugar do que Wundt, uma vez que está em estreita ligação com os desenvolvimentos mais fundamentais do gestaltismo, não tendo com este apenas uma relação de oposição, mas sim algo mais rico e complexo, que garante o seu lugar de frequente interlocutor daquela psicologia. Referimo-nos a Ernst Mach, ao qual passaremos em seguida e com o qual concluiremos nossa avaliação dos estudos experimentais da consciência. Examinados, portanto, os fundamentos destes estudos nas figuras dos tantos autores que povoaram nosso capítulo, vejamos aquele que nos surge como a imagem apropriada da psicologia científica e que nos facilitará a compreensão dos demais temas aos quais nos voltaremos a seguir.

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Estas duas razões iniciais encontram-se amplamente sustentadas pela literatura secundária sobre Wundt à qual recorremos, em especial aos estudos de Araujo.

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1.5. O elementarismo recrudescido de Ernst Mach: Ernst Mach, físico, fisiólogo e psicólogo alemão, oferece-nos, deste modo, um privilegiado ponto de articulação entre a psicologia incipiente e o gestaltismo, tanto por razões negativas, quanto por positivas. Em seu trabalho maior, Die Analyse der Empfindungen und das Verhältnis des Physischen zum Psychischen (1886), Mach desenvolve uma teoria da experiência que busca, a partir de certa inspiração anti-metafísica, afastar as concepções dualistas precedentes e postular um monismo metodológico em que a idéia de elemento ocuparia um lugar central, servindo para definir, por um lado, propriedades de objetos físicos, que se organizam nos estados de coisas tematizados pelas ciência naturais, e, por outro, sensações irredutíveis, que se organizam na diversidade de fenômenos psíquicos que podemos experimentar. Deste modo, ele conduz o elementarismo a um nível inteiramente inédito de relevância, na medida em que estabelece não apenas uma concepção da experiência que mantém os dados sensíveis como fundamento de todo conteúdo psíquico possível, mas também entende que, por meio desta concepção, toda uma nova relação entre psiquismo e natureza, bem como entre psicologia e física, pode ser explicitada. As teorias de Mach, não obstante, deixam também entrever certa compreensão de que a experiência dá lugar a critérios de organização que não são exatamente compatíveis com o elementarismo – o que será mostrado, e.g., no campo das ‘ilusões sensíveis’. Com efeito, foram algumas destas pequenas fissuras no paradigma clássico, não exploradas a fundo pelo próprio pensador, que influenciaram Christian von Ehrenfels e permitiram-no escrever aquele que seria o texto inaugural do gestaltismo, Über Gestaltqualitäten (1890), o qual exploraremos em nosso próximo capítulo. É precisamente por conta desta singular posição do autor – representando de maneira exígua o paradigma clássico e, não obstante, intuindo precocemente os meios pelos quais ele seria posteriormente criticado e desarticulado – que encontramos avaliações bastante díspares de sua obra. Por um lado, temos aqueles que afirmam que “[...] ninguém concedeu ao impressionismo – que preenchia amplamente a arte e o pensamento psicológicos em torno de 1890 – uma expressão tão cativantemente clara e gnosiologicamente fundamentada quanto ele.” (BÜHLER, 1927/2000, p. 21)35. Ou ainda,

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O termo ‘impressionismo’ aqui não tem significado especial. Trata-se apenas de um termo escolhido por Bühler para fazer referência ao cenário psicológico que nos cumpre analisar neste capítulo.

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que a partir de suas teorias e métodos, articulou-se “[...] a versão do elementarismo contra a qual os gestaltistas se revoltaram.” (ASH, 2011, p. 62). Por outro lado, temos aqueles que defendem a sua relevância para a elaboração da teoria da forma, chegando mesmo a colocálo como o seu possível precursor, antes de Ehrenfels (POJMAN, 2009, p. 1). De nossa parte, parece mais plausível reconhecermos a condição de psicólogo clássico do autor e ainda assim atentar aos recursos que esta obra ofereceu para o próprio desenvolvimento do arsenal apresentado por seus críticos. A seguir, buscaremos recuperar as idéias do autor na sua obra maior, acima mencionada, de modo a expor esta relevância.

1.5.1. As pretensões anti-metafísicas: A introdução de Die Analyse der Empfindungen conta com uma breve consideração sobre o êxito da física nas ciências naturais, afirmando que o movimento pelo qual este domínio de conhecimentos específico se tornou o modelo da própria ciência qua ciência fez com que investigações as mais diferentes buscassem nele os seus fundamentos e recursos explicativos. A própria fisiologia sensorial, em sua curta história, exemplificaria adequadamente esta adesão ao modelo físico por meio da submissão do estudo qualitativo das sensações nelas mesmas, tomadas a partir de seu conteúdo meramente experimentado, à sua explicação experimental, com pretensões à formalização matemática. Podemos encontrar em nosso percurso neste primeiro capítulo alguns exemplos adequados deste movimento indicado por Mach, na medida em que temos no Handbuch de Müller uma atenção muito maior ao aspecto qualitativo das sensações e nos Elemente de Fechner, como já salientamos, um claro esforço por conduzir o exame destas a um nível de formalidade até então inexistente. Se Müller, na perspectiva de Mach, representaria este enfoque mais atento aos conteúdos sensoriais, Fechner representaria a franca incorporação dos pressupostos físicos e um cuidado maior com as intensidades e o aspecto quantitativo das sensações. Nesta segunda posição poderíamos ainda encontrar Helmholtz, com o seu interesse em transpor a concepção filosófico-natural de objeto para toda e qualquer ciência, sendo este o pressuposto fundamental de seu modelo mecanicista de consciência36.

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Os exemplos de Helmholtz e Fechner não se encontram no texto de Mach. Nós os citamos aqui por encontrarmos em suas obras características suficientes para que eles figurem como exemplos desta fisiologia eminentemente física – características estas já citadas no texto acima e trabalhadas nos itens anteriores. Tomamos esta liberdade pelo fato de Mach simplesmente não citar exemplos dos pesquisadores que

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Partindo da constatação deste movimento, portanto, o interesse das investigações desenvolvidas por Mach é sumarizado pelo simples ir de encontro ao seu pressuposto e mostrar que uma investigação fisiológica pura, que reabilite o interesse anterior àquele intenso tributo aos procedimentos físicos, pode oferecer importantes contribuições à própria ciência física. O problema de Mach, portanto, é o de escapar à reverência incontinente à física, característica do desenvolvimento das ciências naturais como um todo naquela época, e mostrar que outros modelos de investigação científica igualmente possíveis e legítimos podem ser estabelecidos e acrescentar significativamente para o quadro geral das ciências. A relação entre a fisiologia sensorial e a física, deste modo, converter-se-ia novamente em problema, e a tarefa de uma psicofísica consistente seria a de buscar sistematicamente a sua solução37. Devemos considerar aqui, antes de darmos seqüência à exposição dos argumentos de Mach, esta pretensão do pesquisador de realizar suas investigações em uma abstenção explícita de preocupações metafísicas, sem converter as suas teses acerca das dimensões física e psíquica dos fenômenos naturais em um conjunto de postulados que descreveriam, em última instância, a arquitetura da realidade, o que lhe seria próprio, constitutivo. Este recuo perante pronunciamentos sobre o ser daqueles fenômenos é apresentado como uma posição assumidamente kantiana no capítulo inicial de Die Analyse der Empfindungen, intitulado Antimetaphysische Vorbemerkungen, assim como na seguinte passagem do prefácio à quarta edição da obra: A opinião, que gradativamente ganha espaço, segundo a qual a ciência tem de se restringir à apresentação clara do factual [übersichtlich Darstellung des Tatsächlichen], conduz, de modo conseqüente, à eliminação de todas as hipóteses ociosas e não controláveis da experiência, sobretudo das metafísicas (no sentido kantiano). Se se mantém este ponto de vista na região mais ampla, que abarca o físico e o psíquico, então resulta como o primeiro e próximo

representariam esta posição. Apenas Müller consta em seu texto, como representante da primeira posição. Além disto, é importante salientar que, embora tenhamos incluído Fechner aqui, ele foi, indiscutivelmente, o pensador que mais exerceu influência em Mach, a ponto de este, em sua introdução à primeira edição de Die Analyse der Empfindungen, afirmar: “Minha inclinação natural às questões [aqui] tratadas recebeu, há 25 anos, o mais forte estímulo por meio dos ‘Elemente der Psychophysik’ de Fechner [...]” (MACH, 1886/1903, p. VII; acréscimo nosso). Esta inspiração na obra de Fechner, no entanto, não impede a existência de reservas, como veremos no item ulterior acerca do monismo. 37 O que não deve de modo algum sugerir alguma espécie de desprezo de Mach pela matemática ou pela física. Isto seria inteiramente desencaminhador, posto que a formação fundamental deste estudioso era em física e muitas de suas obras relevantes são contribuições para esta ciência. Trata-se apenas de mostrar que as idéias fundamentais de Die Analyse der Empfindungen não contêm pressupostos matemáticos ou físicos.

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passo a concepção das ‘sensações’ [Empfindungen] como os ‘elementos’ [Elemente] comuns a todas as vivências [Erlebnisse] possíveis físicas e psíquicas, as quais consistem, em última instância, na diferente espécie de ligação [Verbindung] destes elementos, em sua dependência um em relação ao outro. (MACH, 1886/1903, p. V)

É exatamente aí que reside o sentido da oposição de Mach ao dualismo, o qual, como já vimos, é característico de certos projetos fisiológicos como aqueles de Müller e Helmholtz, sendo superado apenas por Fechner. Além de encontrarmos aqui a sinopse de sua posição negativa em relação a estas teorias precedentes, somos também orientados para o cerne de seu pensamento – i.e., para a sua defesa de uma conjunção necessária e primordial entre os momentos da relação psicofísica, conferindo ao conceito de ‘elemento’ a responsabilidade de sustentar uma tal articulação. Como se pode claramente notar, esta perspectiva é considerada uma conseqüência imediata da assunção da postura crítica dita kantiana: ao recuarmos perante uma problemática metafísica, somos necessariamente instados a tratar daqueles problemas por meio do reconhecimento da co-pertença original do físico e do psíquico. Acompanharemos a seguir o surgimento destas reivindicações.

1.5.2. O conceito de substância e a estruturação das idéias de corpo e eu: Estabelecido o seu propósito e a sua motivação intelectual, Mach dá início, no §2 de sua obra, a uma detalhada descrição dos dados imediatos de nossa experiência perceptiva, na qual busca fazer certas distinções de conteúdo, aludindo à diferente natureza deste. Na percepção ordinária, dados como cores, sons, temperaturas, espaços, tempos etc., estariam conectados uns aos outros de múltiplas maneiras, trazendo certas disposições cognitivas, afetivas e volitivas a eles vinculadas (gebunden). O primeiro problema abordado por Mach aqui é o do conceito de substância (Substanzbegriff), ou das composições de dados perceptuais que se mostram mais estáveis que as demais, marcando-se na memória e expressando-se na linguagem: Como relativamente mais permanentes, mostram-se, inicialmente, os complexos de cores, sons, pressões etc. conectados funcionalmente, do ponto de vista espacial e temporal – complexos que, por isso, recebem nomes particulares e são caracterizados como corpos. (MACH, 1886/1903, p. 2).

Podemos, diante destes complexos sensoriais mais duráveis, ter experiências de recognição, uma vez que é justamente pela maior coesão estabelecida entre os dados

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parciais ali conjugados, pela sua maior resistência a alterações de tipos quaisquer, que podemos dizer, em diferentes momentos nos quais os apreendemos, que um dado corpo continua a ser o mesmo corpo de antes. Esta é a possibilidade de tais complexos travarem uma relação mais definida com a memória e também de ganharem uma notoriedade tal em nossas experiências quotidianas que nos permite nomeá-los. Evidentemente, isto não quer dizer que tais complexos não passam por transformações qualitativas, mas apenas que, diante destas, eles continuam sendo eles mesmos, objetos de possível recognição e exemplos de um determinado signo lingüístico. Uma mesa pode estar em certa condição de luminosidade, estar ora mais limpa e organizada, ora com manchas de tinta ou danos materiais quaisquer; um amigo pode mudar suas vestes e assumir uma nova aparência, talvez mais circunspecta, severa, talvez mais amigável; um casaco pode ser manchado ou rasgado em certa parte. Mas o conjunto de características que permanecem, malgrado o surgimento de novas características ou o desaparecimento de outras antes presentes, é maior e nos permite dizer que se trata de um só e mesmo corpo. Diante da simples afirmação de que ‘algo sofreu tal ou qual transformação’, “[...] já a expressão indica que se trata aqui de uma soma de permanentes [Summe von Beständigen], aos quais o novo é adicionado e dos quais o que está faltando é ulteriormente retirado.” (MACH, 1886/1903, p. 2) Nossa disposição perante estes complexos duráveis revela uma espécie de economia inerente ao nosso psiquismo, que nos permite uma relação mais direta com o que permanece, e uma relação marginal com o que é evanescente38. Os corpos não são os únicos exemplos de configurações estáveis, entretanto. Tão imediatamente constatável quanto eles é um conjunto de dados que constituem o que Mach chama de ‘eu’ (das Ich). Trata-se do conjunto dos dados efetivamente experimentados, que constituem a totalidade de nossa experiência em primeira pessoa, como as cognições, memórias, estados de humor, apetições e vontades, os quais surgem atrelados a um corpo em especial, que é tido como o corpo próprio, a unidade somática pessoal. Nesta espécie de foro íntimo, ou de nicho privado de vivências, inacessível ao outro, seria verificável o mesmo tipo de relação entre certos conteúdos que verificamos a propósito dos objetos materiais – uma relação de permanência relativa. Nossa atenção a este ou àquele objeto em 38

Ainda que por vias diferentes daquelas apresentadas por Helmholtz, vemos surgir como relevante também aqui a idéia de economia psíquica, a qual assumirá maior relevância nas seções seguintes desta nossa exposição de Mach.

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particular muda a condição geral de nossa experiência presente, mas não põe em risco a percepção de que somos uma mesma unidade subjetiva em que se dá cada uma daquelas experiências. O humor pessoal pode mudar, ora sendo mais afável, ora mais sombrio, e a mesma recognição de si por si é possível39. Hábitos, planos, motivações e quaisquer outras disposições psíquicas podem ir e vir com o correr do tempo, mas, em geral, tem-se delas a mesma percepção que se tem das alterações que sobrevêm a um objeto material cuja integridade é já conhecida e claramente preservada diante dos eventos que a ameaçam. Mesmo as vicissitudes impostas por longos períodos no curso da vida pessoal, como as que fazem de um jovem homem alguém diferente da criança que ele mesmo fora no passado, permitem, pela memória, o reconhecimento de um mesmo que se fez passar de uma condição inicial, caracterizada por certos atributos, a outra condição final, caracterizada ainda por outros atributos. A partir deste percurso, Mach consegue haurir os conceitos iniciais de ‘corpo’ e ‘eu’ – ou ainda, de ‘matéria’ e ‘alma’, a se empregar o jargão clássico. E é exatamente na afirmação de seus interesses posteriores que ele oferece uma caracterização particularmente precisa da importância do elemento para o seu pensamento. Mach diz que é preciso analisar criteriosamente as mudanças que tomam lugar nestas conformações estáveis e que, em ambos os casos: [...] vêm à tona as partes componentes [Bestandteile] do complexo [Komplexes] como suas propriedades [Eigenschaften]. Uma fruta é doce, mas pode também ser amarga. Outras frutas também podem ser doces. A cor vermelha que procuramos ocorre em diversos corpos. A proximidade de alguns corpos é agradável, a de outros, desagradável. Assim, cada vez mais, diferentes complexos aparecem compostos [zusammengesetzt] por partes componentes comuns. Dos corpos, separam-se o visível, o audível, o tátil. O visível se analisa em cor e forma [Gestalt]. Na multiplicidade das cores vêm à tona, de novo, algumas partes componentes em menor número, as cores fundamentais etc. Os complexos se resolvem em elementos, isto é, em partes componentes últimas, as quais, até agora, não pudemos subdividir ainda mais. (MACH, 1886/1903, p. 4; grifo nosso)

Duas teses de grande importância são enunciadas nesta pequena passagem. A primeira delas é a de que os complexos que são dados em nossa experiência não podem ser identificados ao esquema clássico da relação entre uma substância e o conjunto de

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Mach faz menção a casos patológicos em que isto não ocorre, mas não se detém nisto justamente por que estes constituem exceção ao que foi observado, não se referem a vivências de um eu saudável.

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propriedades que nela inerem. Não há, substantivamente falando, nada como um sujeito último de predicados que possa ser distinto destes mesmos predicados, i.e., de seus atributos possíveis, e dito existente nele mesmo. A idéia de unidade ou identidade de algo é exclusivamente tributária da organização de suas notas características e da distensão temporal, da duração, que ela apresenta. Os elementos são o que há de autônomo e nós podemos constatar isto ao encontrarmos na base de complexos inteiramente distintos – se vistos em sua totalidade – propriedades comuns e que não se mostram mais ou menos pertinentes a um ou a outro. Certo espectro cromático, certo aroma, certa impressão tátil podem fazer parte das experiências que temos no trato com um corpo em específico, mas estas mesmas qualidades sensíveis podem aparecer na caracterização de um outro corpo de todo distinto ou mesmo em outro objeto de experiência que nada tem a ver com a materialidade. Há, bem entendido, uma inversão da relação entre objeto e propriedades no raciocínio de Mach: aquele é dissolvido em um simples arranjo das informações passíveis de serem oferecidas por estas. Das qualidades parciais, reificadas, autonomizadas e colocadas no centro de todo o esquema explicativo dos complexos sensoriais que apreendemos, temos a composição de todo objeto possível e nenhum destes se mostra, de saída, mais ou menos próximo de uma dentre as qualidades, não se mostra intrinsecamente ligado a ela40. A segunda dentre aquelas teses é a do caráter fundamentalmente analisável destas qualidades, as quais podem ser a cada vez distintas em qualidades mais elementares, até a obtenção de algo essencialmente simples e irredutível. Em relação a uma impressão sensível determinada, que pode constar em objetos dos mais variados tipos sem que nada torne a sua inserção mais apropriada no complexo que caracteriza um ou outro, podemos distinguir sucessivamente as suas características mais basais até obtermos um piso abaixo do qual nada há. Estas qualidades atômicas são os constituintes de toda vida psíquica. A primeira tese é descrita em maior detalhe no §3: A imagem vaga do permanente, a qual não se altera de modo a ser notado se uma ou outra dentre as suas partes componentes é retirada, parece ser algo por si. Uma vez que se pode retirar individualmente cada parte componente sem que a imagem deixe de representar [repräsentieren] a totalidade [Gesamtheit] e deixe de ser novamente reconhecida, acredita-se que se 40

Como já ressaltamos em nossa passagem por Müller e cumpre repetir aqui, esta exterioridade de qualidades sensíveis umas às outras será intensamente criticada pela teoria da forma, como veremos adiante.

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poderia retirar todos os componentes e ainda permaneceria algo. Assim surge, de maneira natural, o pensamento filosófico – inicialmente imponente, mas mais tarde reconhecido como monstruoso – de uma coisa em si (distinta de seu ‘aparecimento’ [Erscheinung] e incognoscível). A coisa, o corpo, a matéria não é nada fora da conexão [Zusammenhang] de elementos, cores, sons etc. – fora dos assim chamados atributos [Merkmalen]. (MACH, 1886/1903, p. 5)

Esta posição acaba nos mostrando como o pensamento de Mach pode se tornar pouco kantiano já em seus primeiros desdobramentos, uma vez que a noção mesma de coisa-em-si, situada nas antípodas de toda a descrição crítica da experiência, é logo desqualificada e taxada de monstruosa. Se no sistema de Kant ela ocupa um papel de inegável relevância – o qual não nos cabe apreciar aqui –, para Mach ela parece ser uma especulação excêntrica e desatenta à possibilidade mesma de exaurirmos as idéias de coisa e substância pela simples consideração de suas propriedades. Não por acaso, a posição de Mach será muito freqüentemente lida como um fenomenalismo (ASH, 2011, p. 63; POJMAN, 2009, p. 1), ainda que sustentado por teses puramente científicas, sem o peso metafísico da acepção clássica do termo. Isso ficará gradativamente mais claro nas considerações seguintes.

1.5.3. O problema da transcendência e os complexos elementares: Mach afirma que não apenas a relação do eu com os corpos, mas também a relação do eu consigo mesmo está na base de certos pseudo-problemas filosóficos cuja solução é imperativa. Para indicá-los com precisão, o pensador busca realizar uma distinção mais fina entre os diferentes conjuntos de dados fornecidos pelo quadro geral de nossa experiência, separando-os em três complexos fundamentais. O primeiro deles, designado pelas letras A, B, C,..., refere-se aos corpos (Körper), dos quais as sensações de cor, textura ou quaisquer outras impressões sensíveis são exemplos. O segundo, designado pelas letras K, L, M,..., refere-se às impressões vinculadas ao corpo (Leib) que nos é próprio – i.e., que não deixam de ter o mesmo caráter sensível do complexo anterior, mas que assumem como referente algo que se encontra em nós, que nos constitui e se vincula à nossa própria atividade perceptiva, e não coisas que se distinguem imediatamente de nós quando as percebemos. O terceiro complexo, designado pelas letras α, β, γ,..., refere-se aos diferentes estados psíquicos que estruturam a nossa vida interior, dos quais as volições, as imagens mnêmicas, os estados afetivos, entre outros, são exemplos. 85

Diante deste quadro conceitual, Mach afirma que usualmente tomamos pelo eu nada mais do que a conjunção dos dois últimos complexos – i.e., um somatório integrado dos dados referentes aos nossos processos psíquicos e à estrutura somática que lhes é subjacente – e o opomos ao primeiro complexo, o qual designaria o mundo de objetos materiais. Ainda comum seria a posição que entende o eu como algo essencialmente abstrato, identificando-o ao terceiro complexo, e opondo-o à união dos dois primeiros, a qual designaria o mundo material em sua totalidade. Aqui, o próprio corpo ao qual estaríamos desde sempre vinculados deveria situar-se junto às demais coisas mundanas, materiais, e estabelecer contraste com o âmbito puro de nossa experiência. Em ambos os casos, entretanto, A, B, C,... parecem ter uma existência completamente independente do eu, seja este tomado em seu sentido puramente psíquico ou psicofísico. O que Mach busca fazer é argumentar em favor da inconsistência desta hipótese e afirmar uma integração necessária entre todos os complexos, bem como uma movimentação sistêmica de suas notas características, na qual a alteração dos dados de um complexo seria diretamente vinculada à alteração dos dados de outro complexo. Desta maneira, ainda que muito possa ser alterado no complexo A, B, C,... sem que nenhuma alteração significativa sobrevenha ao complexo α, β, γ,... e vice-versa, podemos constatar, em uma inspeção mais detida, que muitas alterações que ocorrem em um daqueles complexos passam ao outro por meio do complexo K, L, M,.... O nosso corpo surge como o medium pelo qual a vida anímica teria contato com as coisas do mundo, o que poderia ser exemplificado pelas idéias intensas que nos movem de imediato a certas ações ou por alterações corporais induzidas pelo ambiente que nos circunda – ambos movimentos que se iniciam em algum dos níveis extremos da relação e findam no nível intermediário. A via pela qual Mach busca explorar estas constatações é a da necessária co-determinação de A, B, C,... por K, L, M,..., expressa no fato de toda disposição de nosso corpo perante as coisas por ele percebidas modular as condições desta percepção, apresentando de maneiras a cada vez novas os dados sensoriais possíveis ao contato com certo objeto. O estabelecimento do percepto, deste modo, é intrinsecamente vinculado a uma perspectiva corporalmente definida, como podemos ver nesta passagem: Um cubo, quando está próximo, é visto grande; quando distante, pequeno; com o olho direito, diferente de com o olho esquerdo; ocasionalmente, duplicado; com os olhos fechados, de modo algum visto. As propriedades de

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um e mesmo corpo [Körper] parecem, portanto, ser modificadas pelo nosso corpo [Leib]; aparecem condicionadas pelo mesmo. (MACH, 1886/1903, p. 7; grifo nosso)

A despeito de tais variações da percepção terem sido amplamente tomadas no pensamento filosófico precedente como indícios da pobreza epistêmica e do caráter eminentemente confuso e cambiante de nossa sensibilidade, a qual não nos permitiria um acesso confiável ao mundo, Mach busca conferir um estatuto positivo a elas, enfatizando apenas que, a diferentes dados presentes no complexo A, B, C,..., são vinculados (gebunden) diferentes dados do complexo K, L, M,.... A tentativa de reabilitação deste fenômeno pelo pensador como um traço relevante de nossa experiência é por ele reforçada em uma nota de rodapé, na qual faz referência a outro de seus escritos, Über die Abhängigkeiten der Netzhautstellen von einander (1868), em que defende a exterioridade dos valores de verdade em relação aos nossos conteúdos sensíveis: A expressão ‘ilusão dos sentidos’ [Sinnestäuschung] prova que ainda não se trouxe corretamente à consciência [Bewusstsein] [...] que os sentidos não mostram correta, nem incorretamente. A única coisa correta que se pode dizer dos órgãos sensoriais é que eles deflagram, em condições diversas, sensações e percepções [Wahrnehmungen] diversas. (MACH, 1886/1903, p. 8)

Estas condições, no entanto, não são sempre referentes às determinações corporais, mas também à relação entre as qualidades sensíveis e as condições externas gerais da percepção – i.e., o ambiente percebido junto ao objeto. É precisamente aqui que encontramos um daqueles pontos em que Mach parece intuir algumas das experiências que serviriam depois ao desmonte da psicologia experimental de seu tempo. De acordo com ele, as relações estabelecidas entre o percepto e o seu meio, ou ainda, as relações estabelecidas entre a diversidade de dados sensíveis que podem nos aparecer, sejam eles diretamente referidos ao objeto ou ao meio em que este se mostra, alteram necessariamente o quadro geral da experiência. O erro de se distinguir entre ‘realidade’ e ‘aparência’, presente no senso comum e com amplo lastro nos pensamentos filosófico e científico, residiria justamente na má interpretação desta relação entre o percepto e o meio em que ele se define. Um lápis pode parecer torto à visão se mergulhado na água, mas não o parecerá ao tato; uma imagem refletida em um espelho é sensorialmente apreensível apenas pela visão, não tendo a materialidade que habitualmente tem quando vista a partir do corpo que primeiro a define; uma superfície brilhante parece ter esta característica ressaltada quando é

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posta sobre uma superfície escura, mas não quando posta sobre uma ainda mais brilhante do que ela própria. De acordo com o pensador, tais enganos consistiriam basicamente em sacrificar-se o que é sensorialmente dado em favor de uma expectativa sustentada unicamente pelo hábito. Crer que existem erros na sensação é eleger um conteúdo sensorial como paradigmático, como a medida do acerto e do erro em uma determinada situação, e isto é feito, natural e ingenuamente, a partir da freqüência com que percebemos ser aquela sensação o caso. O freqüente é tomado por efetivo, real, verdadeiro; o desviante, por uma experiência desprovida de todas aquelas determinações e que deve ser, sem maiores preocupações, descartada. Presumir uma distinção entre o que o objeto efetivamente é e o conteúdo que nos é dado na experiência é uma postura realista que só pode ter origem em inferências enganosas a partir de experiências pontuais, qualitativamente distintas e essencialmente disjuntas. Mach nos oferece um exemplo de como isto pode ocorrer. Se temos a percepção visual de um determinado corpo, e.g., e a esta percepção é somada ainda outra, de natureza tátil, quando tocamos o corpo visto, passamos a crer que há algo como um núcleo estável, um objeto real, cujas manifestações em nossa sensibilidade são fortuitas, dependendo do trato que temos com ele. A presunção de algo como a existência em si dos objetos teria a sua gênese neste simples descompasso entre as percepções sucessivas de uma coisa. Despindo os objetos de todo o seu conteúdo sensorial, criaríamos meros símbolos mentais aos quais procuraríamos ingenuamente conferir maior realidade do que ao imediatamente dado. É em sua crítica a esta postura que Mach enuncia a célebre tese empirista de que temos contato direto apenas com as nossas sensações e podemos afirmar peremptoriamente que o mundo se reduz ao que elas exibem como conteúdo. Trazer junto deste um núcleo presumidamente mais real, do qual as próprias sensações adviriam, seria um gesto ocioso e supérfluo41.

1.5.4. A solução monista: elemento como sensação e propriedade Conseguimos já aqui enxergar algumas das conseqüências radicais da postura elementarista de Mach: ela não apenas permite ao estudioso uma reconsideração de temas

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Como na nona lei da sensibilidade postulada por Müller, encontramos aqui uma posição acerca da gênese psíquica da idéia de mundo externo que elege o tato com o sentido a partir do qual ela ocorre.

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tradicionalmente metafísicos, como as unidades do objeto e do eu e as possibilidades de relação entre ambas as instâncias, mas também uma apreensão totalmente modificada de problemas epistemológicos igualmente clássicos, como o erro sensível. Por meio desta dissolução do todo da realidade que nos é dada em elementos de diferentes tipos, que se rearranjam de maneiras variadas, encontramos a definição da unidade como a mera subsistência, no curso do tempo, de elementos agregados, bem como a elevação das experiências aparentemente enganosas à condição de agregação peculiar dos elementos referentes a corpos – ou de sua agregação peculiar aos elementos referentes ao nosso corpo. O exame da experiência, portanto, mostra que não é preciso afirmar uma exterioridade insuperável entre aqueles três tipos de dados que nos surgem para que os possamos compreender. Em vez disto, é possível enxergá-los em seu curioso compassamento, na maneira como se ordenam, assumem formas complexas diversas e nos aparecem, sendo precisamente este constante fluxo de agregações e dissoluções o que deve ser mais bem tematizado e compreendido. Trata-se, claramente, de uma posição monista perante os problemas até então examinados: A oposição entre eu e mundo, sensação ou aparecimento e coisa, cai, então, por terra e trata-se meramente da conexão [Zusammenhang] dos elementos , , ..., A, B, C,..., K, L, M,..., para a qual justamente esta oposição era apenas uma expressão incompleta e parcialmente aplicável. Esta conexão não é nada além da ligação [Verknüpfung] daqueles elementos com outros elementos de mesmo tipo [...]. (MACH, 1886/1903, p. 11)

Em um exame detido, portanto, os elementos componentes de cada um daqueles três nichos se mostram equivalentes entre si – i.e., mostrem-se funcionalmente idênticos, na medida em que, a cada caso, não são senão elementos que se juntam a outros elementos por meio da ação de forças externas a eles. Mach chama atenção, contudo, para o quão difícil é preservar este modo de se enxergar as coisas, pois a tendência de encontrarmos certas diferenças entre os elementos, que coloquem uns como prioritários em relação a outros, impõem-se sempre de maneira renovada. Uma perspectiva ‘espiritualista’, que tenha de se haver com o problema da matéria, concebendo-a como produto necessário da atividade espiritual, bem como uma perspectiva ‘materialista’, que se veja às voltas com a necessidade de encontrar o lugar da sensação e da experiência em um mundo puramente extenso, são as duas expressões mais freqüentes – e diametralmente opostas – deste

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conflito. “O ponto de vista monista, obtido por meio da reflexão, é de novo facilmente obscurecido pelas representações instintivas mais velhas e fortes” (MACH, 1886/1903, p. 14) Um bom exemplo desta reabilitação persuasiva da distinção matéria-espírito pode ser encontrado na idéia de que, no mundo material representado por A, B, C,... estão presentes não apenas as partes de nosso corpo próprio, representadas por K, L, M,..., mas também aquelas pertencentes aos corpos de outros indivíduos, como K’, L’, M’,..., K”, L”, M”,... etc. Se encontramos vinculadas à nossas partes K, L, M,... os elementos , , ,..., inferimos, por analogia, que ’, ’, ’,..., ”, ”, ”,... etc. estejam igualmente ligados àquelas partes materiais de outros indivíduos por nós constatadas. Estas partes materiais são diretamente acessíveis a nós, no entanto, dando-se aos nossos sentidos de uma forma que os elementos presumidos não se dão. Estes devem a sua existência e tudo o mais que dela se possa derivar meramente à nossa presunção. Se temos um contato direto com uma das dimensões em questão, com a outra parece-nos restar um contato fundamentalmente obscuro, incerto e que nos persuade a tomar seus conteúdos como parte de algo em si menos acessível, mais remoto. Uma interpretação dos dados de nossa experiência que siga neste caminho pode restaurar o dualismo e nos convencer de que algo é a matéria e outro algo inteiramente distinto, de natureza mais elusiva e difícil de se devassar, é o espírito que a ela se conjuga42. É contra isto, no entanto, que Mach argumenta em todos os pontos por nós citados até então. Em manobra consideravelmente relevante para a definição de sua posição, ele diz mesmo que diferentes tarefas de diferentes campos científicos podem ser definidas a reboque desta esquematização dos dados possíveis à nossa experiência. Encontramos precisamente aqui a sua posição acerca da relação entre psicologia e física. Se buscarmos avaliar apenas as relações entre elementos dos complexos A, B, C,..., sem referi-los de forma alguma aos elementos K, L, M,..., o que temos é um estudo de propriedades de objetos sem o concurso do corpo. A investigação física consistiria precisamente nisto. Um objeto, e.g., pode tornar-se amarelo se aproximado de uma lâmpada de sódio, da mesma forma que vermelho se aproximado de uma lâmpada de lítio ou ainda de outra cor se interagir com outra substância. Trata-se, nestes fenômenos, apenas de uma variação 42

Encontramos aqui, novamente, uma tentativa de argumentar em favor da idéia de que as nossas percepções tendem ao realismo de certo modo, assim como encontramos na nona lei de Müller e no esquema de sínteses inconscientes de Helmholtz.

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experimental de propriedades objetivas quando submetidas a circunstâncias objetivas específicas. Variam, perante nós, os elementos dados em um determinado complexo A, B, C,... como partes de corpos determinados. Se, no entanto, buscarmos afirmar a referência destes elementos ao nosso corpo e os tomarmos como afecções deste, o que fazemos é torná-los sensações. Disto cuida a investigação psicológica. Uma pressão aplicada à órbita ocular perante o mesmo objeto que nos servira há pouco para a ilustração experimental pode fazê-lo aparecer duplicado. Se uma cisão ocorrer em qualquer nervo sensorial por meio do qual as características deste objeto podem me ser dadas, deixo de apreendê-las imediatamente. Aqui, todos os dados que, em seus vínculos com outros dados de mesma natureza, poderiam ser tomados por propriedades, surgem-nos pela relação com o nosso corpo, convertem-se em sensações. A depender da maneira como enfocamos um mesmo elemento, portanto, ele assume diferentes aspectos e serve de objeto de análise a ciências diferentes. Física e psicologia não seriam senão análises complementares das diferentes visadas possíveis de uma mesma coisa. O monismo se reitera mesmo quando consideramos campos científicos cuja distância de princípio deveria ser a mais radical. O estudioso afirma: Deste modo, não encontramos, portanto, a lacuna antes indicada entre corpos e sensações, entre o externo e o interno, entre o mundo material e o espiritual. Todos os elementos A, B, C,..., K, L, M,... compõem apenas uma massa coesa que, a cada elemento tocado, põe-se totalmente em movimento [...] (MACH, 1886/1903, p. 17)

Ainda que estabeleça algumas relações positivas com a idéia de panspiquismo em Fechner, à qual já tivemos a ocasião de nos reportar, o monismo de Mach difere consideravelmente dela por não ser metafísico ou cosmológico, mas sim heurístico, extraído da experiência por generalização. Se Fechner buscava descerrar um princípio ordenador do mundo em sua totalidade, bem como especular sobre a existência de vida nos mais ínfimos desdobramentos da matéria, o interesse de Mach é suspender tais preocupações e centrar-se apenas em oferecer um modelo para a compreensão da experiência e dos fenômenos naturais em sua generalidade, o qual assumiria um caráter axiomático para diferentes programas de estudo científico. Trata-se, antes de uma reflexão que espelhe o real e a sua íntima ordenação, de uma proposta que se pretende fiel ao que

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nos é dado na experiência e que serve para nos livrarmos de uma série de problemas deletérios para o desenvolvimento da ciência. Trata-se de um monismo metodológico. O princípio aqui empregado ultrapassa, em sua especialização, o pressuposto geral de que a cada [dado] psíquico corresponde um físico e vice versa. A hipótese geral, que em muitos casos se comprovou como correta, poderá ser mantida em todos os casos como provavelmente correta e forma, além disto, a pressuposição necessária da investigação exata. A concepção fechneriana do físico e do psíquico como dois lados distintos de um só e mesmo real é igualmente diferente da nossa. Em primeiro lugar, a nossa concepção não possui qualquer tipo de fundamento metafísico, mas sim corresponde apenas a uma expressão generalizada das experiências. Em seguida, nós também não distinguimos dois lados diferentes de um terceiro desconhecido [eines unbekannten Dritten], mas antes, os elementos encontrados previamente na experiência, cuja ligação [Verbindung] nós investigamos, são sempre os mesmos, apenas de um mesmo tipo, e é só de acordo com o tipo de sua conexão [Zusammenhang], que ocorrem ora como elementos físicos, ora como psíquicos. (MACH, 1886/1903, p. 50 e 51)

1.5.5. A economia psíquica e a apreensão de Gestalten visuais e acústicas: Tendo em vista concluir a nossa passagem por Ernst Mach, cabe apresentarmos ainda duas características de seu pensamento de suma importância para as considerações que se seguem. A primeira delas é o papel por ele delegado à aprendizagem na estruturação de nossos processos psíquicos, em que o estudioso assume uma explícita inspiração darwiniana43 ainda ausente nos trabalhos até então analisados. A segunda são algumas idéias acerca da percepção por ele propostas que foram diretamente retomadas em Über Gestaltqualitäten, de Ehrenfels, e permitiram o advento de uma teoria da forma propriamente dita. Nestes dois itens, a posição peculiar de Ernst Mach na história da psicologia, à qual já aludimos acima, será mais claramente exposta. No que se refere ao primeiro, basta que observemos o fato de Mach entender que não apenas o aprendizado individual, mas também a adaptação da própria espécie humana, ao longo de seu histórico de interações com o meio ambiente, atua na formação de mecanismos que permitem gerir aquela economia própria à experiência – i.e., sua maneira de agregar os diferentes dados que lhe aparecem e nos oferecer experiências estáveis. Todo tipo de processo vital, portanto – sejam eles processos psíquicos os mais fundamentais, como a percepção, ou os mais elevados, como o exercício da razão –, obedece aos ditames 43

De acordo com Pojman (2009), Mach se vincula a uma tradição do evolucionismo alemão que, à diferença de Darwin, incorporava a idéia de teleologia aos processos biológicos, da qual foram representantes Ernst Haeckel e Ewald Hering.

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a cada vez diferentes de uma estrutura orgânica cuja morfologia e cujos princípios funcionais dependem de estrita comunicação com as condições em que a sua sobrevivência é possibilitada – i.e., as condições às quais ela precisa responder para tanto. Xirau (1966) nos explica este movimento, evidenciando que a tarefa fundamental desta natureza econômica dos processos vitais é impedir a emissão de respostas particulares a cada estímulo particular dado, uma vez que isto elevaria o trabalho do organismo potencialmente ao infinito e faria da experiência um curso inteiramente instável, sempre orientado pelo novo. Trata-se, contra isto, de operar uma progressiva unificação da realidade, sua redução a esquemas de organização já conhecidos, dominados e passíveis de ulterior recognição, tendo em vista um menor dispêndio de energia vital. Diz-nos o filósofo: Sensações infinitas exigiriam um esforço infinito se fosse preciso responder a cada uma delas mediante uma reação nova e original de acordo com sua diversidade. Para evitar o esgotamento de sua energia limitada, a vida organiza o mundo, ordenando-o e recortando-o mediante um sistema de ‘conceitos’. Esta ordenação conceitual nos permite considerar como igual o que na realidade é diferente e organizar um repertório de respostas automáticas e habituais aos estímulos do mundo que requeiram um esforço mínimo. (p. 23 e 24)

As conseqüências disto seriam as mais diversas. Não apenas o que nos é dado prontamente na experiência, como se fosse parte estruturante da mesma, a exemplo da idéia de ‘eu’, recai na condição de unidade econômico-mental (denk-ökonomischen Einheit), útil aos processos específicos de sobrevivência, mas também os próprios conceitos dos diferentes campos científicos. Eles consistiriam apenas em elementos que apresentariam esta relação mais estável, de vínculos mais duráveis, que não se abrem à margem de variação que caracteriza os demais elementos que os cercam. A própria investigação científica se resumiria a identificar ‘somas de permanentes’ – i.e., conjuntos de elementos cujas conexões seriam, segundo as nossas possibilidades biologicamente condicionadas de apreensão e crítica intelectual, estáveis ou mesmo fixos44. A propósito da física, Mach (1886/1903) o atesta explicitamente, reiterando ainda a importância de seu elementarismo:

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Dado o próprio embasamento de Mach no evolucionismo, as conseqüências nominalistas de uma tal compreensão da atividade científica são inegáveis e bastante óbvias. Alterando-se as próprias disposições do organismo, no curso da evolução, alteram-se as possibilidades concretas de ordenação de sua experiência e, por conseguinte, as próprias possibilidades de se estruturar conceitos. Conhecimento e verdade seriam mutáveis, portanto; acompanhariam a marcha da adaptação do organismo. Husserl atentará a isto em seus Prolegomena, como veremos adiante.

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Sustento [...] que um conceito físico significa apenas um tipo determinado de conexão [Zusammenhang] de elementos sensíveis, que foram anteriormente caracterizados por A, B, C,.... Estes elementos – elementos no sentido de que uma análise ulterior [eine weitere Auflösung] até então não foi bem sucedida – são os blocos de construção [Bausteine] simples do mundo físico e também do psicológico. (p. 34)

Por fim, no que se refere ao segundo daqueles itens enumerados no início desta seção, relativo às idéias de Mach que tiveram ressonância positiva no pensamento de Ehrenfels, cabe indicar que, em seus exames das percepções visual e acústica, ele aparentou ter certa compreensão de que determinados conteúdos nos são dados de imediato como totalidades íntegras, à qual a própria idéia de divisão parece, pelo menos inicialmente, estranha. No que se refere à visão, e.g., ele afirma: “A árvore, com seu tronco cinzento, rígido e áspero, os muitos galhos movendo-se ao vento, as folhas lisas, lustrosas e macias, aparece-nos, primeiramente, como um todo indivisível [ein untrennbares Ganze].” (MACH, 1886/1903, p. 84). A percepção de um objeto como este nos daria acesso, basicamente, a uma figura determinada, fechada, cujo próprio aparecimento não nos daria ocasião para pensarmos em sua origem plural, redutível a certa quantidade de conteúdos parciais que só tardiamente nos permitiram visar um todo. O esforço de Mach, no entanto, não é por tomar de maneira positiva este aparecer nestas circunstâncias, mas sim por reconduzi-lo à posição elementarista de base. O reflexo desta mesma árvore em um espelho, assim, privaria a sua imagem de uma de suas possibilidades originais, que é a de ser base para impressões táteis. Se, de olhos fechados, buscarmos tocar a tal árvore, ela estará tatilmente acessível, mas não visualmente. Por raciocínios deste tipo, Mach reafirma gradativamente a separabilidade das diferentes modalidades sensíveis e restaura a tese elementarista, afastando o dar-se imediato da coisa como algo íntegro e estável, tornando-o um mero efeito de superfície. Maior atenção às formas surge apenas na discriminação dos conteúdos possíveis à percepção visual. Fenômenos visuais em que a permuta de conteúdos sensíveis perante a apreensão de uma identidade é possível – i.e., fenômenos em que podemos encontrar uma mesma estrutura definidora do percepto, ainda que os conteúdos que o instanciam sejam em ampla medida, ou inteiramente, diferentes – são explicados por meio da própria sensação, o olho sendo capaz de apreender basicamente ‘sensações de cor’ (Farbenempfindungen) e ‘sensações de espaço’ (Raumempfindungen). Se, em uma figura como esta logo abaixo,

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conseguimos reconhecer uma mesma forma em cada um dos lados, é apenas porque encontramos neles os mesmos referenciais espaciais na definição de contornos e detalhes visuais, malgrado a diferença de cores. A percepção da identidade aqui seria devida apenas ao despertar das mesmas sensações de espaço em nós quando visamos ambos:

No que se refere à audição, Mach também constata a possibilidade de apreendermos formas que guardam certa autonomia em relação aos conteúdos sensíveis por meio dos quais se apresentam: Se duas seqüências sonoras partem de duas notas diferentes e progridem a partir das mesmas relações de freqüência, reconhecemos em ambas a mesma melodia imediatamente através da sensação, assim como, em duas figuras geometricamente semelhantes, dispostas semelhantemente, reconhecemos a mesma forma [Gestalt] (MACH, 1886/1903, p. 222)

Se, por ocasião de seu exame da percepção visual, ele não fez senão reafirmar o elementarismo e a centralidade do conceito de sensação, atraindo um fenômeno a princípio anômalo para a teoria clássica justamente para os esquemas explicativos desta, aqui, a propósito da audição, a sua postura é outra. Em vez de examinar o fenômeno, ele o toma como base para discutir as peculiaridades da percepção acústica treinada em relação à nãotreinada45, enveredando-se por outras discussões e mostrando que o seu efetivo interesse não se encontra no exame do que este episódio tem de peculiar.

1.6. Conclusão: Deste modo, concluímos o trajeto que nos propusemos no início deste capítulo, tendo apreendido, a partir do exame de obras específicas do cenário filosófico-científico

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É certo que a posição de Mach em relação a tais problemas não se resume ao que se encontra exposto em Die Analyse der Empfindungen. Como indicam Mulligan e Smith (1988), o estudioso desenvolve, em suas Bemerkungen zur Lehre vom raumlichen Sehen (1865), toda uma teoria acerca das ‘sensações musculares’ [Muskelempfindungen] que acompanhariam a apreensão das sensações convencionais, mas não seriam influenciadas por seu conteúdo, possibilitando o reconhecimento de identidade perante experiências distintas. Haveria aqui certa interpretação ainda elementarista do problema de constituição de formas. Por relevante que possa ser esta teoria para interpretarmos a posição de Mach acerca do problema, não será possível abordá-la dentro dos limites deste trabalho.

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alemão . do século XIX, as características gerais do estudo experimental da consciência, observando não apenas algumas de suas teses fundamentais, como atentando também a um autor em especial que as exemplifica em grande medida e nos permite, por certas peculiaridades de seu trabalho, entrever os desenvolvimentos da psicologia que levariam ao gestaltismo. Encontramo-nos, deste modo, munidos de recursos suficientes para compreendermos como outros projetos psicológicos mais filosoficamente orientados, também do século XIX, poderiam ofereceriam forte resistência a este cenário inicial e introduzir certas teses acerca da descrição e da interpretação dos fenômenos conscientes que desempenharam grande importância na gênese tanto do gestaltismo, quanto da fenomenologia. É o que buscaremos ver em nosso próximo capítulo.

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Capítulo II O Estudo Descritivo da Consciência Uma vez de posse desta imagem geral do estudo experimental da consciência e de alguns de seus trabalhos capitais, seja no âmbito fisiológico, seja no psicológico, temos condição de dar seguimento ao nosso exame histórico e conceitual prévio, debruçando-nos, neste segundo capítulo, sobre as teses da assim chamada ‘psicologia descritiva’. Por mais que sob esta rubrica possam caber projetos psicológicos bastante variados, alguns intimamente vinculados entre si, outros já motivados por urgências análogas, mas desdobrados em direções diversas, atentaremos aqui ao sentido conferido ao termo pela escola filosófica fundada por Franz Brentano46. Esta, como já dissemos em nossa introdução, possui relevância central não apenas para compreendermos como a psicologia experimental sofreu alguns de seus mais relevantes ataques ainda nos anos de sua consolidação, mas também para vermos como esta oposição se sustentava em uma compreensão bastante distinta da consciência e dos procedimentos investigativos que a deveriam tematizar. Iniciaremos a exposição destas idéias a partir da fase inicial do pensamento do próprio Brentano, a qual exerceu maior influência sobre os seus discípulos e definiu o ponto de partida para o desenvolvimento de suas obras particulares, dedicadas a novos problemas e desenvolvimentos conceituais que, apesar de seu direto vínculo com a démarche brentaniana, guardam também uma fecundidade própria e essencial para a definição das duas escolas que avaliaremos nos demais capítulos deste estudo. Como já nos indicaram os diversos autores recuperados em nossa introdução, Brentano constitui um dos principais antecedentes intelectuais comuns entre a fenomenologia e a psicologia da forma – um ponto nodal em que podemos encontrar as questões, as motivações e as teses basilares que influenciaram o surgimento e o desenvolvimento de ambas as escolas. Deste modo, buscaremos mostrar como o filósofo estabeleceu um novo sentido de psicologia empírica, menos comprometido com o procedimento positivo de estudo e mais interessado no descerramento de leis necessárias de nossos processos psíquicos, por meio da escrupulosa descrição e discriminação de suas manifestações em primeira pessoa. Em seguida, veremos 46

Entre projetos de psicologia descritiva distintos deste proposto por Brentano, podemos citar o de Wilhelm Dilthey, esboçado em suas Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie (1894).

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como este apelo a uma nova abordagem da consciência orienta, no trabalho de Christian von Ehrenfels, a primeira postulação explícita de um conceito psicológico de forma, a Gestaltqualität e marca, no seio da escola de Brentano, o surgimento do gestaltismo. Por fim, consideraremos alguns dos estudos de Carl Stumpf acerca da percepção e como estes mostravam a necessidade de considerarmos critérios de ordenação não-contingentes para a mesma. Além disto, surgem como particularmente relevantes para o nosso problema as propostas do psicólogo acerca de uma ‘fenomenologia experimental’, método situado entre a exegese filosófica e a análise laboratorial dos conteúdos sensíveis da experiência. A partir destas referências, buscaremos encontrar na Escola de Brentano elementos que auxiliem e enriqueçam os passos posteriores de nosso percurso.

2.1. A psicologia do ato de Franz Brentano: Franz Brentano foi um padre austríaco de formação intelectual profundamente influenciada pelo aristotelismo e pelo neotomismo, tendo estudado filosofia nas universidades de Munique, Würzburg e Berlim, bem como teologia em seminários distintos, nas duas primeiras destas cidades. Além de uma sólida produção como intérprete e comentador de Aristóteles, na qual se insere o seu trabalho de doutoramento acerca dos múltiplos sentidos de ser presentes na obra daquele pensador, Brentano foi o responsável por ter re-introduzido no pensamento contemporâneo um conceito diretamente ligado à tradição aristotélica e cuja fecundidade excedeu em muito os limites da própria produção de Brentano – a saber, o conceito de ‘intencionalidade’47. Ainda que possamos traçar algumas das linhas gerais pelas quais a sua obra pode ser considerada relevante para diferentes âmbitos do pensamento do século XX, é importante salientar, como nos indica Rollinger (2004, p. 277 e 278) que Brentano escreveu muito pouco e que a maior parte dos registros feitos por seus alunos a partir dos cursos que ele ministrou foi perdida por diferentes razões. As referências materiais mais claras da influência de Brentano em muitos de seus alunos acabam sendo reduzidas, deste modo, o que faz com que estas relações tendam a ser marcadas por certa obscuridade e que se fale mesmo em certa ‘presença invisível’ do filósofo na época que o sucedeu. A despeito destas dificuldades impostas ao trabalho 47

Schuhmann (2004, p. 281-284) busca nos mostrar como diversos conceitos centrais ao pensamento de diferentes autores da tradição fenomenológica, seja ela alemã, seja francesa, podem ser considerados desdobramentos da definição inicial de intencionalidade por Brentano.

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histórico e exegético, é certa a relevância de Brentano para os autores que pertencem ao nosso roteiro. A partir de todas estas razões, indicadas tanto aqui, quanto em nossas poucas palavras de introdução, buscaremos ter nas seções seguintes uma compreensão geral do projeto brentaniano e das novidades por ele introduzidas no cenário filosófico e psicológico alemão. Para que possamos fazê-lo, cumpre considerarmos a obra maior de Brentano e aquela que o permitiu conquistar a relevância já comentada para o pensamento do século a ele subseqüente. Referimo-nos à Psychologie vom Empirischen Standpunkt (1874), nos dois volumes que a compõem48.

2.1.1. A evicção de pressupostos e a unidade da psicologia: Um dos propósitos maiores de Brentano em sua Psychologie é realizar uma reflexão acerca da ciência psicológica que permita conferir a ela certo grau de autonomia que as suas diferentes definições até então não a permitiam ter. Com efeito, como vimos ao longo de todo o nosso capítulo inicial, muito do que se fez nesta disciplina foi diretamente dependente de teses em fisiologia, ou mesmo de métodos fisiológicos de estudo, como o controle experimental das excitações periféricas. Além disto, seria possível constatar em diferentes projetos psicológicos a existência de certo número de pressupostos metafísicos que, no entender de Brentano, não seriam efetivamente úteis à compreensão dos fenômenos psíquicos, desfavorecendo a consistência teórica dos projetos em questão, os quais muitas vezes não se preocupavam com a clarificação plena destes pressupostos. Em ambos os casos, tanto no que respeita à fisiologia quanto à metafísica, encontraríamos certa subordinação de nossa compreensão dos fenômenos psíquicos a princípios teóricos que lhes são estranhos e que, se devidamente vistos e criticados, poderiam ser simplesmente postos fora de jogo, de modo a tornar a tarefa do psicólogo mais precisa, simples e conseqüente. Ao depurar o estudo propriamente psicológico destes enviesamentos, Brentano (1874) crê não apenas contribuir para a autonomia da psicologia, mas também para a sua unidade. Na Introdução da obra citada, ele afirma:

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A rigor, o projeto original da obra era composto por seis volumes, mas apenas os dois primeiros deles foram escritos. O primeiro diz respeito à condição geral da psicologia como ciência; o segundo, à introdução e clarificação do conceito de fenômeno psíquico. Os três posteriores diriam respeito aos três tipos de ato psíquico concebidos por Brentano – a representação, o juízo e os atos de amor e ódio – e o sexto, à imortalidade da alma.

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Não tanto a pluralidade e a universalidade [Allseitigkeit] nos princípios, mas antes a unidade na convicção [Ueberzeugung] é o que primeiramente nos faz falta no domínio psíquico. Nós precisamos tentar obter aqui o que a matemática, a física, a química e a fisiologia, a primeira mais cedo, as outras mais tarde, já atingiram; um núcleo de verdade reconhecida de maneira geral, ao qual, logo em seguida, por meio do atuar conjunto de muitas forças, de todos os lados até aqui novas contribuições se dirigiriam. No lugar de psicologias, devemos procurar estabelecer uma psicologia. (p. VI)

Para tanto, Brentano inicia, no primeiro capítulo desta mesma obra, uma detida exposição do conceito geral de psicologia. Ao elencar algumas das acepções historicamente assumidas pelo termo, ele nos indica pouco a pouco algumas características do que ele próprio admite ser a definição correta do mesmo, razão pela qual se nos mostra oportuno o acompanhamento de suas afirmações. De acordo o filósofo, desde o tratado ερί ψυχῆς, de Aristóteles, entende-se psicologia como ‘ciência da alma’. A possibilidade de remontarmos a definição da disciplina a um texto tão antigo, no entanto49, não deveria sugerir algo como uma preservação, ao longo dos tempos, do sentido a ela conferido. Com efeito, os objetos de estudo da psicologia foram sendo gradativamente reduzidos e especificados, de modo a termos, no tempo de Brentano, uma compreensão da alma e seus fenômenos muito distante da compreensão antiga. Em seu tratado, Aristóteles define a alma como a ‘forma’ (ς) do ente vivo ou o princípio de movimento que o anima, dividindo-a em três faculdades essenciais: nutritiva (ϑρεπτικός), sensitiva (ἀισϑητικός) e intelectiva (νοητικός) – a primeira delas respondendo pela capacidade de um dado ente nutrir-se de algo e assegurar assim a sua subsistência e desenvolvimento; a segunda pela sua capacidade de apreender as características do ambiente em que se encontra por meio da percepção sensível; a terceira por sua capacidade de passar tais apreensões particulares, marcadas por acidentes de todo tipo, ao nível da generalidade e da abstração – i.e, do conceito. Ser um ente animado, para o filósofo, equivaleria a ter pelo menos uma destas características50, de modo que a psicologia assim concebida seria um conhecimento da vida em sua generalidade, aproximando-se mais de uma biologia geral do que o faz a acepção de psicologia que nos é 49

A rigor, o texto mais antigo possível, uma vez que Brentano o considera o primeiro trabalho em psicologia já escrito. A despeito de Aristóteles (2006) dialogar com o Timeu, de Platão, com a tradição megárica, entre outras, justamente por estas terem oferecido concepções de alma que pareciam impróprias ao estagirita, Brentano considera o ερί ψυχῆς o primeiro texto em psicologia. 50 A tese aristotélica, a rigor, prevê uma hierarquia destas faculdades, a qual conta também como uma hierarquia das formas de vida: o nível nutritivo seria o único encontrado em plantas; os níveis nutritivo e perceptivo, os únicos em animais; os níveis nutritivo, perceptivo e racional, aqueles encontrados no homem. Cada faculdade adquirida por uma forma mais elevada de vida pressupõe a manutenção da faculdade anterior.

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mais próxima (REIS, 2006, p. 16; STIRN, 2006, p. 93). De acordo com Brentano, o gradativo estreitamento da disciplina transparece no fato de ela ter deixado de se preocupar com os fenômenos referentes à supracitada dimensão nutritiva da alma e com uma grande parcela de temas relacionados à vida sensória, como o estudo do sistema nervoso em sua generalidade e do sistema muscular. Tal estreitamento, no entanto, não teria sido uma redução indesejável do escopo da disciplina ou o seu empobrecimento, mas, antes, algo exigido pela própria natureza das coisas. Posto que uma ciência só pode ser bem delimitada quando as suas áreas afins, mas a ela não pertencentes, são afastadas, restando apenas o domínio de investigações que lhe é próprio, Brentano entende este processo como algo inteiramente pertinente. Tem-se, deste modo, já durante a modernidade, uma nova definição de alma: Por alma [Seele] [...] compreende o mais recente uso lingüístico o portador substancial [den substantiellen Träger] de representações [Vorstellungen] e outras propriedades [Eigenschaften], as quais, como as representações, são imediatamente perceptíveis apenas através da experiência interna [innere Erfahrung], e para as quais as representações constituem fundamento [Grundlage]; assim o portador substancial de uma sensação, e.g., uma fantasia [Phantasie], um ato mnêmico [Gedächtnissactes], um ato de esperança ou temor, de desejo ou aversão costuma-se chamar alma. (BRENTANO, 1874, p. 6)

Ainda que o pensador não a endosse por completo, podemos encontrar nesta formulação pelo menos duas teses de grande relevância para a psicologia tal como defendida por ele: (1) a existência de uma relação hierárquica entre representações e outros modos da experiência, sendo sempre necessário o aparecimento de um dado conteúdo para que uma disposição cognitiva ou afetiva lhe possa ser somada, alterando, assim a modalidade de seu aparecimento; e (2) a possibilidade de termos uma apreensão adequada destes fenômenos apenas por meio de um ‘experiência interna’ – ou, como se dirá mais adiante, uma ‘percepção interna’ (innere Wahrnehmung) –, a qual seria um recolher-se do espírito às próprias atividades, à própria vida representativa, e não aos conteúdos que lhe são correlatos. Deixemos, no entanto, ambas as teses apenas assinaladas aqui, uma vez que um exame mais criterioso das mesmas, tal com Brentano as toma, será oferecido nas seções posteriores. Por ora, importa-nos enfatizar que a gradativa especificação do conceito de alma conduziu à afirmação de que a mesma consiste em uma espécie de núcleo estável, existente em si e por si mesmo – i.e., de caráter substancial –, do qual todas as

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possibilidades de experiência podem ser ditas, como se fossem uma variedade de atos desempenhados por uma unidade ela mesma invariável. Trata-se, em outras palavras, de conceber a alma como uma entidade na qual outras coisas subsistem, mas que, por sua vez, não subsiste em coisa alguma, sendo sujeito em sentido último. A despeito de tantas mudanças operadas na concepção aristotélica, ainda se pode definir aqui psicologia como ciência da alma e a partir de uma fundamentação metafísica explícita. E a tarefa desta psicologia, certamente no ensejo do desenvolvimento da ciência natural daquele tempo, poderia inclusive ser concebida por meio de um paralelo com a tarefa desta ciência: De modo similar à ciência da natureza, que se encarrega de investigar as peculiaridades e leis dos corpos aos quais a nossa experiência externa se refere, ela surge, então, como a ciência que ensina a conhecer as peculiaridades e leis da alma, as quais nós encontramos para nós mesmos imediatamente apenas através da experiência interna e, por analogia, inferimos também nos outros. (BRENTANO, 1874, p. 6)

Esta demarcação, a princípio tão clara e suficiente, não deixa de apresentar problemas, no entanto. Como é comum em todos os casos em que ciências distintas tocam as fronteiras uma da outra, teríamos fenômenos que se encontrariam justamente na linha divisória entre ciência natural e psicologia, pertencendo tão legitimamente a uma quanto à outra. Esta idéia pode ser facilmente compreendida se lembrarmos que, como já tivemos ocasião de ver no capítulo anterior, os fatos investigados pelo fisiólogo e aqueles investigados pelo psicólogo são consideravelmente próximos, quando não, em realidade, idênticos. Aqui, encontraríamos unidas em um mesmo grupo de fenômenos propriedades físicas e psíquicas. O exemplo central oferecido por Brentano para isto, não por acaso, é a psicofísica de Fechner, a qual seria uma disciplina científica autônoma e que atentaria justo a estes fenômenos limítrofes. A distinção inicialmente tão ordeira entre ciência natural e psicologia revela-se, por meio de tais considerações, um tanto problemática. O conceito não teria atingido ainda a sua formulação radical, dependendo de clarificação ulterior.

2.1.2. O recurso aos fenômenos e a relevância cognitiva e prática da psicologia: Mesmo que acerte ao eliminar uma série de temas da psicologia aristotélica que não diriam tanto respeito ao estudo da alma nela mesma, a psicologia moderna ainda enfrenta problemas de delimitação do seu escopo. E ela se mostra claramente dependente de teses 102

metafísicas, dada a pronta admissão do caráter substancial da alma. A constatação deste último problema deu origem a uma outra posição, bastante difundida entre pensadores da tradição empirista, segundo a qual a definição de psicologia como ciência da alma seria imprópria. Da mesma forma que a ciência natural é por vezes tomada como ciência de ‘fenômenos físicos’, abandonando toda especulação metafísica acerca da natureza da matéria ou das forças nela operantes, a psicologia poderia se abster de refletir sobre a integridade última dos eventos sediados na alma e denominar-se apenas ciência de ‘fenômenos psíquicos’. A afirmação da condição fenomênica de ambos os objetos de estudo, tanto o científico-natural, quanto o psicológico, não significa aqui senão um recuo perante a fundamentação metafísica dos mesmos, o qual podemos compreender com facilidade por meio do recurso ao nosso primeiro capítulo51. Como vimos, em certas teorias fisiológicas, mas, de modo mais enfático, na teoria das energias sensoriais específicas de Müller, temos uma afirmação de que a quase totalidade de nossos dados de percepção não se referem ao mundo de modo a reconstruir, a nível de experiência, cópias ou representações fiéis do que ele guarda em si mesmo. Nos termos já introduzidos nesta seção específica, a percepção não é uma atividade mimética que nos permita acessar apenas propriedades reais do que os objetos efetivamente são, mas sim uma atividade eminentemente produtiva, em que os conteúdos dados referem-se mais à natureza de nosso corpo, de sua periferia nervosa. Seria apenas por um movimento inadequado e irrefletido que atribuiríamos o que percebemos a uma unidade real, exterior às nossas possibilidades de experiência. É em atenção a tais problemas que ganha força a hipótese de que devemos nos ater primariamente ao que nos é dado na experiência e não exceder este espaço de maneira temerária. A percepção externa, através de raciocínios similares a este, foi sistematicamente colocada em questão por uma grande quantidade de pensadores. O mesmo não teria ocorrido, no entanto, com a percepção interna. Brentano afirma: [...] o que se diz dos objetos da experiência externa, não pode ser dito do mesmo modo daqueles da experiência interna. No caso desta, ninguém sequer mostrou que quem venha a tomar as suas aparições por verdade envolver-seia em contradições, mas sim que nós temos mesmo acerca de sua existência [Bestande] aquele conhecimento mais claro e aquela certeza mais plena que podem ser dados pelo discernimento imediato [unmittelbaren Einsicht]. Por 51

Os interlocutores de Brentano em seu texto são basicamente os empiristas modernos. Como cremos que os problemas apresentados por estes são recuperados e assumem expressão científica nas obras dos autores aos quais nos reportamos no primeiro capítulo, esta referência nos parece justificada.

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isso não se pode propriamente duvidar de que o estado psíquico que ele percebe em si seja e de que ela seja tal como ele o percebe. Quem ainda fosse capaz de duvidar aqui, cairia em uma dúvida completa, um ceticismo, que certamente se dissolveria a si mesmo por ter destruído também cada ponto firme a partir do qual ele poderia tentar o seu ataque ao conhecimento. (BRENTANO, 1874, p. 11 e 12)

Deste modo, havendo uma via mais segura pela qual se conhecer os eventos que têm lugar em nossa experiência e não havendo meios de nos certificarmos do que estes eventos seriam para além de nossa possibilidade de fazer referência a eles, parece plausível que nos atenhamos apenas ao seu modo de aparecer, retrocedendo perante qualquer atribuição, de cunho metafísico, das características que eles assumem ao aparecer para o que eles seriam em sua integridade real última. Tal perspectiva sustenta que, da mesma forma que é pouco coerente que uma ciência física seja definida por meio de uma idéia tal de corpo que nunca é literalmente dada na experiência, a psicologia não obtém vantagem alguma em se denominar ciência de algo inacessível como a alma. É mais prudente, nestas circunstâncias, falar apenas de fenômenos. A psicologia seria ciência de fenômenos psíquicos, tendo de encontrar em meio a estes as suas regras ou leis de coexistência e sucessão. É precisamente neste contexto que surge a curiosa expressão de Albert Lange acerca da necessidade de se conceber uma ‘psicologia sem alma’ – posição claramente endossada por Brentano52. Se até então, encontramos apenas o delineamento das diferenças de compreensão da psicologia, ao expor esta vertente fenomenalista do pensamento moderno, Brentano busca mostrar uma conciliação possível entre ela e a vertente que ainda se arroga o direito de afirmar algo acerca de realidades: A nova explicação do nome psicologia não contém nada que não deva ser também admitido pelos partidários da escola mais velha. Porque, quer haja ou não uma alma, as aparições psíquicas [psychischen Erscheinungen] estão, em todo caso, presentes [vorhanden]. E o partidário da substância da alma não negará que tudo o que ele possa constatar em referência à alma tem também uma relação com as aparições psíquicas. Assim, nada impede que nós, ao invés da determinação conceitual da psicologia como ciência da alma, tornemos nossa a [determinação] mais recente. Talvez ambas estejam corretas. Mas ainda permanece a diferença de que uma determinação conceitual contém pressupostos metafísicos dos quais a outra está livre; de 52

Como indica Simons (1995, p. XV), a despeito de sustentar uma crença pessoal na existência da alma como portador substancial de representações, Brentano não considerava oportuno tentar dar expressão científica a esta idéia, elaborando a sua psicologia sem ela. Mesmo que o último volume de seu projeto original para a Psychologie, como vimos em nota anterior, tenha se proposto abordar o tema, ele não foi executado e a posição do pensador acabou se resumindo a esta reserva – pelo menos na obra em questão.

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que esta seja reconhecida por escolas opostas, enquanto a primeira já traz em si a cor particular de uma escola; de que, portanto, uma nos dispensa de investigações prévias gerais, às quais a outra nos obrigaria. E, no que o pressuposto da interpretação mais nova nos simplifica o trabalho, ela concede ainda uma outra vantagem, além de tornar mais leve a tarefa. Cada eliminação de uma pergunta indiferente é, como simplificação, também um fortalecimento. Ela indica os resultados da investigação como dependentes de um número menor de pré-condições e leva, assim, com maior certeza à convicção. (BRENTANO, 1874, p. 23; acréscimo nosso)

Como veremos mais adiante e como também nos indica Simons (1995, p. XV), Brentano assume aqui uma posição que será posteriormente radicalizada e expandida por Husserl, quando da definição de um dos procedimentos técnicos mais importantes de sua fenomenologia, a saber, a redução transcendental. Para Brentano, no entanto, não se trata de definir um recurso metodológico a tal ponto central para o desenvolvimento de sua psicologia, mas sim de evitar que esta ciência incorra em erros cujas conseqüências são por demais graves e cuja solução efetiva, uma vez que eles se instaurem, ela não poderia pretender. Parece-nos haver certa motivação econômica aqui – um simples esforço por fazer psicologia a partir de suas possibilidades essenciais, deixando de lado o que não se mostrar assim, ainda que por diversas outras razões este algo pudesse ser defendido como parte ou pressuposto relevante para as investigações em curso. A este ponto, já podemos encontrar certas indicações do que Brentano entende por psicologia a partir de sua breve avaliação de algumas definições historicamente dadas à disciplina. Acompanhando os modernos, ele não se opõe à grande redução operada nos campos de investigação propostos por Aristóteles, a qual afastou fenômenos corpóreos do estudo psicológico e tornou esta dimensão algo puramente mental. Pelo contrário: ele reputou estas alterações necessárias para a boa delimitação da ciência em causa. Além disto, ele deu adesão à compreensão da alma como uma sede de representações de tipo diverso e que se deve conhecer prioritariamente por uma inspeção interior, de natureza reflexiva. Por fim, acompanhando aquela parcela dos pensadores modernos que evitam sustentar suas teorias por meio de metafísica, ele confere a esta alma puramente mental um estatuto apenas fenomênico, não apresentando teses acerca de sua natureza ou existência últimas. Tais características mostram com clareza o quanto os interesses de Brentano acerca de uma ciência psicológica se afastavam da prática laboratorial, do estudo psicofísico e dos demais procedimentos de exame da experiência que já pudemos avaliar. Elas nos oferecem

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uma base segura para apreendermos devidamente as contribuições positivas do pensador para o campo, introduzidas sobremaneira no segundo tomo de sua Psychologie e como essas contribuições podem realmente pretender o distanciamento anunciado em relação à fisiologia e à metafísica. Há uma característica particularmente relevante da motivação de Brentano, no entanto, que não pode ser diretamente remontada à sua posição perante o que legam estas tradições. A rigor, ela nos parece oriunda do grande respeito nutrido, pelo estudioso, ao positivismo francês, que tem no pensamento de Auguste Comte a sua pedra angular. Por relevantes que possam ser para a compreensão da obra de Brentano, estas relações não terão em nosso estudo maior espaço do que esta simples menção e a indicação de que o espírito prático próprio ao pensamento positivista certamente deixou marcas em nosso autor. Com efeito, Brentano representa um destes espíritos – não raros na segunda metade do século XIX – que atribuíam uma relevância central aos contributos da psicologia para a clarificação e o desenvolvimento dos demais campos científicos53. Ao descrever em que medida o faz, ele deixa transparecer o profundo viés utilitarista de sua posição, afirmando que tais avanços no terreno do conhecimento podem atender a interesses sociais sumamente importantes. Ele nos diz: [...] eu apenas assinalo brevemente que na psicologia se encontram as raízes da estética, a qual infalivelmente, em seu desenvolvimento mais pleno, depura o olhar do artista e torna o seu progresso mais certo. Que seja também mencionado em uma palavra que a importante arte da lógica, da qual um só progresso tem como conseqüência mil progressos nas ciências, extrai a sua nutrição da psicologia de maneira bastante similar. [...] a psicologia tem também a tarefa de se tornar o fundamento científico de uma teoria da educação, tanto do indivíduo, quanto da sociedade. Com a estética e a lógica, crescem também a ética e a política sobre o seu terreno. E assim, ela aparece como a condição fundamental dos progressos da humanidade, precisamente no que, antes de tudo, constitui a sua dignidade. (BRENTANO, 1874, p. 26)

Este tipo de raciocínio, como veremos mais adiante em seção destinada à introdução do pensamento de Husserl, exemplifica o problema radical de se subsumir à psicologia toda sorte de fundamentação possível ao conhecimento, entendendo-se que, apenas do fato desta ciência deter-se sobre a experiência, decorre que ela explique tudo o que concernir à experiência, o que inclui os processos cognitivos e a própria razão teórica. Trata-se do 53

Entre eles poderíamos encontrar também Wilhelm Wundt, Wilhelm Dilthey, Carl Stumpf e uma grande quantidade de outros pensadores.

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problema do psicologismo, posição a qual Brentano foi repetidas vezes acusado de assumir54.

2.1.3. Empirismo intuitivo e percepção interna: Além destas características do projeto de Brentano que se definem por relação com diferentes tradições, encontramos no primeiro volume de sua Psychologie algumas considerações metodológicas relevantes para a definição de sua obra como um todo, as quais se referem precisamente ao principal recurso por ele disposto ao psicólogo para que este examine os fenômenos que lhe cabe examinar. As primeiras linhas da já referida Introdução delineiam a posição de Brentano a este respeito: O título que dei à minha obra a caracteriza segundo objeto e método. Meu ponto de vista em psicologia é o empírico; a experiência, apenas, vale-me como instrutora; mas, com outros, eu compartilho a convicção de que certa intuição ideal [ideale Anschauung] é perfeitamente compatível com esse ponto de vista. (BRENTANO, 1874, p. V; grifo nosso)

O que estas poucas sentenças nos indicam com precisão é algo de considerável relevância: ainda que adote um ponto de vista empírico, Brentano não deve, de modo algum, ser tomado por um pensador que adere às teses centrais e aos procedimentos inferenciais do que se convencionou chamar empirismo britânico. A sua atenção à experiência não é uma simples contemplação de manifestações pontuais de certos fenômenos e uma tentativa de inferir as generalidades que as abarcam, seguindo o movimento indutivo ao qual já tivemos ocasião nos reportar. Decerto, à maior parte daqueles que assumem um ponto de partida espaço-temporalmente situado para desenvolver qualquer espécie de raciocínio, a via que primeiro se mostra como legítima é a observação sistemática de particulares e a tentativa de passar a uma generalidade que não pode nunca escapar à condição de probabilidade. Tendo o particular como fundamento, que se poderia fazer senão atingir o geral por enumeração e eliminação gradativa de acidentes? A posição de Brentano vai justamente de encontro a este pressuposto, evitando o apoio na ciência indutiva e articulando o empirismo a um procedimento intuitivo – i.e., a certa forma de visar generalidades que não depende da enumeração de casos, mas antes de uma 54

Ainda que o pensador tenha buscado oferecer respostas a tais acusações, como indicam alguns textos de seu espólio, não é relevante para os nossos propósitos definir se Brentano foi, em última instância, psicologista, mas sim mostrar que certa interpretação de suas idéias pode servir para ilustrar esta posição.

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apreensão direta, imediata, desta generalidade. Como nos indica Spiegelberg (1994), tratarse-ia de “[...] um tipo especial de experiência capaz de revelar as necessidades e impossibilidades nas relações entre os fenômenos empíricos” (p. 33). Por meio dela, ainda segundo o autor, Brentano teria antevisto algo como uma epistemologia nova e mais ampla, ainda que não a tenha ele mesmo sistematizado. É certo que encontramos aqui, no entanto, um antecedente direto e não-formalizado do próprio conceito fenomenológico de ‘intuição’, o qual, este sim, seria convertido em recurso metodológico e constituiria a outra técnica descritiva proposta por Husserl em sua filosofia, a ‘redução eidética’. No que concerne Brentano, no entanto, importa apenas termos presente que o seu ponto de partida é atento à concretude da vida mental, i.e., às suas manifestações empíricas, mas busca oferecer a elas um tratamento que não visa à obtenção de certezas meramente prováveis acerca de seus fenômenos e sim conhecimentos definitivos, necessariamente válidos55. Mas de que maneira poderíamos compreender melhor isto? Que espécie de privilégio poderia ter o investigador da experiência para alcançar resultados a tal ponto puros e precisos? Vejamos. A psicologia, como toda ciência natural, é feita a partir da percepção, mas de um tipo especial de percepção, a qual já se indicou ser a percepção interna. Ela não se confunde com a ‘observação interna’ (innere Beobachtung) praticada pelas psicologias anteriores à de Brentano ou mesmo de seu tempo. Como já pudemos constatar, a maior parte dos projetos experimentais de explicação da consciência exigia de seus praticantes uma espécie de exercício de atenção que os permitisse decompor uma determinada complexidade dada na experiência em unidades sensoriais independentes que seriam o seu fundamento genético. Em alguns casos, vimos a relevância de se evitar a intervenção da aprendizagem neste esforço redutivo, de modo a afastar os conteúdos que não fazem parte legítima do objeto dado e considerar apenas as manifestações fenomenais que surgem por ocasião dos processos nervosos de conversão. Em outros, vimos a relevância não apenas de se atentar a estas qualidades sensoriais mínimas, mas também de 55

Além de Spiegelberg (1994), atentam a isto Rollinger (2004, p. 243) e Moran (2002, p. 40). Este último comentador, nesta mesma passagem citada, afirma: “Ele [Brentano] não elimina o acréscimo de certa intuição ideal’ [...] em suas descrições, e, apesar de nunca ter satisfatoriamente clarificado o que ele quer dizer com isso, é óbvio que ele pensava ser possível fazer algum tipo de idealização para uma lei universal a partir de uma única instância empírica, indicando uma verdade necessária. Brentano acreditava que a psicologia, através da percepção interna e com evidência, poderia assegurar conhecimento certo e identificar leis universais que governam o reino psíquico. Brentano caracterizou estas leis psicológicas universais como ‘a priori’ e ‘apodícticas’. Estes conceitos eles mesmos advêm da experiência, mas as leis que os governam são atingidas por reflexão e têm o caráter de necessidade.” (acréscimo nosso)

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bem julgar acerca de sua intensidade, sabendo discriminá-la de quantas outras intensidades forem a ela relacionadas pelo experimentador. Estes projetos muitas vezes exigiriam do indivíduo encarregado de examinar os próprios fenômenos psíquicos uma disposição específica de atenção em relação a estes no exato momento em que eles se encontrassem em curso, como se fossem, deste modo, objeto de observação no sentido científico mais estrito. Brentano, no entanto, sustentará que a observação pode ser efetuada apenas em relação a objetos externos, dados em percepção externa, e que ela consiste simplesmente em um dirigir da atenção a um fenômeno de modo a apreendê-lo com precisão. Ela não poderia ocorrer com objetos dados em percepção interna porque o próprio voltar-se da consciência a eles afasta o seu dar-se original, modifica-os de certo modo. Brentano evoca o exemplo da raiva, que, se simplesmente sentida, manifesta-se na consciência de uma determinada maneira e se submetida a uma inspeção atenta por parte do próprio sujeito que a tem, acaba perdendo força e tornando-se algo outro em relação ao que originalmente era. A nossa atenção não pode se dirigir a objetos internos sem os corromper56. Diante destas dificuldades, restaria contar com outra possibilidade de apreensão da vida interior que não se confunde com a observação, e esta é precisamente a percepção interna. O pensador afirma que a maneira segura para se compreender a atividade da consciência é permitir o seu direcionamento natural a objetos de diferentes tipos e buscar refletir sobre os processos psíquicos justo neste seu movimento. Não se trata de dobrar a consciência sobre si mesma e sim de apreender o que ocorre em uma de suas atividades naturais e tomar isto como ponto de análise. É precisamente no que visa um objeto e desempenha um ato específico, portanto, que a consciência pode se pôr a descoberto e entender corretamente a sua atividade. Obviamente, isto exige um distanciamento temporal mínimo do próprio correr da atividade, sendo basicamente uma retomada do que esta apresentou – em um segundo momento, posterior à sua sucessão. Contra a idéia de que a consciência pode ser inspecionada no próprio instante em que as experiências a serem compreendidas ocorrem, portanto, Brentano afirma que ela só pode ser de fato vista se ela se permitir correr e for convertida, posteriormente, em objeto de reflexão, trazendo este 56

Aqui Brentano claramente faz referência ao famoso veto de Comte (1984) à auto-observação em seu Cours de Philosophie Positive (1830-1942): “O indivíduo pensante não poderia dividir-se em dois, dos quais um raciocinaria, enquanto o outro contemplaria o ato de raciocinar. O órgão observado e órgão observador sendo, neste caso, idênticos, como poderia levar-se a cabo a observação? Este pretenso método psicológico é, portanto, radicalmente nulo no seu princípio.” (p. 68)

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correr efetivo para o âmbito da análise. Do contrário, estaria conspurcada e não poderia ser compreendida. Ou, se o fosse, não indicaria resultados válidos. As pretensões de Brentano – vê-se com facilidade – são consideravelmente altas. Ele afirma ainda que esta distinção não teria sido oferecida por nenhum outro psicólogo que ele conheça e que as conseqüências de um erro capital como este justo no método empregado pela ciência em causa são nefastas para a construção de qualquer sistema teórico. Trata-se de uma clara impugnação de toda psicologia que se proponha ciência de observações. Apenas enquanto direcionamos nossa atenção [Aufmerksamkeit] a outro objeto, acontece de também os processos psíquicos [psychischen Vorgänge] a ele relacionados serem incidentalmente acessados pela percepção. Assim, a observação dos fenômenos físicos na percepção externa pode, no que ela nos oferece uma pista para o conhecimento da natureza, tornar-se ao mesmo tempo um meio para o conhecimento psíquico. E o direcionamento da atenção aos fenômenos físicos na fantasia é, senão exclusivamente, em todo caso, primeira e principalmente, a fonte de conhecimento para as leis psíquicas [psychische Gesetze] (BRENTANO, 1874, p. 36; grifo nosso)

A fonte central do exercício da psicologia, deste modo, mostra-se a fantasia, ou a capacidade de re-apresentar mentalmente os processos outrora vividos e efetuar neles a busca por suas condições gerais de possibilidade. Assim fazendo, nós os teríamos em sua literalidade, de uma forma tal que não poderíamos duvidar acerca do que mostram ser, do que atestam em seu próprio aparecimento. Os fenômenos da percepção interna, por oposição àqueles da percepção externa, segundo Brentano, “[...] são verdadeiros em si mesmos. Tal como eles aparecem – atesta isso a evidência com a qual são percebidos – eles são também em realidade.” (BRENTANO, 1874, p. 24 e 25) Mais uma vez, encontramos aqui algo de sumamente importante para a metodologia a ser desenvolvida por Husserl. A via central para o exercício da intuição preconizada por este é precisamente a imaginação dos atos conscientes. Em Brentano, ela é o âmbito no qual a atividade psíquica pode ser adequadamente capturada e intuitivamente compreendida pelo psicólogo.

2.1.4. A distinção inicial entre fenômenos físicos e psíquicos: Até aqui, nosso percurso histórico nos permitiu entender alguns dos pontos valorizados por Brentano nas diferentes psicologias que o precederam e considerar brevemente a sua posição metodológica, a qual nos ofereceu uma indicação de como se sustenta o seu projeto. É, no entanto, apenas no segundo livro de sua obra, dedicado ao

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exame dos fenômenos psíquicos em sua generalidade, que encontramos uma definição mais explícita do que este projeto efetivamente é. A primeira preocupação de Brentano ao fazêlo é conferir um tratamento rigoroso à distinção entre fenômenos psíquicos e físicos, a qual, a despeito de estar já presente em algumas seções do livro anterior 57, deveria ser tomada de maneira temática, i.e., explicitada naquilo que tem de característico. A via pela qual Brentano decide operar esse corte não é a exposição direta de definições e a passagem subseqüente às diferentes instâncias que lhes são possíveis, mas sim, como nos deixam presumir as considerações do item anterior, a via contrária. Atentando à experiência em suas manifestações mais concretas e imediatamente acessíveis, o pensador estabelece a distinção por meio da enumeração de exemplos. Deste modo, acerca dos fenômenos psíquicos, ele afirma: Um exemplo para os fenômenos psíquicos oferece cada representação através da sensação [Empfindung] ou da fantasia [Phantasie] – e entendo por representação aqui não aquilo que é representado, mas o ato de representar [den Act des Vorstellens]. Também o ouvir um som, o ver um objeto colorido, o sentir calor ou frio, bem como os estados de fantasia [Phantasiezustände] similares são exemplos, como eu os tenho em vista; mas também o pensar um conceito geral, se um tal realmente ocorre. Além disso: cada juízo, cada lembrança, cada expectativa, cada dedução, cada convicção ou opinião, cada dúvida é um fenômeno psíquico. E, por sua vez, são-no cada emoção, alegria, tristeza, pavor, esperança, coragem, desespero, ira, amor, ódio, desejo, vontade, propósito, espanto, admiração, desprezo etc. (BRENTANO, 1874, p. 103)

O que compõe a totalidade de nossa vida psíquica, portanto, são representações, em sua diversidade, e modalidades de experiência que se relacionam com representações, permitindo o seu aparecimento de maneira diferenciada. Por representações, há que se entender basicamente o desempenho mental que possibilita o aparecimento de conteúdo em específico, seja tal conteúdo de natureza sensível ou uma reprodução fantasmática deste. Pelas outras modalidades da experiência que, de alguma forma, se relacionam com aqueles conteúdos e acrescentam disposições cognitivas ou afetivas diferenciadas a eles, temos toda uma ampla gama de estados emocionais e operações racionais, cuja listagem exaustiva não importa a Brentano indicar nessa passagem específica. Deste modo, temos um conjunto triádico de possibilidades de experiência abarcadas pelos fenômenos psíquicos em sua

57

Como já vimos na menção da física como ciência de fenômenos físicos e da psicologia como ciência de fenômenos psíquicos.

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diversidade: o simples dar-se de conteúdos os mais diversos; o atentar racionalmente para estes conteúdos, permitindo-nos que seu dar-se seja modificado; e o atentar afetivamente para estes conteúdos, permitindo-nos ainda outra sorte de modificações. O psíquico, portanto, identifica-se ao mental, àquilo que diz respeito apenas à vida interiormente apreendida por nossas cogitações particulares. Um aspecto relevante da definição de Brentano, no entanto, é a sua clara afirmação de que os fenômenos psíquicos não devem ser enfocados por meio daquilo que nos aparece, mas sim do aparecer ele mesmo. Se é certo que a cada desdobramento da vida mental estamos às voltas com determinados conteúdos e as diferentes formas pelas quais eles nos são acessíveis, não importa entendê-la por meio destes conteúdos, como se o fluxo da experiência pudesse ser efetivamente apreendido em sua integridade própria pelo simples exame crítico de como estes dados se agregam de maneira peculiar a cada possibilidade de experiência. A rigor, este exame do psiquismo por meio dos conteúdos foi relevante nos projetos psicológicos vistos em nosso capítulo anterior, nos quais, senão a totalidade da vida mental, pelo menos uma parte substancial dela – e a parte à qual se dedicaram as mais relevantes pesquisas dos autores considerados – é retratado pelo curso de agregações e desagregações de dados sensíveis, pela constituição de objetualidades as mais diversas por meio de sensações simples e certos critérios extrínsecos de convergência e interação das mesmas. Não cumpre entender a percepção por meio do percebido; a fantasia por meio do fantasiado; o juízo por meio do julgado – em suma, o ato pelo conteúdo. A atenção de Brentano é precisamente aos desempenhos ou às funções psíquicas que nos permitem acessar tais ou quais conteúdos, mas sem que as tomemos por nada além da possibilidade essencial de se visar algo de uma dada maneira. O que o pensador busca, deste modo, é entender a nervura dos processos conscientes, a estrutura fundamental pela qual todo dar-se é possível e todo acontecimento mental pode ter vigência. Este ponto, um dos recuos mais relevantes de Brentano perante a psicologia experimental, oferece a justificativa basilar pela qual a sua psicologia empírica foi muitas vezes denominada ‘psicologia do ato’. Trata-se de tematizar apenas estes e não o que vem em sua esteira58.

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Brentano é um dos autores fundamentais para a conhecida polêmica acerca de conteúdo (Inhalt) e função (Funktion) em psicologia.

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Logo na seqüência da passagem acima recuperada, Brentano realiza o mesmo tipo de recurso a exemplos para definir os fenômenos físicos. Ele diz, de maneira mais sucinta: Em contraposição, exemplos de fenômenos físicos são: uma cor, uma figura, uma paisagem que eu vejo; um acorde que eu ouço; calor, frio, um odor que eu sinto; bem como formações [Gebilde] similares que me aparecem na fantasia [Phantasie]. (BRENTANO, 1874, p. 104)

Por fenômenos físicos, deste modo, há que se entender propriedades, objetos ou eventos que têm lugar no mundo que nos é exterior e que podem ser sensivelmente visados por nós. Da mesma forma que em relação aos fenômenos psíquicos, as reproduções destes dados na fantasia também podem ser enumeradas entre as suas instâncias possíveis. O fato de acessarmos fenômenos físicos através da sensibilidade pode, a princípio, causar certa confusão, na medida em que o perceber é tomado como um modo de representarmos conteúdos e toda representação é, como já dito acima, fenômeno psíquico. Uma superposição inconveniente ou pelo menos uma intersecção entre as duas classes de fenômenos pareceria ocorrer. Não se trata disto, no entanto, e, pelo que nos consta, é justamente o recuo de Brentano perante os conteúdos visados em fenômenos psíquicos que permite traçar uma linha divisória entre os dois tipos de fenômeno. Se o perceber de uma cor deve ser, pelas razões já expostas, tomado por fenômeno psíquico, a cor percebida ela mesma, com suas propriedades ou momentos constituintes, deve ser tomada por fenômeno físico. Ela é justamente o que não importa avaliarmos para entendermos o que é característico à percepção, i.e., para entendermos este ato específico que nosso psiquismo pode realizar. O fenômeno natural, no exame da percepção, resta sempre como conteúdo.

2.1.5. A inexistência intencional e as distinções ulteriores: Após estabelecer estas definições iniciais, Brentano busca explorar de maneira mais detalhada as diferenças entre as duas classes de fenômenos. Para tanto, ele introduz aqueles que lhe parecem ser os principais critérios evocados em filosofia e psicologia para especificar estas diferenças, examinando-os criticamente em seguida e expondo a sua própria posição. Ao fazê-lo, oferece-nos as suas teses fundamentais acerca do psiquismo. Acompanhemos, portanto, este movimento do pensador. Um primeiro critério analisado é o vínculo das duas classes de fenômenos com a extensão. De acordo Brentano, muitos pensadores – como Descartes, Spinoza e Kant, entre 113

os mais influentes – tentaram oferecer uma distinção meramente negativa das mesmas através do conceito de extensão, afirmando que os fenômenos físicos têm relação com esta, ao passo que os psíquicos carecem desta relação, seus atos aparecendo sem qualquer localização ou configuração espacial. Esta posição não foi unânime, no entanto, sendo criticada de ambos os lados. Alguns defendiam que a extensão não poderia ser traço fundamental de todo fenômeno físico, posto que muitos estudos sobre as experiências auditiva e olfativa consideravam-nas como dadas fora do espaço. Ao que se juntavam também representantes da tradição empirista que entendiam ser o espaço oriundo de certas sensações primitivas da vida mental e que os demais sentidos só teriam possibilidade de encontrar localização espacial se, por meio de experiências repetidas, fossem gradativamente se associando a tais sensações. Por outro lado, alguns defendiam que a ausência de extensão não seria verificável em todo fenômeno psíquico, pois episódios como a exteriorização corpórea de um dado mental, a exemplo da expressão de raiva, são suficientes para conferirmos a este estado psíquico localização espacial. Ademais, muitas outras experiências seriam claramente dadas no espaço, como o prazer ou o desprazer, os apetites sensíveis, entre outros. A distinção negativa, por conseguinte, acabava se mostrando insuficiente e dando lugar à discórdia e a debates descompassados. Mas há outra razão bastante relevante pela qual ela não satisfaz. Trata-se do simples fato de ser apenas uma avaliação negativa do problema. Seria preciso indicar alguma característica positiva que demarcasse a diferença entre dois tipos de fenômenos, que mostrasse algo no psiquismo que lhe fosse próprio, e não resultado de um simples contraste com algo que já difere dele desde sempre. É aqui que o pensador, por conta de sua já mencionada inspiração na tradição aristotélico-tomista, introduz um conceito capital para a sua filosofia e, como verificaremos mais adiante, para aquela de Husserl. Referimo-nos ao conceito de ‘inexistência intencional’ (intentionale Inexistenz) ou ‘intencionalidade’ (Intentionalität), cuja primeira definição consta nessa passagem já clássica da Psychologie: Cada fenômeno psíquico é caracterizado por meio daquilo que os escolásticos da Idade Média nomearam inexistência intencional (mas também mental) de um objeto e que nós nomearíamos, ainda que não em uma expressão inteiramente sem ambigüidades, a relação a um conteúdo, o direcionamento a um objeto (pelo que não se deve entender aqui uma realidade [Realität]), ou objetualidade imanente [immanente Gegenständlichkeit]. Cada uma contém algo em si como objeto, ainda que não da mesma maneira. Na representação, algo é representado; no juízo, algo é reconhecido ou recusado; no amor,

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amado; no ódio, odiado; no desejo, desejado; etc. Essa inexistência intencional é peculiar apenas aos fenômenos psíquicos. Nenhum fenômeno físico mostra algo similar. E, assim, nós podemos definir os fenômenos psíquicos ao dizermos que eles são tais fenômenos que contêm intencionalmente em si um objeto. (BRENTANO, 1874, p. 115)

Por meio do recurso ao pensamento medieval59, portanto, Brentano acredita poder descerrar esta que se mostra não apenas uma característica positiva dos fenômenos psíquicos, inteiramente ausente nos demais fenômenos possíveis, mas também, a rigor, o traço fundamental a partir do qual tudo quanto se pode dizer psíquico é definido. Esta propriedade essencial de nossa vida mental poderia ser definida como a visada necessária, por parte da consciência, de algum correlato objetivo do ato por ela desempenhado, de modo que a cada ato corresponda algum objeto próprio ao seu tipo. Tal relação com um objeto, no entanto, não significa um voltar-se da consciência para o que a transcende, mas sim para um conteúdo imanente, um momento da própria configuração total da experiência atual e que é interior a esta, sendo, como rezam os termos da própria passagem acima, ‘contido’ por ela. O objeto, deste modo, não é algo que se dê fora dos limites da consciência, algo que contraste radicalmente com esta e que se mostre como o outro ao qual ela tende. Em vez disto, ele é uma espécie de diferenciação interior ao próprio campo da consciência, uma formação que, vista em si mesma, tem de ser reconhecida como imanente da mesma forma que o ato que a visa e a experiência atual que resulta desta relação, abarcando ato e objeto. Este caráter sumamente mental do correlato se mostra ainda pela ressalva de Brentano à possibilidade de suas idéias serem interpretadas como a afirmação de uma realidade como o pólo ao qual se direciona o ato. Não se trata de realidade alguma. Trata-se apenas, em termos que o próprio autor assume alhures, de um irrealia, por

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De acordo com Spiegelberg (1994, p. 48), o entendimento escolástico do conceito de intencionalidade poderia ser remontado à teoria aristotélica da percepção, na qual conhecer uma determinada coisa física significaria formar dela uma imagem ou semelhança na alma sensitiva. Sendo a coisa ela mesma um composto hilemórfico – i.e., um composto de matéria e forma – sua apreensão pela alma só poderia se dar por meio da recepção da forma da coisa pela alma, e, por razões evidentes, nunca da matéria. Haveria, assim, uma da imanência do objeto conhecido na alma cognoscente. São Tomás de Aquino, e.g., fala em uma intentio sensibilis quando considera aquela imanência ao nível da alma sensível, no processo de formação do fantasma, e em uma intentio inteligibilis quando este fantasma é conduzido à alma racional pela abstração. Em uma definição compatível com a primeira destas modalidades intencionais em Tomás de Aquino, Eustachius (apud COTTINGHAM, 1995) diz: “[...] uma forma intencional é um sinal formal da coisa que se apresenta aos sentidos, ou uma qualidade que é transmitida a partir do objeto e que, quando recebida pelos sentidos, tem o poder de representar o objeto [...] Por exemplo, quando o olho percebe uma cor distante, recebe um simulacro da cor, que é a qualidade transmitida por intermédio do ar, oriunda da própria cor, e que, quando sentida pelo poder da visão, tem o poder de representar a cor.” (p. 69)

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oposição aos realia que encontramos nas efetividades físicas que nos cercam. Por mais que não haja motivos metafísicos na psicologia de Brentano, a sua descrição do objeto intencional nos oferece alguns elementos para que pensemos o estatuto ontológico peculiar a ele, na medida em que ele não se confunde com objetos reais e não assume um modo de ser similar ao deles, restando como um núcleo mental sobre o qual incidem atos. É precisamente a este ‘existir interior’ que faz referência a facilmente desencaminhadora expressão ‘inexistência’. Trata-se, aqui, não de um prefixo ‘in-’ privativo, mas sim de uma indicação de pertencimento ao interior de um dado âmbito de referências. O objeto é interior à consciência e de um modo específico, a saber, o intencional60. Buscando articulá-la com os já considerados interesses empíricos de Brentano, Jacquette (2004a) nos explica esta posição do pensador em relação à metafísica: De um ponto de vista estritamente empírico, pode parecer desnecessário e talvez mesmo ininteligível perguntar se objetos intencionais transcendem ou existem atualmente além ou fora da experiência. O principal propósito de Brentano ao ressuscitar a tese escolástica da imanência ou inexistência intencional era fechar sua questão de maneira aristotélica, articulando um critério para distinguir o mental ou psicológico do não-mental ou nãopsicológico. Com este fim limitado em vista, ele pode ter julgado desnecessário, senão a-científico, ultrapassar os limites de sua disciplina estritamente empírica em direção a uma metafísica especulativa. (p. 122)

A afirmação desta marca fundamental do psíquico não impede Brentano de prosseguir em sua tentativa de elencar mais critérios pelos quais ambas as classes de fenômenos são distintas entre si. Um segundo dentre estes critérios seria o tipo de percepção que pode visar cada um dos fenômenos. Os fenômenos psíquicos são apreensíveis somente através da percepção interna, a qual já tivemos ocasião de considerar em nosso item anterior. A percepção interna possuiria certo privilégio epistêmico por ser marcada pela evidência imediata e infalível, característica ausente de todos os demais tipos de conhecimento. Os fenômenos físicos, por sua vez, são apreensíveis apenas por 60

Cabe aqui recuperarmos a nota de Rancurello (et al., 1995) à tradução da Psychologie para o inglês: “Brentano posteriormente reconheceu que a maneira pela qual ele tentou descrever a consciência aqui, aderindo à tradição aristotélica, que afirma ‘a inexistência mental do objeto’, foi imperfeita. A assim chamada ‘inexistência do objeto’, a objetividade imanente, não deve ser interpretada como um modo de ser que a coisa tem na consciência, mas como uma descrição imprecisa do fato de que eu tenho algo (uma coisa, uma entidade real, uma substância) como um objeto, estou mentalmente concernido com ela, refiro-me a ela.” (p. 68) A segunda teoria da intencionalidade de Brentano, de caráter reísta, não nos ocupará aqui, posto que ela foi resultante das dificuldades encontradas pelos seus discípulos na formulação original e estas dificuldades marcaram os diferentes esforços por seu aprimoramento ou refutação. As obras que devemos avaliar aqui se encontram precisamente neste cenário de reação à primeira teoria de Brentano.

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percepção externa, que não possui nenhuma vantagem análoga que aprimore o seu valor cognitivo. Trata-se de percepção defasada e que não extrai dos conteúdos aos quais se volta o mesmo tipo de certeza e retidão extraído pela percepção interna acerca do fluir de nossa vida mental. Brentano chega mesmo a afirmar que percepção, no sentido estrito da palavra, é possível apenas na consciência interna, pois a percepção externa não atinge tal grau de evidência nem mesmo por meios de demonstração indireta. Aqui, como indicam Rancurello (et al., 1995, p. 70), ele claramente se apóia no sentido etimológico do termo ‘perceber’ em alemão, wahrnehmen, o qual se compõe por uma justaposição do adjetivo wahr, que significa ‘verdadeiro’, e do verbo nehmen, que se pode traduzir aqui por ‘tomar’. O sentido original do vocábulo ‘perceber’, assim, é um ‘tomar por verdadeiro’, o que, claramente não se pode dizer da percepção externa. Vista por este aspecto, Brentano assevera, ela nem mesmo seria percepção. Uma terceira característica que poderia ser encontrada nos fenômenos psíquicos é a possibilidade de nos certificarmos da existência de seus correlatos objetuais precisamente no que eles nos são imanentemente dados. Justo por podermos ver os nossos processos mentais com tanta precisão e correção, por atestarmos de imediato não apenas que eles são, mas também o que eles são, não teríamos condições de encontrar estado mental algum em que um determinado objeto, em seu ser-visado por um ato correspondente, poderia ser posto em cheque – tomado como inexistente, falso, ilusório ou qualquer coisa que o valha. Não nos enganamos acerca de termos uma idéia – seu dar-se é sempre o dar-se que me é acessível por percepção interna e isto assegura algo em termos de existência do dado, a saber, o seu existir-como-dado. Muitos autores buscam afirmar que, por oposição a esta vantagem dos conteúdos imanentemente dados, aqueles que se referem a fenômenos físicos se encontram sempre em condição desprivilegiada, podendo mesmo ser tomados por nãoexistentes, ou de existência real incerta e inacessível. Se não nos enganamos acerca do que vivemos, o engano acerca da existência fora de nós de qualquer coisa que seja em alguma medida similar à que nos aparece, ou que pelo menos lhe seja efetivamente correspondente, resta sempre como possibilidade. Dado o seu recuo perante a metafísica, Brentano evita, extrair conclusões negativas tão firmes acerca dos fenômenos físicos apenas a partir da constatação das vantagens do fenômeno psíquico. Ele sustenta apenas que, em geral, negar

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existência formal a fenômenos físicos não conduz a erro, e que isso não é possível ao dado psíquico tomado nele mesmo61. Ainda como um quarto critério distintivo, alguns apontam que os fenômenos psíquicos sempre se apresentariam em série, ao passo que os físicos poderiam se dar em simultaneidade, diversos fenômenos tendo lugar perante um mesmo observador. Brentano não endossa esta posição, crendo ser bastante evidente que desempenhamos diferentes atos mentais a um só tempo sempre que, e.g., perante algo que nos é dado em percepção, temos certos desejos e certos juízos dirigidos a este algo, sem que o percebê-lo, o desejá-lo de uma dada maneira e o julgá-lo de outra possam parecer disjuntos, seqüenciais ou intercalados uns aos outros de qualquer modo. Esta experiência de uma divisão interna de nossos fenômenos psíquicos e de claro favorecimento à sua simplicidade circunstancial não é vivida. Não a reconhecemos em nossos eventos mentais. O compassamento de diferentes atividades, no entanto, o seu ocorrer simultâneo, é perfeitamente familiar a nós. Acerca disto, Brentano (1874) afirma: Em que sentido pode-se, então, dizer [...] que sempre apenas um dos fenômenos psíquicos ocorre em um mesmo tempo, enquanto muitos dos físicos ocorrem ao mesmo tempo? Pode-se [dizer isto] na medida em que a multiplicidade toda dos fenômenos psíquicos que aparecem a alguém na percepção interna mostra-se a ele sempre como uma unidade pura [reine Einheit], enquanto para os fenômenos físicos, os quais ele apreende [erfasst] ao mesmo tempo através da assim chamada percepção externa, o mesmo não vale. (p. 125)

A despeito do quão complexa possa nos parecer uma dada experiência atual, i.e., a despeito de quantos momentos internos ela possa abarcar, quantos atos distintos possam ali ocorrer, experimentamos sempre a sua unidade, completude e coerência inconcussa. Isso pode ser facilmente compreendido desde que se evite confundir ‘unidade’ (Einheit) com ‘simplicidade’ (Einfachheit). A consciência é una, pois articula os fenômenos que nela ocorrem de maneira plena, dando-nos a cada vez um todo integrado e harmônico, em cujo interior podemos encontrar diferentes atividades representativas ou dependentes de representação. No entanto, ela não é simples, justamente por subsumir a esta unidade uma grande quantidade de partes que se mostram como seus momentos constituivos, as quais são precisamente essas diferentes atividades há pouco referidas. Se avaliarmos os dados de, 61

Brentano se põe, inclusive, de acordo com Helmholtz quando este afirma que sensações são meros sinais de um mundo exterior.

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digamos, uma percepção em sua singularidade, podemos encontrar uma série de correlatos objetivos aos quais estes dados poderiam ser atribuídos – diferentes objetos, acontecimentos naturais etc. Movemo-nos, aqui, apenas entre conteúdos, o que já sabemos não ser tarefa do psicólogo. Se, no entanto, voltarmos nossa reflexão aos atos que visam estes conteúdos, fazendo, assim, psicologia, o que temos é uma clara impossibilidade de segmentar os nossos processos conscientes deste modo. Eles pertencem conjuntamente. Se os conteúdos podem ser dispersos e suportados por um número amplo de unidades, aos atos não é reservada essa possibilidade. Brentano o afirma: Quando nós percebemos concomitantemente cor, som, calor e cheiro, nada nos impede de atribuir cada um a uma coisa em particular. Em contraposição, nós somos forçados a tomar a multiplicidade dos atos de sensação, do ver, do ouvir, do sentir calor e do sentir odor correspondentes, e, com eles o querer e o sentir e o refletir concomitantes, bem como a percepção interna, que nos dá conhecimento deles todos, como fenômenos parciais [Theilphänomene] de um fenômeno unitário, no qual eles são contidos, e como uma só coisa unitária. (BRENTANO, 1874, p. 126)

Não tardaremos a ver que esta ênfase da psicologia de Brentano em uma unidade fundamental dos atos conscientes teria profundo peso na elaboração das teses das diferentes escolas que surgiriam em sua esteira. A consciência, aqui, não se torna unitária por meio de processos sintéticos quaisquer, os quais podem ser sempre revertidos por esforço crítico. Ela é originariamente unitária, tem em sua estrutura mesma a unidade como característica essencial. Como todas as obras consideradas doravante neste estudo se encontram naquela condição – i.e., na condição de obras influenciadas por esta concepção –, não nos faltará ocasião para atestá-lo. Como poderíamos, então, resumir a compreensão brentaninana de fenômeno psíquico a partir destas suas distinções iniciais? Este fenômeno seria ser caracterizado por: (1) não possuir vínculo essencial com a extensão; (2) conter imanentemente em si um objeto, o qual visa por meio de uma relação intencional como o correlato necessário de um ato específico; (3) poder ser apreendido apenas por meio de percepção interna, com todos os privilégios epistêmicos por ela oferecidos; (4) ter plena certeza da existência de seus correlatos e de seus desempenhos enquanto tais, enquanto dados atuais da consciência; e (5) ser dado sempre como uma totalidade, em que as diferentes partes possíveis de serem

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discernidas nos próprios dados da experiência se encontram articuladas em uma unidade fechada. Este, o piso fundamental para a sua compreensão de nossa experiência.

2.1.6. A auto-compreensão da consciência e os três atos fundamentais: Evidentemente, as contribuições de Brentano à psicologia não se resumem a estas. Dentre os tantos temas ainda explorados em sua obra capital, dois são relevantes para o nosso estudo, posto que pertencem ainda ao núcleo de sua teoria e têm clara ressonância nos autores ainda por serem considerados. O primeiro destes temas – que nos oferece, inclusive, recursos para entendermos melhor como a consciência pode aparecer com transparência para si mesma – diz respeito à fundamental auto-compreensão que ela tem de seus processos no exato momento em que os realiza. Todo fenômeno psíquico, segundo Brentano, tem a capacidade de, ao desempenhar um determinado ato que visa um objeto, operar uma espécie de volta deste ato sobre si mesmo, a qual permite uma compreensão imediata e plena da própria experiência em curso. Deste modo, no mesmo instante em que se direciona a um objeto específico e pode se dizer experiência deste objeto, o ato envolve uma visada automática de si mesmo, de seu próprio direcionar-se e da totalidade fenomênica que dele resulta. Não é preciso nenhuma espécie de empenho pessoal nisto, tratando-se de um processo da própria estrutura da consciência, natural e sempre operante. O perceber de algo, portanto, é um perceber de algo e um concomitante perceber deste mesmo perceber. O julgar é um julgar acerca de algo e um apreender direta, plena e inequivocamente este próprio desempenho judicativo. E assim sucessivamente para cada possibilidade de fenômeno psíquico concebível. A consciência tem-se para si mesma no instante exato em que ela posiciona, em sua imanência, um objeto. Há que se considerar, no entanto, que este ‘ter-se para si’ é também um ‘converter-se em objeto’. Por isso, Brentano afirma que o objeto intencionalmente visado pelo ato é o seu ‘objeto primário’ (primäre Object), ao passo que o ato, nesta auto-apreensão, é o ‘objeto secundário’ (secundäre Object) de si mesmo. Brentano o afirma a partir do exemplo da percepção acústica: A representação do som e a representação da representação do som não formam outra coisa senão um único fenômeno psíquico, que nós dividimos conceitualmente em duas representações por o considerarmos em sua relação com dois objetos diferentes, dos quais um é um fenômeno físico e o outro um psíquico. No mesmo fenômeno psíquico em que o som é representado, apreendemos [erfassen] ao mesmo tempo o próprio fenômeno psíquico e,

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mais precisamente, de acordo com sua dupla peculiaridade, na medida em que ele tem em si como conteúdo o som e em que ele próprio, ao mesmo tempo, é presente a si mesmo como conteúdo. Podemos nomear o som o objeto primário do ouvir e o próprio ouvir o objeto secundário. Pois, eles ocorrem ambos, do ponto de vista temporal, no mesmo momento, mas, de acordo com a natureza da coisa, o som é primeiro. Uma representação do som sem representação do ouvir não seria, pelo menos a princípio, impensável; em contraposição, uma representação do ouvir sem uma representação do som seria contradição evidente. O ouvir, em sentido próprio, aparece como que voltado para o som, e, por o ser, parece apreender a si mesmo acidentalmente e como algo adicional. (BRENTANO, 1874, p. 167)

Aqui podemos entrever um meio pelo qual a consciência pode encontrar maior facilidade na inspeção que faz de si mesma. Decerto, por ter esta capacidade de compreensão dos próprios estados, ela pode facultar à percepção interna muito mais precisão em sua tarefa de pôr perante um ver ideal os fenômenos psíquicos tais como eles são em si mesmos. A partir desta concepção fundamental do psiquismo, delineada pelas sucessivas distinções entre as diferentes classes de fenômenos e a constatação de outros traços peculiares à consciência, como esta auto-apreensão que lhe é natural, Brentano oferece aquilo que entende ser a classificação mais fundamental de nossas possibilidades de experiência. Segundo o pensador, nossos atos psíquicos poderiam se manifestar de acordo com três possibilidades essenciais, referentes às já consideradas capacidades de visarmos conteúdos de tipo diverso e de mantermos com eles certo trato cognitivo ou afetivo peculiar. Esta estrutura triádica das manifestações possíveis ao nosso psiquismo seria enunciada pelo pensador, após exaustivo exame de diversas outras propostas filosóficas e científicas de classificações similares, nos seguintes termos: Para expormos imediatamente a nossa opinião, sustentamos que, de acordo com os diferentes modos de sua relação com o conteúdo, deve-se distinguir três classes principais de atividades anímicas [Seelenthätigkeiten]. Mas estes três gêneros não são o mesmos geralmente propostos – nós chamamos, na ausência de expressões mais cabíveis, o primeiro pelo nome representação [Vorstellung], o segundo pelo nome juízo [Urtheil], o terceiro pelo nome movimento de ânimo [Gemüthsbewegung], interesse [Interesse] ou amor [Liebe]. (BRENTANO, 1874, p. 261)

Pelo primeiro destes atos, encontramos a simples capacidade da consciência de ter para si determinados conteúdos como objetos imanentes, a despeito do modo como estes conteúdos se dão – se por percepção direta, imaginação, memória ou qualquer desempenho

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que se defina simplesmente pelo visar de algo. “Falamos de um representar quando quer que algo nos apareça. Se vemos algo, representamo-nos uma cor; se ouvimos algo, um som [Schall]; se fantasiamos algo, uma formação da fantasia.” (BRENTANO, 1874, p. 261). Pelo segundo ato, temos a capacidade da consciência se posicionar racionalmente perante certos vínculos possíveis entre os conteúdos por ela representados, de modo a asserir a validade de uma relação específica entre eles, visada como um estado de coisas em especial, ou negar essa mesma relação. Por fim, pelo terceiro ato, temos a possibilidade da consciência alterar a maneira como um ou mais conteúdos representados lhe aparecem, juntando a eles uma disposição afetiva de qualquer espécie e possibilitando que eles surjam como função desta disposição, como o algo acerca de que uma determinada comoção se exprime em nossa experiência. Ainda que anuncie este terceiro ato pelos três nomes presentes na citação acima recuperada, ao longo das últimas seções da Psychologie, Brentano os denominará apenas atos de ‘amor e ódio’ (Liebe und Hass). Nestas definições encontramos também algo de sumamente importante para compreendermos certa hierarquia nas atividades mentais: trata-se da primazia inquestionável do representar sobre os demais atos, na medida em que, para julgarmos acerca de algo ou para sentirmos qualquer coisa acerca de algo é sempre preciso que haja algo e este não é senão o visado da representação. Ao psicólogo, caberia compreender sistematicamente estas funções da consciência, em sua relação complexa que, por mais que se mostre pautada nestas distinções essenciais, se define também por uma conjugação tal que nos exibe todo estado consciente como unidade e integridade plenas.

2.1.7. A distinção entre psicologia genética e psicologia descritiva: Em todos os nossos itens anteriores, tivemos condição de passar por alguns dos principais temas da obra fundamental de Brentano, mas há ainda uma distinção bastante relevante a ser recuperada aqui, na medida em que ela exerceu bastante influência na maneira como aquela obra foi lida nos anos subseqüentes e também na produção dos discípulos de Brentano, aos quais nos voltaremos logo. Apesar de toda esta ênfase na unidade da psicologia, o pensador buscaria operar uma distinção no interior desta ciência que apontasse para os interesses teóricos, procedimentos metodológicos e mesmo objetos de estudo divergentes por ela assumidos. Referimo-nos à distinção entre ‘psicologia

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descritiva’ (desrkiptive Psychologie) e ‘psicologia genética’ (genetische Psychologie), a qual examinaremos a partir dos cursos intitulados Psychognosie, ministrados na Universidade de Viena entre os anos de 1890 e 1891 e presentes na compilação Deskriptive Psychologie. Nestes cursos, o filósofo reafirma a sua concepção da psicologia como a ciência da vida interior (Seelenleben), calçada na inspeção por percepção interna. O que ele introduz de maneira mais direta, no entanto, são as suas tarefas fundamentais, que consistiriam: (1) na determinação exaustiva dos elementos da consciência humana e os modos pelos quais eles se conectam; e (2) na descrição das condições causais a que se submetem os fenômenos particulares da consciência. A primeira destas tarefas caberia à psicologia descritiva, chamada nos cursos em questão de ‘psicognosia’62; a segunda caberia à psicologia genética. Que significariam precisamente estas duas possibilidades de investigação psicológica, no entanto? A maneira como o pensador busca especificá-las se define pelo exame de dois critérios de especial peso para compreendermos em que medida elas diferem e o que efetivamente apresentam de próprio: a pureza de seu procedimento e a exatidão de suas descobertas. A psicologia genética seria uma ‘psicologia fisiológica’ e que não seria apta a conferir exatidão à suas proposições, tendo de se apoiar, por conta da natureza sumamente empírica de seus métodos de estudo, apenas na probabilidade. Brentano admite que a consciência e seus fenômenos estejam ligados a eventos fisiológicos, cuja natureza seria basicamente físico-química, compassando nisto com parte expressiva dos autores de orientação experimental. Uma vez que o interesse da psicologia genética é justamente compreender as condições em que fenômenos específicos ocorrem, ela deverá examinar estes processos físico-químicos e fazer referência a estruturas anatômicas em qualquer tentativa de clarificar um dado fato psíquico. Ela não pode nunca estudar o psíquico sem levar em consideração o não-psíquico, operando mesmo uma subordinação daquele a este. Não será difícil perceber que todos os autores examinados em nosso capítulo inicial poderiam ser reunidos sob esta alcunha, sendo praticantes de uma psicologia genética, posto que recorrem basicamente a estes procedimentos positivos e ao exame dos eventos 62

Brentano chamou esta psicologia ainda de ‘fenomenologia descritiva’ em cursos anteriores, ministrados entre 1888 e 1889, na mesma universidade e intitulados Deskriptive Psychologie oder beschreibende Phänomenologie.

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corporais para acessarem a consciência. As doutrinas da psicologia genética são como as doutrinas de uma série de outros campos científicos que, à diferença das matemáticas e da física, não conseguem oferecer um fundamento necessário ao seu estudo, tendo sempre de adicionar às suas proposições expressões que indiquem freqüência para pretender validade para as mesmas. Deste modo, o psicólogo genético pode oferecer como resultando de seus estudos juízos como ‘na maior parte das vezes / em média / comumente x é o caso’ – a certeza lhe escapa, suas leis admitindo sempre exceções. Há, no entanto, uma diferença de graus de precisão aqui, as teorias que se embasam em fisiologia tendo maior consistência que aquelas que não o fazem. A correspondência psicofísica entre uma determinada freqüência de onda e uma percepção luminosa específica que habitualmente lhe é correlata é algo que se enquadra no primeiro tipo de lei genética. A falibilidade desta lei se mostra quando encontramos casos de cegueira a cores, ruptura do nervo condutor, alucinações substitutivas ou quaisquer acidentes ou morbidades físicas ou psíquicas que interfiram no esquema de recepção e conversão de estímulos. No entanto, em uma grande quantidade de casos, ele vigora e permite uma compreensão e um manejo adequados da experiência. Já propostas como as leis de associação de idéias (Ideenassoziation), as quais tendem a se basear apenas em análises da freqüência e da concomitância de aparecimento dos perceptos que se conjugam, enquadram-se no segundo tipo de lei, que abre mão do exame fisiológico. De acordo com Brentano, as manifestações destas leis são tão variadas, que o seu poder de predição é mínimo. Isto seria devido ao fato da maior parte das precondições para a sua ocorrência não terem sido delimitadas. Entre ambas as possibilidades, a saber, a de oferecer fundamentos fisiológicos ainda imprecisos à suas teses e a de prescindir deste recurso e lançar-se apenas à especulação sobre as causas da experiência, a psicologia genética se encontra sempre em uma condição epistêmica empobrecida. A psicognosia, por oposição, seria uma psicologia pura e teria condições de conferir às suas proposições rigor equivalente ao das ciências exatas. Brentano não hesita em dizer que a própria psicognosia é ciência exata, uma vez que dispõe de meios mais penetrantes e seguros para sustentar as suas reivindicações. Ela não teria preocupações com as causas operantes na consciência e em seus fenômenos, dedicando-se apenas a oferecer uma concepção geral do reino da consciência, por meio da listagem exaustiva dos componentes

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básicos a partir dos quais tudo o que é internamente percebido pelo homem é composto, enumerando os caminhos pelos quais isto ocorre – i.e., os componentes que se conectam. Ela nunca recorre a processos físico-químicos em sua atuação, portanto. Por correta que possa ser a conexão causal de determinados processos fisiológicos subjacentes a um acontecimento na consciência, a ligação ela mesma é algo totalmente inacessível ao simples correr da experiência, algo que não nos aparece de modo algum, impróprio a toda intuição. Deste modo, se os elementos químicos podem ser considerados substâncias (Stoffe) nãointuitivas, os elementos da vida interior são, em diametral oposição, dados intuitivos contidos em nossa consciência63. Ao enumerar apenas estes últimos elementos, a psicognosia pode deixar – e, com efeito, deixa – inteiramente de lado o exame fisiológico. O mesmo se passa em relação aos modos de conexão dos elementos conscientes, que seriam tão estranhos aos modos de conexão químicos quanto os dois tipos de elemento são entre si. Por isso a psicognosia é uma psicologia pura e essencialmente distinta da psicologia genética. Além disto, as suas doutrinas são precisas por serem oriundas de exames realizados em percepção interna. Temos, assim, que as duas disciplinas se diferenciam fortemente não apenas no interesse explicativo-causal de uma e no interesse descritivo-compreensivo de outra, mas também por uma adotar um procedimento impuro e conduzir a teses meramente prováveis, ao passo que outra adota um procedimento puro e conduz a teses necessárias. Como salienta Simons (1995), trata-se, em uma palavra, de uma psicologia a posteriori contraposta a uma psicologia a priori. Uma vez distinguidas estas duas possibilidades fundamentais da psicologia, qual poderia ser a sua interação? De que maneira, salvando-se ainda a idéia tão enfatizada de que a psicologia é una, poderiam estas duas disciplinas interagir e se complementar? Uma das vias da resposta é clara, de acordo com o pensador. Na medida em que seria análise do psíquico apenas a partir de si mesmo e buscaria compreender tanto a sua arquitetura própria, quanto as suas operações essenciais, a psicognosia teria clara prioridade teórica em relação à psicologia genética, oferecendo uma exegese filosófica precisa dos mesmos

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Ressaltamos esta perspectiva de Brentano, segundo a qual os dados da consciência são sempre contidos por ela, porque, como veremos adiante, este será um dos pontos radicais de afastamento entre Husserl e Brentano, o primeiro censurando o modelo excessivamente imanentista de consciência defendido pelo último e apostando na transcendência de certos dados em relação à própria consciência.

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acontecimentos aos quais o estudo experimental voltará seu interesse explicativo. Teríamos, neste caso, uma anterioridade da descrição em relação à explicação – e uma anterioridade de direito. No entanto, o movimento contrário seria também possível e, em circunstâncias específicas, até mesmo desejável, de acordo com Brentano. Contrariando toda perspectiva que pudesse tomar a psicologia genética por algo meramente segundo e que, se posto em relação com a psicologia descritiva, só poderia se beneficiar dela e nunca oferecer algo em troca, o filósofo apresenta situações em que o instrumental utilizado em experimentos pode auxiliar em estudos de caráter intuitivo. As condições de deflagração de uma sensação, tal como estabelecidas pela psicologia genética, podem ser úteis ao psicólogo descritivo que deseje analisar um fenômeno em específico por permitir-lhe evocar este fenômeno mediante o uso dos aparatos adequados. Elas podem ser úteis também para a manutenção deste fenômeno, e não apenas para a sua deflagração, permitindo, assim, análises extensivas. Podem auxiliar na discriminação de fenômenos similares, apresentando-os em sucessão e permitindo o seu exame comparado em condições raramente encontradas se a consciência for deixada a si mesma. Podem também servir para a produção de gostos, odores ou outros tipos de experiência pertencentes a domínios particularmente obscuros da sensibilidade. Ainda que o olhar dirigido pelo psicólogo a estes episódios não seja explicativo, atento aos vínculos causais que podem ser ali identificados, os recursos técnicos desta psicologia explicativa podem ser empregados, segundo Brentano, sem prejuízos de qualquer espécie64. Mostrando-se as duas tarefas distintas da psicologia, mas também a sua complementaridade – seja do lado descritivo para o genético, seja do genético para o descritivo –, preserva-se ainda a tese fundamental da unidade da psicologia. 2.1.8. A relevância da psicologia descritiva e a experiência de Gestalten: Com Brentano, é introduzido na psicologia um esforço claro de descrição da experiência a partir dela mesma, sem que a possamos tomar como simples expressão tardia de certos eventos não-fenomenais na periferia do organismo e no mundo de efetividades físicas. É introduzido um interesse expresso em tornar o fenômeno psíquico algo depurado de quaisquer comprometimentos que ele possa ter com outros objetos de análise próprios a 64

Pode-se notar também aqui uma radical diferença com o que sustentará Husserl posteriormente. Para o discípulo de Brentano, toda relação da crítica filosófica da experiência com um procedimento positivo de investigações é inadmissível, corrompendo aquela mesma crítica e abrindo espaço para a intromissão de diversos pressupostos não-clarificados que não a perturbariam de outro modo.

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outras ciências, cujas peculiaridades poderiam, eventualmente, influenciar a concepção que se tem da experiência e do psiquismo como um todo. O interesse, diametralmente oposto a este, é tomar o psiquismo em seu nexo próprio, no sentido por ele assumido a cada vez em que se manifesta, nas informações possíveis de serem hauridas apenas de sua riqueza interior e de nenhum outro lugar. Por meio de seu esforço e da propagação de suas idéias através de uma grande quantidade de escolas que foram se diferenciando a partir de sua própria, Brentano pôs em cena a idéia de uma psicologia pura e da experiência como algo não tributário de conteúdos arbitrariamente arranjados, mas dotado de uma dinâmica especial, em que a atividade e os fundamentos essenciais desta atividade, desvinculados fatores como a aprendizagem, são o que há de mais relevante. Como já dissemos e cumpre repetir, este capítulo se propõe acompanhar duas outras contribuições oferecidas à ciência psicológica por pesquisadores que, tendo sido fortemente influenciados pela perspectiva de Brentano, posto que alunos diretos dele, podem ser considerados importantes nomes da psicologia descritiva alemã, sobretudo no tocante ao problema que nos cabe examinar neste trabalho. Christian von Ehrenfels e Carl Stumpf, psicólogos eminentes de sua escola, têm seus projetos bastante influenciados por estas teses e chegaram a conclusões de imensa importância para compreendermos os projetos gestaltista e fenomenológico, aos quais passaremos em nossos próximos capítulos. Com efeito, parece-nos razoável admitir, considerando as relações intelectuais entre todos estes autores envolvidos, que, sem um claro apelo à experiência tal como ela surge ao próprio sujeito que a tem, sem um esforço exegético por dirimir desta experiência as suas manifestações pontuais e aceder ao aspecto estrutural, ao nexo racional que as possibilita, em suma, sem este duplo movimento de depuração da experiência e explicitação de sua arquitetura, não seria possível encontrarmos nada similar a um exame de ‘leis da forma’, como no gestaltismo berlinense, ou a uma ciência eidética, como em Husserl. Os métodos empregados por estas duas tradições da ciência e da filosofia contemporâneas nos surgem, deste modo, como intimamente ligadas a uma compreensão bastante específica da psicologia, da qual a Psychologie vom empirischen Standpunkt não é menos do que a pedra fundamental. Se no que se refere a Husserl isto é uma completa obviedade, no que se refere ao gestaltismo, cremos ter também um fundamento textual satisfatório para afirmá-lo. Há

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certas passagens em que a argumentação da Psychologie já nos mostra claramente que Brentano havia travado conhecimento de certos fenômenos conscientes em que aspectos formais parecem estar em jogo. Neste momento, ele trata de eventos perceptuais bastante similares àqueles que seriam citados por Mach e Ehrenfels em seus textos fundamentais, por nós considerados nas seções destinadas a cada autor. Na passagem a seguir, ele examina como diferentes dados sensíveis podem ser considerados idênticos se tomados em si mesmos, mas ainda assim surgirem de maneiras completamente diferentes a depender das relações estabelecidas com outros dados que acompanhem este seu aparecimento. Trata-se, claramente, de uma consideração acerca da possibilidade da inserção em um todo conferir propriedades posicionais a uma parte, fazendo com que ela seja efetivamente outra apenas na medida em que surge como função deste todo. Não por acaso, um dos exemplos citados por Brentano é precisamente o da transposição melódica, tomado como base para o argumento central de Über Gestaltqualitäten, ao qual nos reportaremos no próximo item: [...] a mesma aparição psíquica, e.g., a mesma sensação, pode ser sentida de maneira completamente diferente sob diferentes circunstâncias; [...] ela ora agrada mais, ora menos, e até mesmo ora desperta prazer, ora desprazer. Se tocarmos a escala ascendente ou descendentemente, ouvimos os mesmos sons, mas com sentimentos diferentes, e ainda mais claras e diversificadas tornam-se as diferenças com outras ordenações dos sons. Se o som cabe no contexto da melodia, ele aparece de modo mais agradável; se ele não cabe, torna-se, como quer que ele possa ser sonoramente, acompanhado por um sentimento desagradável. Se uma melodia é tocada em outra tonalidade, então todo som produz um sentimento muito semelhante àquele que estava ligado a ele quando ele então aparecia. No domínio das cores, mostra-se a mesma coisa. Há aquelas das quais dizemos que combinam bem juntas e há outras para as quais o contrário é o caso. Enquanto as primeiras são vistas umas após as outras ou umas do lado das outras, tornam-se particularmente agradáveis, ao passo que as últimas, ligadas de maneira idêntica, agridem nosso olho. Falaremos mais tarde das aparições do contraste simultâneo, nas quais uma cor, ainda que totalmente inalterada em sua aparição, é tomada por uma outra. Nestes casos, é também notável que o sentimento que acompanha a sensação da cor fique inalterado. Como no caso da transposição de uma melodia para uma outra tonalidade, mantendo-se cada som particular, é conectado um sentimento aparentado ao sentimento do som que assumia anteriormente o lugar correspondente, semelhantemente, aqui, temos que a cor que é trocada por uma outra cor traz consigo um sentimento aparentado ao sentimento que esta [cor] desperta usualmente. (BRENTANO, 1874, p. 200 e 201; acréscimo nosso)

Brentano assinala, deste modo, um fenômeno fundamental para o desenvolvimento da psicologia gestaltista, ainda que não dispense grande atenção a ele e evoque constantemente a idéia de sentimento para expressar as suas peculiaridades, o que não 128

constará nos desenvolvimentos da teoria a serem analisados aqui65. Ocorre, no entanto, que é precisamente a partir do terreno por ele preparado – i.e., de uma psicologia concebida a partir de todas as características que pudemos descrever ao longo deste capítulo –, que o problema da apreensão de formas ganhará uma relevância especial e um tratamento sistemático. É isto que nos cabe compreender na seção seguinte.

2.2. Christian von Ehrenfels e as Gestaltqualitäten: Christian von Ehrenfels, destacado discípulo de Brentano e de Meinong, estudou filosofia na Universidade da Viena e, posteriormente, junto ao último, na Universidade de Graz. Entre suas contribuições de maior relevância está a introdução de um conceito efetivo de Gestalt no cenário intelectual alemão, cuja influência no trabalho de outros filósofos e cientistas teremos condição de avaliar parcialmente. Tal fato se deu por ocasião da publicação de Über Gestaltqualitäten (1890), uma investigação psicológico-descritiva da percepção que busca mostrar como esta não pode ser adequadamente compreendida por meio do arcabouço conceitual oferecido pela psicologia experimental precedente. É certo que, como veremos ao longo do exame de sua argumentação, a posição de Ehrenfels perante esta tradição é bem mais complexa do que a mera crítica frontal, sendo possível encontrar em suas teses tanto a manutenção de alguns pressupostos clássicos, quanto o desafio a outros. Por meio deste movimento de parcial ruptura, no entanto, o pensador encontrou meios de introduzir um determinado modo de se compreender a percepção que não poderia ser inteiramente previsto pelos primeiros projetos psicológicos, dando um passo a mais no afastamento já iniciado por Brentano em relação a tal paradigma. Em seus últimos anos de atividade docente, cabe ressaltar, Ehrenfels lecionou na Universidade de Praga, de 1896 a 1929, quando foi professor do jovem Max Wertheimer, pesquisador fundamental para a consolidação do gestaltismo no século XX66 (SMITH, 1996, p. 244). Para compreendermos melhor todo este movimento, portanto, cabe-nos avaliar a argumentação de Ehrenfels no texto supracitado.

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É certo que a Ganzheitpsychologie, ou Escola de Leipzig, liderada por Félix Krüger e considerada uma das primeiras escolas gestaltistas, busca compreender a forma através de sentimentos (FERREIRA e PEREIRA, 2007, p. 239). Não dispomos, no entanto, de elementos suficientes para que possamos sugerir qualquer ligação consistente entre as constatações de Brentano e estas teses. 66 Ainda que sob nova perspectiva, como veremos em nosso terceiro capítulo.

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2.2.1. A delimitação do problema da apreensão das Gestalten: As primeiras afirmações de Ehrenfels são as de que o seu estudo busca considerar de forma rigorosa um problema já presente em outras obras filosóficas e psicológicas precedentes, ainda que não devidamente criticado ou analisado por elas. Para a colocação mesma do problema, o psicólogo busca recorrer a uma destas fontes, a já considerada Die Analyse der Empfindungen, de Ernst Mach, afirmando que foi exatamente nesta obra que ele encontrou os recursos apropriados para definir a sua posição na discussão. Como já vimos na seção destinada a este pensador, apesar de sua compreensão essencialmente elementarista do psiquismo, ele se deparou com determinadas experiências que indicavam a existência de algum tipo de organização dos dados sensoriais que não parecia estritamente dependente do que estes mesmos dados eram, se considerados individualmente. Ainda que estas experiências parecessem exigir um esforço interpretativo que o afastasse do elementarismo radical, reconhecendo um caráter holístico na estrutura mesma da experiência, não foi exatamente isto que ocorreu com Mach. Ele se limitou a atrair a explicação de certas formas a outros tipos de elemento sensorial – como no caso das formas espaciais, explicadas por sensações de espaço – ou a assinalar as dificuldades de sua compreensão – como no caso de formas sonoras. Apesar de visto, o problema das formas não é sistematicamente tratado, tampouco resolvido por Mach – da mesma forma que não o foi por Brentano, como vimos há pouco. Ehrenfels procura contornar precisamente esta limitação, sabendo-se pouco original na indicação do problema, ainda que muito na pretensão de resolvê-lo e salientar a sua importância geral para a psicologia dos processos sensíveis. Apoiando-se nas descrições oferecidas por Mach67, ele afirma que, de acordo com este pensador, nós temos a capacidade de sentir (empfinden) de maneira imediata tanto formas espaciais (Raumgestalten), quanto formas sonoras (Tongestalten), ou melodias. Os próprios conjuntos em que se enquadram os dados sensíveis de nossa experiência, deste modo, seriam eles mesmos passíveis de algum tipo de apreensão sensível, da mesma maneira que, de acordo com toda a argumentação da psicologia até então, as próprias sensações o seriam. A sensibilidade, deste modo, pareceria um canal pelo qual não apenas o aspecto difuso,

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Cumpre salientar, as mesmas que recuperamos em nossa passagem sobre a experiência de Gestalten neste psicólogo.

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vazio de sentido, bruto, da experiência seria apreensível, mas também toda ordenação, unidade e estabilidade que sobrevêm a este estrato mais fundamental. Sem buscar explorar a articulação destas reivindicações com outras idéias presentes na obra de Mach, Ehrenfels dedica-se basicamente a examinar as acepções possíveis ao termo ‘sentir’ nelas evocado, assumindo esta como uma via adequada para compreender a idéia em causa. Ele inicia o seu percurso, portanto, com um pequeno esforço exegético que lhe permite definir os fundamentos de sua própria posição. Acompanhemos este esforço. De acordo com Ehrenfels, se a acepção assumida não fosse distinta da acepção corrente, amplamente aceita nos projetos psicológicos da época, pensar em uma apreensão de melodias incorreria necessariamente em contra-senso. ‘Sentir’ não poderia equivaler a ‘apreender sensações’. Com efeito, uma ‘sensação’, no entendimento científico mediano que já pudemos descrever, equivaleria ao nosso acesso, via percepção sensível, a algo presente, atual e discreto – a um dado que nos é oferecido pela interação de nosso organismo com uma efetividade física, em um momento específico. Não poderíamos, deste modo, afirmar sem contradição que a melodia em sua inteireza, a qual se desdobra claramente no tempo, pode ser resumida a um conteúdo de sensação. Se há, na melodia, certa quantidade de dados sonoros que se sucedem, evidentemente há uma sucessão de momentos presentes, a qual nos obriga a considerar uma sucessão de sensações, e nunca a melodia mesma como um único conteúdo de sensação. A acepção clássica não poderia, portanto, ser perfeitamente evocada por Mach naquela formulação. ‘Sentir formas’ não seria um processo equiparável a ‘sentir sensações’ pelo critério da distensão temporal que marca aquela percepção. Que estaria sendo efetivamente dito ali, então? Sendo impossível admitir a idéia de atualidade do conteúdo sentido, Ehrenfels levanta outra hipótese e diz que Mach poderia estar fazendo alusão ao caráter de ‘impressão imediata’ pelo qual a melodia nos aparece, colocando o acento na possível ausência de qualquer espécie de trabalho intelectual ou esforço por parte do sujeito que escuta para ter a experiência que tem. Mas esta possibilidade também não seria inteiramente satisfatória. Para Ehrenfels, se ela evita a contradição antes constatada, ela não torna a idéia incontestável, uma vez que se admite muito facilmente que não recebemos do exterior quaisquer informações acerca de formas espaciais ou sonoras como algo já estruturado ou conformado, mas sim como algo que “[...]

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somos forçados a produzir só através de uma síntese [Zusammenfassung] das respectivas sensações individuais” (EHRENFELS, 1890, p. 250). Não poderíamos definir a nossa posição perante a percepção de uma melodia como uma posição sumamente passiva, devendo antes reconhecer, por meio do exame atento da própria experiência da escuta, que há alguma espécie de desempenho nosso perante os sons, que confere a estes a organização mediante a qual eles nos aparecem. ‘Sentir formas’, se esta perspectiva se provasse verdadeira, não seria um processo imediato, mas mediato, que exigiria alguma operação constitutiva para ocorrer.

Ehrenfels

não endossa explicitamente nenhuma das

possibilidades, no entanto, demarcando apenas que Mach poderia assumir a tese da inatividade da consciência, de sua pura receptividade, e que a esta não raro se opõe a tese de que todo conteúdo visado tem de ser fruto de uma síntese consciente. A indicação destas possibilidades de leitura permite entrever um importante problema de filosofia ou psicologia genética68, que se refere justamente ao exame das condições de aparecimento de uma forma – a especificação e explicação detalhadas destas condições. No entanto, mais premente ainda seria, de acordo com Ehrenfels, a consideração de um problema específico em psicologia descritiva, o qual atenta menos a estes processos causais do que ao próprio dado, ao conteúdo fenomenal experimentado. Antes de explicar, portanto, é preciso compreender o que se pretende explicar – no que podemos claramente enxergar o espírito brentaniano e sua ênfase na prioridade teórica de problemas descritivos em relação a problemas genéticos. Deste modo, o psicólogo exprime o novo problema por meio da seguinte pergunta: [...] o que seriam, então, em si mesmos, estas conjuntos representacionais ‘forma espacial’ [Raumgestalt] e ‘melodia’ – uma simples síntese de elementos [Zusammenfassung von Elementen] ou algo novo contraposto a esta, algo que, é verdade, está presente junto àquela síntese, mas que é dela distinguível? (EHRENFELS, 1890, p. 250)

Uma resposta a isto poderia ser obtida ainda por outro aspecto do sentido tradicional de ‘sensação’. Como sabemos, o termo ‘sensação’ se refere ao que é simples, impassível a subdivisões ulteriores. Se fosse do intento de Mach resguardar esta simplicidade ao se 68

Curiosamente, as traduções canadense e americana do texto, por Denis Fisette e Barry Smith, respectivamente, traduzem a expressão genetischen Philosophie, empregada por Ehrenfels em seu original, como “psicologia genética”, aproximando a fala do autor do jargão brentaniano. Apesar de desconhecermos as razões efetivas para isto, parece-nos razoável crer que este é um dos não raros exemplos em que os nomes das duas disciplinas são tomados de maneira intercambiável.

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referir a formas espaciais ou formas sonoras, ele certamente aderiria à segunda das respostas, a qual coloca o fator formal não tanto como uma simples síntese de elementos, mas sim como algo novo em relação aos elementos sobre os quais repousa. As razões para tanto se tornam claras quando entendemos que a perspectiva tradicional não pode afirmar que o caráter de conjunto de um agregado é simples, uma vez que se trata de um agregado, que, como tal, pode sempre ser analisado em seus elementos constituintes. O caráter de conjunto, nestas condições seria um efeito de superfície, que não poderia nunca ser qualificado como simples por ter sempre assegurada a possibilidade de ser vertido novamente em seus conteúdos componentes. Se este caráter tivesse de ser concebido como simples, ele teria de ser entendido como algo outro que não a soma de dados sensoriais em que se mostra. No entendimento de Ehrenfels, portanto, Mach teria de aderir à idéia de que a forma excede o seu fundamento material, ainda que o pensador em questão não o tenha afirmado explicitamente. Conceber a forma como algo simples seria necessariamente concebê-la como algo distinto do complexo de representações junto ao qual ela aparece. Estas são, portanto, as considerações exegéticas de Ehrenfels, as quais nos permitem resumir nos seguintes pontos o seu entendimento das idéias de Mach: (1) a apreensão de formas reconheceria que estas não podem se igualar a sensações; (2) ela ocorreria sem nenhum esforço de nossa parte no que se refere ao seu aparecimento; e (3) ela deveria se distinguir do próprio fundamento sensorial, uma vez que seria caracterizada pela simplicidade que falta ao agregado69. Uma vez elencadas estas três características fundamentais do pensamento de seu interlocutor, Ehrenfels as toma como indicação inicial para o desenvolvimento de sua própria posição ao longo do texto.

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De acordo com o que pudemos encontrar na argumentação de Die Analyse der Empfindungen, no entanto, Mach parece afirmar a divisibilidade do todo logo após constatar que ele é perceptível, como encontramos no primeiro exemplo de forma visual por ele oferecido, a partir da descrição de uma árvore. É curioso que Ehrenfels entenda que, não obstante isso, Mach poderia afirmar a simplicidade e a diferença essencial da forma em relação ao conjunto de elementos. Estas dificuldades não podem ser perseguidas aqui, no entanto, dadas as limitações deste estudo. No que se refere aos outros dois itens elencados por Ehrenfels, não nos parece haver problema, pois, pelo menos a propósito das formas visuais, Mach afirma claramente que a sua origem se deve a sensações de espaço, e em nenhuma passagem do livro ele parece sugerir qualquer atividade cognitiva de nossa parte para que estas formas sejam visadas. A tensão entre o Mach in propria persona e o Mach reconstituído por Ehrenfels, no entanto, deixa-se compreender mais facilmente quando percebemos que Ehrenfels assume os problemas e as descrições do autor, mas busca mudar certos aspectos de sua posição fundamental (SMITH, 1996).

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2.2.2. As condições de estruturação das Gestalten: Exposto o problema fundamental de seu texto e algumas premissas para o seu tratamento, Ehrenfels passa ao exame de algumas dentre as condições de estruturação de formas acústicas e visuais. Para ele, é algo bastante claro que a consciência de algo como uma melodia exige não apenas a apreensão de um determinado som que se nos mostra de imediato, como algo presente e atual, mas também, junto a isto, a manutenção de certa quantidade de sons que nos haviam sido há pouco dados – i.e., sons que, cada qual a seu tempo, já nos foram também presentes e atuais. A própria natureza do fenômeno indicaria que não se trata de guardar apenas certo número de notas recentemente dadas, mas sim de ter uma imagem geral da série completa de tons que configura a melodia, tal imagem marcando-se em nossa memória como um vestígio puramente tonal de nossa percepção. Nas palavras do autor: É [...] indubitável que a representação de uma melodia pressupõe um complexo de representações [Vorstellungscomplex] e, para ser mais preciso, uma soma de representações de sons individuais, com determinações [Bestimmtheiten] temporais diferentes e que se sucedem umas às outras. (EHRENFELS, 1890, p. 252)

Ehrenfels busca ilustrar melhor esta tese, que abre claramente o campo da percepção para uma intervenção de dados mnemônicos, por meio de um curioso esquema, no qual diferentes condições de percepção de uma mesma melodia são definidas e contrastadas. O psicólogo afirma que, dada uma melodia composta por uma seqüência de n tons, se um só sujeito for a ela submetido, de maneira a poder preservar junto à audição de uma dada nota presente a totalidade do quadro de notas há pouco dadas, ele terá consciência da seqüência como uma Gestalt, tendo, portanto, percepção de melodia. Se, no entanto, a mesma seqüência sonora, com a mesma determinação temporal particular a cada uma de suas partes, for escutada por n sujeitos diferentes, de maneira que cada sujeito se ocupe de apenas um tom dado na melodia, não temos na consciência de nenhum deles uma percepção que se caracterize por nenhuma propriedade além daquelas pertencentes ao tom simples ouvido. Cada qual será capaz de reportar a audição de um ruído específico, com uma altura e um timbre também passíveis de descrição, mas nada além disto. A pergunta que se impõe a partir deste confronto de situações é se o primeiro ouvinte traz àquilo que lhe é dado na experiência mais do que todos os n ouvintes na segunda situação. Em outras

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palavras: se o conteúdo das notas percebidas em conjunção é alterado em relação aos conteúdos das notas individualmente consideradas. Um problema similar poderia ser colocado a partir da apreensão de formas espaciais, ainda que, neste caso, as dificuldades impostas à reflexão sejam menores, devido à possibilidade de um observador apreender, de um só golpe, todos os dados a partir dos quais a forma em questão é inferida, e não de maneira sucessiva, temporalmente disjunta, como no caso da melodia. Considerando que as sensações por meio das quais as diferentes partes de um objeto extenso nos são apresentadas têm naturezas diversas70, o psicólogo concebe duas situações similares àquelas descritas acima, nas quais todas estas sensações teriam por base, em um primeiro caso, um só sujeito, que as apreenderia de pronto, ou, em um segundo caso, uma diversidade de sujeitos, uma impressão pontual aparecendo a uma consciência específica. A mesma pergunta se insinua aqui, cabendo saber se a representação possível ao primeiro sujeito difere significativamente da eventual soma das representações possíveis aos n sujeitos do outro caso. Estes exemplos servem, segundo entendemos, para que tenhamos uma definição mais precisa das duas posições em jogo. Se admitíssemos que na percepção de uma Gestalt nada de novo é dado na consciência, teríamos que admitir a inexistência de diferenças de conteúdo nas experiências descritas. Isto quer dizer: as experiências pontuais de n sujeitos que apreendessem cada qual uma impressão – acústica ou, digamos, óptica – deveriam equivaler, se nos dedicássemos a inventariar as descrições que eles podem fazer acerca delas, à experiência de um único sujeito que apreendesse o conjunto total das n impressões distribuídas. As descrições das experiências de sons isolados, se tomadas em conjunto, deveriam ser compatíveis com as descrições da experiência de uma melodia; as descrições das experiências de fragmentos de imagem, se conjugadas, deveriam ser compatíveis com a experiência da imagem integral. A situação é deveras pouco convincente. Ela parece guardar certas imperfeições que a distanciam consideravelmente da realidade própria à experiência, carecendo de valor intuitivo. Ainda que não disponha de recursos para demonstrar isto neste ponto de sua argumentação, Ehrenfels assume como hipótese a ser ulteriormente averiguada que a percepção dos sons em conjunção comunica à consciência algo de novo, sendo justamente o caráter gestáltico da percepção este algo novo. 70

As quais, em seção posterior, o psicólogo indicará serem sensações táteis, visuais e de movimento.

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De posse desta hipótese, portanto, Ehrenfels busca considerar as objeções mais imediatas a ela, de modo a pôr à prova sua consistência. A primeira destas objeções se deixa formular da seguinte maneira: como o simples fato de certo número de representações se encontrar unificado na consciência pode ser razão suficiente para se crer que algo novo, ausente nos elementos constituintes, seja dado junto a eles? Como se pode justificar a existência de propriedades de conjunto que não se encontrem já presentes nos elementos somados, que definem a materialidade deste conjunto? Não seria isto equivalente a crer que, da simples colisão de dois átomos um terceiro possa ser gerado? A resposta de Ehrenfels a isto consiste basicamente em indicar que a perspectiva em questão é desprovida de força demonstrativa, sendo uma injustificada transposição de um raciocínio legítimo em física – a saber, a conhecida ‘lei de conservação da matéria’ – para o domínio psíquico, o que não poderia ocorrer senão por um preconceito não-clarificado. Ele afirma: Se as representações tivessem de ser consideradas, digamos, como os átomos e toda a vida psíquica consistisse apenas em transpor de uma consciência a outra conteúdos de representação já prontos, então o fato de que um novo elemento devesse surgir em uma consciência através da unificação de vários elementos deste tipo poderia despertar estranheza [...]. (EHRENFELS, 1890, p. 230)

Neste momento da argumentação de Ehrenfels, encontramos indícios relevantes de sua peculiar posição perante a psicologia experimental que o precedeu. Por um lado, sua posição é negativa. Ele afirma claramente, após a passagem acima recuperada, que na vida psíquica a situação é inteiramente outra, aquela descrição não podendo ser admitida de modo algum. Não poderíamos conceder a esta perspectiva que encerra todo evento mental em um esquema de constante agregação e desagregação de elementos sensoriais, que assumem formas distintas e nos comunicam conteúdos diversos apenas pelo seu arranjo a cada vez outro por forças de ligação. A crítica aqui é endereçada claramente à perspectiva psicológica que buscava, como nos indicam os axiomas atomista, sensualista e mecanicista de Bühler, defender uma tal compreensão de psiquismo. Ademais, é um fato bastante relevante que a relação entre um princípio físico e a estrutura psíquica possa ser tão negativamente avaliada, como se a linguagem própria a esta não pudesse ser efetivamente contemplada pelos recursos disponibilizados por aquele. Não nos esqueçamos que Helmholtz justificou a sua teoria precisamente pela importação do modelo científico da

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filosofia natural para a psicologia. Para Ehrenfels, um gesto deste tipo é considerado impróprio e lesivo para a compreensão da experiência. Por outro lado, no entanto, a posição de Ehrenfels perante a tradição é positiva. Sua argumentação concede espaço às teses tradicionais na medida em que afirma que, para reconhecermos o surgimento de algo novo na consciência quando da apreensão de uma Gestalt, não é preciso que pensemos na existência de alguma espécie de causalidade psíquica, ou em uma cadeia de fenômenos psíquicos especiais, distintos dos processos perceptivos de base, que se responsabilize por este resultado. Esta perspectiva seria perfeitamente compatível com a descrição da percepção que afirma “[...] a hipótese de uma dependência direta e perpassante de todos os processos psíquicos em relação a processos fisiológicos.” (EHRENFELS, 1890, p. 230). Ainda que não haja uma compreensão plena dos processos fisiológicos que ocasionam os fenômenos psíquicos, pode-se inferir como algo pelo menos plausível que uma diferença categorial naqueles processos, a qual separa os elementos da forma, afirma-se junto à diferença categorial que, nos fenômenos, cumpre a mesma função, i.e., separa também os elementos da forma. O que encontramos aqui é uma especulação que acaba preservando o quadro tradicional da psicologia, o qual faz corresponder ponto a ponto os eventos psíquicos a eventos fisiológicos. Ao defender tal posição, Ehrenfels se coloca, ainda que não explicitamente, ao lado da hipótese clássica que vincula eventos psíquicos sempre a eventos fisiológicos. Ele busca justificá-la retomando e esquematizando os dois casos acima expostos, em que uma mesma melodia, em um primeiro momento, é oferecida à apreciação de um só observador, e, em um segundo momento, tem as suas diferentes partes oferecidas à apreciação de diferentes observadores. No primeiro destes casos, podemos dizer que, a uma consciência S, corresponde a totalidade formada pelas representações dos tons t1, t2, ..., tn, os quais têm, em sua base, os eventos fisiológicos r1, r2, ..., rn. Já o segundo caso, podemos retratá-lo por meio dos mesmos símbolos dizendo que, para a série de unidades de consciência s1, s2, ..., sn são dadas as mesmas representações dos tons t1, t2, ..., tn, e, em sua base, os eventos fisiológicos r1, r2, ..., rn. O que se apresenta, no primeiro caso, a uma só unidade psicofísica, a uma só consciência em sua interação com o mundo, é sistematicamente dividido no segundo caso, cada tom e cada substrato fisiológico ocorrendo a um sujeito em separado. Se o resultado da percepção dada na consciência S é diferente das percepções dadas nas consciências s1, s2,

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..., sn, e ambas pressupõem as mesmas bases fisiológicas e os mesmos conteúdos representativos por estas produzidos, algo também de ordem fisiológica deve ocorrer para que aquela diferença de perceptos seja assegurada. Em outros termos: se os mesmos excitantes deflagram as mesmas sensações e encontramos, quando as sensações são reunidas em um só sujeito, um resultado fenomenal específico, e quando as sensações estão distribuídas entre um grupo de sujeitos, diversos resultados fenomenais cuja soma não se identifica ao primeiro resultado, algum fator no processo de integração dos estímulos deve ser identificado para que esta diferença seja compreensível. Ainda que a ciência da época, no dizer de Ehrenfels, não tivesse recursos para estabelecer de maneira inteiramente satisfatória as condições fisiológicas que determinariam uma consciência como afetável pela totalidade dos estímulos ou por certa parcela deles, o simples fato – este inteiramente constatável – de uma só consciência ter para si um conjunto de excitações e conseguir formar a partir dele uma experiência de totalidade, já indicaria a necessidade de algum evento fisiológico especial que o explicasse. Possivelmente o mesmo evento que se ocupa desta integração seria responsável pela formação de um elemento psíquico novo71. Uma segunda objeção ainda considerada por Ehrenfels consiste em dizer que a tese segundo a qual certa relação entre dois elementos pode dar origem a um terceiro elemento corre o risco de acarretar logicamente uma proliferação e uma diferenciação constantes dos conteúdos dados na consciência. Se, com efeito, pensa-se que a partir da relação entre dois elementos e1 e e2 um elemento e3 pode ser originado, parece plausível crer que os mesmos princípios responsáveis por esta origem atuariam também na relação do novo elemento com os dois outros dos quais ele veio, gerando, deste modo, e4 a partir de e1 e e3; e5 a partir de e2 e e3; etc. As exigências de multiplicação, deste modo, tenderiam ao infinito. Ehrenfels dispensa menor atenção a esta objeção, refutando-a apenas pelo retorno a certas teses já apresentadas nos momentos anteriores do texto. Ele crê que a objeção não se sustenta porque, além de assumir que a diferenciação citada ocorre sempre, de maneira sistemática, ela aceita a sua ocorrência sem nenhuma participação de nossa consciência e que qualquer 71

Vê-se com facilidade que Ehrenfels se encontra perante uma realidade psicológica de difícil explicação, uma vez que ele não consegue oferecer teses muitos consistentes para indicar como, no organismo, surgiria uma função responsável pela organização dos dados fenomenais e pela distinção entre as categorias fundante e fundada. Em nosso entender, isso indica o menor valor genético de sua argumentação e o maior valor descritivo: o conceito de forma é compreensível e evidente se o tomarmos em sua condição de dado, mas o seu exame em termos meramente positivos enfrenta duras restrições.

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elemento poderia ser base para a estruturação de uma forma. Nenhum destes pressupostos é válido, no entanto. Pelo contrário: a gênese de formas não seria um processo constante, ocorrendo em circunstâncias bastante específicas; exigiria participação da memória; e não poderia ocorrer sobre qualquer fundamento material. A idéia de uma constante diferenciação se torna, deste modo, leviana. O movimento de Ehrenfels, nesta exposição de algumas das condições basilares para a apreensão de formas, portanto, é complementado pela refutação de duas objeções que lhe parecem as mais prováveis de serem apresentadas, o que lhe oferece ocasião não apenas de fortalecer a sua própria hipótese, como também de referi-la a problemas tradicionais acerca da relação entre psiquismo e corpo, presentes há muito na psicologia. Ele se encontra, assim, de posse de recursos suficientes para examinar a ocorrência concreta de formas na percepção e oferecer maior peso à posição que vem gradativamente assumindo desde sua exegese de Mach.

2.2.3. A demonstração da existência das Gestalten: O psicólogo pretende, então, considerar mais detidamente alguns exemplos de experiências em que as formas ocorrem, oferecendo uma prova efetiva de sua existência. Esta prova, no que se refere a fenômenos visuais e sonoros, pode ser obtida ao considerarmos as relações de semelhança entre os conteúdos sensíveis dados – precisamente as mesmas relações identificadas por Ernst Mach em que uma determinada melodia pode ser reconhecida a despeito do tom em que ela vier a ser executada e uma forma geométrica pode ser encontrada em diferentes traçados ou figuras particulares. Aqui, encontramos claramente certa autonomia das formas percebidas em relação ao seu fundamento sensorial, uma vez que, independente do exemplo contingente por meio do qual um percepto destes tipos possa nos ser dado, nós seríamos capazes de identificar neles algo como uma estrutura primordial que antecederia estes mesmos exemplos, que nos permitiria reconhecê-los em sua condição mesma de exemplos de algo. A concepção de forma como mero somatório de elementos sensoriais não seria compatível com esta autonomia, pois, se compararmos agregados sensoriais de diversos tipos, percebemos que o reconhecimento de uma eventual semelhança entre eles é possível mediante a constatação de alguma semelhança entre o que os qualifica materialmente. As sensações constituintes

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devem ser compatíveis para que possamos entender que dois ou mais agregados são similares entre si. Se esta precondição não é satisfeita, não temos, a nível perceptual, nada que autorize a aproximação dos agregados e a afirmação de sua semelhança. É, no entanto, justamente isto que a experiência de formas desautoriza, quando nos mostra o reconhecimento de similaridades estruturais sem similaridades materiais. Segundo Ehrenfels, isso pode ser observado com inteira clareza nos fenômenos de transposição tonal. Com efeito, se temos, em um primeiro momento, uma melodia específica executada em seu tom original, e, em um segundo momento, a mesma melodia executada em um outro tom qualquer, teremos a alteração de todos os elementos sensíveis que caracterizavam a melodia inicialmente, ainda que as estruturas intervalar e rítmica sejam preservadas. A depender do tom para o qual a melodia for transposta, podemos não ter sequer uma única nota que se repita, havendo um distanciamento pleno de tudo o que se puder apreender, em termos de sensação, de um caso para outro. Pensemos em um exemplo bastante banal. Se uma melodia simples como dó-ré-mi, executada em Dó Maior, for transposta para Sol Maior, teremos como resultado sol-lá-si. Se considerarmos especificamente as notas executadas, teremos, neste segundo momento, toda uma outra série de impressões acústicas, posto que entre as três notas originais nenhuma se repete. Não encontramos nenhuma circunstância em que uma mesma freqüência sonora incida sobre o aparelho auditivo e possa ocasionar, por meio de processos conversivos, uma mesma sensação. Deste modo, há experiências pontuais de sons distintos e plena variedade no fundamento material. O que ocorre, no entanto, é que mesmo ouvintes não-treinados em música são capazes de reconhecer que ambas as melodias, executadas em ambos os tons, são essencialmente uma só melodia – são capazes de reconhecer uma só cadência, um só movimento, uma só frase. Malgrado a alteração do campo sensorial no qual ela é definida, uma percepção de identidade é assegurada. Do mesmo modo que podemos impor esta alteração na melodia original, podemos ainda compor com as mesmas notas que a configuram um outro arranjo melódico por meio da simples alteração da ordem destas notas. A estrutura rítmica pode ainda ser a mesma e isto não será de modo algum relevante. A mudança de ordem na execução assegura que a percepção das mesmas notas antes dadas em uma melodia específica indique uma segunda

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melodia, que pode mesmo não lembrar a melodia original em nada. Qualquer alteração de dó-ré-mi para ré-mi-dó ou mi-ré-dó o exemplificaria com simplicidade Acerca destas duas alterações possíveis, Ehrenfels (1890) afirma: Assim, temos, por um lado, dois complexos de representações de som que são constituídas por diferentes partes componentes [Bestandtheile], mas resultam em melodias similares (ou, segundo a maneira habitual de falar, a mesma melodia), e, por outro, dois complexos que são constituídos exatamente pelos mesmos elementos tonais e resultam em melodias bastante diferentes. Disto resulta inquestionavelmente que a melodia ou forma sonora é algo outro em relação à soma dos sons individuais a partir dos quais ela se constrói. (p. 259)

O que encontramos aqui não é pouco relevante, pois, com estes argumentos, Ehrenfels ataca por dois lados distintos a tese, cara à maior parte dos projetos psicológicos experimentais, que identifica o objeto a certa organização de seu fundamento material – o axioma sensualista de Bühler. Ele nos mostra que: (1) uma percepção de igualdade pode se dar mesmo que todas as sensações envolvidas nos objetos contrastados mudem por completo; e (2) as mesmas sensações podem ser ora dispostas de um modo e nos darem consciência de um objeto, ora de outro e nos darem consciência de outro objeto. Isto só seria possível porque a percepção reconhece nos seus dados elementos formais que não podem ser confundidos com sensações de tipos quaisquer72. Ehrenfels busca mostrar exemplos também entre os dados visuais, mas não nos importa recuperá-los aqui. Importa apenas que atentemos às últimas considerações do psicólogo acerca das características básicas deste seu conceito de forma. De toda esta argumentação, Ehrenfels crê restar como algo claro que a forma pode ser concebida como um elemento especial em meio a outros elementos que definem o seu conteúdo, que lhe dão preenchimento. Se, com efeito, temos na representação de uma melodia uma série de representações pontuais correspondentes aos sons individuais apreendidos, como já dissemos repetidas vezes nos exemplos acima, temos, por intervenção da memória, uma capacidade de promover uma integração tal entre estas representações de conteúdo que não apenas elas passam a ser partes subsumidas a uma totalidade mais compreensiva, mas também elementos de um tipo distinto, inferiores, posto que ordenados e geridos por um 72

Vale ressaltar que estes dois argumentos já se encontram de algum modo presentes na passagem em que Brentano comenta os fenômenos formais da percepção, uma vez que ele fala em transposições e nas diferentes experiências que temos com a execução de uma mesma escala ascendente ou descendentemente.

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elemento igualmente simples, mas de tipo mais elevado, um elemento formal. O psicólogo afirma que a relação entre conteúdo e forma, no exemplo da melodia: [...] é fundada, segundo nossa apreensão, em um elemento positivo de representação, a forma sonora, de tal modo que uma e mesma forma sonora exige uma relação sempre idêntica entre os elementos de seu substrato sonoro (a representação sonora individual). (EHRENFELS, 1890, p. 262)

Podemos afirmar, deste modo, que também aqui a relação de Ehrenfels com a psicologia que o precede é um tanto peculiar, pois se, por um lado, ele busca mostrar com toda a sua argumentação em favor de qualidades da forma que existem fatores sumamente importantes no fenômeno perceptivo que não se reduzem aos simples conteúdos possibilitados por processos fisiológicos pontuais, fatores que se mostram condição essencial para que o percepto se dê como se dá, por outro lado, ele claramente afirma que esses fatores se reduzem a um elemento estrutural, não-sensível, que se junta aos demais e os altera. É certo que temos algo de muito importante na percepção que não é sensação, mas ainda lidamos, de fora a fora, com elementos. Por isso o desafio de Ehrenfels à psicologia experimental acaba tendo a sua força atenuada. O seu favorecimento à intervenção da memória e a sua oposição ao sensualismo não o privam da lida com elementos como algo basilar para a compreensão destes fenômenos psíquicos. Deste modo, o psicólogo nos oferece uma definição plena de qualidade da forma, sustentada por todo esse percurso: Por ‘qualidades da forma’ entendemos estes complexos positivos de representações unidas na consciência, que [...] consistem em elementos separáveis uns dos outros (i.e., representáveis uns sem os outros). Aqueles complexos de representação necessários para a disponibilidade [Vorhandensein] das qualidades da forma, nós os chamamos fundamento [Grundlage] das qualidades da forma. (EHRENFELS, 1890, p. 262 e 263)

As análises de Über Gestaltqualitäten seguem para rumos mais ambiciosos a partir desta definição inicial, mostrando como uma série de outros fenômenos psíquicos podem ser compreendidos a partir do conceito, bem como realizando distinções internas a ele, de acordo com os princípios predominantes em sua estruturação – qualidades da forma temporais (zeitliche Gestaltqualitäten) e qualidades da forma não–temporais (unzeitliche Gestaltqualitäten). Esta expansão do conceito, que abarcará exemplos bastante peculiares, como o movimento – que consistiria na percepção de um deslocamento contínuo a partir da 142

integração de sucessivas determinações espaciais de um objeto – e as palavras de um dado idioma – que apresentam uma estrutura de sentido essencialmente distinta das performances concretas de fala que as exprimem –, não nos ocupará aqui. A atenção dispensada aos fundamentos do conceito satisfaz os nossos propósitos. Cumpre agora que consideremos de modo breve a posteridade do trabalho de Ehrenfels.

2.2.4. A herança das idéias de Ehrenfels nas escolas de Graz e Leipzig: As teses de Ehrenfels tiveram considerável ressonância no cenário científico e filosófico de seu tempo, dando origem a certa quantidade de estudos acerca dos mesmos fenômenos por ele considerados e a disputas conceituais diversas73. Um de seus resultados mais fecundos, no entanto, deu-se na Escola de Graz, uma das subdivisões da própria escola brentaniana, composta por Ehrenfels, Meinong, Stephan Witasek e Vittorio Benussi e defensora da assim chamada Produktionstheorie. Entre estes pesquisadores, as idéias de Ehrenfels impactaram de maneira bastante positiva, mas isso não impediu que modificações fossem impostas às mesmas, como a ênfase em uma atividade da consciência na apreensão de formas, a qual não se encontra presente na compreensão original do conceito, e o entendimento de que esta atividade seria basicamente a execução de um ato intelectual voltado às sensações e que produziria, a partir da interpretação destas, uma objetualidade determinada, destacada como um dado superior em relação aos dados inferiores definidos pela sensação – ou, nos termos de Meinong, um superiora por oposição ao inferiora. Temos aqui um claro afastamento da tese de que a única contribuição para a emergência de formas é o concurso da memória, bem como a proposta de que certo desempenho racional atravessa todos os processos psíquicos deste tipo. Esta foi a base para a formação da Gegenstandstheorie de Meinong e da primeira escola gestaltista, a própria Escola de Graz, cujos estudos experimentais foram conduzidos, sobretudo, pelos dois últimos pesquisadores acima citados, Witasek e Benussi (BOUDEWIJNSE, 1999). Ainda uma outra vertente psicológica originada a partir das contribuições de Ehrenfels foi a Escola de Leipzig, fronteada por Félix Krüger, discípulo e sucessor de Wundt na universidade da cidade supracitada, e composta também por Hans Volkelt e

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De que pode nos servir como exemplo os textos Über Gestaltqualitäten (1903), de Hans Cornelius, e Zu den Gestaltqualitäten (1903), de Theodor Lipps.

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Friedrich Sander. Também conhecida como Ganzheitspsychologie, ou ‘psicologia da totalidade’, a escola buscava pensar a existência de qualidades da forma na experiência sensível a partir de fatores afetivos, e não intelectuais, como fizera Graz. A ressonância de suas propostas na comunidade científica da época, no entanto, não foi muito expressiva, dado o espaço central por elas conferido a conceitos não tão claros e unívocos, como o de sentimento. Não poderemos nos ocupar destes estudos em nosso percurso, a despeito do quão relevantes eles sejam para a história do gestaltismo e do quão ricas sejam as relações e as afinidades teóricas entre alguns destes estudiosos e Husserl. É apenas relevante indicarmos que o entendimento de Gestalt em todos eles ainda é próximo da compreensão psicológica clássica de objeto, lidando, em algum momento de sua argumentação, com a idéia de elemento e com desempenhos psíquicos que conduziriam aos objetos mais elevados. A Escola de Berlim não deixará de notar isto, como veremos mais adiante.

2.3. A psicologia das funções e a fenomenologia experimental de Carl Stumpf: O último autor relevante para concluirmos o nosso percurso histórico é Carl Stumpf, o qual desempenhou o papel de mentor intelectual direto tanto para Husserl como para os gestaltistas. No que se refere ao primeiro, Stumpf é o segundo maior interlocutor por ele assumido em seus primeiros passos em filosofia e psicologia, sendo precedido apenas por Brentano. De acordo com Depraz (2007, p. 20), foi por recomendação de Brentano, com o qual estudara já por dois anos, que Husserl buscou Stumpf, na Universidade de Halle, em 1886, desenvolvendo sob orientação do mesmo os seus primeiros trabalhos naquelas disciplinas. Mesmo após a severa re-orientação de seu pensamento em relação a estes trabalhos, a qual seria consolidada nas Logische Untersuchungen, Husserl manteve profundo respeito pelas contribuições de seu orientador, bem como certa proximidade intelectual delas. O próprio fato de Husserl ter dedicado aquela obra a Stumpf o atesta. No que se refere aos gestaltistas, Stumpf não foi apenas o fundador do Instituto de Psicologia de Berlim, no qual a escola teria sede, mas também, como nos indicam Ash (2011, p. 34) Toccafondi (2011, p. 173), orientador dos trabalhos de doutoramento de quase todos os seus primeiros representantes, tanto aqueles dos quais nos ocupamos diretamente neste estudo, como Kurt Koffka e Wolfgang Köhler, quanto outros aqui ausentes, como Kurt Lewin, Adhémar Gelb e Johannes von Allesch. A única exceção é Max Wertheimer, o qual

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obteve o seu doutorado em Würzburg, sob orientação de Oswald Külpe, mas não sem ter realizado antes dois anos de intenso trabalho com Stumpf em Berlim, entre 1902 e 1904. Em um discurso de comemoração ao septuagésimo aniversário de Stumpf, recuperado por Ash (2011), Wertheimer indicaria o quão importante para o gestaltismo foi a maneira como o estudioso atentava aos fatos e buscava tomá-los por objeto de estudo: Para você, os fatos não são objeto de ataque; nada que deveria trazer resultados imediatos. Para você, os fatos estão como se estivessem nas mãos de um pai. Na África, há um costume em uma tribo: quando alguém deseja mostrar confiança em um convidado, uma mãe deixa o seu lactente em seus braços e diz: ‘segure a criança’. Assim você segura os fatos em suas mãos e assim você nos ensinou: devoção ao real. (p. 41)

Em breve teremos condições de ver como estas palavras são significativas tendo-se em vista a metodologia própria ao gestaltismo, com a atenção por ele conferida aos fenômenos conscientes tal como se mostram ao sujeito experimental. Ainda em termos institucionais, Stumpf foi o fundador da estação de antropóides da Preuischen Akademie der Wissenschaft, nas Ilhas Tenerife, onde Köhler realizaria os seus relevantes estudos sobre a inteligência dos símios, bem como o responsável pela recomendação deste seu aluno à diretoria do Instituto de Psicologia de Berlim, quando o próprio Stumpf a deixara. Decerto, o aporte teórico e metodológico do pensamento de Stumpf no gestaltismo é o que nos importa aqui, ainda que os fatos históricos citados auxiliem na tarefa de evidenciarmos as estreitas relações entre a escola e o pesquisador. No que se refere à formação do próprio Stumpf, ele se destaca como um dos mais relevantes discípulos de Brentano, tendo acompanhado, em seus estudos de filosofia na Universidade de Würzburg, os cursos de história da filosofia, metafísica e lógica do mesmo, ministrados no Wintersemester de 1866 e 1867. A partir de então, ele fora recomendado por Brentano ao psicólogo e médico Hermann Lotze, da Universidade de Göttingen, sob orientação do qual cursou o seu doutorado acerca das relações entre o conceito de Deus e a idéia de bem em Platão. Após a obtenção do título, ele retornaria a Würzburg para dar seqüência aos seus estudos com Brentano, acompanhando-o até o Sommersemester de 1870 (BONACCHI, 2011, p. 8 e 9). Posteriormente, desenvolveu pesquisas acerca dos fundamentos filosóficos dos axiomas matemáticos – assunto que também interessaria a Husserl e que nortearia a sua já mencionada produção junto a Stumpf – e estudou os métodos de mensuração psicofísica com Ernst Weber e Gustav Fechner, que 145

restariam como uma importante referência para o seu trabalho experimental posterior74. A sólida formação de Stumpf em ambos os campos da ciência psicológica, o descritivo e o genético, portanto, é notória. Passemos, então, ao exame de sua obra e busquemos ressaltar os pontos em que ela foi relevante para as escolas que estamos prestes a avaliar em nossos próximos capítulos.

2.3.1. Mereologia nas representações de espaço e som: Uma das grandes contribuições de Stumpf ao campo da psicologia dos processos sensíveis se deu em sua obra Über den psychologischen Ursprung der Raumvorstellung (1873), na qual ele já desenvolveria teses que, em consonância com os interesses da Escola de Brentano, atentariam ao aspecto estrutural dos fatos sensíveis, e não tanto à sua mera redutibilidade a conteúdos simples. É certo que uma parte relevante do interesse de Stumpf nesta obra era ir de encontro a algumas teorias acerca da percepção sensível do espaço já amplamente difundidas em seu tempo, dentre as quais se destacam a teoria do ‘sinal local’ (Lokalzeichen), proposta por seu professor Hermann Lotze, e a compreensão do espaço como uma intuição pura, ou uma forma a priori da sensibilidade, tal como encontramos na filosofia transcendental de Immanuel Kant. Ainda que não consista em nosso interesse recuperar em detalhe a interpretação de Stumpf acerca de ambas, bem como a sua tentativa de refutação, uma compreensão mínima destas questões é relevante para que possamos entender o contributo da obra citada. No que se refere à primeira daquelas teorias, o espaço é considerado uma representação formada pela alma em sua apreensão de uma série de dados sensíveis especiais, que acompanham a apreensão de cada dado cromático ou luminoso pela visão. De acordo com Lotze, teríamos a capacidade de apreender uma espécie de excitação muscular, gerada pela movimentação das órbitas oculares no momento

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A rigor, encontramos indícios textuais relevantes da proximidade de Stumpf em relação a praticamente todos os autores abordados em nosso capítulo inicial. Em seu pequeno texto Hermann von Helmholtz und die neue Psychologie (1895, p. 311), escrito como homenagem póstuma a este pesquisador, ele descreve de maneira profundamente elogiosa a sua obra em diversos campos da ciência, pondo-se claramente de acordo, no que se refere às suas contribuições à psicologia, com a tese segundo a qual as sensações seriam meros sinais do mundo real. Em sua Selbstdarstellung (1924), ele também afirmaria a relevância das propostas de Müller e Fechner para o desenvolvimento das suas: “As legalidades [Gesetzlichkeiten] correspondentes à relação entre a sensação e os estímulos externos [äueren Reizen] – as energias específicas e a lei de Fechner – desempenham um papel em meus trabalhos.” (p. 248) Deste modo, a despeito de ser um eminente representante da Escola de Brentano, Stumpf ainda confere grande importância ao estudo experimental em sua psicologia.

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mesmo em que estas apreendem uma qualidade visual pontual, e esta excitação nos ofereceria um cálculo preciso da posição objetiva do corpo que nos estimula. A apreensão de uma qualidade visual qualquer, portanto, traria em si um índice da localização espacial do objeto visto, restando à alma operar uma síntese a partir de cada sensação visual e cada sinal local a ela correspondente para nos dar consciência de um corpo íntegro situado em algum lugar do espaço. Temos, portanto, uma compreensão claramente elementarista da percepção de espaço, na qual dados sensíveis de diferentes tipos são sintetizados por uma atividade anímica e nos oferecem o percepto final. No que se refere à segunda teoria, o espaço é considerado uma das determinações necessárias da sensibilidade sobre os dados materiais que lhe sobrevêm quando da percepção de um objeto qualquer. Da mesma forma que o tempo, o espaço seria uma condição subjetiva a partir da qual toda experiência de objeto seria possível – um dos aspectos da conformação do diverso sensível às exigências lógicas de nosso representar. Se a Lotze, Stumpf objetaria basicamente afirmando a impossibilidade de vincularmos ponto a ponto dados espaciais e dados luminosos, uma vez que, em um só movimento ocular, diversos dados deste segundo tipo seriam captáveis, a Kant, as objeções seriam mais relevantes e de conseqüências mais extensas. Assumindo o exame da própria experiência como ponto de partida, e não a crítica acerca de suas condições lógicas de possibilidade, Stumpf afirma que não podemos separar o espaço como um momento sensível puro da percepção, essencialmente desvinculado de qualquer conteúdo, uma vez que a nossa atividade representativa mostra que ele só pode ser concebido em relação com alguns conteúdos específicos, dentre os quais a cor. Seria um fato psicológico primitivo, acessível de forma evidente, que toda representação possível da extensão traria em si uma propriedade cromática específica, bem como, no sentido inverso, que toda representação possível de cor exigiria a definição de um contorno, de dimensões espaciais determinadas, para ser dada. Asserir o vínculo necessário, no plano dos fatos psíquicos, entre extensão e cor, independente do atributo a partir do qual isto seja feito, é descrever de formas distintas um mesmo estado de coisas (Sachverhalt) psíquico75. Como nos indica Ash (2011, p. 29) o que Stumpf oferece aqui é uma tese plenamente concordante com a afirmação brentaniana 75

É certo que Stumpf se refere aqui apenas a experiências que admitam dados visuais, uma vez que a extensão é dada ao tato sem que a cor a acompanhe. Afirmar o vínculo essencial entre aqueles atributos e ignorar isto seria recair em um paralogismo, como salienta o próprio autor (STUMPF, 1907, p. 12)

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de uma unidade essencial à consciência. Em sua Selbstdarstellung, o próprio autor o afirma, recorrendo ao jargão metafísico clássico para caracterizar a sua posição: “Na relação entre cor e extensão (Ausdehnung) eu acreditei (e ainda acredito) ver um exemplo sensível ou um análogo da relação entre as propriedades de uma substância, tal como admite a metafísica.” (STUMPF, 1924, p. 8). A sua posição, por conseguinte, é a de que o vínculo expresso entre aqueles dois conteúdos nos dá consciência de uma unidade cuja composição é marcada pela existência de dois momentos que se interprenetram, guardando entre si uma relação essencial, a qual não pode ser tomada efetivamente na experiência como não existente, posto que isto seria uma negação do que os conteúdos em questão verdadeiramente se mostram ser. A unidade ‘contorno colorido’ seria algo como uma substância, cuja vertebração traria em si os conteúdos parciais e sempre conjuntos da cor e da extensão. Estas idéias foram de grande relevância para que Stumpf esboçasse uma mereologia – ou uma doutrina sobre partes e todos –, a qual seria posteriormente retomada nas Logische Untersuchungen de Husserl e que, de maneira menos literal, influenciaria também o gestaltismo berlinense. De acordo com o psicólogo, nós poderíamos avaliar os diferentes conteúdos dados em nossas representações de acordo com a sua dependência em relação aos demais conteúdos que aparecem junto a ele. Se o conteúdo for tal que ele possa ser retirado, sem qualquer alteração relevante, da totalidade na qual é inicialmente dado e representado separadamente, o que temos é uma ‘parte autônoma’ (selbständiger Teil) ou uma ‘parte física’ (physischer Teil). Se o conteúdo em questão for tal que ele não possa ser retirado daquela totalidade sem que traga consigo algum outro conteúdo que lhe parece ser essencialmente vinculado, o que temos é uma ‘parte não-autônoma’ (unselbständiger Teil) ou ‘parte psicológica’ (psychologischer Teil). Deste modo, temos em um caso a possibilidade de isolamento pleno dos conteúdos examinados e, no outro, uma relação de implicação entre alguns deles, na qual não é possível suprimir a complexidade sem destruíla. Ainda em sua Selbstdarstellung, Stumpf (1924) oferece uma definição daquele último conceito, ressaltando a importância do mesmo para a obra na qual ele aparece: Já no Raumbuch, forma o ponto central da argumentação o conceito de ‘parte psicológica’, i.e., os conteúdos parciais [Teil-Inhalte] ou não-autônomos, que, segundo a sua natureza, não se deixam representar separadamente, mas apenas apresentam modos de alteração independentes na sensação unitária. (p. 244)

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A rigor, a relevância destas contribuições não se limitaria à obra citada, estendendose também pelos outros estudos psicológico-experimentais do pensador. Um exemplo relevante disto são os dois volumes de sua Tonpsychologie (1883 e 1890), obra cujo objetivo primordial consistia no exame experimental da percepção acústica e dos efeitos psicológicos dos sons de acordo com certas funções da experiência do sujeito percipiente. Entre os tantos fenômenos estudados constavam os diferentes tipos de juízos voltados à análise e à comparação de impressões acústicas, como a discriminação de maior ou menor altura entre os sons apresentados em série, da conjunção ou disjunção de sons apresentados concomitantemente etc. Ainda foram estudados os fatores concretos que poderiam intervir no bom uso destas capacidades judicativas, como a fadiga ou o conhecimento prévio acerca de sons (BOUDEWIJNSE, 2011, p. 30 e 31). Os resultados mais significativos destas investigações, pelo menos no que se refere ao interesse já citado de se encontrar critérios internos de organização dos perceptos, foram obtidos com a apresentação de sons concomitantes, que pudessem formar acordes. De acordo com o maior ou menor grau de consonância possível aos intervalos estabelecidos entre as notas apresentadas, Stumpf percebeu a maior ou menor tendência à formação de um percepto único na experiência do sujeito experimental – i.e., uma percepção de conjunto que abarca o complexo sonoro efetivamente apresentado e que não permite a sua aparição imediata enquanto soma de representações distintas, mas sim como conjunto íntegro. Deste modo, intervalos dissonantes, como uma segunda maior, teriam menor tendência à formação deste percepto de conjunto, ao passo que intervalos consonantes, como uma terça maior ou uma quinta justa, teriam maior tendência. O exemplo ótimo para a obtenção deste resultado seria o intervalo de uma oitava. O que tornaria estes perceptos especiais em relação aos perceptos de mera sucessão seria um processo psíquico chamado por Stumpf de ‘fusão’ (Verschmelzung), por meio do qual aquele caráter unitário e compreensivo da percepção seria afirmado, mostrando os sons individuais existentes na base da percepção não como representações distintas e autônomas, meramente justapostas umas em relação às outras, mas sim como uma impressão densa e sincrética, da qual aquelas representações poderiam ser derivadas como partes (BOUDEWIJNSE, 2011, p. 33). Daí encontrarmos nestes fenômenos perceptuais a pertinência da distinção introduzida em seu exame da

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representação do espaço: as notas individuais seriam partes psicológicas ou não-autônomas da percepção do acorde. Todas estas teses acerca de um nexo originário em determinados conteúdos dados em nossos atos psíquicos conduziram Stumpf a atentar de modo mais enfático à maneira como o objeto de percepção é imediatamente apreendido. Não teria sido de outro modo que não a atenção à experiência nela mesma, bem como a sua avaliação crítica, que Stumpf poderia encontrar estes fenômenos peculiares, que nos indicam claras fissuras na tese psicológica popular segundo a qual as ligações entre conteúdos psíquicos seriam sempre exteriores e artificiais. Deste modo, Stumpf pôde já assinalar – ainda que não conduzir às últimas conseqüências – o raciocínio que posteriormente seria consagrado pela Escola de Berlim, a saber, o de que o exame efetivo da vida psíquica deve se dar, em certas circunstâncias, pela compreensão das totalidades imediatamente dadas na experiência, pelos objetos tal como eles se mostram a nós, respeitando a integridade e o fechamento que eles assumem nestas condições. Cumpre tomar o objeto em seu aparecimento natural e entender como, na totalidade que ele apresenta, os seus diversos conteúdos surgem como partes integradas em uma totalidade e necessariamente referidas a ela. Assumindo este ponto de partida, determinados fatos psíquicos inteiramente legítimos, como estes que acabamos de considerar, não são sacrificados perante a adesão a um modelo explicativo que exige a individualidade absoluta de todo conteúdo sensorial e a sua exterioridade em relação aos demais conteúdos de mesma natureza. Stumpf (1924) afirma esta tese por meio de um exemplo menos específico que os antes vistos: Já em cada sensação [Sinnesempfindung] os ‘atributos’ qualidade, intensidade, extensão etc. compõem não uma soma [Summe], mas um todo [ein Ganzes], cujas partes são apenas abstrações posteriores [nachträgliche Abstraktionen]. No domínio das funções psíquicas, as funções intelectuais e emocionais e absolutamente todos os estados de consciência [Bewutseinszustände] concomitantemente dados são interiormente ligados [innerlichst verknüpft] (unidade da consciência) e diretamente percebidos nesta unidade. (p. 235 e 236)

A tese central aqui aventada, portanto, pode ser resumida na afirmação de que: “Há, efetivamente, ocasiões que se deixam perceber não apenas como uma seqüência, mas também como um nexo interno.” (STUMPF, 1924, p. 236) As tentativas de explicar a

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definição de todos os perceptos por meio de interações mecânicas entre conteúdos mínimos é sumariamente descartada pelo psicólogo.

2.3.2. Aparecimento, relação e função psíquica: Além da atenção expressa ao caráter estrutural de certos conteúdos dados em nossa experiência, a psicologia de Stumpf também contribuiria de maneira decisiva para o estudo dos atos de consciência, os quais seriam preferencialmente chamados pelo estudioso de ‘funções psíquicas’ (psychische Funktionen). Para seguirmos na compreensão de alguns dos conceitos básicos de sua psicologia, teremos de recorrer ao texto Erscheinungen und psychische Funktionen (1907), no qual Stumpf deixa claro o débito de sua posição para com Brentano, bem como apresenta teses relevantes para entendermos desdobramentos de sua própria obra e a influência desta no gestaltismo e na fenomenologia de Edmund Husserl. No texto em questão, o autor assume como o seu propósito central a distinção entre ambos os conceitos introduzidos já pelo título – ‘aparecimento’ e ‘função psíquica’ –, bem como a especificação das relações possíveis entre os dois. Tendo isto em vista, ele se dedica, inicialmente, a oferecer três definições que orientarão toda a sua argumentação posterior. Passemos a cada uma delas. A primeira definição concerne justamente à idéia de ‘aparecimento’, a qual, na acepção empregada por Stumpf, difere consideravelmente das demais acepções com as quais lidamos e ainda lidaremos neste estudo. Para o psicólogo, ao se falar de ‘aparecimento’, deve-se fazer completa abstração da realidade à qual o mesmo possa estar vinculado, cujas características ele poderia pretender reproduzir em alguma medida. Em vez disto, Stumpf afirma que ele deve ser entendido basicamente como o dar-se de dois tipos de conteúdos específicos de nossa experiência: (1) os ‘conteúdos das sensações’ (Inhalte der Sinnesempfidungen), com todos os aspectos quantitativos e qualitativos que eles podem implicar – i.e., os diferentes tipos de dado sensorial que podemos experimentar e as diferentes subdivisões que eles comportam; e (2) as ‘imagens mnemônicas’ (Gedächtnisbilder), que representam esses mesmos conteúdos sensoriais, imprimindo-os no quadro geral de certa experiência como dados inatuais, mas ainda pertencentes ao todo experimentado. Entre estas possibilidades, nós temos uma evidente distinção de hierarquia, na qual os conteúdos de sensação assumem a condição de ‘aparecimentos de primeira

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ordem’ e os conteúdos mnemônicos a de ‘aparecimentos de segunda ordem’, estritamente dependentes da ocorrência dos primeiros. A segunda definição apresentada pelo psicólogo diz respeito às ‘relações’ (Verhältnisse) perceptíveis entre dois ou mais aparecimentos. Estas relações consistiriam nas maneiras pelas quais os aparecimentos em questão se ordenam conjuntamente. Elas seriam meramente reconhecidas por nós em meio ao conteúdo aparecente ele mesmo – i.e., seriam dadas neste conteúdo ou junto a ele, e nunca impostas por nós ou por qualquer atividade consciente. De acordo com Stumpf (1907): “Elas pertencem ao material das funções intelectuais, mas não são elas mesmas funções, nem produtos [Erzeugnissen] destas.” (p. 4) A terceira definição, por fim, concerne às ‘funções psíquicas’, também chamadas pelo psicólogo de ‘atos’ (Akte), ‘condições’ (Zustände) ou ‘vivências’ (Erlebnisse). Por elas, devemos entender os desempenhos que apreendem os aparecimentos e suas diferentes relações. Uma ampla gama de fenômenos complexos, estruturados a partir de critérios distintos de inter-relação dos aparecimentos mais elementares, pode ser dada em nossa experiência: a formação de conceitos (die Begriffsbildung); a apreensão (das Auffassen) de um estado de coisas enquanto tal e o juízo (das Urteilen) que a acompanha; os movimentos afetivos (Gemüthsbewegungen); os desejos (Begehren) e vontades (Wollen). Cada uma destas possibilidades de experiência traz em si um critério próprio a partir do qual os dados aparecentes são arranjados, dando origem aos complexos que definem o conteúdo da função. Como se pode depreender dos exemplos oferecidos por Stumpf, as funções psíquicas são divididas entre ‘funções intelectuais’ (intelektuelle Funktionen) e ‘funções emocionais’ (emotionelle Funktionen). É bastante claro, por meio destes conceitos, que Stumpf se mantém ora próximo, ora distante de Brentano. Se, por um lado, podemos encontrar em sua definição de aparecimento a preservação da tese brentaniana acerca da impossibilidade de sustentarmos a existência real dos conteúdos dados em nossa experiência, assegurando-lhes apenas uma inexistência intencional, por outro, temos que o conceito de aparecimento em Stumpf se restringe apenas ao aspecto sensível daquilo que Brentano chamava ‘fenômeno físico’. Como nos indica Spiegelberg (1994, p. 54), Stumpf considerava que o conceito de ‘fenômeno físico’, tal como introduzido por Brentano, guardava certa ambigüidade, ora se

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referindo às qualidades sensíveis presentes na experiência, ora às efetividades estudadas pela ciência natural. Como a psicologia já se dedicava, de longa data, a tematizar os primeiros dentre estes fenômenos físicos e como o próprio Brentano já o fizera em algumas preleções sobre a ‘psicologia das sensações’ (Sinnespsychologie), Stumpf acreditou ser melhor abandonar o quadro conceitual brentaniano, que reservava aos fatos sensíveis apenas parte de um conceito unitário, e propor um novo quadro. Neste, os fatos em questão, antes presentes nos fenômenos físicos, seriam resumidos em um novo conceito – como acabamos de ver, o de ‘aparecimento’. Aquilo que Brentano chamava fenômeno psíquico resta como as funções psíquicas acima consideradas. Ao buscar considerar as formas pelas quais podemos ter conhecimento destas funções, Stumpf apóia-se na já tradicional tese moderna segundo a qual só podemos ter acesso aos dados imediatos de nossa consciência. Em vez de restringir estes dados aos aparecimentos, no entanto, ele sustenta que tanto as funções intelectuais quanto as emocionais são também dadas na mesma condição, aparecendo-nos imediatamente, de maneira patente, evidente, e podendo ser descritas de modo privilegiado justamente por se darem assim. Uma descrição plena e exaustiva da experiência só pode ocorrer quando o psicólogo tiver condições de avaliar todas as possibilidades dadas nestes três registros, abarcando não apenas os conteúdos materiais dados na experiência, mas também as relações que os marcam e as vivências atuais que se voltam a eles. Stumpf (1907) afirma: Chamamos imediatamente dado [unmittelbar gegeben] o que se mostra clara e imediatamente como fato [Tatsache]. [...] Parece-me que a descrição do dado imediato [unmittelbar Gegebene] com plenitude exaustiva é apenas possível se se tem em conta três coisas: aparecimentos, funções e, por fim, relações entre os elementos de cada um destes gêneros [Gattungen] e entre os elementos de um e outro gênero. (p. 6 e 7)

A argumentação geral de Stumpf mais uma vez deixa transparecer a atenção privilegiada à experiência e o esforço por lhe conferir autonomia, os quais já sabemos serem marca geral do pensamento da Escola de Brentano. Com efeito, Stumpf não apenas afirma a centralidade da experiência, mas busca mostrar que ela guarda em si uma realidade própria, a qual não pode ser confundida com a realidade mundana, postulada pelo realismo ingênuo ou mesmo pela ciência natural, e nem mesmo entendida como menos relevante ou, de algum modo, dependente dela. Não se trata de afastar ou subordinar a realidade inerente aos fatos psíquicos a nenhum outro âmbito de análises que possa, por 153

adesão a preconceitos externos ao exame psicológico, ser tomado por mais legítimo. A experiência em sua totalidade possui uma realidade intrínseca, a qual se deixa ver em cada um de seus desdobramentos possíveis, e que se mostra, de maneira originária, como algo íntegro, estruturado e fechado em si. Neste sentido, o psicólogo afirma: A totalidade [die Gesamtheit] do dado imediato é real. Deste modo, ele é aquilo a partir de que nós, em geral, obtemos o conceito de real, para, então, transpô-lo a outras coisas. Os aparecimentos são reais como conteúdos com os quais as funções se relacionam; as funções são reais como funções que atuam sobre aparecimentos; as relações como relações entre aparecimentos ou entre funções; etc. Acerca dos ‘meros aparecimentos’, não podemos falar como se, sem relação com uma realidade exterior [äuere Wirklichkeit], eles fossem um puro nada. Os aparecimentos não pertencem apenas à realidade, à qual o pensamento ingênuo naturalmente os atribui – a uma realidade independente da consciência. Não apenas os aparecimentos e funções, cada um ao seu modo e em sua posição em relação ao outro, são reais, mas eles também compreendem em si uma unidade real. Deste modo, eles são dados um junto ao outro, em uma estreita ligação [Verknüpfung] [...]. (STUMPF, 1907, p. 10)

Esta posição cerrada em favor da realidade própria à experiência, bem como de sua coerência interna, como veremos, será bastante presente em ambas as escolas que nos ocuparão nos próximos capítulos. Tanto o gestaltismo como a fenomenologia, cada qual a seu modo, retêm esta lição e a situam em um lugar bastante relevante de suas respectivas propostas.

2.3.3. O vínculo entre aparecimento e função, percepção e formações psíquicas: Na seqüência destas considerações, Stumpf busca afirmar a completa especificidade das funções psíquicas em relação aos aparecimentos, afirmando que estes dois momentos da experiência não apenas não se deixam reduzir um ao outro, mas também que, em geral, não compartilham propriedades, os termos pelos quais podemos descrever uma função sendo bastante distintos daqueles pelos quais podemos descrever um aparecimento. O psicólogo busca considerar o vínculo existente entre ambos a partir de duas idéias fundamentais: o seu dar-se, em termos concretos, sempre de maneira conjunta e a possibilidade de abstrairmos desta conjunção concreta e tomarmos tanto aparecimento como função em isolado, sem cometer paralogismos, dada a ausência de implicação lógica nesta relação. A cada vez que nos voltamos a uma experiência, portanto, encontramos um determinado complexo de conteúdos, os quais são aparecimentos marcados por relações

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imanentes, e uma função específica que apreende este complexo de uma determinada maneira, tomando-o por objeto de um perceber, um representar, um julgar etc. Deste modo, constatamos a cada vez a íntima conexão entre o aspecto subjetivo da experiência, que define as vivências de uma consciência específica perante um aparecer, e o aspecto objetivo, que consiste neste aparecer ele mesmo – e, para isto, não podemos encontrar exceções concretas. No entanto, o exame cuidadoso de ambos os lados presentes neste processo, mostra-nos que é inteiramente possível pensar função e aparecimento em separado e haurir dos mesmos conceitos que não revelam uma dependência lógica entre si. Decerto, uma função sem conteúdo algum não é concebível, mas disto não decorre que, ao considerarmos a função, tenhamos de especificar em qualquer medida o aparecimento ao qual ela se direciona. O exame da função se mostra inteiramente possível sem a especificação do conteúdo que concretamente ela iluminaria. Por outro lado, nenhum aparecimento poderia implicar uma propriedade tal como ‘ser objeto de uma função x’. A um som, e.g., pertencem logicamente apenas atributos como timbre, altura etc. e não um atributo como ‘ser percebido’. Deste modo, o esforço por pensar função e aparecimento em separado, é abstração, posto que o dar-se de ambos é sempre conjunto, mas não resulta em paralogismo algum. Recuperando os resultados de seu estudo acerca da representação do espaço, Stumpf afirma que o caso aqui é idêntico àquele da relação entre cor e extensão: concretamente, estas ocorrem juntas em toda experiência que admita dados visuais, mas nada impede que sejam consideradas em separado e tenham as suas propriedades individuais examinadas76. A partir desta reflexão, Stumpf passa a um pequeno exame classificatório das funções psíquicas, no qual oferece teses bastante relevantes acerca da forma como compreende a percepção, as quais, como veremos nos capítulos seguintes, evidenciam a riqueza das relações entre a obra do psicólogo e aquelas da Escola de Berlim e de Husserl. O autor afirma: “Como a função mais primitiva, eu considero o perceber [das Wahrnehmen] ou o notar [das Bemerken] [...]” (STUMPF, 1907, p. 16). Por meio do emprego destas duas palavras, ele nos indica que o seu interesse não incide apenas na percepção tomada de maneira geral, mas sim a partir de um aspecto específico de seu 76

Buscando relacionar a sua posição com o pensamento moderno, Stumpf afirma que ela é similar à posição de Spinoza: se para este extensão e pensamento são atributos de uma substância única, mas, não obstante, devem ser considerados por si, para Stumpf, a função psíquica e o aparecimento estão na mesma condição.

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processo que é o destacar de determinados conteúdos aparecentes em detrimento de outros na mesma condição. Isto quer dizer que, segundo Stumpf, é próprio ao ato perceptivo operar uma espécie de distinção qualitativa de base em relação aos conteúdos que ele mesmo toma, de maneira a colocar alguns deles como mais diretamente dados, mais claros e distintos, e outros de maneira secundária, como mais distantes e difusos. O perceber, deste modo, guardaria como função essencial a afirmação de uma diferença nas próprias qualidades aparecentes que lhe são correlatas. Nas palavras de Stumpf (1907): Trata-se, em cada percepção sensível [sinnlichen Wahrnehumng], de um notar [ein Bemerken] de partes em um todo e, além disso, também das relações entre estas partes. Na visão, temos em primeiro lugar apenas o notar de partes. Uma vez que as partes no interior do todo ao qual pertencem são notadas, toda percepção envolve necessariamente a distinção das partes percebidas em relação às partes não percebidas do aparecimento, ou de um primeiro plano [Vordergrundes] em relação a um plano de fundo [Hintergrund]. Ao que permanece no plano de fundo, chamamos também de ‘meramente sentido’ [‘blo empfunden’] ou percebido, por oposição ao apercebido [Apperzipierten]. Aqui, também através do acréscimo do ‘mero’, a significação da expressão ‘sentir’ altera-se de maneira essencial. (p. 16 e 17)

O perceber, portanto, seria um processo de distinção dos aparecimentos em um primeiro plano, o qual seria apercebido, e um plano de fundo, o qual seria percebido ou meramente sentido. Como veremos adiante, o gestaltismo conferirá grande importância a este aspecto diferencial da percepção, ainda que se oriente mais diretamente pelas contribuições de outro pesquisador, Edgar Rubin, e não tanto de Stumpf. A proximidade entre a escola e este intelectual, no entanto, torna pelo menos provável a idéia de que ele possa ter desempenhado algum papel para que os gestaltistas tivessem tal receptividade. No que se refere a Husserl, no entanto, a proximidade será bem mais radical, sendo possível encontrar formulações deste filósofo acerca da percepção que praticamente se identificam com estas que acabamos de ver. É importante ressaltar aqui – até mesmo para que depois pensemos mais adequadamente estas relações – o fato de Stumpf considerar que essa operação de distinção de conteúdos é exclusivamente referente ao ato e não ao seu material. Este permaneceria sempre o mesmo, a despeito de ser colocado em lugar de destaque ou não, tratando-se mais de uma modificação no olhar do que no olhado. Esta modificação pode, evidentemente, ser direcionada pelo próprio sujeito que a vive, uma vez que conteúdos não dados diretamente em um momento podem vir a sê-lo desde que se decida

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atentar a eles. Um exemplo disto pode ser encontrado na percepção de um acorde: uma nota qualquer que lhe pertença e que é inicialmente ouvida no conjunto perceptual possibilitado pela fusão de sons, pode ser diretamente destacada deste conjunto e tomada como objeto de uma apercepção – i.e., trazida a um primeiro plano. A rigor, qualquer atenção dirigida a uma qualidade inicialmente subsumida a um todo e que a destaca deste todo pode exemplificar a mudança de olhar descrita por Stumpf. Esta observação, longe de ser trivial ou de menor relevância, é a maneira pela qual o psicólogo introduz a sua posição acerca do conhecido interesse analítico da psicologia experimental. Como já sabemos, este consiste em colocar precisamente estas qualidades que podem ser encontradas nos objetos experimentados como elementos unitários dos quais os próprios objetos seriam geneticamente dependentes. Ao introduzir esta discussão pelo simples exame das alterações do ato perceptivo perante o aparecimento, Stumpf, da mesma forma que Ehrenfels, acaba se mostrando ainda próximo ao paradigma clássico, preservando uma de suas teses mais fundamentais, não obstante todos os pontos de afastamento que já pudemos considerar até aqui. O pesquisador entende que, a despeito de termos sempre as totalidades imediatamente dadas como ponto de partida, o interesse analítico pode encontrar nelas pistas válidas para compreender os seus processos de estruturação. Deste modo, a nossa capacidade de dar relevo a um determinado conteúdo que se encontra diretamente vinculado a outros conteúdos, presente de maneira ordenada em uma mesma estrutura que eles, poderia servir para identificarmos os átomos psíquicos que o programa experimental de estudos entende ser essencial para explicarmos a experiência. Stumpf (1907) afirma: Em geral, diz-se [...] que seria uma falácia [Fehlschlu] ou uma coisificação [‘Verdinglichung’] inadmissível que pressupuséssemos como já anteriormente dado o que distinguimos posteriormente. Mas se isto fosse um mero pressuposto, porque deveria ser inadmissível? Já se creditou recentemente também ao químico a falácia da coisificação, que ele transfere para o ácido carbônico as duas substâncias que obteve posteriormente a partir dele. O psicólogo é favorecido nisto, posto que ele também pode recorrer ao testemunho da comparação direta. Mas o químico não deve ser acusado de conceder a um modo errôneo de pensar. Pode-se representar a hipótese atomista, pode-se também tentar sustentar o seu oposto, a teoria da continuidade e da modificação, com a qual temporariamente se encontrou dificuldades nos processos químicos: em todo caso, tanto o psicólogo que distingue o percebido [Perzipiertes] do apercebido [Apperzipiertes], como o químico atomista, têm razão em ver sua posição não como produto imaturo de hábitos errôneos de pensamento, mas como uma teoria estabelecida com

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plena consciência das regras da pesquisa científica, que deve ser comprovada a partir destas mesmas regras. (p. 20)

Deste modo, Stumpf se põe em favor da hipótese clássica, mas a assume de maneira metodológica, afirmando que, enquanto hipótese, ela é útil para o desenvolvimento de pesquisas e não se mostra menos consistente do que aquelas assumidas pela física ao considerar os seus fenômenos próprios. A presença de partes em um fato psíquico antes mesmo de ele ser apercebido não constitui problema algum. Como teremos ocasião de ver em nosso próximo capítulo, a atenção do gestaltismo a essa tese de que a experiência já nos põe em contato com totalidades organizadas é consideravelmente intensa, havendo, no entanto, uma plena emancipação da tese, e não uma tentativa de reconduzi-la, por meio de argumentações como esta que acabamos de ver, aos pressupostos da psicologia atomista. A posição de Stumpf em relação à experiência, portanto, incorpora diversas teses distintas do paradigma clássico, que indicam maior atenção ao caráter holístico dos processos psíquicos, mas ainda as situa claramente ao lado dos pressupostos fundamentais deste paradigma, colaborando para a sua manutenção parcial. Esta mesma perspectiva pode ser encontrada na importante reflexão de Stumpf acerca de dois modos fundamentais de organização dos objetos de experiência, os quais são chamados pelo pensador de ‘formações psíquicas’ (psychische Gebilde). No que se refere a este problema, Stumpf assume não apenas a possibilidade de experimentarmos dados objetivos que destoam amplamente das teses tradicionais – no que ele incorpora diretamente outros desdobramentos da Escola de Brentano que já lançavam este desafio –, mas também outros dados que se encontram plenamente de acordo com elas. A primeira dentre aquelas formações psíquicas seria precisamente o que Ehrenfels chamou de Gestaltqualität, pela qual: [...] se deve entender aquilo que distingue uma melodia ou uma figura espacial ou uma outra multiplicidade de aparecimentos apreendida em um todo conectado de uma multiplicidade de aparecimentos iguais e igualmente ordenados, mas que, na consciência, não são sintetizados. (STUMPF, 1907, p. 28)

Com efeito, como nos indica Bonacchi (2011, p. 14 e 15), Stumpf tomou de maneira consideravelmente positiva o artigo de Ehrenfels, conduzindo diversos estudos a partir de 1891 na intenção de conferir sustento experimental direto às propostas deste psicólogo.

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Para Stumpf, portanto, a tese geral de que a experiência apresenta estruturas formais que se destacam de seu fundamento material, comportando não apenas propriedades que não podem se reduzir a estes, mas também a possibilidade de serem transpostas a novos campos sensoriais, é inteiramente admissível. E ela é admissível justo nos termos indicados por Ehrenfels, i.e., por meio de uma distinção clara entre dois níveis gerais da experiência, um dos quais seria definido basicamente por elementos componentes, por unidades sensoriais discretas, sem as quais nenhum padrão formal pode se definir. Para Stumpf, a experiência de Gestalten também indica a necessidade de elementos basilares sobre os quais elas se afirmam. Apesar de incorporar diretamente o conceito de Ehrenfels às suas propostas, Stumpf prefere reservar o já consagrado termo filosófico Form para designá-lo – o qual, em português, traduzimos também por ‘forma’. À diferença destes objetos de que se dão por meio de uma clara distinção entre o fundamento material e uma estrutura prevalente que os ordena, existem outros objetos que não apresentam nenhum critério interno ou nenhuma espécie de coesão especial para se darem como se dão, sendo, em vez disto, fruto de uma soma arbitrária de conteúdos individuais. Tais objetos se organizam por meio de uma atividade meramente aditiva da consciência, que une os conteúdos individuais como se pudessem se manter lado a lado ainda como conteúdos individuais, não obstante esta soma geral estar definindo os contornos de um objeto. Por oposição às ‘formas’, Stumpf os chama de ‘conjuntos’ (Inbegriffe). Ele afirma: Mas existem também sínteses [Zusammenfassungen] nas quais não prevalece nenhum co-pertencimento intrínseco [sachliche Zusammen-gehörigkeit], nenhuma relação comum que ligue as partes. Nós podemos ligar as mais heterogêneas [dentre estas] através de um ‘e’ [‘und’] em nosso pensamento. Assim, levando em conta estes casos, eu gostaria de indicar com a expressão geral ‘conjunto’ tudo aquilo que se dá como resultado de uma síntese na consciência. O conjunto não é a própria função sintética [zusammenfassende Funtkion], nem o material sintetizado. Ele é o correlato necessário da função sintética. As formas [Formen] (qualidades da forma) são, assim, casos especiais dos conjuntos, nos quais a relação intrínseca de ligação dos membros ocorre. (STUMPF, 1907, p. 29; acréscimo nosso)

Esta caracterização da perspectiva clássica de objeto, a qual recorre à idéia de mera soma de dados unitários, será diretamente incorporada pelo pensamento gestaltista, mas no interesse de argumentar contra a tese que a sustenta, e não de admiti-la como um desdobramento possível da experiência. Como veremos dentro em pouco, mesmo o jargão 159

de Stumpf é recuperado por Wertheimer, o qual fala na oposição entre perceptos que trariam entre suas partes um ‘co-pertencimento intrínseco’ e outros que não o fariam. Ainda que se mova por pretensões um tanto distintas daquelas de Stumpf, o pensamento gestaltista se apóia fortemente em suas posições acerca destes problemas.

2.3.4. A fenomenologia experimental: Um último ponto relevante da obra de Stumpf a considerarmos neste capítulo é o fato de ele ter proposto uma fenomenologia própria, a qual ocupa um lugar consideravelmente relevante para pensarmos o nosso problema. Com efeito, Stumpf se destaca por ter sido um dos alunos de Brentano a não apenas conferir um novo sentido a este termo, tardiamente empregado pelo filósofo para designar a sua psicologia descritiva, mas também a indicar a partir dele uma nova disciplina científica, de grande relevância para o conjunto de sua obra. Ainda que Husserl seja o discípulo que mais se destacou na realização deste mesmo movimento, ocupando um espaço privilegiado na história da filosofia e se tornando a figura central de uma ampla corrente intelectual caracterizada por aquele nome, Stumpf teve a sua própria perspectiva, partindo, é certo, de uma mesma matriz, mas sendo conduzido por interesses distintos, diretamente atrelados ao estudo laboratorial de fatos psíquicos. Esta perspectiva, de acordo com a avaliação de Spiegelberg (1994), coloca-o como um agente de grande relevância para a introdução de certa idéia de fenomenologia no pensamento científico, sobretudo na psicologia, não havendo “[...] nenhum outro filósofo ou psicólogo de estatura ou posição comparáveis que tenha sido tão importante para a difusão da fenomenologia em sentido amplo e para a colocação da abordagem fenomenológica a serviço da prática científica.” (p. 51). Stumpf teria não apenas introduzido tal abordagem, no sentido específico que ele a conferia, em campos não-filosóficos de investigação, mas teria sido responsável por sua transmissão direta a alguns de seus discípulos, como os fundadores da Escola de Berlim, Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka77. Com efeito, ao afirmar esta condição peculiar de Stumpf 77

Aparentemente, podemos encontrar já aqui uma resposta prévia ao problema central de nosso estudo, antes mesmo de nos voltarmos ao exame direto do gestaltismo berlinense e da fenomenologia husserliana: a fenomenologia efetivamente presente na estruturação da escola psicológica não seria exatamente a de Edmund Husserl, mas sim a de Carl Stumpf. Não podemos, no entanto, apressar as coisas deste modo e dar já adesão a uma posição que sabemos ser destoante de todas aquelas que enumeramos em nossa Introdução, as quais, em sua maioria, sequer citavam Stumpf e centravam a sua atenção na figura de Husserl. As únicas

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no desenvolvimento do pensamento fenomenológico, Spiegelberg sustenta que ele se encontra na nascente de um movimento próprio: Na história da fenomenologia, Stumpf deve ser colocado na divisa em que o Movimento Fenomenológico mais amplo se ramificou a partir da corrente filosófica principal, certamente em um momento no qual a própria concepção de fenomenologia de Husserl ainda não havia se cristalizado plenamente. Isto não impediu contatos posteriores e uma influência recíproca entre estas ramificações, ainda que, no todo, a interação tenha parecido ser lamentavelmente fraca. (SPIEGELBERG, 1994, p. 52)

O historiador nota que, no quesito meramente terminológico, Husserl tem prioridade

em relação a Stumpf acerca da fundação de uma fenomenologia, uma vez que este só empregou o termo em seu ensaio Zur Einteilung der Wissenschaften (1905), o qual foi publicado poucos anos após o segundo volume das Logische Untersuchungen (1901), no qual Husserl emprega o termo de maneira mais direta e o coloca no centro de sua argumentação. No que se refere ao conjunto de propostas encerrado pelo termo, no entanto, Husserl não apresenta prioridade alguma, posto que ‘fenomenologia’ passa a designar nada menos do que o campo de questões ao qual Stumpf dedicou parte substancial de sua obra até aquele momento, o estudo das aparições na experiência sensível. Com efeito, Stumpf entenderia tardiamente que todas as suas investigações acerca da representação do espaço e da percepção acústica não consistiriam exatamente em psicologia, mas em “[...] meros preparativos fenomenológicos para a psicologia” (SPIEGELBERG, 1994, p. 54) Em uma época na qual os primeiros passos relevantes do método de Husserl eram dados, a mesma palavra que os designava serviu à designação de uma obra já consolidada e que se movia por preocupações diferentes, bem como empregava recursos e chegava a teorias diferentes. Ademais, como assevera Spiegelberg, seria apenas após 1910 que o termo ‘fenomenologia’ passaria a ser diretamente identificado ao pensamento de Husserl. Antes disto, ele constava como simples parte de um vocabulário filosófico-científico em voga e que poderia ser cooptado a diferentes formas de pensamento sem que parecesse mais próprio a uma do que a outra.

exceções foram Herrnstein e Boring (1971) e Boring (1953), que se limitam a incluir o nome do intelectual em suas descrições sumárias do cenário em que se formara Wertheimer. Spiegelberg, pelo menos no que se refere às fontes que pudemos consultar, está inteiramente sozinho nesta afirmação. Por isso, convém recuperarmos a sua posição, assinalarmos o seu valor e a preservarmos como hipótese a ser retomada quando tivermos já nos dedicado ao exame direto das escolas em questão – i.e., apenas em nossa conclusão.

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Vejamos, então, em que consiste este novo campo de estudos nas definições oferecidas pelo próprio autor. Em seu discurso ao assumir o reitorado da FriedrichWilhelms-Universität de Berlim, em 1907, intitulado Die Wiedergeburt der Philosophie, Stumpf define a fenomenologia como: [...] uma análise que avança até os últimos elementos [Elementen] dos aparecimentos sensíveis [sinnlichen Erscheinungen] eles mesmos. Os aparecimentos de cores, sons, ruídos, configurações [Gestaltungen] no espaço e no tempo não são o próprio mundo físico, como ele se apresenta no espírito do cientista natural, nem são, também, o mundo psíquico. Mas eles são o material a partir do qual o físico cria, assim como o ponto de partida e a nutrição de toda a vida anímica. Por isso, esta investigação é permitida tanto à ciência natural quanto à ciência do espírito, e, sobretudo, naturalmente à filosofia, que deve considerar igualmente das leis da natureza e do espírito. (STUMPF, 1907/1910, p. 186)

Temos, deste modo, a afirmação de que esta disciplina se ocupa precisamente do aspecto material da experiência, não lidando diretamente com as vivências psíquicas, mas sim com os diferentes conteúdos aos quais estas se dirigem. Stumpf afirma isto não apenas ressaltando a diferença entre estes conteúdos, tal como eles nos aparecem, e os processos psíquicos que podemos experimentar em relação a eles – os quais seriam, como já sabemos, funções –, mas atentando também à já considerada distinção formal entre os conteúdos e as efetividades físicas que se encontram em sua base. Não sendo nem a vida psíquica propriamente dita, a qual consiste em desempenhos da consciência que incidem sobre aparecimentos, nem o mundo físico, ou a realidade afastada, reconstituída pelo cientista natural em suas investigações, os dados materiais da experiência restariam como uma ‘terra de ninguém’ entre psicologia e física (SPIEGELBERG, 1994, p. 55). Daí Stumpf reconhecer a sua condição peculiar e tomá-la por um domínio autônomo de pesquisas, o qual estaria diretamente vinculado a estas diferentes empresas de conhecimento, uma vez que constituiria o ponto a partir do qual o físico inicia o seu trabalho e aquilo que preenche os atos da consciência, conferindo-lhes um núcleo material sem os quais eles seriam concretamente irrealizáveis. Há, considerando este papel dos aparecimentos, possibilidades de encontrarmos contribuições relevantes de seu estudo para diferentes domínios científicos. É deste modo que uma fenomenologia entendida como análise escrupulosa de fatos sensíveis ocupa um lugar de base nos desenvolvimento de ambos os grandes terrenos científicos, o natural e o do espírito, e estende esta influência mesmo à filosofia, que não

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encontraria outro ponto de partida. Trata-se, aqui, de enfatizar o caráter de ‘pré-ciência’ (Vorwissenschaft) da fenomenologia, o qual se encontra em plena consonância com os interesses brentanianos de fundamentação científica. Os argumentos diferem, mas a preservação das pretensões é evidente. Em sua Selbstdarstellung, Stumpf (1924) evidencia estes mesmos pontos, indicando, em acréscimo, a utilidade desta nova disciplina para estudos fisiológicos e o fato de ela ser mais amplamente empregada por psicólogos: A investigação dos aparecimentos sensíveis [sinnlichen Erscheinungen] como tais, que hoje toma tanto espaço, é, em fundamento, não psicologia, mas fenomenologia, uma pré-ciência igualmente exercida por físicos, fisiólogos e psicólogos. Os psicólogos, sobretudo, tomaram-na para si, pois eles encontravam aqui um domínio explorável de maneira exata e experimental, no qual também poderiam perseguir as legalidades [Gesetzlichkeiten] das funções psíquicas deflagradas a partir dele. (p. 242 e 243)

O campo da fenomenologia, deste modo, seria os aparecimentos de primeira e de segunda ordem, e ela se encarregaria de analisar e descrever não apenas as propriedades que eles assumem ao aparecerem, mas também suas leis estruturais, de modo a pavimentar o caminho para o estudo destes mesmos dados em seus vínculos causais – i.e., em suas relações de dependência com fatores outros que não aparecimentos, a qual seria tarefa das ciências propriamente ditas (SPIEGELBERG, 1994, p. 56). Um aspecto central de sua forma de operar, no entanto, é que esta fenomenologia não se restringe à descrição ou a procedimentos meramente qualitativos de observação, encontrando no experimento e no controle laboratorial dos aparecimentos um recurso essencial para a sua realização. A idéia de fenomenologia em Stumpf, portanto, é experimental, buscando compreender as condições objetivas em que os aparecimentos ocorrem e desenvolver métodos laboratoriais a cada vez mais aprimorados pelos quais fazer estas observações. Como indica Spiegelberg (1994.): Enquanto muito deste trabalho experimental incluía o estudo de estímulos físicos e mesmo de novos métodos para controlá-los [...] o propósito [...] era sempre o de possibilitar a seleção e a apresentação precisas dos aparecimentos. Tal controle facilitava não apenas a observação e a descrição, mas também a variação dos aparecimentos. Ademais, ele permitia uma comunicação confiável entre pesquisadores fenomenólogos. (p. 58)

Não precisamos indicar aqui os tipos de contribuição que esta fenomenologia poderia oferecer à psicologia, uma vez que, pela manobra já comentada há pouco, o próprio

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Stumpf definiria uma parte substancial de seus estudos psicológicos como estudos fenomenológicos. Os resultados de suas principais obras, como a Tonpsychologie e Über den psychologischen Ursprung der Raumvorstellung, seriam basicamente fenomenologia. Decerto as considerações de Stumpf acerca do trabalho pré-científico não se limitam a propor e exercer uma fenomenologia nestes moldes. O psicólogo reconhece duas outras pré-ciências que se deveriam ser também praticadas para orientar o estudo positivo: a ‘eidologia’ (Eidologie), que se ocuparia das formações psíquicas, com as qualidades da forma e os conjuntos; e a ‘teoria das relações’ (Verhältnislehre), que se ocuparia das relações imanentes aos aparecimentos. Como é evidente a partir destas definições sumárias, a fenomenologia é preponderante em relação mesmo a estas pré-ciências, uma vez que não há relações que não se mostrem em meio a aparecimentos e não há formações que não se definam a partir de aparecimentos. A fenomenologia, deste modo, não é apenas anterior às ciências positivas e à filosofia, mas também a todos os outros campos de investigação que a acompanham nesta anterioridade. Ela é, com efeito, o primeiro passo de todo exercício consistente de pensamento.

2.4. Conclusão: Em nosso percurso pela Escola de Brentano, pudemos ter suficiente clareza da forma como ela se opõe à psicologia experimental, identifica nesta falhas teóricas e metodológicas relevantes e busca conceber uma via para a sua superação – seja parcial, no caso dos discípulos de Brentano, seja integral, no caso do próprio pensador. A psicologia que tivemos condição de caracterizar em nosso capítulo inicial, centrada no exame psicofísico de fatos da sensibilidade, fortemente influenciada por teorias fisiológicas e tendente a um empirismo radical, de contornos mecanicistas e atomistas, é entendida por este como uma psicologia impura, destituída de autonomia, dedicada a teorias meramente prováveis e que subordinam o psíquico ao não-psíquico, além de conterem pressupostos metafísicos desnecessários, que só trazem problemas ao seu corpo doutrinal, e nunca soluções. Em oposição a isto, vimos a proposta de uma psicologia de motivo descritivo, compreensivo, que atenta antes à atividade da consciência e que valoriza a sua unidade, em detrimento da possível diversidade de conteúdos que a poderiam compor. Encontramos uma atenção direta ao caráter íntegro, total e harmônico dos processos conscientes, que

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passam a ser mais relevantes para a sua compreensão do que os processos que poderiam ser atribuídos a conteúdos menos abrangentes e parciais. Em Brentano isto se torna explícito a partir de sua caracterização dos atos intencionais e da necessária inter-relação que eles possuem – o desempenho consciente é preponderante em relação ao conteúdo que traz em si e uma hierarquia própria aos atos pode ser encontrada, calçada na atividade representativa. Trata-se, aqui, de recuar para um âmbito formal de análises e pôr a descoberto as suas relações estruturais. Também em favor disto encontra-se o fato de Brentano ter já se pronunciado, ainda que de maneira excessivamente breve, acerca dos fenômenos gestálticos da percepção, encontrando percepções acústicas e cromáticas específicas que nos mostram claramente a dependência de um dado sensorial em relação ao conjunto em que se insere. Por fim, encontramos uma atenção tardia do pensador à articulação peculiar entre procedimentos descritivos e genéticos, a qual serviria para entendermos que as diferentes tarefas da psicologia se compassam e podem gerar métodos de estudo consideravelmente abrangentes. Em nosso exame das contribuições dos dois discípulos de Brentano, encontramos marcas claras de todas essas idéias, mas com particular relevância, das duas últimas. Se Ehrenfels levaria adiante o problema da percepção de Gestalten, tornando-o objeto de investigações mais detidas e desenvolvendo concepções mais consistentes e detalhadas acerca dele, as quais marcariam o início de uma teoria gestaltista propriamente dita, Stumpf assume posições mais relevantes no que se refere à articulação dos métodos descritivos e genéticos, oferecendo uma grande quantidade de estudos acerca de nossa sensibilidade que se sustentam dos dois modos e que endossam a perspectiva geral da escola acerca da coerência intrínseca à experiência. Tanto a idéia de Gestaltqualität, quanto a tese segundo a qual experimentamos diretamente vínculos estruturais nos objetos dados, como aquele revelado pela relação essencial entre cor e extensão ou aquele presente nas experiências de fusão sonora, assinalam um caminho pelo qual uma psicologia meramente contigencialista pode ser afastada, mostrando nexos necessários no domínio psíquico. Por fim, vimos como foi gestada aqui, em meio à lida direta com todos esses problemas, a idéia de uma ‘fenomenologia experimental’, a qual buscaria compreender tanto por meio do exame qualitativo, quanto por meio da observação controlada, laboratorial, os aparecimentos sensíveis em sua diversidade, nas duas ordens que o caracterizam e com as leis estruturais

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que os definem. Tal tarefa, diretamente vinculada às pretensões gerais da escola de se oferecer fundamentos epistêmicos seguros para os demais campos científicos, mostra-se como uma pré-ciência que definiria a etapa inicial de toda forma de conhecimento possível – tanto uma exegese filosófica, quanto uma crítica científica dos diferentes conteúdos que podem ser dados no curso geral de nossa vida psíquica. A relevância histórica desta fenomenologia para o desenvolvimento, no dizer de Spiegelberg (1994), de um movimento fenomenológico próprio, paralelo àquele centrado na figura de Husserl, e que se espraiou muito mais por domínios científicos do que propriamente filosóficos, deve estar presente em nossas considerações posteriores. Com todo este percurso, podemos ter compreensão de algumas das mais sólidas bases a partir das quais o gestaltismo da Escola de Berlim se ergueu, como podemos ver em detalhe logo em seguida, em nosso terceiro capítulo.

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Capítulo III A Gestalttheorie da Escola de Berlim Considerados os dois aspectos fundamentais do cenário científico e filosófico alemão que aqui nos interessa, os esforços de compreensão experimental e descritiva da consciência, podemos passar de maneira privilegiada ao gestaltismo tal como formulado pela Escola de Berlim. Como já dissemos, ambos os capítulos introdutórios de nosso estudo são de grande valia para o exame da escola pelo simples fato de ela consistir em uma das mais graves e incisivas oposições ao elementarismo feitas pela psicologia experimental do início do século XX e também por ela assumir, entre os motivos fundamentais para esta crítica, uma grande preocupação com a descrição da experiência, com a criação de modelos que a pudessem compreender sem desvirtuá-la – sem torná-la algo inteiramente distinto disto que nós mesmos conhecemos de maneira tão imediata e clara, que é o simples correr da vida consciente. Deste modo, a maior parte das teses gestaltistas acerca da experiência se encontra nas antípodas dos projetos que pudemos avaliar em nosso capítulo inicial, tomando-os justamente como exemplo de um tipo de compreensão fantasiosa do psiquismo que não faria senão afastar ciência e vida. Como o introdutor do gestaltismo, Max Wertheimer, afirma repetidas vezes, uma das preocupações centrais da escola é justamente reintegrar essas dimensões afastadas pela ciência positiva do século XIX. O elementarismo seria um perfeito exemplo do corte a ser sanado e os ensinamentos de uma psicologia como aquela praticada por Brentano e seus discípulos, uma via particularmente eficiente para fazê-lo. O gestaltismo é um dos movimentos psicológicos mais fortemente influenciados pela tese brentaniana de que o exame da experiência deve se dar a partir de seu sentido imediato, das características que ela assume em seu simples aparecer para um determinado sujeito, sem que este se encarregue de destrinchá-la segundo interesses ou comprometimentos quaisquer que se mostrem exteriores ao que a própria experiência encerra. É certo que, à diferença da psicologia empírica de Brentano, este olhar sumamente compreensivo para a experiência não constitui a única tarefa a ser assumida pelo psicólogo, sendo-lhe necessário também fazer ciência experimental dos fenômenos assim observados. Ainda entre as convergências, no entanto, podemos indicar a aposta na unidade e na estreita conexão dos momentos constitutivos da experiência, que a mostre sempre como um todo 167

íntegro, harmônico e fechado, e nunca uma composição de conteúdos isolados de natureza diversa. Teremos condições de analisar cada característica dessas ao longo do capítulo. Uma boa imagem desta avaliação acerca da psicologia tradicional, bem como do intenso esforço de reforma que marcaria as obras da escola, pode ser encontrado no discurso presidencial de Wolfgang Köhler na sexagésima sétima Convenção Anual da American Psychological Association, em 1959, intitulado Gestalt Psychology Today. O psicólogo afirma: [...] não era apenas a estimulante novidade de nossa empresa que nos inspirava. Havia também um grande ar de alívio – como se estivéssemos escapando de uma prisão. A prisão era a psicologia tal como ensinada nas universidades quando ainda éramos estudantes. Naquele tempo, estávamos impactados pela tese de que todos os fatos psicológicos (não apenas aqueles da percepção) consistem em átomos inertes não-relacionados e que praticamente os únicos fatores que combinam estes átomos, e, por conseguinte introduzem uma ação, são as associações formadas sob influência da mera contigüidade. O que nos perturbava era a completa falta de sentido deste sistema, e a implicação de que a vida humana, aparentemente tão colorida e tão intensamente dinâmica, é, na verdade, assustadoramente entediante. Isto não era verdade em nosso sistema, e sentíamos que descobertas posteriores possuíam o dever de destruir o que restava do antigo. (p. 728)

Para apreendermos o gestaltismo berlinense justo nessas relações complexas que temos buscado salientar até então, voltaremos a nossa atenção, como já dissemos na Introdução, basicamente às propostas fundamentais de seus primeiros representantes, recorrendo apenas a poucos pesquisadores fora desse núcleo. Assim, buscaremos considerar as contribuições iniciais de Max Wertheimer ao desenvolvimento da escola, as quais ocorreram a partir de estudos antropológicos acerca do pensamento quantitativo em povos primitivos e de estudos experimentais acerca de fenômenos estroboscópicos. A partir disto, faremos um exame dos pontos principais em que a psicologia experimental precedente foi mais diretamente questionada e como estas mesmas questões serviram à crítica das próprias origens do gestaltismo em Ehrenfels, ainda alinhado em muitos aspectos de seu pensamento, como já vimos, àquele paradigma psicológico. Por meio da compreensão desta posição negativa, teremos condições de passar ao novo conceito de Gestalt proposto pela escola e ao seu detalhado programa de estudo da experiência, marcado pela postulação de uma grande quantidade de fatores formais presentes na estruturação do campo perceptivo. Após este percurso pelos fundamentos teóricos da escola, buscaremos explicar como o seu

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método fortemente descritivo foi tardiamente chamado de ‘fenomenologia’ pelos próprios gestaltistas, buscando encontrar na literatura primária condições de definir com precisão o que se entendia por este termo. Por fim, consideraremos alguns desenvolvimentos da escola que a levaram a ultrapassar o campo psicológico e desenvolver teses sobre Gestalten em fenômenos naturais, como os fisiológicos e os físicos – movimento que seria, inclusive, chamado de um ‘ultrapassamento da fenomenologia’.

3.1. As investigações antropológicas de Max Wertheimer: O primeiro texto relevante de Wertheimer para que consideremos o advento de uma nova teoria da forma em Berlim é Über das Denken der Naturvölker I. Zahlen und Zahlgebilde, o qual pertence a um período de transição do pensamento do psicólogo. Entre os anos de 1905 e 1910, o pesquisador se afastou dos problemas criminológicos abordados em seu doutoramento – obtido em Würzburg sob supervisão de Külpe e inserido nas contribuições de seu famoso instituto à psicologia experimental78, consistindo basicamente na proposta de um método de interrogatório de suspeitos fundamentado pela psicologia da associação. Naquele período, por ocasião deste afastamento, ele se dedicou a certo número de pequenos estudos sobre condições patológicas específicas – como a alexia, a afasia e a cegueira cortical – junto a instituições neuropsiquiátricas e neurológicas, bem como a estudos de caráter antropológico ou etnopsicológico, entre os quais se destaca a análise da música dos Veddas, uma tribo do Ceilão cujo sistema musical seria consideravelmente minimalista (ASH, 2011, p. 106 e 107). O texto que buscamos analisar aqui se insere neste momento do percurso intelectual de Wertheimer, antes de sua maior dedicação ao estudo da percepção, consistindo em uma investigação antropológica acerca das formas características do pensamento matemático e da concepção de número entre as civilizações ditas primitivas – as quais se definem por hábitos, valores, tradições e crenças radicalmente afastadas daquelas difundidas entre os povos ocidentais. Seu ponto de partida é a afirmação da impertinência da pergunta acerca 78

Tais contribuições consistem em algumas das primeiras aplicações do método experimental a fenômenos de pensamento e na tentativa de, em consonância com a psicologia brentaniana e mesmo a fenomenologia das Logische Untersuchungen (SPIEGELBERG, 1986, p. 57), oferecer um tratamento à atividade cognitiva que não a reduzisse a conteúdos agregados, priorizando as funções (Funktionen) por ela desempenhadas (ECKARDT, 2010, p. 103). Trata-se da concepção de um ‘pensamento sem imagem’ (Anschauungslose Gedanken), a qual se insere na mesma polêmica acerca de conteúdos e funções citada na nota 57.

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de quais, dentre os números e as operações matemáticas de nossa cultura, estão presentes no pensamento daquelas civilizações, uma vez que tal perspectiva, essencialmente etnocêntrica, validaria já de saída os critérios pelos quais opera a nossa cognição e os tomaria como parâmetro para avaliar a correção dos critérios divergentes. Em oposição a isto e como fio condutor de toda a sua argumentação, Wertheimer busca defender a idéia de que nossas formas de pensar matematicamente – ou, ainda, nossas formas de pensar em geral –, são derivadas de nossa inserção cultural, da estrutura e do conjunto de heranças sociais em que nos desenvolvemos. A diferença imposta pela cultura na gênese das formas de pensamento seria, neste sentido, de princípio, e não de grau – seria uma diferença categorial e que autonomizaria completamente cada grupamento social, permitindo-lhe ser avaliado apenas por seus critérios internos, e não a partir da admissão de um quadro referencial externo a que ele deveria se adequar. Deste modo, seriam inteiramente desinteressantes para os propósitos do psicólogo aquelas perspectivas antropológicas que vêem no pensamento primitivo tão-somente uma versão menos evoluída de nosso pensamento79. E é exatamente por esta consideração das formas culturais distintas como objetos de análise sui generis que Wertheimer busca se orientar80. Vejamos como ele o faz.

3.1.1. Pensamento quantitativo não-formal, grupos naturais e estruturas: Seu primeiro passo é mostrar uma forma específica de experiência de quantidade que se afasta claramente do raciocínio matemático formal. Para tanto, Wertheimer não passa diretamente a exemplos culturalmente estranhos a nós, permanecendo, em vez disto, nos limites do pensamento não-primitivo. De acordo com ele, a contagem como adições sucessivas de uma unidade ela mesma invariável (1+1+1...) não é o único fator na gênese dos números, da mesma maneira que o ideal de transferência universal do pensamento, a criação de uma linguagem inteiramente unívoca e intocada por parcialidades de quaisquer ordens, não é o ideal necessário de todo pensamento numérico. Há estruturas diferentes e 79

De que é exemplo a chamada tese do pré-logismo dos povos primitivos, representada por Lévy-Bruhl (KING e WERTHEIMER, 2009). 80 Por mais que a argumentação de Wertheimer possa parecer, devido aos termos escolhidos, eivada de preconceitos positivistas, cremos que, se o psicólogo for levado a sério quando busca afirmar que o estudo das formas de pensamento culturalmente circunscritas deve se dar pela consideração de cada cultura como âmbito sui generis de análise, essa impressão será desfeita e restará como uma simples infelicidade na escolha das palavras, resultante do emprego do termo ‘primitivo’ para caracterizar os povos culturalmente distantes de nós. Não haveria nada como uma diferença evolutiva entre as formas de pensamento dos primitivos e as nossas, como buscaria afirmar o pré-logismo.

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menos abstratas que as nossas estruturas numéricas que são usadas em pensamentos que envolvem números, não havendo distanciamento delas em relação aos contextos naturais e ordinários de que derivam. Wertheimer oferece exemplos. Na construção de uma cabana, certa quantidade de vigas de sustentação é necessária para que a armação se erga, e esta quantidade surge como parte intrinsecamente ligada à idéia de cabana, não sendo, muitas vezes, necessário contá-la ou pensar abstratamente para verificar o seu pertencimento. O mastro de uma embarcação é erguido por três estais, colocados sempre em sentido longitudinal, e o navegador não precisa de nenhum desempenho intelectual ou de nenhum cálculo para reconhecer que a idéia de mastro traz em si a necessidade deste suporte. Um membro de uma determinada família que se ausenta do jantar tem sua ausência prontamente notada, não sendo necessário que nenhum dos presentes conte quantos membros estão ali para depois inferir a ausência de um em específico. Um quadrado é apreendido imediatamente como tal, sem que precisemos contar o número de lados e ângulos de uma figura a princípio irreconhecível, constatar que ambos são quatro e inferir daí que se trata de um quadrado. Em todos estes casos, Wertheimer explica, há uma espécie de compreensão tácita da quantidade presente em uma determinada idéia, e nunca uma exigência de atividade cognitiva para que se chegue à consciência daquela quantidade. Compreendemos a quantidade pelo seu valor funcional dentro de uma totalidade já caracterizada por um sentido, e não pelo seu valor numérico puro, não por operações do pensamento formal que a ele se voltem. Entre estes agrupamentos que simplesmente se nos mostram como tais, há os chamados ‘grupos naturais’, que expressam a união de um ou mais objetos a partir de uma relação significativa específica que se afirma em seu simples aparecer conjunto, abrindo espaço para uma idéia de mútuo pertencimento. A estrutura de ‘par’ é exemplo disto, uma vez que ela pode dispor sobre relações de simetria entre objetos, como no caso de dois pingentes; relações de utilidade, como no caso de dois olhos ou dois sapatos, ou ainda, de quaisquer outros órgãos ou itens de mesma função; relações familiares81, como em um casal; etc. Aparentemente, qualquer critério material que mostre duas coisas determinadas como duas coisas enlaçadas por um sentido comum, intimamente conectadas, irmanadas, é um critério que nos põe perante a estrutura de par. Ainda outros grupos naturais podem ser 81

Wertheimer diz ‘biológicas’.

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vistos quando os objetos experimentados aparecem em relações qualitativas ou espaciais específicas que favoreçam um dado agrupamento para eles. Objetos idênticos ou de natureza similar tenderiam a se agrupar naturalmente, da mesma maneira que objetos dispostos proximamente no espaço. Neste sentido, duas árvores situadas lado a lado e uma outra árvore um pouco mais distante não seriam um conjunto fechado, composto por três árvores, mas sim dois conjuntos, um composto por um par de árvores logo adiante, outro por uma árvore isolada mais além. Não será difícil observar aqui uma presença algo tímida dos pensamentos que, posteriormente formalizados, constituirão os fatores gestálticos de proximidade e igualdade, aos quais passaremos dentro em pouco. É a partir destas primeiras elucubrações, misturadas a uma quantidade generosa de exemplos, que o psicólogo introduz a capital distinção entre ‘números’ e ‘estruturas’ (Gebilde): Números são aplicáveis a qualquer coisa e a todas as coisas, a quaisquer objetos, arranjos ou grupos arbitrários, e eles próprios são, em todos os casos, os mesmos. Estruturas, por outro lado, são relevantes apenas para agrupamentos ou relações naturais entre partes e seu todo. (WERTHEIMER, 1912/1969, p. 266)

Trata-se, nas chamadas ‘estruturas’, de uma recondução do raciocínio que envolve a apreensão de quantidade às condições materiais em que ele ocorre ou sobre as quais ele se aplica. Estas condições definem o campo de alterações possíveis do raciocínio, os limites aos quais ele deve sempre se submeter, posto que, se não o fizer, excederá o que lhe confere origem, alienar-se-á de sua razão própria e deixará, portanto, de ser. Em uma formulação mais econômica, podemos dizer que o raciocínio ocorre se e apenas se estiver em íntima conexão com o plano empírico. Dois dedos, como o polegar e o indicador, dois homens quaisquer, dois guerreiros podem ser considerados pares, mas não um filho e sua mãe, não um homem e um cavalo. Aqueles constituem diferentes estruturas de par e têm o sentido desta estrutura garantido por relações inteiramente específicas aos objetos conjugados, mas são, não obstante, todos eles pares. Nos dois últimos exemplos, esta relação de mútuo pertencimento não se afirma. Em um raciocínio extravagante, poder-se-ia dizer que dois homens juntos são um par, bem como dois cavalos juntos, mas que um homem e um cavalo só compõem um par necessariamente dessemelhante: o de um cavaleiro e sua montaria.

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Após estas considerações sobre exemplos que podem se dar no seio de nossa própria cultura, Wertheimer passa a considerar mais precisamente o pensamento primitivo. Neste movimento, ele parece diagnosticar que as formas de pensamento quantitativo que destoam do pensamento matemático formal, indicadas como uma possibilidade em nossa configuração cultural, são uma necessidade para outras culturas. A operação numérica ou intelectual em geral é impossível de ocorrer entre certos povos primitivos se não estiver enraizada em atualidades, em um mundo natural, empírico. Para introduzir adequadamente este caso, o psicólogo busca ilustrar como outras dimensões do pensamento formal do primitivo também se encontram na mesma condição, dependendo estritamente das efetividades que as cercam. Uma situação que mostra este constrangimento é encontrada no caso do professor que prescreve ao aluno primitivo uma tarefa que nos parece bastante trivial e de fácil execução, apenas para vê-lo aturdido e impossibilitado de cumpri-la. Pediu-se a um menino indiano que traduzisse a frase ‘O homem branco abateu seis ursos hoje’ e ele se recusou, mostrando-se incapaz de fazê-lo simplesmente por crer que nenhum homem poderia abater seis ursos em um só dia. Ainda que o raciocínio aqui não seja de caráter matemático, mas apenas uma operação lingüística formal, ele indica a impossibilidade da criança abstrair dos fatos mundanos para cumprir o que lhe era requisitado. Ser implausível, inverossímil, não ter lugar em um mundo efetivo, traz consigo, portanto, ser inconcebível, intelectualmente inexprimível: “Onde não houver relação natural, nenhuma conexão relevante e vividamente concreta entre as coisas mesmas, não há também conexão lógica e nenhuma manipulação lógica destas coisas é possível.” (WERTHEIMER, 1912/1969, p. 267). Outro exemplo, ainda que menos forte, pode ser encontrado em perguntas do tipo ‘Que são x e y?’, em que ambas as variáveis são objetos que podem ser agrupados em uma categoria comum. Dirigidas ao primitivo, tem-se diversas respostas que agrupam as variáveis em uma categoria que poderia ser indicada também pelo homem civilizado, mas outras que não: se x é cão e y é gato, uma resposta recorrente em ambas as culturas seria ‘bichos de estimação’, mas o primitivo poderia, eventualmente, responder ‘inimigos’. Neste caso, o valor culturalmente atribuído às duas espécies surge como mais relevante na significação do conjunto do que as outras formas possíveis de significação que têm menor especificidade cultural, que são freqüentes também em outros grupamentos sociais. Trata-se ainda de um encerramento da cognição às

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condições concretas de vida de um povo, i.e., de uma aplicação claramente não-abstrata do pensamento ao dado.82

3.1.2. Tipo, outras estruturas numéricas e operações com estruturas: Estes exemplos conduzem Wertheimer a considerar as possibilidades gerais de se combinar ou arranjar itens em um determinado conjunto, realizando, em poucos parágrafos um esboço de mereologia. Mais uma vez, ele introduz seu raciocínio por exemplos. Se quatro maçãs se encontram sobre uma mesa e uma quinta repousa sobre elas, podemos enxergar no conjunto perante nós a forma de um pentágono ou simplesmente um amontoado de maçãs, sem uma forma muito definida. De todas estas configurações possíveis – tanto aquela mais obediente à figuração geométrica quanto as tantas outras que lhe escapam – seria possível, de acordo com Wertheimer, extrair um ‘tipo’, uma generalidade maior à qual elas estariam todas submetidas. Esta generalidade não se limitaria a prescrever a quantidade de variações reais possíveis na configuração do objeto, mas mostraria também algo como a existência de um valor intrínseco a certas configurações em detrimento de outras. É precisamente aqui que o psicólogo esboça algumas de suas primeiras considerações sobre as leis da forma: Em geral, toda ‘Gestalt’ evidencia certa variabilidade, ou, como se diz em lógica, certa ‘latitude’. Um quincunce83 presta-se a uma grande variedade de intervalos, proporções, semelhanças entre suas partes materiais, etc., sem perder seu caráter original de quincunce. Mas algumas destas variáveis normalmente funcionam em conjunto de maneira mais adequada que outras. Um arranjo em particular tem seus graus de estabilidade e precisão de acordo com o predomínio de umas e não de outras variáveis. Não é verdade, entretanto, que daí se extrai um ‘conceito’ geral (i.e., através de eliminação lógica ou abstração de diferenças) que é mais pobre em conteúdo, i.e., com conotação mais estreita do que suas espécies. Em vez disto, há um ‘análogo conceitual’ geral e complexo da quinquidade em vários (mas não em ilimitados) arranjos. É o mesmo com o retângulo. Para percebermos um retângulo, não precisamos observar a retidão de seus ângulos e a existência de 82

Consideramos este exemplo menos forte porque ele não nos mostra uma impossibilidade concreta da cognição, como o exemplo anterior, mas sim uma dificuldade em abrir mão dos critérios materiais de significação mais imediatamente acessíveis em prol de outros critérios ainda materiais, mas que são menos próximos. A simples troca de critérios ou de conteúdos norteadores do pensamento nos parece menos relevante para mostrar a tese de Wertheimer do que o efetivo bloqueio intelectual apontado no caso anterior. Isto também limita o alcance do termo ‘abstração’, usado para caracterizar a possibilidade de troca em nossa última sentença. 83 Padrão geométrico em que quatro pontos formam um quadrilátero e um quinto ponto se situa exatamente no ponto em que ambas as diagonais do quadrilátero cruzam. Se o quadrilátero for um quadrado, a imagem será a da face número cinco de um dado de seis lados.

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quatro lados nele. Em vez disto, percebemos o tipo ‘retângulo’, seja a figura particular grande ou pequena, larga ou estreita, vertical ou horizontal. (WERTHEIMER, 1912/1969, p. 268)

Que podemos depreender destas afirmações? Parece-nos que, acerca dos ‘tipos’ que podemos encontrar nas diferentes maneiras de organizar dado conjunto de objetos, duas características principais se fazem notar. A primeira delas é o fato do tipo privilegiar determinada disposição de seus conteúdos parciais em detrimento de outras, ainda que esteja, perante as organizações mais adequada e menos adequada, da mesma maneira, desempenhando o mesmo papel. Isto quer dizer: o fato de constituir uma generalidade que estabelece as condições mais basais da ordenação de algo não faz com que toda atualização possível destas condições apresente o mesmo valor, expresse da mesma maneira o tipo de que deriva. Há configurações mais adequadas e outras menos. Se já encontramos antes, na argumentação de Wertheimer, a aparente sugestão dos fatores de igualdade e proximidade, aqui nos parece possível encontrar um raciocínio similar ao que sustentará, em obras tardias, a idéia de Prägnanzstufen. A segunda característica notável é a ênfase na completa independência do tipo em relação à atividade intelectual, o que Wertheimer busca sustentar ao afastá-lo de conceitos obtidos por derivação lógica ou por procedimentos de abstração. Não se trata de eliminar certos predicados e preservar outros por meio de qualquer espécie de exercício racional, fazendo, em um momento posterior, estes predicados que restam alçarem a condição de conceito. Tipo e conceito diferem basicamente pelo fato do primeiro ser um puro dado, algo apreendido de forma imediata e que não exige, para surgir deste modo à experiência, nenhum desempenho intelectual. O segundo, por sua vez, depende estritamente destas atividades, sendo sempre fruto de algum procedimento inferencial e, portanto, sempre mediato. O caráter objetivo a ser posteriormente conferido à Gestalt também já pode ser entrevisto aqui, posto que o tipo é algo que se impõe ao quadro de nossa experiência e não que esta produz por operações de qualquer natureza84.

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Há que se evitar a confusão desta objetividade com uma existência natural, em si e por si, real em última instância, do tipo experimentado. Toda a argumentação de Wertheimer supõe a produção cultural das categorias descritas. Elas não são, portanto, naturais ou reais no sentido especificado. Isto não as impede, contudo, de serem objetivas: as estruturas sociais as criam e elas se nos impõem como dados que significam os objetos do mundo.

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A especificação das estruturas numéricas continua, no entanto. O uso rotineiro de expressões que indicam conjuntos ou coletivos também a ilustra, uma vez que aquelas expressões veiculam idéias de pluralidades não-quantificadas – claramente distantes da matemática, portanto –, como ‘rebanho’, ‘tropa’, ‘punhado’, ou pluralidades seminuméricas, como ‘dúzia’ – que nem sempre quer dizer efetivamente doze – e expressões que indicam época ou idade aproximada, como ‘na década de vinte’ ou ‘em torno dos trinta’, nas quais o vocábulo evocado é numérico, mas a idéia, não plenamente. Caracterizar estas estruturas como inadequadas ou vagas por sua imprecisão numérica seria errado: são idéias que povoam nossas trocas cotidianas e têm sua eficiência assegurada por elas. Ainda exemplificam isto os advérbios de intensidade ou quantidade como ‘muito’, ‘muitos’, ‘pouco’, ‘poucos’, que indicam gradações ou magnificações de algo sem precisar um valor numérico para as mesmas. Veicula certa idéia de quantidade, portanto, sem que esta surja em um caráter matemático estrito. A função das estruturas numéricas não é ser abstrata, variável e adequada a preceitos matemáticos, portanto, mas sim aplicável a casos concretos da vida ordinária. Elas se baseiam em agrupamentos efetuados por outros critérios que não o intelectivo. Escapam, assim, da estrita obediência a um plano uniforme de pensamento, que não admite variações e entende os números como agregados de uma quantidade única, agregados da idéia de unidade. Isto não é uma necessidade absoluta. Há culturas em que análogos numéricos servem também para a determinação de séries numéricas propriamente ditas: na Nova Guiné, e.g., conta-se de um a cinco com os dedos da mão esquerda, de seis a dez com os da direita, de onze a quinze com os do pé direito e de dezesseis a vinte com os do esquerdo. A própria compreensão da contagem depende de condições materiais muito específicas, ligadas aos gestos e à anatomia humana. Do mesmo modo, há culturas em que se contam coisas diferentes de maneiras diferentes: certos povoados na Polinésia, e.g., contam peixes, frutas, homens, dinheiro etc. cada qual de uma forma. Mais uma vez, a cognição vem na esteira da materialidade. Podemos ressaltar ainda um último aspecto que nos é relevante na argumentação de Wertheimer – as suas explicações sobre as operações que podem ser feitas com as estruturas numéricas. Se em nossa matemática temos nas diferentes operações aritméticas nada além de diferentes arranjos de unidades numéricas abstratas e indiferenciadas, nas

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operações realizadas a partir de estruturas numéricas, o que temos é a formação de estruturas mais amplas a partir das estruturas básicas ou de estruturas mais básicas a partir de estruturas mais amplas, em um processo ordenado, que nada tem de arbitrário. As operações feitas em estruturas devem sempre se conformar às exigências naturais da estrutura de origem: “Certos arranjos predeterminam, através de sua forma, certas divisões.” (WERTHEIMER, 1912/1969, p. 270). Podemos encontrar um corte claro da relação que números e estruturas numéricas desempenham com fatos empíricos nos exemplos seguintes: Se eu quebro um graveto, o cálculo ordinário dirá que eu tenho ‘dois’ gravetos. Mas quando eu quebro uma lança, eu não tenho duas lanças. No primeiro caso, ‘dois’ é abstrato – eu comecei com uma unidade e mais tarde tive duas. No outro exemplo mais concreto, temos uma estrutura em que as partes ainda dependem do todo de que derivam (e.g., uma é uma parte de ponta; a outra, uma parte de haste). (WERTHEIMER, 1912/1969, p. 271)

É certo que posso ainda abstrair do surgimento de dois novos objetos no segundo exemplo e afirmar que, de um objeto, passei a dois, ignorando por completo quaisquer informações de conteúdo acerca das situações inicial e final. Isto é correto do ponto de vista matemático, mas não descreve a compreensão que somos instados a ter quando simplesmente vemos aquela transformação ocorrer. Esta compreensão é natural e definida pela passagem de uma estrutura a duas outras que lhe são subordinadas, que têm o seu sentido estritamente dependente do sentido originariamente dado. A condição necessariamente abstrata das partes, tema fundamental do gestaltismo tardio, pode ser encontrada já aqui, e com muito mais clareza do que todas as demais idéias já pontuadas em nossa interpretação.

3.1.3. O valor prioritário do todo: Sendo esta a argumentação de Wertheimer, portanto, que podemos encontrar de relevante nela? Como ela pode nos oferecer recursos para melhor compreender os primeiros passos do desenvolvimento da teoria da forma e como esta se afastou de sua matriz teórica, a psicologia de Ehrenfels e de Graz? Segundo as exposições do psicólogo, podemos dizer que, entre as possibilidades de formação de estruturas que lidam com quantidade, mas não a tematizam matematicamente, encontram-se: (1) ações, formas de relação interpessoal e sentidos objetuais culturalmente produzidos, cuja apreensão imediata traz tacitamente uma 177

compreensão de quantidade; (2) agrupamentos naturais, que se definem por alguma espécie de convergência entre objetos, seja por seu aspecto, função, familiaridade ou localização espacial, e que afirmam uma idéia numérica a partir destes critérios em nada intelectuais; (3) estruturas que indicam pluralidades não-quantificadas e pluralidades semi-numéricas, que mostram possibilidades de lidarmos com quantidades sem saber seu valor preciso. Em todos os casos, temos rupturas com o padrão matemático formal de se entender a lida com números e o pensamento numérico, bem como aparições, no horizonte de nossa experiência, de idéias articuladas, de totalidades significativas, que trazem a quantidade como parte dependente de seu sentido. O que encontramos em Über das Denken der Naturvölker, portanto, é um exame cuidadoso de uma série de experiências em que a sobredeterminação das partes pelo todo em que elas se mostram é já evidente, antes mesmo de sua enunciação mais explícita, encontrada na última passagem da exposição de Wertheimer acima recuperada, quando ele fala das operações entre estruturas. Afirmar que, a partir de meu comprometimento com um sentido diretamente expresso pelo dado, posso inferir certas idéias de quantidade é estar já no registro da sobredeterminação, da mesma maneira que afirmar que o sentido de estruturas derivadas é definido pelo sentido de uma estrutura originária. E este é precisamente o ponto de corte entre as concepções de Gestalt pelas escolas de Berlim e Graz: uma passagem não tanto de unidades discretas a totalidades complexas por atos de síntese, mas sim a apreensão do todo como base para a ulterior inferência de partes. A devida exploração desta divergência, contudo, não pode ser feita agora, devendo aguardar ainda a caracterização do sentido berlinense de Gestalt a partir da teoria da percepção desenvolvida pela escola.

3.2. A percepção visual do movimento: Para a definição deste sentido, no entanto, contribuiu também outro texto de grande relevância, publicado no mesmo ano e no mesmo periódico no qual surgiram as investigações antropológicas acima consideradas. Referimo-nos aos Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung, habitualmente assumidos como o marco inicial desta escola psicológica e aquele que estabeleceu de maneira mais direta o tratamento peculiar por ela dispensado à experiência. Neste estudo, centrado especificamente na percepção visual, o principal interesse de Wertheimer incide sobre os chamados fenômenos estroboscópicos,

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nos quais um determinado indivíduo é capaz de observar, por meio da apresentação de certas imagens ou estímulos luminosos estáticos a uma velocidade acentuada, algum tipo de movimento, definido pelo que as próprias imagens exibem como conteúdo. Como nos indica Crary (2012), é certo que a cultura européia de fins do século XIX já se encontrava às voltas com esta curiosa experiência em diversos de seus âmbitos, sejam os estudos científicos formais de autores como John Paris, Peter Roget, Joseph Plateau e Sigmund Exner; seja a produção de instrumentos técnicos para estes estudos, que logo se tornaram formas de entretenimento, como o fenacistoscópio, o traumatópio e o praxinoscópio85; seja a produção artística, como o próprio cinematógrafo. Wertheimer, evidentemente, possuía pleno conhecimento destes recursos, mas as circunstâncias que despertaram no psicólogo o interesse pelo tema foram mais casuais, como nos indica Engelmann (2002, p. 1): quando em uma viagem de trem por Viena, Wertheimer teria visto duas lâmpadas de sua cabine apresentarem uma falha intermitente de funcionamento, ora acendendo, ora apagando. Dada a proximidade entre ambas as lâmpadas, quando ocorria de uma piscar subitamente, não se mantendo definitivamente acesa, e a outra ao lado apresentar o mesmo comportamento após um curto intervalo de tempo, era possível ver um raio luminoso movendo-se do lugar em que se encontrava a primeira lâmpada para o lugar da segunda. Instigado por esta percepção, Wertheimer buscou estudá-la experimentalmente, descobrindo as condições ótimas de sua produção e explorando o valor de suas conseqüências teóricas para a compreensão de nossa experiência. Com efeito, algo aparentemente tão simples serviria para questionar a visão tradicional em psicologia de que toda percepção seria função de excitantes físicos discretos, pois, nas condições em que esta percepção específica se dá, nada mais temos que dois estímulos objetivos pontuais, que não se deslocam no espaço em sentido algum. A que poderia ser atribuída, portanto, a percepção de um movimento luminoso entre os dois estímulos efetivamente existentes, já que, no espaço que se estende de um a outro, não há nenhuma outra causa fisicamente estabelecida para a percepção? Colocado de outro modo: como seria possível uma percepção que não é, em sua totalidade, objetivamente associável a uma causa física externa? Este, precisamente, é o interesse dos Experimentelle Studien, resultantes das

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Para uma exposição abrangente destes instrumentos, conferir o quarto capítulo de Técnicas do Observador, de Jonathan Crary (2012).

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pesquisas conduzidas pelo psicólogo entre os anos de 1910 e 1912, no Instituto de Psicologia da Universidade de Frankfurt, com o apoio e os instrumentos de seu diretor, Friedrich Schumann (SARRIS, 2012a, p. 93).

3.2.1. Os três estágios fundamentais e a descrição do psiquicamente dado: A colocação do problema por Wertheimer já no início de seu texto nos mostra o quanto esta percepção peculiar do movimento difere do movimento ordinário, apreendido por nós quando enxergamos um determinado corpo se deslocando no espaço. Neste caso, encontramos as nossas séries de impressões psicológicas acompanhando de maneira algo precisa uma série de ocorrências físicas discrimináveis, de estados de coisas que nos garantem haver algum correspondente objetivo para aquilo que se mostra no quadro de nossa experiência. O que temos, a rigor, é o pareamento de duas cadeias de eventos que ocorrem de maneira contínua e fluida, mas que, em um exame atento, podem ser submetidas a diversos recortes temporais que nos indiquem os progressos parciais de cada uma delas, desde o momento em que o primeiro de seus eventos teve lugar. Isto quer dizer: na percepção de que um dado objeto se encontra em movimento perante mim, posso analisar a totalidade da experiência de movimento em n percepções parciais e em n condições físicas que estão na base destas percepções – i.e., n momentos nos quais o objeto nele mesmo se encontrava em circunstâncias distintas e fisicamente descritíveis. Não temos aqui senão um acompanhamento dos eventos mundanos pelos eventos próprios à vida mental, como queriam os psicólogos anteriores. Wertheimer (1912) o diz da seguinte maneira, nas sentenças de abertura de seu artigo: Vê-se um movimento: um objeto [Gegenstand] moveu-se de um lugar para outro. Descreve-se o estado de coisas físico: até o momento temporal t1, o objeto se encontrava no lugar l1 (no espaço e1); no tempo tn, encontrava-se no lugar ln (no espaço en); no tempo entre t1 e tn, o objeto se encontrava sucessivamente, em continuidade temporal e em continuidade espacial, nos lugares entre l1 e ln e através destas chegou a ln. (p. 162)

Entretanto, como é bastante claro já pelos exemplos acima citados, há certas condições perceptuais em que o dado não coincide com uma sucessão de eventos físicos de maneira tão precisa como esta, deixando-nos perante o mencionado problema de compreender a existência de perceptos bem definidos, necessariamente presentes a cada vez que somos submetidos àquelas circunstâncias de estimulação, e que não podem ter todos os 180

seus conteúdos geneticamente vinculados a excitantes periféricos. Uma grande quantidade de teorias acerca deste problema é citada por Wertheimer, que se propõe analisá-las de maneira bastante sucinta e refutá-las basicamente mostrando que o tratamento experimental por ele dispensado ao fenômeno é mais consistente e serve melhor à sua explicação. Como o número de teorias é consideravelmente extenso, o exame da relação dos argumentos de Wertheimer com cada qual não será oferecido aqui, sendo mais de nosso interesse o delineamento da posição assumida pelo psicólogo e das conseqüências teóricas dela oriundas, tanto no rechaço da psicologia precedente, quanto no oferecimento de bases satisfatórias para a inauguração de um novo paradigma psicológico86. Para estudar o fenômeno em questão, portanto, Wertheimer dedicou-se basicamente a criar em laboratório, por meio de aparelhos como o estroboscópio e o taquistoscópio, condições tais para a estimulação visual de um sujeito experimental que permitissem a manipulação precisa dos estímulos aplicados, sua posição relativa e o tempo transcorrido entre as suas aplicações. O psicólogo o descreve: Desenhe-se na faixa de objetos [Objektstreifen] de um estroboscópio dois objetos de tipos simples, e.g., uma [linha] horizontal de 3 cm de comprimento no início da faixa e uma segunda linha, cerca de 2 cm mais baixa, no meio da faixa. Em uma rotação relativamente muito lenta do estroboscópio, aparece [erscheint] primeiro a linha horizontal e então a outra; ambas ocorrem claramente em sucessão e como duas. Em uma rotação muito rápida, pode-se vê-las simultaneamente uma junto à outra; elas estão juntas, ao mesmo tempo, lá. Em uma velocidade intermediária, vê-se um movimento definido: uma linha move-se clara e distintamente do lugar mais alto ao outro mais baixo, assim como no sentido inverso. (WERTHEIMER, 1912, p. 165)

O que Wertheimer indica nesta passagem são os três resultados fenomenais mais relevantes dentre os tantos resultados produzidos pela manipulação daquelas variáveis. Tratam-se dos estágios de: (1) sucessão (Sukzessivruhe), no qual o sujeito experimental tem a percepção dos estímulos luminosos como duas emissões claramente distintas, uma após a outra; (2) simultaneidade (Simultanruhe), no qual ocorre a percepção dos mesmos como se 86

É digno de menção o fato de uma destas teorias ser justamente a teoria das Gestaltqualitäten de Ehrenfels, a qual, como já vimos no fim da seção a ela destinada no capítulo anterior, consideraria a percepção do movimento como a afirmação de uma qualidade formal que resumisse uma série de dados espaciais antes apreendidos em sua individualidade. Como a refutação de Ehrenfels por Wertheimer, contrariando todas as expectativas acerca da possível riqueza deste diálogo, é extremamente curta e simples, não nos parece relevante considerá-la com maior vagar. É bastante claro pela própria densidade das argumentações que as teorias que preocupavam Wertheimer de maneira mais decisiva eram outras que não a de Ehrenfels. Ademais, para afastar esta última, ele se apóia em dados experimentais que não constam em nossa avaliação de seu trabalho.

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estivessem sendo concomitantemente apresentados, ainda que no estado de coisas físico este não seja o caso; e (3) movimento ótimo (optimale Bewegung), no qual ocorre o resultado fenomenal mais relevante, em que ambas as luzes se encontram acompanhadas por um movimento que preenche o espaço que as separa. As determinações temporais específicas destes três resultados – i.e., o tempo transcorrido entre as duas emissões de modo a assegurar um daqueles efeitos perceptuais – são, respectivamente, 200σ, 30σ e 60σ (milissegundos). A pergunta fundamental do estudioso perante estes resultados é: o que é psicologicamente dado (psychisch gegeben) quando um sujeito vê o movimento nestas condições? Como, não tanto de um ponto de vista físico, mas do ponto de vista estritamente psicológico, em primeira pessoa, pode-se entender o que se passa neste episódio? Antes mesmo de dar indicações de sua resposta, Wertheimer busca de imediato afastar a hipótese de que o movimento visto seria qualquer coisa como uma ilusão ou uma simples contribuição subjetiva, baseada em experiências passadas, às condições efetivas de estimulação da percepção. Esta opinião, ainda que bastante recorrente no cenário psicológico-experimental, seria claramente descompromissada com a experiência ela mesma, tomando por essencialmente falso um acontecimento apenas porque ele não se encontra de certo modo compassado às condições de estimulação que o geram. Wertheimer se coloca em clara oposição a isso, mostrando aqui, a propósito da percepção, um interesse descritivo prioritário, similar àquele demonstrado em seus estudos antropológicos anteriores. Se antes se tratava de conferir autonomia à experiência de um dado grupamento social perante outro, não o analisando por critérios exteriores, trata-se aqui de fazer basicamente o mesmo, conferindo autonomia ao âmbito psicológico perante outro nível de análises possível e que lhe é exterior, a saber, o físico. Seu propósito, portanto, é basicamente proceder à descrição e à compreensão cuidadosa dos fenômenos psíquicos que se dão nesta circunstância específica: Neste caso, certo sentido da palavra ‘ilusão’ tem de ser imediatamente rejeitado; antes de mais nada, não se pode tratar aqui de uma ilusão acerca do estado de coisas real físico; a investigação deve se empenhar em descrever e examinar o dado psíquico [psychisch Gegebene]. (WERTHEIMER, 1912, p. 167 e 168; grifo nosso)

Em se adotando este ponto de partida, a experiência do movimento tem de ser destacada e tornada ponto fundamental de exame e crítica. Para propósitos de

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esquematização, Wertheimer chama este movimento de , um dado perceptual que surgiria claramente como um acréscimo às percepções luminosas a e b ocasionadas pela estimulação. Ao conferir a  a relevância citada, o psicólogo afasta a hipótese de que ele seja mero preenchimento subjetivo de um contínuo espaço-temporal vazio entre dois estímulos reais e afirma que ele é [...] algo que concerne uniformemente a a e b, que se baseia neles, que abarca e conecta a ambos” (WERTHEIMER, 1912, p. 186). Ele seria, deste modo, um dado que se refere direta e plenamente a a e b, conjugando-os de uma só maneira e gerando no quadro perceptual o fenômeno a b – i.e., o aparecimento de um percepto luminoso inicial que se desloca no sentido de outro percepto luminoso terminal.

3.2.2. As variações do movimento visto: As variações impostas por Wertheimer nestas condições de estimulação do sujeito experimental são consideravelmente amplas. O psicólogo contrasta a percepção de  com a percepção de um movimento real, causado por um objeto que efetivamente se desloca no espaço e no tempo junto a ; varia de diversos modos as posições relativas, as cores e mesmo o número de estímulos; exige do sujeito experimental diferentes disposições de atenção perante os estímulos; etc. Tudo isto, evidentemente, gera uma grande quantidade de resultados que não convém aqui examinar87. Dentre eles, no entanto, há um resultado sumamente importante, ao qual o próprio Wertheimer chama atenção. Não se trata de qualquer manifestação peculiar da trajetória ou da figuração de  – como estas indicadas em nota – mas sim de percepções de movimento essencialmente distintas daquela descrita 87

Podemos, apenas a título de ilustração, mencionar alguns casos valorizados pela literatura secundária para exemplificar o quão rica e multifacetada é a realidade psicológica gerada pelo movimento visto. Guillaume (1966, p. 72), e.g., destaca a possibilidade de se produzir efeitos distintos de acordo com o número de objetos que se movem: pode haver um movimento do estímulo inicial na direção de um estímulo terminal que permanece parado; um movimento iniciado pelo estímulo inicial e completado pelo estímulo terminal; ou apenas um movimento contínuo, sem discriminação de perceptos. Ele também se refere à alteração dos resultados pela variação da posição relativa do estímulo: se ambos são retas que apresentam entre si um ângulo de 90º, o movimento visto será uma rotação do lugar de emissão do primeiro estímulo para o lugar do segundo; se são paralelos, o movimento visto será uma translação; etc.. Já Köhler (1940, p. 59 e 60), em sua obra Dynamics in Psychology, destaca as variações possíveis a partir do número de estímulos terminais apresentados: se dois estímulos qualitativamente similares ao primeiro – mesma cor, tamanho e intensidade – e eqüidistantes em relação a ele são apresentados, o efeito será um duplo movimento, partindo do estímulo inicial em direção a cada um dos dois estímulos terminais. Se estas mesmas condições são reproduzidas, mas um dos dois estímulos terminais é claramente diferente do inicial, não haverá um duplo movimento e sim apenas um, entre os estímulos similares. Uma interessante observação deste gestaltista é que tais resultados já indicariam algumas evidências experimentais do fator de igualdade, que seria formalmente apresentado por Wertheimer só alguns anos mais tarde.

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pela fórmula a b, em que o estímulo inicial gera claramente o percepto do qual o movimento parte e o estímulo terminal gera de maneira igualmente precisa o percepto que marca o fim deste movimento. Nestas percepções de tipo novo, o que ocorre é um gradativo aumento da relevância do movimento para a totalidade da percepção, de modo que ele passa a abarcar a percepção inicial, na qual habitualmente encontrava o seu ponto de partida, e pode mesmo abarcar a percepção terminal, fazendo com que nem um ponto de partida, nem um ponto de chegada qualitativamente distintos do próprio movimento sejam dados na experiência. Consideremos o primeiro destes casos. No fenômeno  habitual, a serve de percepto primário para que o movimento luminoso se defina e chegue a b. Caso o tempo transcorrido entre as duas emissões seja ligeiramente reduzido em relação aos 60σ necessários para o resultado ótimo88, o que temos é um desaparecimento da percepção pontual de a e uma percepção clara de um risco luminoso que se move em direção a b, cujo aparecimento distinto é ainda preservado. Temos, portanto, uma espécie de incorporação de a por , como se este fosse uma totalidade na qual todo percepto que corresponda a a está inserido como parte, como um conteúdo não-autônomo que só pode ser posteriormente inferido por meio de esforço abstrativo. O sujeito experimental, deste modo, tem dois dados visuais em sua experiência do movimento: o próprio movimento e o percepto que marca o seu fim. Trata-se, esquematicamente de (a)b. No segundo caso, quando o intervalo ótimo é reduzido ainda mais, temos uma relevância tal do movimento que ele não apenas abarca o percepto a, mas também o b, sendo dado ao sujeito experimental basicamente o ‘aparecimento de movimento puro’ (reine Bewegungserscheinung), um raio contínuo, idêntico a si mesmo. Deste movimento, a e b são também partes e só podem ser inferidos pela mesma experiência de abstração acima indicada. Esquematicamente, temos ( ab). Encontramos, assim, três fenômenos possíveis a : um em que ele se mostra entre dois perceptos autônomos e que definem o seu fundamento – a  b; outro em que ele abarca o percepto inicial, deixando apenas que o final preserve esta sua autonomia original – (a)b; e ainda outro em que ele absorve para si o todo da experiência visual do sujeito, abarcando tanto o percepto inicial, quanto o final – (ab). Estes dois últimos resultados são Wertheimer não especifica em quantos  deve se dar qualquer uma das reduções consideradas neste parágrafo. 88

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de relevância central, pois indicam, a nível de percepção visual, uma espécie de razão formalmente idêntica àquela encontrada nos estudos antropológicos há pouco citados acerca de experiências de quantidade incompatíveis com o raciocínio matemático. Se nestas experiências o que importa é a definição de um determinado sentido fundamental a partir de que a compreensão de quantidade se dá como parte dependente, nas variações de  o que ocorre é a possibilidade de este assumir como partes os próprios perceptos luminosos que antes ocorriam ligados a ele. O que antes era um ligar e um abarcar torna-se um compreender inteiramente em si mesmo. E, com isto, uma hierarquia entre os dados acaba se instalando, o dar-se de uma totalidade precedendo claramente o dar-se de partes. A mesma anterioridade constatada no exame das formas primitivas de pensamento quantitativo é constatada aqui, acerca de uma percepção visual específica. É precisamente este raciocínio que se encontra na base da reformulação do conceito de Gestalt por Wertheimer, como poderemos ver de maneira mais detida dentro em pouco. A atenção ao conteúdo psiquicamente dado, portanto, traz resultados de grande peso para a compreensão da experiência de modos ainda novos, essencialmente distintos daqueles oferecidos pelas psicologias precedentes. Não apenas encontramos um claro desafio, posto por qualquer um dos modos de percepção do movimento acima considerados, à explicação de todo percepto por excitações periféricas, mas encontramos também uma nova maneira de interpretar o resultado fenomenal por elas apresentado.

3.2.3. A hipótese do curto-circuito e das funções transversais: Ainda que os interesses descritivos de Wertheimer constituam uma parte substancial de sua abordagem na investigação do movimento visto, encontramos, ao fim de seu texto, uma importante reflexão acerca da possível explicação fisiológica do fenômeno . Junto à procura por isolar as variáveis experimentais que definem a ocorrência do movimento, a tentativa de esboçar uma teoria fisiológica que indique os possíveis estados do organismo quando este integra aqueles estímulos e possibilita a experiência em questão, mostram com clareza que este interesse descritivo é acompanhado por um também acentuado interesse genético. Como veremos adiante, a metodologia gestaltista é marcada por uma cuidadosa combinação de descrição e explicação genética, a qual já pode ser encontrada nos estudos aqui considerados. Nisto, parece-nos admissível enxergar certa influência da articulação

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brentaniana entre estes dois registros possíveis à investigação psicológica, como estabelecido nas preleções de 1889 e 1890, intituladas Psychognosie. Consideremos este excursus pela fisiologia. De acordo com Wertheimer, podemos compreender os efeitos peculiares dos experimentos estroboscópicos na percepção visual se entendermos que os eventos neurais que indicam o processamento da informação sensível já a nível central, após os devidos processos conversivos e o direcionamento dos impulsos resultantes aos núcleos cerebrais responsáveis, são efeitos pontuais, mas que excitam uma área do tecido nervoso com certa amplitude, que se torna mais suscetível a efeitos eletroquímicos peculiares nisto que é excitada. Se os efeitos centrais da estimulação forem tais que uma região nervosa excitada tenha este seu efeito de área afetado pelo efeito de área de outra região nervosa próxima excitada pouco após, ambos os processos entram em uma relação peculiar, interferindo na ordem própria a cada qual e gerando uma espécie de curto-circuito. Uma descarga eletroquímica é produzida no tecido nervoso existente entre ambas as áreas afetadas, sendo precisamente este processo cerebral peculiar que se encontra na base do efeito psicológico peculiar acima descrito, i.e., . Wertheimer (1912) explica: De acordo com pesquisas recentes em fisiologia cerebral, tem de ser aceito como provável que, com a irritação [Erregung] de um lugar central a, está posto um efeito fisiológico em certa área [Umkreis] em torno do mesmo. Se dois lugares, a e b, são postos em irritação, então resultaria um tal efeito de área [Umkreiswirkung] em ambos os lados – a área está predisposta a processos de irritação. Se o lugar a for irritado e em tempo consideravelmente curto e, logo após, o lugar b, então ocorre uma espécie de curto-circuito fisiológico [physiologischen Kurzschlusses] de a para b: na distância entre ambos os lugares ocorre uma travessia [Hinüber] de irritação específica; se o grau do efeito de área de a, e.g., atinge o ponto alto de sua trajetória e ocorre o efeito de área de b, então a irritação flui através, um processo fisiológico específico cuja direção é assim dada pelo fato de a e o efeito de área ao redor de a estarem lá primeiramente. Tanto mais próximos os dois lugares a e b estiverem um do outro, tanto mais favoráveis são as condições para o surgimento do processo  [...]. (p. 248)

Se o intervalo entre os estímulos for maior do que o intervalo ótimo, esta superposição dos efeitos de área não acontece, o primeiro deles surgindo e se desfazendo antes mesmo que o segundo surja. Se o intervalo for menor, de modo a ocasionar o estágio de simultaneidade, os efeitos são muito próximos entre si para possibilitarem o fluxo eletroquímico citado. A hipótese de que haja processos de curto-circuito no campo cerebral, no entanto, repousa sobre a hipótese mais geral de que, nos processos nervosos que

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envolvem excitações numerosas, aptas a formarem um conjunto em que as funções de uma excitação acabam tendo ingerência sobre as funções das demais que surgem em suas imediações, atuam certas ‘funções transversais’ (Querfunktionen), que definem os processos especiais entre os locais excitados. Isto significa que o processo fisiológico geral que ocorre no cérebro nestas circunstâncias não pode ser compreendido apenas pela consideração de processos isolados e pela soma de suas propriedades individuais, mas sim por critérios bastante específicos de inter-relação destes processos: Subjaz aqui a pressuposição de que os processos de irritação nas células irritadas elas mesmas ou a soma destas irritações isoladas não são o que há de essencial, mas sim que um papel importante e diretamente essencial para vários fatores a serem psicologicamente apreendidos é atribuído aos processos transversais e de conjunto [Quer- und Gesamtvorgängen] característicos, que resultam da irritação de lugares individuais. (WERTHEIMER, 1912, p. 251)

Há uma espécie de princípio holístico na organização destes processos cerebrais, que se encontra na base dos efeitos peculiares – e também claramente holísticos – da percepção. Nas últimas palavras de seu texto, ao descrever novamente o aparecimento de , Wertheimer indica de maneira bastante passageira o fato de compreender o resultado destes princípios de organização, i.e., a totalidade singular por eles definida, como uma Gestalt. Em se tratando de , portanto: [...] os dois objetos aparecem, via de regra, de maneira particular como duo in uno, como uma forma total [Gesamtgestalt] cogente: não estão lá duas linhas partindo de um ponto, mas um ângulo; não uma linha horizontal por cima e outra por baixo, mas a forma [Gestalt]. (WERTHEIMER, 1912, p. 251)

Se antes encontrávamos sub-repticiamente introduzidas as teses de uma estruturação de fenômenos psíquicos e fisiológicos que priorizava a totalidade e não as suas partes, agora vemos claramente Wertheimer dar um nome a esta ordenação peculiar. Trata-se de uma Gestalt. O movimento de afastamento das teses de Ehrefenls e Graz está consumado, bem como o fato de que um novo sentido para o conceito – ou, de maneira mais precisa, um novo conceito – é indicado.

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3.3. Os fundamentos da teoria da percepção: A partir destas contribuições iniciais de Wertheimer, podemos passar já à consideração do gestaltismo berlinense como um movimento intelectual de maior abrangência, na medida em que muitas das teses que foram aos poucos se definindo após estes primeiros e relevantes passos foram desenvolvidas por um esforço conjunto de pesquisa, em que os demais autores da escola passam a ter gradativamente maior relevância. Antes de aproveitarmos as indicações acima acerca da necessidade de uma nova definição para o que seria Gestalt, é importante que consideremos alguns dos aspectos centrais da teoria da percepção desenvolvida pela psicologia experimental precedente que surgem, na avaliação dos gestaltistas, como essencialmente enganosas e impróprias ao exame científico da experiência. Uma tal passagem por estes aspectos reputadamente mais criticáveis das teorias precedentes servirá adequadamente para que façamos a ponte entre estas teses iniciais dos dois artigos de Wertheimer e o conceito fundamental da Escola de Berlim, uma vez que, a cada crítica feita, uma forma alternativa para a compreensão da experiência é introduzida.

3.3.1. A crítica às hipóteses do mosaico, da associação e da constância: Como parte relevante de suas propostas iniciais, deste modo, os membros da Escola de Berlim buscaram definir um conjunto de princípios que criam subjacentes às teorias psicológicas cujo desmonte pretendiam realizar. Os dois primeiros dentre estes princípios, as assim chamadas tese do mosaico ou do aglomerado (Mosaik- oder Bündelthese) e tese de associação (Assoziationsthese), foram apresentadas por Wertheimer, enquanto a hipótese de constância (Konstanzannahme) foi descrita por Köhler e posteriormente trabalhada também por Koffka. É importante salientar que estas críticas se dão a partir do mesmo interesse descritivo encontrado nos primeiros estudos de Wertheimer, o qual buscava entender, em primeiro lugar, a maneira como a própria experiência se dá ao indivíduo que a tem, o nexo por ela apresentado, e não medi-la por critérios que lhe são exteriores. Toda a teoria gestaltista da percepção e, em um passo mais abrangente, toda a teoria da experiência, é edificada a partir deste propósito de expor o que nos aparece na condição mesma pela qual nos aparece, partindo da vida psíquica em sua manifestação mais imediata, pura, ingênua e descomprometida de enviesamentos teóricos, de modo a teorizar

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sobre o que ela efetivamente nos oferece. Esta valorização do psiquicamente dado, por razões bastante evidentes, tem de nos guiar a resultados bastante distintos daqueles oferecidos pelas teorias experimentais que não se preocupavam senão com transpor ao nível da consciência conceitos e princípios que foram gestados nos campos da ciência natural, como a física e a fisiologia. Estes primeiros passos para a construção de uma nova psicologia gestaltista, portanto, são fortemente movidos pela perspectiva de que o psíquico tem de ser apreendido em sua condição natural, na forma mesma como ele flui em nossa vida ordinária, e, a partir disto, cientificamente tematizado. É precisamente este motivo que justificará, em obras posteriores de Köhler e Koffka, a afirmação de que certa fenomenologia faz parte dos procedimentos de pesquisa gestaltista. Só teremos condição de nos debruçar sobre isso mais à frente, no entanto, mesmo por que nos textos ora analisados não consta semelhante reivindicação. Vejamos, antes, o que cada uma daquelas hipóteses elencadas quer dizer e que indicação pode ser tirada delas para um novo trabalho. (1) A tese do mosaico ou do aglomerado diz respeito à proposta básica do elementarismo já amplamente vista em nosso capítulo inicial, qual seja, a de que toda experiência é um agregado de elementos mínimos, difusos, irredutíveis, independentes uns dos outros e que definem o estrato mais basal de nosso contato com o mundo – as sensações. Qualquer percepção ou qualquer outra experiência por ela fundada seria inteiramente constituída por um simples somatório de sensações assim caracterizadas. É precisamente aqui que Wertheimer deixa transparecer a profunda influência do conceito de ‘conjunto’ (Inbegriff), de Carl Stumpf, o qual já sabemos ter sido reservado por este pensador para caracterizar as formações psíquicas que não possuem critérios internos de organização. Wertheimer, em suas Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt I (1922), define a tese clássica da seguinte maneira: A todo ‘complexo’ subjaz inicialmente, como fundamento [Grundlage], a soma [Summe] de conteúdos, partes componentes [Bestandstücke] (sensações etc.) elementares dados uns ao lado dos outros. Tem-se que lidar, no fundamento, com uma variedade somativa de partes componentes de diversos tipos (um aglomerado [Bündel]); tudo o mais se constrói nas ‘somas por mera conjunção’ [Und-Summe] de elementos quaisquer. (p. 49)

A oposição feita pelo psicólogo a estas reivindicações é a de que, se forem consideradas pelo homem ingênuo, elas deverão parecer inevitavelmente monstruosas, artificiais, impróprias ao caráter sincrético e total da experiência que ele efetivamente tem 189

em qualquer situação de sua vida ordinária. Ao fazermos experiência de uma coisa qualquer, não perceberíamos os componentes simples e irredutíveis que, nesta coisa específica, ocasionam respostas pontuais em nosso aparato sensorial e se expressam psiquicamente como sensação. Em vez disto perceberíamos o todo, o conjunto articulado e significativo no qual cada uma daquelas propriedades surge e, apenas ao nos darmos conta do lugar em que qualquer uma delas é posta, em função da inter-relação estabelecida com as demais, é que podemos inferir seu sentido enquanto parte deste todo. De maneira a mostrar o caráter meramente aditivo das sensações nestas teorias, Wertheimer concebe um neologismo de difícil tradução para o português chamado Und-Summe, o qual optamos por traduzir aqui como ‘somas por mera conjunção’89. Pelo termo, o psicólogo aponta basicamente para o fato de que as operações de síntese são simples agregações de conteúdos cujas fronteiras individuais não são desfeitas, preservando sempre a sua condição de átomos psíquicos. Trata-se de uma soma no sentido mais grosseiro da expressão, voltada a unidades indiferentes entre si, o que indica o próprio ‘e’ (Und) presente na expressão – a sensação pontual s1 e a sensação pontual s2 e quantas mais tiverem de ser enumeradas constroem a inteireza do objeto. Decerto, a expressão atende ao interesse fundamental de Wertheimer, que é mostrar a estranheza de tais concepções à vida consciente mediana. Estaríamos, no nível mais basal de nossa experiência, já em contato com objetos, e não com sensações a partir das quais estes surgiriam. Em oposição à tese profundamente contraintuitiva das psicologias precedentes, portanto, o gestaltismo se atribui como tarefa a construção de teses consoantes à vida psíquica média90. (2) A tese da associação diz respeito à perspectiva, também vista repetidas vezes em nosso capítulo inicial, segundo a qual a natureza destas ligações entre os elementos é plenamente contingente, arbitrária, determinada por critérios exteriores aos próprios

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Ainda que a tradução não seja fiel à estrutura vocabular do termo alemão, ela retém o seu sentido próprio. Em nosso idioma, não parece ser possível atender tanto ao critério da fidelidade vocabular, quanto ao da preservação do sentido sem gerar uma expressão muito excêntrica. Este não é o caso do inglês, claramente, no qual podemos encontrar a eficiente tradução and-summations, como propõe Ellis. 90 É bastante evidente aqui que Wertheimer se apóia em Stumpf para afirmar algo diferente do que o próprio psicólogo afirmara: se, para este, explicitar a natureza somativa dos ‘conjuntos’ não consiste em nada além de mostrar os critérios que os diferenciam das Gestaltqualitäten, para Wertheimer consiste em evidenciar o absurdo inerente à própria teoria, uma vez que esta soma não parece plausível ou intuitivamente admissível a ninguém que se proponha pensar sobre a própria experiência. Parece-nos, inclusive, que Wertheimer poderia dizer que, por meio desta definição, Stumpf já teria recursos suficientes para refutar o conceito clássico de objeto, não o tendo feito por qualquer infelicidade exterior a esta reflexão.

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elementos. A contigüidade espaço-temporal de um elemento em relação a outro seria o fator primeiro de sua associação, não havendo nunca o levantamento da questão sobre uma possível necessidade intrínseca de um dado arranjo ser como é. Wertheimer (1922) define a tese nos seguintes termos: “Se freqüentemente um conteúdo a esteve junto a outro conteúdo b (‘em contigüidade espaço-temporal’), então existe a tendência de que o ocorrer de a atraia para si o aparecer [Erscheinen] de b.” (p. 49) As ligações operadas pelos fatores associativos no campo sensorial seriam, segundo o psicólogo, ligações meramente existenciais, que indicariam algo como um ‘ocorrer freqüentemente de maneira conjunta’ dos conteúdos ligados e nada além disto – nenhum sentido próprio, nenhuma força necessária que estabeleça como o objeto deverá aparecer, nenhum ordenamento que permita ao objeto ser tomado por algo além de um ponto de convergência de dados estéreis, que em si mesmos não comunicam nada. Ele afirma, ainda empregando termos já presentes na obra de Stumpf: Na associação é dada uma mera ligação existencial [Existential-verbindung], uma ligação referente apenas à ocorrência de conteúdos quaisquer; um encadeamento [Verkettung] que é, por princípio, de natureza extrínseca [sachfremder]; os conteúdos encadeados são aleatórios uns em relação aos outros; sua referência conteudística de uns para com os outros [inhaltliches Zueinander] não vem, por princípio, ao caso; como eles se relacionam um para com os outros, não tem nenhum papel; eles não têm ingerência interna de uns para com os outros. Nenhuma ponte, por princípio, leva de um ao outro, salvo a mera ligação existencial. (WERTHEIMER, 1922, p. 49)

Em discordância com esta perspectiva – a qual pudemos encontrar repetidas vezes nos teóricos examinados no primeiro capítulo –, a Escola de Berlim buscará pensar quais fatores inerentes à própria disposição dos estímulos uns em relação aos outros, quando de sua apresentação ao sujeito da experiência, fazem com que estes mesmos estímulos apresentem tal ou qual sentido, relacionem-se de um ou de outro modo e expressem, portanto, uma necessidade intrínseca em aparecer como aparecem. Buscará, em uma palavra, pensar o dado de forma estrutural e não pela agregação contingente de conteúdos; pela ênfase nas suas demandas internas de ordenação, e não nas forças externas que presumidamente o definem. (3) A hipótese de constância, por fim, refere-se à crença acerca da existência de uma relação fixa entre o excitante físico e a resposta sensorial, também vista em nossos capítulos iniciais. Como nos indica Ash (2011, p. 135 e 136), Köhler se refere

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especialmente aos trabalhos de Helmholtz e Stumpf quando emprega o termo – o primeiro por defender, como vimos, que na origem de toda sensação pontual e toda representação preservada na memória estão estímulos físicos discretos; o segundo por defender a possibilidade de apreendermos dados sensíveis não notados em nosso quadro perceptual e encontrarmos, nestes dados, elementos suficientes para construir hipóteses sobre a gênese do objeto, a qual também contaria com a referência destes dados a estímulos físicos discretos. Podemos ver tal concepção também na psicofísica, a qual entender ser possível a mensuração objetiva das sensações e a construção de escalas de gradação precisas que estabeleçam os limiares entre uma sensação específica e as suas sensações vizinhas. Deste modo, aos elementos sensoriais individualmente considerados corresponderiam sempre estímulos físicos também individuais, havendo uma constância na relação entre as magnitudes de ambos. De acordo com a formulação de Koffka (1922) para definir a hipótese de constância: “[...] a sensação é uma função direta e definida do estímulo. Dado certo estímulo e um órgão sensorial normal, sabemos que sensação o sujeito deve ter, ou melhor, sabemos sua intensidade e sua qualidade [...]” (p. 534) É importante registrarmos que, se todas estas três hipóteses sofreram oposição das teses positivas aventadas pela Escola de Berlim – as quais buscavam mostrar experimentalmente as suas limitações e, através do apelo à experiência ordinária dos sujeitos, sua inadequação descritiva –, a hipótese de constância, especificamente, recebeu uma atenção especial no sentido de serem apontados indícios de sua inconsistência já na própria psicologia experimental anterior91. E é precisamente Carl Stumpf que surge aqui novamente, ocupando a insólita posição de defensor da hipótese e de pesquisador que teria já oferecido resultados experimentais relevantes para a sua crítica, a despeito de não os ter explorado neste sentido. De acordo com Koffka (1922), podemos encontrar estes dados naquilo que viria a ser conhecido como o ‘paradoxo de Stumpf’. Como aponta este pensador – em pesquisas que não foram tematizadas por nós no capítulo anterior – é sempre possível causar em um sujeito três sensações pontuais a, b, c e obter dele o julgamento de que as intensidades da primeira e da segunda sensação se equivalem (a = b), bem como as da segunda e da terceira sensação (b = c), mas que as intensidades da primeira e da terceira

No que respeita ao gestaltismo, podemos encontrar já no fenômeno  uma clara oposição a esta hipótese, uma vez que  não tem correlato em nenhuma excitação periférica. 91

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sensação diferem (a ≠ c). Isso seria possível pela apresentação sucessiva de três estímulos gradativamente mais intensos, dos quais as sensações a, b e c seriam correlatas. A diferença de intensidade entre os estímulos, contudo, deveria ser muito pouco expressiva, o estímulo causador de b pouco distando do causador de a, e o causador de c pouco distando do de b. Este quadro mostraria que não poderia haver uma relação tão precisa entre o excitante e a resposta orgânica, tal como pretendia a psicofísica, uma vez que encontramos estimulações de magnitudes distintas evocando as mesmas sensações. A conclusão de Stumpf, no entanto, é a de que somos incapazes de perceber diferenças sutis entre os estímulos e que, por conseguinte, as escalas estruturadas pela investigação psicofísica mostravam não tanto fatos da sensação, mas sim de nossa capacidade de percebê-las, de tê-las advertidas e diretamente dadas em nossa experiência atual. Como explica Gurwitsch (1955): [...] devemos admitir, segundo Stumpf, que podem existir entre as sensações diferenças que são dadas, mas que, a despeito do máximo de atenção, não são percebidas. Não apenas os estímulos podem diferir sem que as sensações correspondentes sejam dadas como diferentes, mas as sensações elas mesmas podem ser diferentes sem que sua diferença seja percebida. (p. 106)92

Para explicar o impacto deste problema entre os psicólogos experimentais, Koffka (1922, p. 537 e 538) lança mão de uma analogia, dizendo que a hipótese de constância assume um esquema explicativo similar à descrição física do atrito. No que se refere a este fenômeno, temos que uma força aplicada a um corpo em estado de inércia sobre determinada superfície deve ser mais intensa do que a força requerida apenas para mover a massa do corpo, uma vez que deve superar a resistência imposta pela própria superfície na qual ele se encontra. No que se refere à formação das sensações a partir da estimulação do organismo, temos que, se um estímulo de certa intensidade causa uma sensação específica, uma intensificação muito baixa no estímulo pode não causar uma sensação diferente da

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Apesar de já trazer resultados experimentais que atacam a hipótese de constância, portanto, Stumpf tenta preservá-la, lançando mão do conceito de ‘sensações não-notadas’ (unbemerkte Empfindungen) para minimizar a discordância entre suas descobertas e o esquema explicativo tradicional. Entendendo que o paradoxo dos três estímulos é explicado pela incapacidade de nos apercebermos de uma sensação infimamente mais intensa que outra, ele mantém a idéia psicofísica de que a magnitude da estimulação objetiva é proporcional à magnitude das sensações, de acordo com uma correspondência ponto a ponto. A relação estímulo-sensação não é perturbada pela explicação que Stumpf decide dar ao resultado de seus experimentos, mas, ao situar a explicação na nossa percepção das sensações, ele deve admitir que existem sensações que não são percebidas enquanto tais. A despeito da Escola de Berlim criticar severamente estas ‘sensações não-notadas’, como podemos ver em Koffka (1935/1975, p. 97 e 98), não exporemos esta crítica aqui, seguindo o tratamento que este mesmo autor dá ao tema em seu artigo de 1922.

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primeira. Para que uma outra sensação surja, a intensificação deve ser maior – i.e., transpor determinado limiar, como na superação do atrito. Koffka cita outras evidências experimentais que reforçam o problema colocado por Stumpf. Sempre que aplicamos dois estímulos a e b em um sujeito, sendo o primeiro ligeiramente mais intenso que o segundo (a > b), temos quatro respostas possíveis à pergunta sobre a relação existente entre as duas intensidades: (1) afirmação de uma eqüidade (a = b); (2) a atribuição de maior intensidade ao primeiro estímulo (a > b); (3) a atribuição de maior intensidade ao segundo estímulo (a < b); ou (4) incerteza. Ora, se de acordo com a teoria clássica há uma proporcionalidade entre a intensidade do estímulo e a intensidade da sensação correlata, e o único fator a não fazer desta relação algo perfeitamente distribuído é que, entre duas sensações distintas mais próximas, há certa quantidade de estímulos que não geram nenhuma sensação além da mais fraca dentre estas, por tal teoria não se pode explicar a terceira resposta enumerada acima. Não há como ela explicar que um estímulo seja avaliado como menos intenso que outro, quando a realidade física de ambos diz exatamente o contrário. A despeito de algumas tentativas de se superar esta dificuldade – entre as quais a própria explicação de Stumpf, já mencionada –, a psicologia experimental não alcançou nenhum consenso acerca do que seria esta possível superação. Para atacar com maior veemência a hipótese de que a integridade individual dos estímulos e das sensações correspondentes é importante para o estudo científico da experiência imediata, foi de grande utilidade ao gestaltismo ver o quanto a própria aplicação deste princípio pode ser contraproducente e originar resultados experimentais que a desautorizam. Que temos neste diagnóstico de princípios da psicologia precedente e na escolha, por oposição, de novos interesses e propósitos de pesquisa? Temos que o gestaltismo busca para si uma compreensão da experiência que seja caracterizada por: (1) um compassamento direto do que se infere acerca dessa experiência com o que o homem pode atestar em sua vida comum – isto quer dizer, em termos certamente não-gestaltistas, um estudo que seja de valor intuitivo, endossado pela experiência não-científica; (2) uma atenção prioritária às demandas internas de organização do dado, sem buscar em mecanismos genéticos como a associação ou demais processos sintéticos a explicação para os eventos conscientes; e (3) uma tentativa de explicitar a natureza do dado sem tomá-lo por mero efeito tardio de

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estímulos físicos captados pela periferia nervosa. Todos estes itens encontram sua realização maior no próprio conceito fundamental da Escola de Berlim, o conceito mesmo de Gestalt. Tendo considerado os primeiros estudos em que este conceito vai aos poucos sendo definido, bem como os principais aspectos das teorias experimentais da percepção aos quais ele se opõe, temos condição de passar com conforto ao seu exame.

3.3.2. Um novo conceito de Gestalt: É por meio do conceito de Gestalt que a Escola de Berlim pretende oferecer um novo tratamento à experiência que preencha, de certo modo, todas estas pretensões erguidas até então. Uma boa exposição deste conceito é oferecida por Wertheimer em sua já citada preleção Über Gestalttheorie (1924), proferida junto à Kants Gesellschaft de Berlim e destinada precisamente à introdução dos fundamentos de sua teoria. Nesta preleção, o psicólogo afirma: Pode-se tentar formular o problema fundamental da teoria da forma mais ou menos da seguinte maneira: há conexões [Zusammenhänge] com relação às quais o que ocorre no todo [Ganzen] não é derivado de como os pedaços individuais [die einzelnen Stücke] são e como eles se compõem [zusammensetzen], mas, ao contrário, nas quais – em caso pregnante [prägnanten] – o que ocorre em uma parte [Teil] deste todo se define a partir das leis estruturais internas deste seu todo. (WERTHEIMER, 1924, p. 3)

Esta simples formulação marca a relevância geral dos raciocínios antes vistos, em ambos os textos de 1912, que mostram a necessidade de atentarmos à realidade psicológica como um dado íntegro e que guarda uma complexidade inerente, buscando encontrar apenas a partir daí em que medida certas partes, já comprometidas com o sentido total, podem ser inferidas. O que antes se mostrou válido para a compreensão de formas culturalmente específicas de cognição e para fenômenos visuais peculiares se mostra uma via privilegiada para a compreensão dos desdobramentos psíquicos de maneira geral, definindo, a rigor, um programa de estudos da experiência, no qual a tese de que os objetos poderiam ser compreendidos basicamente pelo estudo de suas causas próximas – i.e., fisiológicas – e distantes – i.e., físicas – seria relegado à condição de ficção teórica. Tratar-se-ia não de projetar ao mundo da experiência a descontinuidade característica dos objetos de estudo das ciências naturais, presumidamente divisíveis em processos mais pontuais que estruturariam processos mais abrangentes por meio de relações mecânicas,

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mas sim de tomar como ponto de partida a experiência ela mesma e desenvolver acerca deste exame imanente, qualitativo e descritivo inicial, o que depois seria tomado como objeto de análise experimental e submetido aos rigores da ciência positiva. Os dados enquanto dados, portanto, seriam o único ponto de partida admissível para uma psicologia efetivamente comprometida com a experiência. E isto implica na assunção de sua totalidade imediata, da maneira pela qual eles mesmos se nos dão, de sua Gestalt, e nunca em uma hipótese genética que a afastasse e erguesse pretensões de explicá-la a partir do que a experiência mesma desconhece. A afirmação de que a experiência desconhece sensações não é leviana, cabe ressaltar. Por mais que possamos considerar que dados sensíveis menos abrangentes possam ser obtidos por meio de abstração, como já indicamos anteriormente, isto não quer dizer de modo algum que estes dados possam equivaler ao conceito de sensação tal como ele é introduzido pela psicologia tradicional. Este conceito, também já o sabemos, exige que a sensação seja algo puro, estritamente individual e irredutível – predicados que não podem ser assegurados por um simples esforço, não importa o quão persistente, de retirada de um conteúdo de seu lugar de origem. O mais perto de sensações que conseguimos obter são partes abstraídas, mas estas nunca são átomos sensíveis puros, guardando sempre algo da complexidade que a caracterizava já de início93. De acordo com Guillaume (1963): As sensações da psicologia analítica não possuem [...] existência real, a menos que queiramos dar esse nome a percepções que resultam, em condições bem artificiais, do desmembramento de estruturas de fraca ligação interior, percepções escolhidas arbitrariamente e sem privilégio real sobre todas as outras. Não há motivo para – é um falso problema – procurar por qual operação de síntese supra-sensorial essas sensações seriam unidas, agrupadas, pois não são senão o produto do desmembramento das formas naturais e a análise, em muitos casos, não pode querer duplicar-se, com uma experiência real, e permanece puramente lógica. Disso resulta que a separação das qualidades formais e qualidades sensíveis não pode ser mantida, pois estas últimas não são, absolutamente, constantes, mas dependem das formas variáveis a que pertencem, e sem as quais perdem sua identidade. (p. 11 e 12)

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Um argumento ulteriormente oferecido para isto, ao qual ainda passaremos, é o de que os menores dados sensoriais que nos são possíveis apresentam já estrutura complexa, obedecendo à distinção figura-fundo. Como ainda não estamos em condição de considerar as leis da forma neste momento, deixaremos esta referência apenas assinalada e esperaremos o momento correto para retomá-la.

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O elementarismo, por força destes argumentos, tem de ser considerado inteiramente inadequado para a compreensão radical do psiquismo e um novo caminho tem de ser estabelecido. Este caminho, bem entendido, é de natureza holística. A nova definição de forma, como era de se esperar, não é concebida apenas em diálogo com a psicologia elementarista, mas também com as contribuições daquele pesquisador que deu maior relevância à discussão acerca de formas na psicologia do século XIX, Christian von Ehrenfels. Como já vimos, no entanto, a própria maneira pela qual esta discussão foi posta mostrou-se pouco radical, pois, a despeito de lançar certo desafio ao paradigma tradicional, mostrando fatores não-sensíveis de suma importância para a compreensão da sensibilidade, preservava diversas características daquele, como a existência de elementos sensoriais na base dos processos psíquicos e a correspondência destes elementos a eventos fisiológicos discretos. Na preleção que orienta a nossa exposição, Wertheimer reconhecerá esta condição peculiar da teoria de Ehrenfels. Quando passa mais atentamente em revista as afirmações do autor, no entanto, ele se depara com o que lhe parece ser um problema descritivo fundamental e que embasa a sua refutação do conceito de forma como qualidade. De que maneira podemos considerar fiel à percepção acústica de um sujeito que se disponha a apreciar uma melodia a descrição de que a sua atividade mnemônica promove uma espécie de costura nos diferentes dados da percepção, de modo a permitir que estes dados surjam como partes de um contínuo, de um movimento definido ao qual chamamos ‘melodia’? De que modo podemos entender que a percepção se encontra estritamente dependente deste dar-se ainda individual de elementos sensoriais e de sua ulterior complementação por uma qualidade formal, que paira sobre a matéria apreendida e lhe estabelece os contornos e a unidade, em um momento claramente segundo? Não seria esta uma esquematização imprópria do que vivemos – i.e., o simples apreender da melodia e o visar de sons conjugados como partes do que a própria melodia nos comunica? De acordo com Wertheimer, a concepção de Ehrenfels seria estranha ao curso da experiência, justo por buscar reter na condição de fator genético o que só pode ser compreendido por meio de cuidadosa atenção dirigida ao sentido imediato assumido pela experiência. O psicólogo critica a posição de Ehrenfels com a seguinte seqüência de perguntas, que mostra uma gradativa inversão das relações de dependência, em que não mais um todo se compõe a partir da convergência de partes autônomas, mas sim as partes

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se mostram como fruto artificial de um esforço dirigido, de uma clara operação de desmembramento da totalidade imediatamente apreendida: É mesmo verdadeiro que, quando eu ouço uma melodia, eu tenho, em todo caso, uma soma de sons isolados como fundamento a ser visto primariamente – os sons isolados como pedaços [Stücke]? Não se passa, talvez, o contrário: que o que eu realmente tenho, o que eu tenho no lugar de sons isolados, o que surge aí em mim, é uma parte [Teil] que se define, mesmo em si, a partir do caráter do todo [Ganzen]? Que o que me é dado na melodia não se constrói de algum modo (por meio de qualquer recurso) secundariamente com base na soma dos pedaços isolados em si, mas sim que o que está presente isoladamente surge como algo já radicalmente dependente de como é o seu todo? Que a carne e o sangue [das Fleisch und Blut] de um som na melodia depende já de seu papel na melodia? Que um si como nota de condução [Vorhalt] para dó é algo radicalmente diferente de um si como tônica? Que pertence à carne e ao sangue de um dado [Gegebenheit] a maneira como, em que papel, em que função ele está em seu todo? (WERTHEIMER, 1924, p. 5 e 6)

Em relação ao conceito de Ehrenfels, portanto, temos uma mudança consideravelmente relevante, já assinalada por Smith (1988, p. 13): se, para o psicólogo de Graz, a qualidade seria um dado entre outros, que não faria senão se ajuntar aos conteúdos, abarcá-los e definir o seu ordenamento, na concepção berlinense, os dados da percepção só podem surgir na medida em que se enquadram em uma totalidade que os significa. Estes dados não têm uma Gestalt, como em Ehrenfels; eles são uma Gestalt. Temos, em um caso, este conceito como mera qualidade do percebido; em outro, como totalidade do percebido. É patente, portanto, que a crítica dirigida a Ehrenfels é basicamente a mesma crítica dirigida ao elementarismo. O escopo desta crítica, a rigor, estende-se a toda teoria da percepção que opere por meio desta distinção categorial que vemos ser válida para a quase totalidade dos autores considerados até então: a distinção entre sensações e objeto. Deste modo, tanto o elementarista que postula a composição do objeto por associação, quanto o psicólogo descritivo que afirma a existência de fatores formais por intervenção da memória ou por um ato intelectual erram por postular uma teoria da percepção em dois níveis, dos quais aquele que se pretende explicação - i.e., as sensações – não consegue ser efetivamente visto nem mesmo entre os conteúdos abstraídos do nível a ser explicado 94. A

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Como veremos em nosso quarto capítulo, mesmo a teoria da percepção de Husserl tem de cair sob esta crítica, uma vez que se apóia na tese geral da constituição de objetos por meio da interpretação de sensações. A despeito do estatuto da sensação na fenomenologia ser bem diferente daquele proposto por qualquer uma das psicologias até então vistas, a diferença categorial é prevalente.

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suma da posição gestaltista contra seus interlocutores, deste modo, pode ser encontrada na seguinte passagem das já citadas Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt I: [...] não são ‘os pedaços’ [die Stücke] que devem ser fixados primeiramente como o prius, como o fundamento em ‘ligação por mera conjunção’ [UndVerbindung] e sob condições a princípio extrínsecas [sachfremden] ao seu surgimento; elas se encontram freqüentemente como partes sob condições intrínsecas [sachlich] ao seu todo, devem ser entendidas como ‘partes’ deste. [...] Também as formas [Gestalten] não são, aqui, como ‘somas de conteúdos que se acrescem’, ‘subjetivamente construídas’ a partir de pedaços primariamente dados, contingentes, ‘apenas subjetivamente condicionadas’, composições ‘arbitrárias’ [beliebige Gebilde]. Não simplesmente ‘qualidades’ [Qualitäten] tardias e cegas, em fundamento tão desiguais e não-manuseáveis quanto os ‘elementos’; não apenas algo ‘que se acresce a um material’, ‘meramente formal’. Em vez disto, trata-se de um todo e de processos de todo [Ganzprozesse] com múltiplas legalidades [Gesetzlichkeiten] bastante definidas, [...] intrínsecas [sachlichen] – de estruturas [Strukturen] com princípios estruturais [Strukturprinzipen] concretos. Também os assim chamados ‘elementos’ devem ser fixados como partes ou derivados. (WERTHEIMER, 1922, p. 53 e 54)

3.3.3. Exemplos de fenômenos perceptuais: Feita esta caracterização, parece-nos relevante considerar alguns poucos exemplos de condições específicas às quais pode ser submetida nossa percepção de modo a encontrarmos resultados que substanciam a tese de Berlim. Isto permitirá, pelo que nos consta, melhor compreensão deste caráter concreto e vivo que a escola almeja conferir à tese em questão: (1) Consideremos um traço verticalmente disposto, grafado em um papel. Se vemos apenas o traço e nada mais é apresentado junto a ele, nenhum outro traço, imagem ou risco, as possibilidades de o definirmos são diversas. Podemos dizer que se trata de um segmento de reta na vertical, uma letra ‘l’ minúscula, uma letra ‘i’ maiúscula, o número ‘um’ romano, entre outras coisas. Contudo, se ao lado deste traço inserirmos outro elemento, percebemos claramente como uma ou outra daquelas definições pode ser reforçada. Se inserirmos um traço de espessura similar à do primeiro, mas um pouco mais longo, podemos ver o conjunto como dois segmentos de reta desiguais, afirmando, assim, a primeira das definições mencionadas. Se colocarmos ao lado do traço uma letra qualquer, seja maiúscula ou minúscula, ele provavelmente será visto como uma letra também: a adição de uma letra minúscula pode defini-lo como um ‘l’ minúsculo; a de uma letra maiúscula, como ‘i’

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maiúsculo. Se colocarmos a seu lado um número ‘dois’ romano, o traço pode se tornar um número ‘um’ romano. Estas operações podem ser exemplificadas pelas figuras respectivas:

I

I

IA

Ia

I II

Pouco importa se outras configurações surgem diante da apresentação destes exemplos, seja de pronto, em sua observação inicial, ou por efeito da vontade, em considerações posteriores. O primeiro dos exemplos, em vez de ser visto como duas retas desiguais, pode ser considerado uma palavra composta por um ‘i’ e um ‘l’, como no pronome pessoal francês de mesma escrita. O terceiro, em vez de ser visto como um par de letras minúsculas, pode ser considerado uma palavra composta por ‘I’ e ‘a’, como na flexão do verbo ‘ir’, também homógrafa. Seja o caso qual for, não escapamos aqui do movimento já descrito, no qual cada parte é definida por um sistema de referências comum, determinado intrinsecamente pela apresentação conjunta destas mesmas partes. (2) Exemplos musicais também são bastante recorrentes, dada a facilidade de se demonstrar a tese em questão pelas regras do sistema tonal. Neste, temos um conjunto de funções de tensão e repouso definidas pelos intervalos das diferentes notas de uma escala cromática em relação à sua nota fundamental. O quinto grau – ou a quinta nota da escala, partindo-se da fundamental que a nomeia – sempre tensionará a melodia executada; o quarto grau sempre conduzirá a um sutil relaxamento, ainda que, por si só, não baste para conferir à melodia um caráter de finalização; o primeiro grau, por sua vez, sempre promoverá um repouso pleno. Assim, considerando-se, e.g., o campo harmônico de Dó Maior, temos o quinto grau na nota sol e o quarto na nota fá, ao passo que, no campo de Sol Maior, os respectivos graus serão encontrados nas notas ré e dó. Ao confrontarmos ambos, vemos que a nota que tensiona em Dó Maior – a nota sol –, relaxa em Sol Maior, do mesmo modo que a nota que repousa por completo em dó maior – a própria nota dó –, conduz a um repouso parcial em sol maior. Assim, constatamos que não há importância alguma dos caracteres físicos individuais das notas para a definição de seu papel funcional em uma melodia. A nota sol em um ou outro campo harmônico possui, objetivamente, a mesma freqüência e o mesmo comprimento de onda, mas não é, de modo algum, ouvida da mesma maneira.

200

Além das melodias, também a composição de acordes serve para exemplificar tais idéias, uma vez que, na passagem de determinado acorde maior para o acorde menor de mesma tônica, somente uma das três partes95 que compõem o primeiro sofre ligeira alteração objetiva, mas ambos as totalidades soam claramente diferentes. Como expõe Guillaume (1963): O acorde menor perfeito distingue-se do acorde maior, objetivamente (e também na percepção analítica do músico), pelo abaixamento de meio tom de apenas uma de suas notas [...]. Na percepção global, porém, esses dois acordes se distinguirão, não por uma diferença local, mas por uma qualidade que pertence ao todo: o segundo deles será mais brilhante, mais claro, serlhe-á atribuído um caráter moral diferente (enérgico, alegre). (p. 157 e 158; grifo nosso)

(3) Por fim, um bom exemplo tátil é oferecido por Piaget (1968/2003) em sua obra Le Structuralisme, referindo-se à nossa possibilidade de perceber uma certa quantidade de corpos como dotados de um peso específico quando separados uns dos outros, e de um outro peso, discrepante em relação à soma daqueles pesos parciais, quando juntos: Sobre o terreno das percepções, essa composição não aditiva é facilmente verificável: [...] em certas ilusões de peso, o objeto complexo A + B (uma barra de chumbo situada em cima de uma caixa vazia, formando os dois uma forma simples, de cor uniforme) parece menos pesado que a barra A sozinha (pelo relacionamento com os volumes etc.). (p. 52)

As possibilidades de ilustrar o conceito são inúmeras. Para que concluamos esta exposição dos fundamentos, ainda nos interessa apenas indicar como o gestaltismo pôde responder àquele problema que, de acordo com Koffka, mostrou-se relevante para a refutação da hipótese de constância – o paradoxo de Stumpf. As respostas que avaliam as magnitudes dos estímulos gradativamente mais intensos a, b e c como (a = b), (b = c) e (a ≠ c) só se mostram problemáticas se preservarmos a importância da integridade individual dos estímulos, segundo propõe a hipótese a ser combatida. Mas, assumindo-se que o todo precede a inferência de partes, temos que o percepto b, e.g., tal como surge em seu primeiro contraste – i.e., com o percepto a – não é idêntico ao percepto b presente no segundo contraste – i.e., com o percepto c –, pois há, em cada caso, uma totalidade diferente, a partir da qual o percepto individual deverá ser definido. Assim, no experimento como um todo, 95

Consideramos aqui acordes em tríades tendo em vista simplificar a exposição e encaminharmos bem a citação de Guillaume, que se refere a acordes perfeitos.

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temos três arranjos diferentes – (a1 = b1), (b2 = c2) e (a3 ≠ c3). Se supusermos que todo percepto que se repete em outro arranjo é idêntico ao percepto presente em um primeiro arranjo considerado, temos o paradoxo: a1 e a3 deveriam ser equivalentes, bem como b1 e b2 e c2 e c3. Mas se entendermos que a1 é um percepto diferente de a3 porque cada um deles deriva de uma totalidade diferente, o paradoxo terá sido superado, já que não há identidade entre os perceptos (KOFFKA, 1922, p. 539).

3.4. Os fatores da Gestalt: Uma vez introduzido o conceito fundamental da escola e definido, a partir dele, um programa de pesquisas, cabe considerarmos outras investigações de Wertheimer que se dirigiram mais detidamente ao estabelecimento das leis que governariam os processos conscientes, que permitiriam à experiência ter um tal caráter e se apresentar sempre como essa unidade sincrética e significativa. Como indica Sarris (2012b, p. 183) os estudos de Wertheimer neste sentido tiveram início ainda em 1911, na Universidade de Frankfurt, e foram, em sua maioria, concluídos até 1914. Apenas alguns anos mais tarde, no entanto, em 1923, ocorreria a publicação do texto que compila e discute os resultados destes estudos, as Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt II, na qual os primeiros e mais importantes ‘fatores’ ou ‘leis da Gestalt’ são introduzidos. Ainda que encontremos estudos em percepção, ou em outras formas de experiência, que, de certo modo, rearranjam a prioridade de alguns destes fatores uns em relação aos outros, ou ainda, que buscam aumentar o campo de manifestações por eles encoberto, podemos dizer que uma das pedras angulares de todo o entendimento gestaltista da experiência se encontra aqui. Dada esta relevância do trabalho supracitado, buscaremos acompanhar com vagar a sua argumentação, recuperando os exemplos apresentados para sustentá-la e articulando de maneira sucinta certos aspectos de seu conteúdo com esta deriva que as propostas da teoria da forma realizaria posteriormente. O texto é introduzido pela célebre passagem na qual Wertheimer pretende contrastar, por meio da simples descrição da percepção de uma paisagem que se abre perante um espectador recostado à janela, os retratos da experiência perceptual que podemos encontrar, por um lado, na literatura científica e, por outro, no simples fluir da vida consciente. Por meio desta descrição, o psicólogo busca ressaltar o quanto as

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concepções teóricas em voga na sua época encontram-se distantes da experiência banal, aquela possível ao médio dos homens, em condições totalmente inespecíficas, sem pressupor absolutamente nenhuma espécie de qualificação intelectual ou esforço de atenção. Em suma: o quão distantes estão da percepção em seu sentido mais vivo, originário e concreto. Eu estou junto à janela e vejo uma casa, árvores, o céu. Eu poderia agora, por razões teóricas, tentar contar e dizer: são... 327 matizes de brilho (e tons cromáticos). (Eu tenho 327? Não; eu tenho céu, casa e árvores. O ter 327, por si mesmo, não pode se efetivar.) Ainda que, neste cálculo estranho, eu tenha aproximadamente 120 para a casa, 90 para as árvores e 117 para o céu, eu tenho, em todo caso, este conjunto [Zusammen] e esta divisão [Getrenntsein], e não aproximadamente 127 e 100 e 100; ou 150 e 177. Nos conjuntos definidos, a divisão definida [bestimmte Getrenntheit] que eu vejo e o tipo de conjunto em que eu a vejo não estão simplesmente em minha discrição; eu não posso, por meio de meu arbítrio, simplesmente efetivar qualquer outro tipo de conjunto [Zusammengefasstheit] desejado. (WERTHEIMER, 1923, p. 301)

Nestas simples sentenças encontram-se presentes pelo menos três conseqüências teóricas de valor fundamental para a teoria da forma – as duas primeiras já consideradas nas páginas anteriores, a última a ser substanciada um pouco mais adiante, no curso das próprias Untersuchungen. Em primeiro lugar, encontramos claramente a afirmação da completa ausência de valor intuitivo das conclusões às quais chega um eventual esforço analítico dirigido à experiência. Mesmo por meio de cálculos ou procedimentos de abstração que, pelo seu nexo explicativo próprio, pudessem legitimar a afirmação de que o meu percepto se reduz a x qualidades sensíveis de tal tipo e a y outras qualidades sensíveis de outro tipo, não podemos encontrar de maneira alguma estes conteúdos na experiência ela mesma – não no caráter de individualidade e simplicidade absolutas reivindicado. Não há um só desdobramento possível de nossa vida fenomenal que permita o aparecimento destes conteúdos, assim dispostos, como algo diretamente apreensível. Não os encontramos na percepção, da mesma maneira que não os podemos forjar por meio de qualquer esforço imaginativo96. Em segundo lugar, encontramos a afirmação de uma estrutura que preside o que os conteúdos dados à percepção podem ser, a organização estável por eles assumida. A 96

Em sua Phénoménologie de la Perception (1945), Merleau-Ponty busca examinar este argumento afirmando que o conceito clássico de sensação é meramente lingüístico – formulação ausente nos gestaltistas, mas que nos parece pertinente por salientar o caráter sumamente abstrato e artificial da sensação, que não tem respaldo possível em nossa consciência.

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maneira pela qual Wertheimer enuncia isto é curiosa, uma vez que ele o faz apoiando-se justamente na perspectiva analítica que acabara de desqualificar: mesmo que tentássemos nos dedicar a um procedimento que discriminasse rigorosamente cada conjunto de sensações componentes de nossa percepção atual, bem como o número de sensações pertencentes a cada um destes conjuntos, nós encontraríamos, em meio aos resultados vacuosos e puramente especulativos de nossa empreitada, uma organização específica. Certamente o fato de Wertheimer afirmar a prevalência desta organização mesmo em estudos analíticos não incorre em nenhum tipo de incoerência ou contradição, mas sim em uma tentativa de haurir o que é característico da experiência mesmo dos programas de pesquisa que a desrespeitam e desvirtuam. Em outros termos, é como se Wertheimer nos dissesse: o psicólogo analítico erra – isto é certo e bem sabido –, mas podemos ainda no interior de seu erro encontrar um fato que é para nós positivo e digno de atenção, a saber, o fato de que há organização nos conteúdos perceptivos, e que ela é simplesmente constatada lá, independente do que façamos para tematizar a experiência. Por fim, em terceiro lugar e como caracterização mais precisa desta organização imanente ao percepto com a qual nos deparamos, ele afirma que não há qualquer intervenção substantiva de nosso arbítrio naquilo que ela mostra ser. Não apenas somos incapazes de definir à nossa maneira o caráter mediante o qual o próprio percepto nos aparece, como somos incapazes de influenciar em qualquer medida relevante o que o percepto permanece sendo. Somos, a rigor, subtraídos do lugar de importância que as psicologias anteriores buscavam, por toda sorte de argumentos, reservar a nós. Os critérios centrais para termos a percepção de algo, aqui, já não residem mais em um sujeito empírico e seu histórico de experiências, que modulam o aspecto dos objetos por associações, nem em uma atividade sintética sumamente intelectual de uma consciência purificada. Como Wertheimer nos indica, eles nos são simplesmente dados. Esta condição está intimamente ligada à idéia de Prägnanz, um dos mais importantes fatores da Gestalt a ser introduzido ainda neste escrito, como veremos dentro em pouco.

3.4.1. Os fatores de proximidade e igualdade: Após este preâmbulo, no qual Wertheimer mostra a necessidade de investigarmos as condições estruturação dos todos que nos são apresentados, o psicólogo busca passar à

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caracterização destas condições. Ele isola e descreve certo número de ‘fatores’ (Faktoren) constitutivos da percepção, oferecendo uma vasta gama de exemplos dos mesmos – em sua maioria visuais, mas também auditivos. Passaremos aqui à caracterização destes fatores e à reapresentação de alguns dos exemplos elencados pelo próprio psicólogo em suas Untersuchugen. O primeiro fator é o chamado ‘fator de proximidade’ (Faktor der Nähe), o qual busca afirmar a importância da disposição espacial dos perceptos uns em relação aos outros para que possamos constatar a definição de uma Gestalt entre eles. Desta maneira, temos que perceptos que se mostram próximos uns aos outros tendem a estabelecer entre si uma relação tal que os faz serem dados como partes incorporadas a uma só totalidade, ao passo que perceptos que não se encontram em nenhuma condição espacial que favoreça esta ocorrência, mantêm-se como perceptos isolados, eventualmente incorporados a outras totalidades inteiramente distintas daquela que se afirma pelo fator de proximidade. Um exemplo deste fator pode ser encontrado na imagem a seguir:

a b

c d

e f

g h

i j

k l

m n

Encontramos naturalmente, nesta seqüência horizontal de pontos negros que distam ora 3 mm, ora 12 mm uns dos outros, um agrupamento (Fassung) que os separa em díades. Não precisamos de nenhum esforço ou disposição atencional específica para que este agrupamento dos pontos nos seja dado. Enxergamos que o arranjo ab / cd / ef / gh / ij / kl / mn, o qual une os pontos pela menor distância que se lhes interpõe, é prevalente, e não o arranjo a / bc / de / fg / hi / jk / lm / n, que uniria, de maneira extravagante, os pontos pela maior distância, deixando o primeiro e o último pontos da série estranhamente isolados. Um outro exemplo poderia ser encontrado nesta outra imagem:

b a

d

e

g

c

f

i h

k j

A organização que aqui se mostra é claramente ab / cd / e / fg / hi / jk, permitindonos ver os pontos como díades cujas partes se dispõem obliquamente uma em relação à

205

outra – à exceção do único ponto isolado que surge em meio à seqüência, representado por e. Não temos imediatamente dada uma organização que nos mostre uma grande linha horizontal bdegik, abaixo da qual estariam duas linhas menores, ac e fhj. Da mesma maneira, não encontramos naturalmente uma organização que disponha também obliquamente pontos mais distantes entre si, como ad / ce / fi / hk /, admitindo alguns pontos isolados ao lado destes como b, g e j. Estes arranjos alternativos são extremamente difíceis de se obter, e, em alguns casos, mesmo o empenho pessoal em concebê-los não conduzirá a resultado algum. Ainda uma terceira imagem a exemplificar o fator de proximidade é:

a a a a a a a

a a

a

j

e

b

k f

l

c

g

d

m

h a a

n

i

o a

p

Nela, a organização predominante obedece ao padrão a / bcd / efghi / jklmnop, dispondo os pontos como se, após o primeiro ponto isolado, eles fossem se tornando gradativamente setas bastante abertas, de ângulo obtuso, que apontam para a direita, cada seta subseqüente sendo maior do que a anterior. Não encontramos uma organização j / ek / bfl / acgm / dhn / io / p, que ordene os pontos como se eles fossem segmentos de reta de tamanhos variados, mais ou menos horizontais, que se colocassem toscamente um ao lado do outro. Da mesma maneira que em todas as figuras anteriores, o menor intervalo espacial entre os estímulos dados é o critério para a definição de agrupamentos, e nunca os intervalos mais extensos. Um exemplo auditivo é ainda oferecido pelo psicólogo, o qual consiste em um arranjo estruturalmente análogo àquele constatável na primeira de suas imagens, que nos

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mostra díades de pontos negros. De acordo com Wertheimer, tal arranjo poderia ser reproduzido pela definição de um pulso retilíneo, em que um encadeamento de duas palmas e uma breve pausa, sem estímulos auditivos específicos, repetir-se-ia por um número qualquer de vezes, gerando a experiência acústica de um ritmo simples. Isto quer dizer: a estrutura palma, palma, pausa / palma, palma, pausa / palma, palma, pausa seria capaz de reproduzir acusticamente a separação dos estímulos em díades, uma vez que mostraria o agrupamento de sons devido apenas à proximidade que estabelecem entre si no transcorrer do tempo. O segundo fator descrito por Wertheimer é o ‘fator de igualdade’ (Faktor der Gleichheit), o qual busca afirmar a importância da compatibilidade das qualidades sensíveis apresentadas nos perceptos para que estes possam surgir como partícipes de uma mesma Gestalt. Tal compatibilidade pode ser dada por graus ou pode ser uma equivalência plena do que temos nos perceptos. A primeira imagem oferecida como exemplo é:

Podemos perceber diretamente o agrupamento que separa a série horizontal de pontos em díades de pontos brancos e díades de pontos negros, havendo claro destacamento de um grupo em relação a outro, e nunca qualquer espécie de mistura ou interpenetração. Não percebemos algo como o curioso agrupamento a / bc / de / fg, que preservaria a estrutura de díade, mas a comporia por dessemelhança, unindo um ponto branco a um ponto negro. Claramente, o que nos é dado é o resultado de uma convergência entre elementos qualitativamente idênticos, que compõem entre si unidades significativas e estáveis que se distinguem prontamente umas das outras. A igualdade se estabelece sem dificuldades neste exemplo – bem como nos subseqüentes – não apenas porque os pontos diferem em cor uns dos outros, mas também porque o seu tamanho é consideravelmente diferente, os pontos brancos possuindo ainda um contorno negro espesso que define seus limites. A diferença qualitativa se apóia em diversos aspectos. Assim como no fator previamente considerado, Wertheimer busca oferecer aqui um exemplo de percepção acústica, no qual a estrutura deste primeiro exemplo poderia ser reproduzida de maneira que lhe parece satisfatória. Na definição de outro pulso retilíneo, de

207

intervalos constantes, a sucessão de duas palmas fracas e duas palmas fortes poderia garantir tal resultado. Isto é: a estrutura palma fraca, palma fraca / palma forte, palma forte / palma fraca, palma fraca / palma forte, palma forte, poderia preservar a organização de uma díade de sons marcados por certa qualidade sensível, seguida por outra díade de sons marcados por outra qualidade sensível. Se o mesmo exemplo for reproduzido com notas musicais, ele será ainda mais evidente. A melodia dó, dó / ré, ré, se executada retilineamente por sucessivas vezes, garantirá o mesmo efeito, um grupo de dois sons sempre seguindo outro grupo de dois sons. Os exemplos mais interessantes de Wertheimer, no entanto, são aqueles destinados a ilustrar o agrupamento por mera similaridade. Se nos casos anteriores tratava-se apenas de distinguir um tipo x de percepto de um tipo y, agrupando os diversos exemplos de cada qual por meio de um critério identitário, aqui, trata-se de encontrar quais perceptos se aproximam mais uns dos outros, de modo a comporem Gestalten, ainda que não lhes seja assegurada uma igualdade qualitativa. Podemos, assim, pensar que o cinza-chumbo aproxima-se mais do negro do que do branco, ou que um som agudo aproxima-se mais de um outro som ligeiramente menos alto, mas ainda agudo, do que de um som grave. A percepção segue, na definição do que lhe aparece, gradações possíveis às qualidades sensíveis, de maneira a se organizar também pelo reconhecimento de que dado é mais facilmente irmanado a que dado. Os exemplos de Wertheimer para estes fenômenos perceptivos são predominantemente auditivos. Podemos encontrar na melodia dó, dó#, mi, fá, sol#, lá, neste sentido, também um agrupamento por díades: percebemos que dó, dó# separam-se como uma primeira díade, mi, fá como uma segunda e sol#, lá como uma terceira, e isto em função de um único motivo, a saber, a distância de um semitom que separa a segunda nota de cada par da nota que a antecede. A distância de dó# para mi, com efeito, é de um tom e meio, da mesma maneira que a distância de fá para sol# . As notas que distam apenas um semitom uma da outra são qualitativamente mais próximas do que aquelas que distam um tom e meio. Por isso, a percepção reconhece naturalmente Gestalten entre as primeiras, e não entre as últimas. O mesmo ocorre com a série de cromatismos encontrada em dó, dó#, ré, mi, fá, fá#, sol#, lá, lá#, nos quais um agrupamento por tríades se afirma devido ao fato da distância entre a terceira e a quarta notas, bem como entre a sexta e a sétima notas, ser de um tom, enquanto a distância entre as demais notas é de

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apenas um semitom. Queremos dizer: dó dista de dó# por um semitom, da mesma maneira que dó# de ré, mi de fá, fá de fá#, sol# de lá e lá de lá#, ao passo que ré dista de mi por um tom, da mesma maneira que fá# de sol#. A definição de formas, deste modo, ocorre naturalmente entre aqueles sons mais próximos, e não entre estes mais distantes. Poderíamos ainda sugerir aqui um movimento contrário ao realizado por Wertheimer até então, dizendo que estas formas auditivas poderiam ser facilmente transpostas para formas visuais se substituíssemos cada parte pontual por um tom cromático distinto. Por meio de gradações de cores, poderíamos reproduzir qualquer um destes últimos exemplos sem dificuldades significativas.

Antes de introduzir um novo fator, Wertheimer busca mostrar como determinados arranjos podem apresentar ao mesmo tempo os fatores de proximidade e de igualdade, tanto de maneira conflitante, como de maneira sinérgica. O simples arranjo a seguir exemplifica o primeiro destes tipos de relação:

a

b

c

d

e

f

g

h

A despeito da maior proximidade entre os pontos ab / cd / ef / gh, a organização imediata é regida pelo fator de igualdade, levando nossa percepção a isolar os pontos negros a e h e ver as díades compostas por bc / de / fg, ou uma díade de pontos negros ladeada por duas díades de pontos brancos. Temos uma atuação contrária dos princípios, portanto, sendo possível constatar prontamente qual deles se sai vencedor deste embate – a igualdade, como já dito. Mesmo em caso de conflitos de fatores, vemos claramente, a percepção estabelece a sua forma natural. O mesmo ocorre nesta outra imagem:

Apesar da maior proximidade entre os pontos dispostos obliquamente um em relação ao outro, não enxergamos aqui nenhuma organização em que pontos negros e pontos brancos figurem como partes de uma mesma unidade. Em vez disto, a igualdade prevalece, destacando pontos brancos de pontos negros e permitindo-nos ver uma

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organização também oblíqua, mas que une pontos de um mesmo tipo sempre em unidades que parecem ascender da linha inferior em direção à diagonal superior direita. Uma imagem na qual ambos os fatores atuam de forma sinérgica, fortalecendo um os efeitos do outro, é a seguinte:

Aqui, a proximidade se encarrega de fazer com que os pontos se organizem em séries verticalmente dispostas, uma vez que a distância de um ponto em relação àquele que se encontra abaixo dele ou acima dele é menor do que a distância em relação ao que se encontra ao seu lado, ou em qualquer diagonal. Junto a isto, a igualdade afirma a mesma organização ao percebermos que os pontos verticalmente dispostos são qualitativamente idênticos, possuindo o mesmo tom cromático.

3.4.2. Os fatores de destino comum, Prägnanz e orientação objetiva: Estas discussões acerca da atuação contrária ou sinérgica de diferentes fatores não se resumem a um simples recurso didático de Wertheimer, nem a uma antecipação de objeções que seus futuros interlocutores poderiam, eventualmente, oferecer. Ela é de considerável importância para compreendermos o terceiro fator formal por ele introduzido, denominado ‘fator do destino comum’ (Faktor des gemeinsamen Schicksals). Este fator é ligeiramente diferente dos demais porque não atua sobre as Gestalten já em sua conformação original, mas sim quando estas conformações são submetidas a alterações específicas. Estas alterações, de acordo com Wertheimer, podem ser favoráveis ou desfavoráveis à atuação de um fator que já estivera presente na definição da Gestalt em questão, sendo chamadas, neste dois casos, respectivamente de alterações ‘pró-estruturais’ (Strukturgerechte) e ‘contra-estruturais’ (Strukturwidrige). Wertheimer busca ilustrar estas alterações a partir da seguinte imagem:

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a b

c

d

e

f

g

h

i

j

k

l

A sua organização, de acordo com o que já pudemos até aqui considerar, se deve ao fator de proximidade apenas, uma vez que os estímulos são homogêneos. A percepção de tríades é a percepção natural aqui. O que ocorreria, no entanto, se uma perturbação fosse imposta à figura, perante os olhos de seu observador, e as tríades def e jkl fossem ligeiramente erguidas, de modo a se situarem, após o fim do movimento, poucos centímetros acima da linha horizontal de que antes faziam parte? Esta alteração, Wertheimer nos responde, seria ‘pró-estrutural’, uma vez que favoreceria explicitamente a organização já estabelecida por meio do fator de proximidade:

O aumento da distância relativa entre todas as tríades que já podíamos antes constatar faz com que a própria organização em tríades adquira mais força, sendo mais evidente e menos passível a alterações por meio da modulação voluntária de nossa percepção. Uma tentativa de arranjar os pontos em díades ab / cd / ef / gh / ij / kl seria consideravelmente mais difícil e menos duradoura nesta segunda organização. No entanto, se a alteração consistisse na elevação dos pontos cde e ijk, o resultado seria bem diferente, pois desfavoreceria a organização original, afastando pontos que já surgiam como componentes de unidades fechadas e estáveis. Esta perturbação revelaria a natureza contra-estrutural da alteração, portanto. Certamente ainda podemos separar a imagem em quatro momentos e entender que cada qual é composto por três pontos negros, mas isto ocorre de maneira menos simples e imediata do que na imagem original:

Enquanto o primeiro tipo de alteração apenas exige do observador a recognição de que algo de novo sobreveio ao seu quadro perceptual, a segunda gera tensão, desconforto e ocasional confusão. Ela pode mesmo, em certos casos, gerar uma nova percepção, que desmembra a Gestalt original em duas ou mais Gestalten isoladas. Se o distanciamento

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contra-estrutural de nosso último exemplo fosse gradativamente intensificado, não tardaríamos a ver uma nova seqüência de pontos negros surgindo sobre a seqüência original, composta justamente pelos pontos elevados. A expressão ‘destino comum’, que nomeia o fator, deve-se ao fato de uma mesma alteração ser imposta a certa parcela dos estímulos dados na figura, i.e., ao fato de ser-lhes conferida uma mesma orientação, que visa produzir algum efeito na organização da forma original, seja esta um favorecimento do que já a caracterizava, seja uma perturbação ligeira, seja mesmo uma fissura evidente, que conduz à apreensão de novas formas, antes ausentes.

O quarto fator elencado por Wertheimer é aquele que anuncia as chamadas ‘configurações pregnantes’ (Prägnanzstufen) dadas na percepção – um fator que, não obstante surgir na ordem de exposições das Unteruschungen como um simples fator entre os demais, acabará ganhando um valor teórico muito maior ao longo da produção intelectual da Escola de Berlim97. Ele é introduzido a partir da descrição das variações experimentais que podem ser impostas à seguinte seqüência de pontos – basicamente uma versão reduzida da primeira figura apresentada para ilustrar o fator de proximidade:

a b

c d

ef

g h

i j

O intervalo entre as partes de cada díade que enxergamos aqui é de 2 mm, ao passo que o intervalo de uma díade para outra é de 20 mm. As alterações descritas por Wertheimer consistem basicamente em manter a, c, e, g e i imóveis enquanto b, d, f, h e j são gradativamente afastados de seus lugares iniciais, rumando no sentido do ponto imóvel da díade à direita98. O ponto b, assim, é gradativamente deslocado em direção a c; d em direção a e; f a g; e h a i. Tais deslocamentos, no entanto, buscam manter constante a soma daquelas duas distâncias inicialmente citadas, as quais serão chamadas, respectivamente, D1 e D2. Isto quer dizer: enquanto os valores assumidos por estas variáveis mudarão gradativamente, D1 + D2 = 22 será sempre o caso. Tendo isto presente, Wertheimer estipula sete situações específicas nas quais avaliar a percepção do observador:

97

A rigor, o que veremos é uma tendência a subsumir à boa forma todos os demais fatores aqui considerados, tal como nos mostra Koffka (1935/1975, p. 181) 98 No caso de j, não há ponto adjacente, mas isto é irrelevante. Ele se desloca para a direita como os outros.

212

Situação

D1

D2

A

2

20

B

5

17

C

9

14

D

11

11

E

14

9

F

17

5

G

20

2

Nestas sete situações, o psicólogo encontrou apenas três configurações perceptuais mais destacadas, as quais se estabelecem precisamente nas situações A, D e G, i.e., nas condições inicial, intermediária e final de apresentação das imagens. Em A, temos a configuração original, já representada pela imagem acima recuperada, em que nenhuma espécie de perturbação foi ainda imposta. Nela, enxergamos cinco díades de pontos negros. Em D, os pontos deslocados se encontram exatamente no meio da distância existente entre os dois pontos imóveis, de maneira que perdemos completamente qualquer organização especial entre eles, enxergando apenas uma seqüência de pontos negros eqüidistantes entre si. As díades originais se apagam e não percebemos nenhum outro arranjo que faça de certos pontos da seqüência algo mais intimamente relacionado a outros pontos, de maneira a compor formas com eles. Todos se relacionam de maneira simétrica. Por fim, em G temos a situação final, em que o afastamento dos pontos atingiu o limite preestabelecido, e o que vemos surgir é uma nova figura:

a

bc

de

fg

h i

j

O ponto a, que se manteve imóvel, não tomou parte em nenhum agrupamento. Os pontos b, d, f e h, que se moveram, formaram novas díades com os pontos imóveis à direita, c, e, g e i. O ponto j, que se moveu em um sentido no qual nenhum ponto imóvel se encontrava, isolou-se como a. Temos, assim, a apreensão de uma série de díades cujos extremos são pontos isolados.

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Estas três situações se destacam porque elas oferecem ao observador uma percepção mais estável, auto-suficiente, que não parece se encontrar a meio caminho de nada, mas sim se mostrar como algo já devidamente articulado e bastante. Isto não ocorre em nenhuma das outras quatro situações – B, C, E e F –, que sempre trazem à experiência do observador uma impressão de tensão interna e incompletude, como se a condição na qual se apresentam fosse necessária e evidentemente transitória. A rigor, elas são muitas vezes descritas pelos observadores como se tendessem a alguma das formas principais – A, D ou G – e apenas nela encontrassem a realização daquilo que trazem sugerido. De acordo com Wertheimer, esta mesma relação entre percepções que tendem a certos estados, reconhecendo-se prontamente como inadequadas e mal-formadas, e percepções inteiramente estáveis e centradas em si mesmas, pode ser constatada também na apreensão de figuras geométricas cujos ângulos naturais foram levemente alterados. Um ângulo reto que tenha sido um pouco aberto, mostrando 93º, em vez de 90º, é percebido como um ângulo imperfeito, que deveria ser corrigido justamente no sentido de sua configuração geométrica mais harmônica. Não é difícil constatarmos que este raciocínio é essencialmente o mesmo já oferecido em Über das Denken der Naturvölker, o qual gerou a postulação do conceito de ‘tipo’ neste estudo. É de suma importância, no entanto, indicar não tanto os vínculos que ele trava com textos gestaltistas mais antigos, mas sim a relevância que assumiu em produções posteriores da escola. A rigor, o fator de Prägnanz seria considerado uma força atuante na estruturação de uma Gestalt e que a levaria a se conformar sempre da maneira mais simples, harmônica, fechada, unitária, simétrica e econômica possível. Esta tendência que algumas formas menos estáveis revelavam em relação às formas mais estáveis, tal como encontrada no experimento acima, revelaria o movimento intrínseco à Gestalt que faz com que ela, no instante mesmo de sua definição, procure instaurar em si aqueles predicados e afirmar-se de maneira modelar. É certo que nem sempre a forma concreta poderá chegar a tal condição, mas o seu curso natural é sempre orientado neste sentido, o de afirmação de ‘boas formas’. Koffka (1935/1975) busca explicar esta concepção nos seguintes termos: “[...] a organização psicológica será sempre tão ‘boa’ quanto as condições reinantes permitirem. Nesta definição, o termo ‘boa’ é indefinido. Abrange propriedades tais como a regularidade, a simetria, a simplicidade [...].” (p. 121)

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O quinto fator, denominado ‘fator da orientação objetiva’ (Faktor der objektiven Einstellung), é diretamente dependente da experiência de alterações na forma inicialmente apreendida. O que ele estabelece é a tendência de modularmos nossa percepção das novas configurações a partir da configuração original, aproximando da Prägnanzstufe nela estabelecida qualquer forma essencialmente tensa que viermos a perceber. Se, e.g., as situações previstas no experimento precedente fossem apresentadas em sucessão perante um observador, tanto no sentido progressivo, de A a G, quanto no sentido regressivo, de G a A, poderíamos perceber a afirmação deste fator, constatando que as situações já identificadas como instáveis e mal formadas seriam sempre entendidas como casos das formas estáveis anteriormente dadas. A tensão experimentada nas novas condições, portanto, buscaria sempre resolução na forma antes percebida até que uma nova Prägnanzstufe pudesse ser dada, oferecendo um novo ponto de apoio. Se um observador fosse submetido à apresentação progressiva das formas, ele tenderia a perceber as situações B e C como deturpações de A, reconduzindo-as a esta última na hora de descrevê-las. Uma vez perante D, no entanto, ele perceberia o caráter organizado e auto-suficiente dos perceptos e já poderia experimentar as situações E e F como deturpações de D. Se a apresentação seguisse o sentido regressivo, contudo, as situações E e F seriam medidas a partir de G, que seria a primeira forma apreendida. A tensão por elas comunicada referir-seia sempre a G e encontraria nesta situação a sua resolução possível. D viria a este observador causando os mesmos efeitos, i.e., permitindo-o encontrar um novo ponto de apoio e experimentar B e C como deturpações de D. Destes fenômenos, depreende-se que cada momento sucessivo dado na série de experiências é sempre significado por meio de um apoio expresso no passado perceptual. A percepção seria um desdobramento da vida fenomenal que guardaria sempre na sua estruturação presente alguma influência tácita do recém-percebido. Em termos nãogestaltistas, mas ainda assim pertinentes aqui, há uma extensão do atual em direção ao inatual. Wertheimer demonstra preocupação, contudo, em afastar estas idéias do tipo de relação estabelecido pela psicologia clássica entre percepção e memória – a qual já pudemos ver em nossa breve leitura de Helmholtz. Não se trata, de modo algum, de afirmar que há, na estruturação da experiência, uma imposição de aprendizagens ou de traços

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mnêmicos acumulados pelo psiquismo, como se esta fosse uma contribuição preponderantemente subjetiva, dependente de todo um histórico particular de percepções. A escolha do termo ‘orientação objetiva’ para nomear o fator, portanto, não é casual, buscando mostrar que a relação existente entre as percepções em circunstâncias como as descritas é estritamente dependente das formas dadas nos objetos. A despeito das idiossincrasias, portanto, as percepções de pessoas diferentes são guiadas de uma mesma maneira por uma mesma seqüência de objetos, de modo a gerar em sua experiência a mesma orientação objetiva. Trata-se de algo imposto à percepção, portanto – algo estritamente ligado aos conteúdos que a experiência é capaz de ter para si, e não dependente de qualquer poder criativo que lhe possa ser eventualmente atribuído.

3.4.3. Os fatores de boa continuidade, closura e boa curva: O sexto fator introduzido por Wertheimer é o ‘fator de boa continuidade’ (Faktor der guten Fortsetzung), o qual mostra não ser a proximidade o único critério espacial relevante para a definição de formas. Se os estímulos assumirem entre si uma disposição espacial que admita linearidade, retidão ou continuidade, eles serão agrupados em uma forma, ainda que nem sempre a proximidade possa ser favorável a este resultado. A imagem a seguir o exemplifica:

A percepção imediata nos mostra uma linha horizontal de pontos que seguem o sentido ac, no meio da qual uma linha vertical b se projeta. Em termos puramente objetivos, os pontos pertencentes a b guardam maior proximidade com os pontos de a do que o fazem os de c. Da mesma maneira, os pontos de b são mais próximos dos de c do que os pontos de a. No entanto, não percebemos naturalmente nem a configuração ab, nem bc, mas sim ac. Isto ocorre porque os pontos pertencentes a estas duas partes são dispostos de maneira suficientemente ordeira e retilínea para que possamos enxergar neles uma direção homogênea. Isto não ocorre com as outras duas possibilidades aventadas.

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Se apresentado por meio de imagens que possuem partes curvilíneas, o resultado da atuação deste fator é ainda mais explícito:

Aqui, percebemos uma linha curva que segue no sentido ac e que, em determinada parte de sua extensão, projeta um pequeno segmento de reta para a diagonal superior direita, representado por b. Não enxergamos uma figura ab, composta por uma pequena curva que subitamente se torna uma reta ascendente, possuindo, no exato ponto em que a sua orientação muda, um apêndice que perfaz o sentido da curva original. Da mesma maneira, não enxergamos uma curva c que se torne a reta b, tendo em a um apêndice. As partes ac mostram-se mais solidárias entre si do que qualquer uma destas para com b, e isto devido à direção por elas assumida. Aqui, temos o mesmo:

A linha c surge como a continuação natural de a, assim como d de b. Não enxergamos ab unido pelo seu ponto de articulação a cd, ou ad a bc. Ao comentar tais agrupamentos, Wertheimer nos indica a íntima relação do fator de direção com o fator de boa forma antes descrito: aqui, poderíamos observar como certas organizações são mais prementes do que as demais, surgindo-nos de pronto, como o que a percepção naturalmente estabelece para si. Quando uma destas imagens nos é apresentada, temos uma espécie de apreensão imediata de quais seriam as partes que, apresentadas em sucessão, poderiam lhe dar a continuação adequada, consumar o movimento que a porção da figura já percebida estabelece em si mesma e por si mesma. Se estas partes obedecerão ao que se encontra 217

insinuado pelas partes anteriormente apreendidas, não se decide de antemão. Em todo caso, temos plenas condições de perceber a adequação ou a inadequação destas partes quando elas vierem a se apresentar. Wertheimer (1923) afirma: [...] pela projeção de padrões, pela variação sistemática de uma parte componente, pode-se logo prever com maior certeza como o resultado se define; [...] ele advém da ‘boa’ continuidade [die ‘gute’ Fortsetzung], da ‘curva adequada’ [‘kurvengerechte’], do ‘co-pertencimento imanente’ [das innere Zusammengehören], do resultar em uma ‘boa forma’ [‘guter Gestalt’], os quais indicam as suas ‘necessidades imanentes’ [‘inneren Notwendigkeiten’]. (p. 324)

Deste modo, existe uma espécie de demanda lógica na estruturação de uma forma e ela nos indica a boa configuração que esta pode assumir, o ponto em que uma tendência já presente em um dado arranjo e por ele revelada encontra plena realização. O que não se instaura já como uma boa forma, sempre remete a conteúdos para além de si, os quais, estes sim, podem definir a configuração ideal do objeto em questão, i.e., a sua boa forma. Mais uma vez, vemos salientado aqui o franco direcionamento da percepção à estabilidade. O sétimo fator introduzido pelo psicólogo é o ‘fator de closura’ (Faktor der Geschlossenheit), que indica a tendência de estímulos que podem definir entre si figuras fechadas e unitárias a assumirem imediatamente esta organização. Este fator pode se afirmar tanto em formas que apresentam dados perceptuais suficientes para que o fechamento se dê com perfeição, quanto em formas que apenas os sugiram. Nas Untersuchungen, Wertheimer dá atenção apenas ao primeiro destes casos, mas, ao longo do desenvolvimento da literatura gestaltista, exemplos do segundo passaram a ser, não raro, oferecidos. Uma das imagens que exemplifica o fator é esta:

Nela, vemos naturalmente duas figuras geométricas: um hexágono de base extensa e pouca altura, e, no meio dele, um losango, aparentemente situado sobre o próprio hexágono ou circunscrito a ele. Não enxergamos algo como duas setas apontando em direções opostas e unidas pelas extremidades de sua parte posterior.

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Já aqui, enxergamos dois quadrados, aquele mais à direita estando tombado sobre o outro à esquerda, de modo que ambas as áreas internas se encontrem parcialmente superpostas. Ainda que ocorra tal superposição, não deixamos de enxergar ambos os quadrados como unidades definidas e independentes uma da outra. Não temos, assim, consciência de três figuras estranhas, de contornos imprevistos pela geometria, que se acomodassem perfeitamente uma ao lado da outra, operando três closuras ao reconhecermos como figura autônoma não apenas a intersecção antes mencionada, mas também o que resta da área dos dois quadrados. Apesar disto ser possível em um curioso exercício de atenção, não se trata de nada naturalmente dado à experiência.

Na tentativa de evitar interpretações inadequadas do fator de closura, Wertheimer nos indica ainda, de maneira bastante passageira, um oitavo fator, que nos parece ser apenas uma especificação dos casos em que fator de boa continuidade surge em traços curvilíneos. Trata-se do ‘fator de boa curva’ (Faktor der guten Kurve), que mostra a tendência de estímulos que definem contornos curvos a serem vistos como partes deste tipo de contorno, e não partes de outras formas possíveis. Esta imagem o instancia:

Não se pode dizer que o fator atuante aqui é a closura, pois não enxergamos três unidades fechadas que se tocam em alguns de seus pontos limite, mas sim uma linha que define um pequeno quadriculado e um risco encurvado que toca as suas extremidades. Este fator não nos parece relevante senão para evitar um uso algo inflacionado do fator de closura a cada imagem em que formas fechadas são, se não dadas, pelo menos possíveis. O fato de Koffka (1935/1975, p. 194) salientar que traços curvos apresentam maior demanda de continuidade do que traços retilíneos parece substanciar isto.

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3.4.4. O fator do hábito: Um último fator da Gestalt considerado nas Untersuchungen é o ‘fator do hábito’ (Faktor der Gewohnheit), o qual mostra precisamente o tipo de intervenção da experiência passada na experiência atual admitida pelos gestaltistas. As descrições e os experimentos voltados a este fator, ainda que mostrem sua pouca relevância perante todos os demais fatores até aqui estudados, são importantes para que tenhamos melhor compreensão da oposição feita pelo gestaltismo a este que, como já vimos, era um tema central para as psicologias precedentes – a intervenção, no campo da atividade psíquica presente, de memórias e representações adquiridas. De acordo com as Untersuchungen, o fator estabelece que, se um determinado conjunto de perceptos não tiver de se mostrar por meio de qualquer um dos fatores até então previstos, surgindo de maneira ambígua e que não nos coaja a tomá-lo de uma forma específica, a qual nos aparece como a natural, então intervêm as diferentes percepções que já tivemos anteriormente destes mesmos perceptos e a organização mais familiar se impõe. Se, como exemplifica Wertheimer, temos o conjunto de perceptos abc, ele não se mostra como possuindo nenhuma forma impositiva, e temos maior número de experiências com o arranjo ab / c, então este arranjo nos aparecerá, e não, digamos, a / bc. Não se trata, deste modo, de nenhuma exigência dos próprios conteúdos que nos são dados, como encontramos em todos os fatores até aqui, mas sim de uma interferência de forças exteriores a estes conteúdos. A imagem a seguir, e.g., poderá ser vista por alguém habituado à leitura do idioma grego como um sigma; por alguém habituado à leitura do latim, como um ‘v’ traçado de maneira ornamental:

Não se trata, em nenhum dos casos, de uma exigência do próprio dado, mas de uma relação entre este, enquanto fato perceptual singular, e um histórico pessoal qualquer. A argumentação de Wertheimer, no entanto, busca atentar mais aos limites desta relação do que aos exemplos positivos que ela pode apresentar. Para a maior parte dos homens, a experiência com letras e palavras é constante, oferecendo um vasto conjunto de ocasiões em que poderíamos nos apoiar para organizar fatos perceptuais presentes em que letras nos

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fossem dadas. A imagem a seguir, no entanto, não é imediatamente identificável como um simples ‘M’ sob um ‘W’, não importa o quanto já tenhamos lido, escrito ou representado estas letras no passado. As iniciais do nome do pesquisador tornam-se um padrão visual qualquer, sem significado próprio, um simples adorno que não nos traz de pronto a idéia de que nos confrontamos com letras. Isto indica claramente que objetos bastante familiares podem ser subtraídos de nossa percepção caso o conjunto em que eles se inserem exija este resultado. Temos, aqui, uma preponderância da forma sobre a memória, na medida em que mesmo a experiência diariamente repetida de um determinado conteúdo não se mostra fator decisivo para a retomada deste na experiência atual, tal como fora experimentado antes.

Outras contribuições similares e de grande relevância para esta discussão foram realizadas pelo gestaltista Kurt Gottschaldt, também na década de 1920, e recuperadas por Koffka (1935/1975, p. 165 e 166) em seus Principles of Gestalt Psychology99. De acordo com este último pesquisador, os experimentos de Gottschaldt consistiam basicamente na exposição de figuras que obedecessem ao padrão a abaixo, as quais deveriam ser memorizadas pelos sujeitos experimentais de modo que eles pudessem desenhá-las quando isso fosse requerido pelo experimentador.

a

Após isto, no entanto, eram mostradas imagens dos padrões b e c, as quais deveriam ser apenas descritas pelos sujeitos, com atenção a características eventualmente presentes nas imagens que pudessem ter parecido mais chamativas para eles.

99

Da mesma forma que as imagens anteriores foram extraídas do texto de Wertheimer (1923), estas três utilizadas para a breve exposição dos exemplos de Gottschaldt foram encontradas em Koffka (1935/1975). Introduzimos esta nota para evitar a repetição da fonte a cada imagem recuperada.

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b

c

O ponto central aqui é o fato de os padrões b e c conterem em si o padrão a. Partindo-se disto, diferentes grupos foram submetidos às séries de exposições, mas alguns destes grupos tiveram consideravelmente mais vezes diante de si o padrão a. Não houve, no entanto, diferença estatisticamente relevante em sua capacidade de reconhecer o padrão a em meio aos padrões b e c. Claramente, a freqüência da percepção não desempenhou nenhum papel relevante aqui, o que constitui um desmentido da tese que confere à experiência passada a centralidade mencionada. Se esta tese fosse efetivamente válida, sujeitos experimentais que tivessem percebido o padrão a por mais vezes teriam condições de identificá-lo com maior facilidade, o que simplesmente não ocorreu. As conclusões, vêse com facilidade, são as mesmas apresentadas por Wertheimer. É certo que a própria idéia básica de Gestalt é também atestada por estas imagens, uma vez que não temos a nossa percepção orientada por partes isoladas, mas sim pelo todo em que elas se integram. Pouco importa à percepção, em seu desdobramento natural, que os mesmos traços do padrão a, dispostos do mesmo modo, estejam nos padrões b e c, pois nestes eles estão subsumidos a perceptos distintos, que fazem com que aqueles traços sejam apenas partes de novas tramas nas quais eles simplesmente não se destacam. No que respeita às iniciais M. W., pouco importa que estes signos sejam reconhecidos como letras na esmagadora maioria das vezes em que temos trato com eles, pois, na imagem concebida por Wertheimer, eles são apresentados de maneira tal que esta peculiaridade é imediatamente desfeita. As considerações do fator do hábito, portanto, parecem ter maior relevância para a reafirmação de teses antes apresentadas – como a necessária subordinação de partes à totalidade de que são partes e a pouca participação da experiência passada na estruturação de objetos –, do que para pensarmos um fator formal positivo e que possa se colocar ao lado dos demais em termos de valor teórico.

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3.4.5. O fator de figura e fundo: Um último fator a ser aqui considerado é o de figura e fundo (Figur und Grund), incorporado e amplamente divulgado pelas pesquisas gestaltistas, mas proposto inicialmente pelo psicólogo dinamarquês Edgar Rubin, pertencente à Escola de Göttingen, orientada em seus estudos de psicologia experimental por Georg Elias Müller (SPIEGELBERG, 1986, p. 52). A despeito da produção desta escola ter contribuído principalmente para o quadro teórico tradicional da psicologia, algumas teses tiveram outro destino, sendo bastante relevantes para o desenvolvimento das propostas da Escola de Berlim precisamente em sua oposição àquele quadro. Por meio da lei de figura e fundo, o que se busca é ressaltar o caráter essencialmente diferencial e complexo da percepção, que sempre nos mostra determinados conteúdos como que se destacando a partir de outros conteúdos mais basilares e menos distintos. Se os primeiros destes guardam melhor definição, um contorno mais preciso que lhe confira limites e facilite o seu próprio destacamento, tornando-nos mais patentes e imediatamente acessíveis quaisquer características que eles possam apresentar, os últimos carecem de todas estas propriedades, sendo mais imprecisos, sem destacamento algum e possuindo características nada impositivas, que têm de ser especialmente tomadas por um direcionamento de nosso interesse ou atenção para que surjam mais claramente em nossa experiência. Os primeiros compõem o que chamamos ‘figura’; os últimos, o que chamamos ‘fundo’. Podemos compreender este fator de maneira intuitiva na medida em que constatamos que sempre, a cada percepção pontual que nos é possível, um determinado conjunto de dados do campo percebido se mostra de maneira mais direta, capturando o curso de nossa percepção e nos permitindo reconhecê-la como percepção de um conteúdo determinado, seja ele propriamente um objeto ou simplesmente alguma característica subsumida a um objeto. De uma paisagem campestre específica, e.g., uma determinada montanha ao longe pode nos surgir como o objeto central de interesse, todas as demais montanhas que compõem sua cordilheira, que definem os vales que a ladeiam, toda a extensão do prado que a antecede, todas as árvores que eventualmente sejam visíveis neste prado – enfim, tudo o quanto estiver visualmente dado no entorno da montanha primariamente posta em nossa percepção, aparecendo como o fundo a partir do qual a montanha se define como objeto ou figura. Na percepção de uma pessoa que vem ao nosso encontro, podemos conferir o mesmo privilégio

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ao seu rosto, tornando todas as outras porções de seu corpo, bem como todo o ambiente em que ela caminha quando se põe em nossa direção, percepções secundárias que servem apenas de ocasião para este destacamento, para este atentar mais precisamente a uma parte específica de sua imagem. Os exemplos mais concretos são diversos, na medida em que, em termos de experiência visual, é de imediata apreensão a validade da afirmação segundo a qual os conteúdos que nos são acessíveis sempre se dividem em conteúdos que se mostram em primeiro plano e conteúdos que oferecem a estes a ocasião mesma de se mostrarem em primeiro plano. O método pelo qual esta peculiaridade da percepção foi experimentalmente estudado, desenvolvido por Rubin e também empregado pelo gestaltismo, consistia na apresentação de imagens ambíguas a sujeitos experimentais e no exame escrupuloso das descrições por eles feitas acerca de sua experiência perante as imagens. Ainda que a experiência de uma figura se destacando de um fundo seja trivial, como dissemos acima, ela pode ser explorada de maneira particularmente eficiente por meio de imagens que são propositalmente concebidas para gerarem percepções inteiramente distintas, a depender de qual entre as suas partes é posta como fundo. Um exemplo de imagem ambígua produzido pelo próprio Rubin e marcado por seu nome é a chamada ‘cruz de Rubin’, a qual reproduzimos aqui de acordo com as ligeiras modificações nela operadas por Koffka (1935/1975, p. 193)100:

Nesta imagem, podemos claramente perceber uma cruz que se destaca como uma figura circunscrita a um círculo. Em um caso, a cruz se mostra como uma figura definida pelas secções do círculo que têm a sua área interna marcada por linhas retas e o que se mostra como fundo é precisamente o círculo que parece ter em si diversos círculos

100

Nos trabalhos de Rubin, as secções da área do círculo não apresentam ora linhas retas, ora linhas curvas como preenchimento. Elas são ora brancas, ora negras.

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concêntricos parcialmente ocultados pela cruz. Destes círculos concêntricos, apenas algumas linhas curvas nos são efetivamente visíveis. No entanto, é perfeitamente possível operar uma inversão nesta organização e fazer com que as secções que apresentam linhas curvas apareçam como figura, mostrando-nos também uma cruz, e com que as secções que apresentam linhas retas componham o fundo. Em ambos os casos, a percepção é a do destacamento de uma cruz na área de um círculo. A cruz que se mostra, no entanto, bem como o fundo que a suporta, são inteiramente distintos a cada caso. Esta é a característica central das imagens ambíguas desenvolvidas por Rubin: a possibilidade de operarmos inversões de perspectiva que nos dêem a cada vez experiências visuais novas. Para os propósitos de nossa exposição, um exemplo apenas já satisfaz. Ele nos permite perceber algumas propriedades gerais do campo neste movimento de divisão entre figura e fundo. Uma das propriedades mais relevantes é a existência de um ‘contorno de função unilateral’ ou ‘assimétrica’, que permita que apenas um conjunto de dados seja precisamente delineado, ganhe destaque e se mostre como figura. O contorno tem de ser unilateral precisamente por operar uma distinção entre os dados que se articulam em uma forma principal e os que se mostram como base indistinta a partir de que esta forma se dá. Se tal assimetria não ocorresse, mas sim uma plena simetria na demarcação de fronteiras – ou ainda, se fosse o caso de um contorno com função ‘bilateral’ se afirmar – não teríamos algo indistinto e secundário para além de uma única figura, mas sim duas figuras imediatamente dadas. Caso o contorno percebido na cruz de Rubin fosse de função bilateral, teríamos a percepção natural de duas cruzes encaixadas uma junto à outra e não de uma cruz, seja ela qual for, que se destaca de um fundo, seja ele qual for101. Outra característica de suma importância é a relação de dependência funcional entre figura e fundo, na qual é preciso sempre haver uma destas dimensões para que a outra se realize como o que ela é – sempre um fundo para que uma figura se posicione como figura e sempre uma figura para que um fundo se posicione como fundo. A relação entre o que se destaca e a base a partir de que ele se destaca é necessária, portanto – uma relação estrutural

101

Decerto os próprios limites destas cruzes – o círculo, evidentemente – no ofereceriam ainda um contorno de função unilateral para que percebêssemos a imagem como que se destacando do fundo da lauda. Neste caso, haveria figura e fundo, o que é já índice da presença necessária dessa estrutura para o dar-se de todo percepto. Passaremos a este tema mais adiante.

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que nada tem de próxima das conexões arbitrárias entre conteúdos fenomenais previstas pela psicologia precedente. Ainda que a maior parte dos estudos existentes acerca deste fator perceptual sejam estudos da atividade visual, Koffka (1935/1975, p. 211 e 212) indica a possibilidade de a tomarmos como um fator da sensibilidade em geral. A fundamentação experimental para a extensão do fator a outros sentidos não seria muito ampla, mas as possibilidades de apreendermos este movimento como algo inteiramente plausível, sustentado pela nossa experiência ordinária e, portanto, marcado pelo valor descritivo sempre almejado pelos gestaltistas, são grandes. Se, e.g., em meio a uma turba de vozes, escutamos uma fala mais destacada, mesmo sem nos aplicarmos de fato a procurá-la, certamente será por algum aspecto de sua expressão – o timbre, a altura, uma palavra ou frase determinada etc. – que a permitiu surgir de maneira privilegiada em meio à massa sonora. Se, na percepção tátil de um determinado corpo extenso, temos diferentes experiências de relevo, será porque determinadas porções deste corpo oferecem maior obstáculo físico ao toque de nossas mãos, marcando variações de pressão e nos permitindo apreender de imediato a diferença entre esta pressão mais acentuada e as outras menos acentuadas que a margeiam. Por meio de raciocínios similares, poderíamos encontrar experiências de figura e fundo em outros sentidos, nos quais sempre algo se faz mais patente em meio a outro algo que se retrai e põe indistintamente além do campo privilegiado da percepção. Encontramos aqui um dos aspectos importantes – e já anunciado – do veto gestaltista à tese de que podemos encontrar conteúdos simples em nossa experiência, seja diretamente, seja por meio do esforço analítico feito método pela psicologia precedente. Todo conteúdo, por mais simples que seja, é uma figura que se mostra a partir de um fundo, e nunca algo que possa ser marcado pelo caráter de elemento e pela simplicidade absoluta – um tom cromático muito discreto depende de uma base de dados visuais para aparecer; uma impressão acústica, de impressões menos intensas do próprio ambiente ou mesmo do silêncio; uma impressão tátil, de impressões menos intensas que a suportem; etc.

Com este exame dos fatores da forma, podemos compreender como o gestaltismo procura dar sustento à sua tese de que a experiência é uma realidade autóctone, que se organiza a partir de princípios necessários e de valor intuitivo e não pode de modo algum

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ser caracterizada pelas hipóteses empiristas amplamente defendidas pelas teorias anteriores. A constatação de que os perceptos são totalidades supra-somativas e que eles se ordenam segundo a sua disposição espacial, o maior ou menor grau de compatibilidade entre as suas características sensíveis, a possibilidade de formarem unidades fechadas, de exibirem contornos contínuos, de assumirem configurações estáveis, econômicas e necessariamente complexas, marcadas pelo contraste entre conteúdos, entre outras tendências que acabamos de descrever, mostra-nos que estamos diante de uma proposta radicalmente nova, que confere à experiência uma autonomia antes inexistente. Ela não é função de um sujeito empírico ou produto de processos constitutivos quaisquer, mas sim um âmbito que orienta e gere os próprios processos. Com isto, temos delineadas não apenas as bases de uma teoria da percepção, mas, como já dissemos antes, de uma teoria geral da experiência.

3.5. A fenomenologia gestaltista: Até o presente momento de nosso percurso pelo gestaltismo berlinense, tivemos condições de acompanhar alguns dos problemas que estimularam o seu surgimento, o interesse inédito por ele nutrido acerca das condições imanentes de organização da experiência e um grande número de leis fundamentais que foram postuladas a partir deste interesse. Como já tivemos ocasião de afirmar em diferentes momentos, a principal característica da metodologia empregada pela escola era a de subordinar o exame genético dos fenômenos conscientes ao exame descritivo – i.e., entender que a explicação causal, a análise das variáveis relevantes para a definição concreta do fenômeno e a formalização de todas estas relações deveria ser um esforço tardio em relação à simples compreensão do que o fenômeno é a partir de seu aparecer. Este compassamento entre dois registros possíveis à investigação psicológica – o qual já afirmamos ter sido previsto por Brentano em seus cursos de 1890 e 1891 – busca não apenas estabelecer uma prioridade de uma tarefa sobre a outra, mas também afirmar que as incumbências da segunda tarefa devem ser sempre atendidas tendo-se em vista a manutenção e o escrutínio dos resultados da primeira. Unindo de uma forma tal o estudo científico, em seu aspecto mais rígido, ao esforço compreensivo, o que temos já não pode ser mais uma divisão radical entre ciência e vida, como Wertheimer afirmava ocorrer na psicologia e mesmo em toda a ciência precedentes. O que temos é a almejada união entre ambas. A explicação científica já não mais desautoriza a

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vida e a mostra como um epifenômeno enganoso de uma série de outros fatores extraexperiência – estes sim legítimos e cientificamente explicáveis. Ela a endossa. Um bom exemplo do contraste entre estas duas maneiras de se relacionar ciência e vida é oferecido por Koffka (1935/1975) em seus Principles. O psicólogo afirma: A psicologia tradicional estava bastante ávida por explicar como B ou C o que obviamente parecia ser A. Nunca um psicólogo se mostrava mais orgulhoso do que quando podia declarar: A não é realmente A, mas uma outra coisa. [...] Todas essas explicações não conseguem explicar por que é que pensamos que A é A. Pois, ainda que os psicólogos nos digam que A, realmente, era B, nós persistimos obstinadamente em chamar-lhe A e a tratálo como A, não como B. Será inteiramente devido à nossa perversidade e mávontade em aprendermos com os especialistas que continuamos falando da tristeza de um adágio ou da exuberância viril de um scherzo de Beethoven, em vez de nos referirmos às nossas diversas sensações orgânicas? Por que seremos tão irremediavelmente estúpidos para continuar a chamar de branco à cor de nossa toalha de mesa, durante um jantar à luz de velas, quando Helmholtz nos disse que ela é amarela? [...] a longo prazo, ficou provado ser mais proveitoso aceitar um A como A e explicá-lo como tal. (p. 189)

Este, portanto, é o esforço gestaltista: tomar algo pelo que ele se mostra ser em nossa experiência e fazer disto base para a reflexão científica. Evidentemente, não é sempre que encontramos o mesmo sucesso nesta coordenação entre descrição e explicação. Em estudos como os do fenômeno , temos uma formalização satisfatória dos resultados fenomenais, na medida em que encontramos intervalos temporais precisos para cada um dos três resultados principais – sucessão, simultaneidade e movimento ótimo – e podemos indicar que, junto ao espaço existente entre as emissões luminosas, o tempo é a causa efetiva do fenômeno. Em outros estudos, no entanto, como aqueles que delimitam os fatores da Gestalt, o resultado é claramente mais precário, pois não há formalização possível do que é encontrado. Como nos indica Spillmann (2012): “[...] os fatores da Gestalt não são facilmente definíveis e menos ainda quantificáveis, a despeito do fato de serem intuitivamente corretos (auto-evidentes)” (p. 196). O que é endossado também por Vicario (1998), o qual afirma que um relevante grupo de pesquisa foi montado na Itália, entre psicólogos diretamente ligados ao gestaltismo, com a intenção de conferir matematização àqueles fatores, mas os seus resultados foram completamente infrutíferos102.

102

O comentador afirma: “Eu fui também testemunha dos esforços feitos por um grupo de distintos pesquisadores em percepção, conduzidos por Kanizsa [eminente gestaltista italiano], para matematizar os princípios de Wertheimer e quantificar sua força em condições específicas. Após meia dúzia de encontros, o

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Mesmo que a formalização falhe, a projeção de imagens específicas ou de situaçõesproblema para testarem a ocorrência dos fatores em sujeitos experimentais mostra que o esforço de aplicar a análise experimental é presente e bastante relevante neste segundo caso. Pudemos ver o suficiente sobre isso na seção anterior. Algo de extrema relevância para o problema central assumido neste estudo é o fato de que este procedimento descritivo que antecede o esforço genético do psicólogo – chamado por Wertheimer em seus Experimentelle Studien apenas de uma descrição do ‘psiquicamente dado’ – é tardiamente chamado de ‘fenomenologia’ por diversos gestaltistas relevantes, como Koffka, Köhler, Wolfgang Metzger e David Katz103. É necessário, então, que examinemos as diferentes definições oferecidas por esses pesquisadores ao termo e que mencionemos, quando relevantes, alguns problemas que se encontram ligados à própria cadeia argumentativa em que o termo surge.

3.5.1. As contribuições de Koffka e Köhler: A definição mais mencionada do termo no gestaltismo, oferecida por Koffka em seus Principles, já demarca com clareza não apenas o interesse descritivo basilar ao método, mas também o relevante fato de que, por ‘fenomenologia’, costuma-se designar idéias bastante distintas e irredutíveis umas às outras, não sendo adequado, deste modo, que tomemos a simples homonímia por uma identidade de idéias. Koffka (1935/1975) diz: Uma boa descrição de um fenômeno pode, por si mesma, refutar numerosas teorias e indicar as características definidas que uma verdadeira teoria deve possuir. A esse tipo de observação chamamos ‘fenomenologia’, palavra que tem muitos outros significados que não devem ser confundidos com o que nós lhe atribuímos. Para nós, fenomenologia significa uma descrição da experiência direta que seja a mais ingênua e completa possível. (p. 84; grifo nosso)

grupo foi dissolvido, pois se tornou claro para todos que a tentativa não levaria a resultado algum.” (p. 259; acréscimo nosso). 103 Parece-nos relevante indicar que a tradução norte-americana dos Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung, presente no volume On Perceived Motion and Figural Organization, compilado por Lothar Spillmann, comete uma grave deturpação do texto alemão ao inserir o termo ‘fenomenologia’ em diferentes passagens da argumentação de Wertheimer que originalmente não o apresentam. Em inglês, e.g., encontramos ‘What is it that was phenomenologically given there [...]?’ (p. 54), quando em alemão temos ‘Was ist das, was da psychisch gegeben war? (p. 233)’; ‘[...] was not phenomenologically perceived [...]’ (p. 64) para ‘[...] psychisch nicht wahrgenommen [...]’ (p. 234); [...] phenomenologically given.’ (p. 69) para ‘[...] psychisch Gegebenes’ (p. 240); entre outras. Todas as ocorrências de qualquer variação do termo ‘fenomenologia’ são falsas. Ainda nos falta alguma referência verdadeira de Wertheimer ao termo.

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Já na primeira frase desta citação, encontramos precisamente o raciocínio de base assumido por Wertheimer em seus estudos sobre o fenômeno , e.g., nos quais o simples gesto de conferir autonomia à percepção dos sujeitos experimentais o permitiu tanto contornar teorias acerca do fenômeno estroboscópico que ainda atribuíam grande valor ao exame da estimulação física, quanto observar características dos fenômenos conscientes que não poderiam ser positivamente explicadas pela ciência precedente. De maneira igualmente clara, encontramos o mesmo raciocínio na própria reformulação do conceito de Gestalt, que buscava depurar a compreensão de formas de todo comprometimento com o esquema elementarista, considerado inteiramente não-intuitivo. Também o encontramos no exame dos fatores de organização destas formas, os quais são sempre ditos da experiência pura, antes de serem vertidos em objetos de exame experimental. É certo que a definição de Koffka é muito pouco detalhada, mas as nossas possibilidades de remontar qualquer reivindicação gestaltista ao exercício de uma tal fenomenologia não encontra dificuldades relevantes. Após ressaltar a necessidade de considerarmos a existência de outros procedimentos distintos que atendem também pelo nome ‘fenomenologia’, Koffka especifica de maneira ainda mais direta que, para o gestaltismo, este termo denota apenas um exame que seja tão atento ao próprio dar-se da experiência quanto possível, evitando medi-la pelo que a excede e buscando explicitar de maneira detalhada o que ela comporta em si, o que efetivamente a caracteriza em sua condição atual. Nesta única definição oferecida nos Principles – o mais volumoso livro de introdução ao gestaltismo escrito pelos membros da primeira geração berlinense, vale salientar –, o psicólogo resume a sua compreensão do termo apenas na injunção de descrever a experiência de maneira ingênua, não indicando nenhuma técnica especial que pudesse amparar um tal esforço e não citando sequer um nome entre os intelectuais que poderiam ter orientado ou inspirado esta sua posição. Maiores informações acerca deste procedimento, no entanto, podem ser encontradas na Gestalt Psychology (1947)104, de Köhler105, especificamente nas seções em que o 104

A primeira edição da obra data de 1929, mas fazemos referência aqui à sua edição revisada e expandida. Acerca de Köhler, é preciso indicar que o termo ‘fenomenologia’ é empregado pelo autor em outras obras que não puderam ser avaliadas aqui. Uma delas é o extremamente influente estudo acerca da inteligência dos símios, Intelligenzprüfungen an Menschenaffen (1921). No texto, Köhler se refere uma única vez a certa ‘fenomenologia elementar do comportamento do chimpanzé’ (elementare Phänomenologie des Schimpansensverhaltens), a qual significaria apenas o exame descritivo cuidadoso da conduta destes animais 105

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psicólogo argumenta em favor da necessária origem de toda forma de conhecimento, referente a qualquer domínio científico, na vida consciente em seu aspecto mais ordinário, ingênuo e acrítico. As primeiras sentenças do livro já indicam esta posição: Parece haver um único ponto de partida para a psicologia, exatamente como para todas as outras ciências: o mundo como o encontramos ingênua e acriticamente. A ingenuidade pode ser perdida à medida que prossegui-mos. Podem ser encontrados problemas que estavam, a princípio, completamente escondidos de nossos olhos. Para a sua solução, pode ser necessário desenvolver conceitos que parecem ter pouco contato com a experiência primária, direta. Não obstante, o desenvolvimento por inteiro deve começar com uma imagem ingênua do mundo. Esta origem é necessária porque não há outra base a partir da qual uma ciência pode se erguer. (KÖHLER, 1947/1970, p. 3)

De acordo com o psicólogo, a despeito de uma grande quantidade de desdobramentos da ciência buscar justamente pôr em cheque a validade epistêmica desta experiência – como já tivemos oportunidade de mencionar brevemente em nosso exame das relações de Brentano com o pensamento moderno –, nenhuma forma de conhecimento, por maior que seja a sua pretensão à abstração, pode simplesmente abrir mão do vínculo originário com o mundo tal como eles nos é dado – tal como o habitamos, vivemos e significamos. Trata-se de entender que o próprio procedimento do investigador perante o seu objeto – por mais que ele se valha de instrumentos de observação, procedimentos inferenciais e recursos de formalização que o afastem intensamente da experiência tal como ele a tem fora de sua atividade científica – é sempre dependente de uma cadeia de percepções e operações intelectuais de um ser vivente em específico, que possui as suas determinações concretas para realizá-las e que não pode conferir a elas qualquer origem senão a sua própria experiência fenomenal. Não seria possível fazer exceção nem mesmo para as ciências mais bem constituídas e que realizam mais perfeitamente a formalização de suas teorias, como a física. Aqui, a observação de um galvanômetro ou qualquer outro instrumento de medida é ainda visão; a demonstração de equações e a formulação em condições de testagem. Para informações ulteriores acerca deste procedimento fenomenológico em etologia dos primatas, a peculiar ‘fenomenologia do chimpanzé’, remetemos ao artigo de Lester Embree (2003), Chimpanzee Phenomenology: a beginnig for the phenomenological theory of primate ethology. Uma outra obra é Die physischen Gestalten in Ruhe und im stationären Zustand: eine naturphilosophische Untersuchung (1920), a qual comentaremos de passagem na última seção deste capítulo e na qual Köhker faz repetidas menções ao método. Pelo fato de nosso estudo assumir como foco a teoria da percepção humana proposta pelo gestaltismo, a despeito do quão enriquecedoras possam ser as indicações presentes nestas duas obras, elas não puderam entrar em nosso recorte, restando por serem devidamente examinadas no futuro.

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conceitual são ainda operações intelectuais vivas; a exposição de uma tese científica é ainda algo que aponta para experiências e oferece indícios acerca de observações possíveis. Deste modo, Köhler (1947/1970) sustenta que mesmo os conceitos físicos mais abstratos “[...] não podem ter sentido algum sem uma referência, a despeito do quão indireta ela possa ser, a certas experiências diretas.” (p. 27) A posição do psicólogo pode, deste modo, ser resumida à seguinte idéia: independente do lugar para o qual as especulações de um pensador puderem levá-lo, elas partem da experiência e só encontram sentido efetivo quando remontadas de algum modo à experiência, seja a própria, seja a de um interlocutor qualquer. Deste modo, no que se refere à psicologia, a posição de Köhler é a de que ela deve se ater a esses dados imediatos da consciência e considerá-los como o solo genuíno em que se definem os seus objetos de estudo. Em sua tentativa de caracterizar este solo, ele oferece uma distinção bastante relevante acerca dos diferentes sentidos assumidos pelos termos ‘objetivo’ e ‘subjetivo’, de acordo com duas perspectivas fundamentais pelas quais eles podem ser enfocados – a partir das coisas ou da experiência. No primeiro caso, referindo ambos os termos à ordem das coisas, temos que ‘objetivo’ é tudo o que excede a nossa experiência e os eventos fisiológicos que a possibilitam – a realidade como simples efetividade física. Por oposição, ‘subjetivo’ é o que se encontra precisamente nos limites desta experiência – a produção de um correlato psíquico que faça as vezes de um ente natural que se encontra como causa desta experiência, mas que é em si mesmo insondável. No segundo caso, referindo ambos os termos à ordem da experiência, temos que ‘objetivo’ é o que parece nos ser exterior, tão acessível por nossos atos perceptivos quanto pelos de outrem, e que ‘subjetivo’ é o estado psíquico íntimo, inacessível aos demais, como pensamentos, emoções e seus variantes106. O interesse da descrição operada pelo psicólogo descarta inteiramente o primeiro nível de análises, bem como a ‘experiência subjetiva’ do segundo nível, enfatizando apenas a ‘experiência objetiva’ deste. Não interessa, portanto, ao exame fenomenológico, considerar a relação dos dados fenomenais com as suas causas físicas definidas, a qual colocaria a experiência em contraste com a realidade natural, da

106

“Em meu mundo original, inúmeras variedades da experiência apareciam como inteiramente objetivas, i.e., como existindo ou ocorrendo independente e externamente. Outras experiências pertenciam a mim de maneira pessoal e privada, e eram, nesta medida, subjetivas, tais como um medo terrível em certas ocasiões e uma calorosa e intensa felicidade no Natal.” (KÖHLER, 1947/1970, p. 20)

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mesma forma que não interessa tanto avaliar processos psíquicos menos diretamente ligados à percepção e à apreensão de um mundo ordenado, estável e significativo. Pelo contrário: é justamente o dar-se disto que nos surge como a realidade em um sentido mais vívido e palpável que interessa ao gestaltista – a sua compreensão direta e sem comprometimentos com outros interesses. Comentando a sua formação como físico e o impacto que ela exerceu em sua compreensão natural da percepção, Köhler (1947/1970) afirma: O nome ‘experiência’ parece indicar que, ainda que apareçam como objetivas, as coisas ao meu redor eram atualmente sentidas como sendo dadas ‘em minha percepção’. Neste sentido, elas teriam ainda permanecido subjetivas. Mas este não era, de modo algum o caso. Elas simplesmente estavam lá fora. Eu não tinha qualquer suspeita acerca de elas serem meramente os efeitos de algo outro sobre mim. Devo ir além. Não havia mesmo a questão acerca de sua dependência em relação à minha presença, ao [fato de] manter meus olhos abertos e assim por diante. Tão absolutamente objetivas eram aquelas coisas que para um mundo mais objetivo não havia lugar. Mesmo agora, sua objetividade é tão forte e natural que eu encontro a mim mesmo constantemente tentado a atribuir ao seu interior certas características que, de acordo com os físicos, são fatos do mundo físico. Quando, nestas páginas, eu usar o termo ‘experiência objetiva’, ele terá sempre esse significado. Por exemplo, uma cadeira como uma experiência objetiva será algo lá fora, rígido, estável e pesado. Sob nenhuma outra circunstância ela será algo meramente percebido ou, em sentido algum, um fenômeno subjetivo. (p. 20 e 21; acréscimo nosso)

O que encontramos nesta citação é imensamente relevante para entendermos a natureza do estudo fenomenológico gestaltista: a ele, cabe entender como ocorre esta experiência a mais natural possível, com toda a sua tendência a posicionar como real os objetos que nela são dados, a crê-los existentes neles mesmos e acessíveis a qualquer eventual observador exatamente como se mostram acessíveis a mim. Cabe indicar aqui, apenas de passagem, que em nosso próximo capítulo teremos condição de perceber o quanto esta pretensão é distante da fenomenologia de Husserl, que pretende, em fase tardia, justamente agir contra esse assentimento imediato à realidade do que nos é intencionalmente dado e descerrar os esquemas constitutivos que permitem um tal aparecimento. Como buscaremos explorar em nosso capítulo conclusivo, a fenomenologia gestaltista parece tomar como objeto de análise precisamente aquilo que o método husserliano buscará superar, i.e., a ‘atitude natural’. Ela se realiza justo no âmbito que a outra descarta por inteiro.

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Não é apenas em Gestalt Psychology, no entanto, que Köhler nos oferece recursos para compreendermos a fenomenologia gestaltista. Em outra de suas obras relevantes, The Place of Value in a World of Facts (1938), ele afirma da seguinte maneira o caráter concreto das análises fenomenológicas, bem como o seu afastamento de certas variações do método que são excessivamente abstratas ou próximas ao campo especulativo: Para os nossos propósitos, a fenomenologia não é restrita ao reino da lógica ou das entidades atemporais. Se, ademais, alguns expoentes da fenomenologia tendem, por seu trabalho, a fazer-nos crer que a sua ocupação é necessariamente estéril, isto é culpa deles, e não do procedimento como tal. Ainda mais importante, as mais vagas especulações já encontraram, algumas vezes, abrigo sob o teto da fenomenologia. Com tais aberrações, não podemos querer ter qualquer conexão. (KÖHLER, 1938, p. 68)

Com estas palavras, Köhler não reitera apenas o interesse concreto assumido pelo exame descritivo de sua escola, mas também a fala de Koffka, que se preocupa em afastar o sentido gestaltista de fenomenologia dos outros sentidos existentes, ao indicar pelo menos critérios de corte. O primeiro deles seria a afirmação de que certa fenomenologia faria um exame privilegiado ou mesmo exclusivo de objetos atemporais, dentre os quais os objetos próprios à ciência lógica – e, necessariamente, por extensão, aqueles pertencentes às matemáticas ou a quaisquer outras ciências formais. A isso Köhler atrela a possibilidade de que certos trabalhos da área se mostrem de algum modo improdutivos, conduzindo a objetos pouco interessantes uma atenção que poderia ser aplicada a outros objetos cuja compreensão se mostra mais premente. A partir de tudo o que vimos acerca do método da escola, parece-nos correto crer que uma fenomenologia da experiência ingênua se ocupa de fenômenos que têm precisamente o caráter de imediatidade, palpabilidade e concretude que aqueles concernentes a objetos atemporais, por princípio, não têm. Atentar a certa porção da vida fenomenal excessivamente afastada deste aspecto mediano da consciência, portanto, mostra-se indesejável a ponto de se precisar escusar a própria fenomenologia da má orientação de seus praticantes, dizer que, não obstante o emprego indevido, ela guarda méritos que ainda devem ser reconhecidos. O segundo ponto de corte seria o fato de – não é claro exatamente se por conta deste enfoque abstrato ou em adição a ele –, algumas fenomenologias admitirem especulações em sua atividade, tornando-a algo além da descrição do mero dado. E aqui o posicionamento de Köhler é categórico ao considerar aberrante uma tal concepção de fenomenologia e dizer que aquela assumida por sua escola

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é inteiramente desconectada dela107. É bastante evidente, tanto a partir de Köhler, quanto de Koffka, que o gestaltismo estava ciente de que o seu procedimento fenomenológico é especial e que deve ser distinto de outros procedimentos que levam o mesmo nome, de modo que as suas investigações não possam ser compreendidas por meio de pressupostos ou instrumentos de análise que ela simplesmente não assume. De resto, em The Place of Value in a World of Facts, Köhler expõe com atenção ligeiramente maior determinados temas que já vimos em nosso percurso até aqui. Ele ressalta a diferença de princípio existente entre a investigação fenomenológica e a investigação positiva que, no gestaltismo, sabemos ser seu complemento direto. Se à primeira caberia se ocupar do objeto dado e de suas propriedades, sem interesse genéticocausal, à segunda caberia analisá-los precisamente por esta via, expondo os vínculos de dependência funcional entre o fenômeno e o processo que o elicia: É inteiramente essencial para as asserções fenomenológicas que elas nunca sejam confundidas com hipóteses ou mesmo com conhecimento sobre a gênese funcional de dados fenomenais. De onde veio uma coisa, a quê a sua existência e aquela de suas propriedades são devidas, é uma pergunta válida, mas [...] não uma pergunta para a fenomenologia. Que propriedades a coisa atualmente tem? – esta é a pergunta para a fenomenologia. (KÖHLER, 1938, p. 69 e 70)

Além disto, em raciocínio similar àquele que, na Gestalt Psychology, levou o psicólogo a afirmar que toda forma possível de conhecimento deriva da imagem ingênua e acrítica que temos do mundo, ele afirma que “[...] todas as questões de princípio [...] só podem ser resolvidas em bases fenomenológicas”, ou ainda que a fenomenologia “[...] é o 107

Ainda que Köhler faça esta crítica sem endereçá-la a pensador algum, há razões para acreditarmos que Husserl se encaixa neste perfil considerado aberrante, como veremos claramente no exame de seu pensamento pelo gestaltista, oferecido na mesma obra aqui analisada e tema de nossa próxima seção. As razões são as seguintes: (1) entre os ‘expoentes da fenomenologia’, é bastante claro que nenhum se dedicou com tanto afinco ao estudo de objetos atemporais, especialmente àqueles concernentes à lógica, quanto Husserl – o que poderemos compreender no capítulo a ele destinado; (2) a obra na qual Köhler se baseia para fazer a crítica supracitada são as Logische Untersuchungen e ele dá especial atenção à refutação do psicologismo nos Prolegomena, volume no qual o interesse de Husserl em salvaguardar a autonomia das ciências formais perante as ciências empíricas é absolutamente essencial, um dos principais fios condutores de sua argumentação; (3) naquela crítica, Köhler buscará indicar inconsistências no imperativo do retorno às coisas mesmas que poderiam revelar certa natureza especulativa do empreendimento. Deste modo, temos que Husserl preenche todas as características indicadas na passagem acima recuperada: é um expoente da fenomenologia que deu especial atenção a objetos desinteressantes para o gestaltismo e facultou a eles um estudo que guarda certas obscuridades que podem ser indício de especulação. O fato de Köhler não nos oferecer uma crítica nominal, no entanto, obriga-nos a manter estas indicações como mera hipótese. Se o seu valor puder ser corroborado por estudos ulteriores, temos claramente um momento em que a fenomenologia de Husserl é qualquer coisa de monstruosa e da qual o gestaltismo não busca se aproximar.

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campo no qual todos os conceitos encontram a sua justificação final.” (KÖHLER, 1938, p. 102). Por já termos examinado tais raciocínios acima, cabe-nos apenas indicar a sua nova ocorrência e assegurar, pelo mesmo movimento, a sua relevância para a fenomenologia gestaltista de um modo geral.

3.5.2. As contribuições de Metzger e Katz: Ainda que a quase totalidade de nossas exposições precedentes seja orientada pelo trabalho dos representantes da primeira geração do gestaltismo berlinense, a propósito deste tema específico, a caracterização da fenomenologia, cremos ser relevante citar as contribuições de dois outros autores não pertencentes a este núcleo. O primeiro deles é Wolfgang Metzger, discípulo e assistente de Max Wertheimer em Frankfurt e um dos mais importantes nomes das gerações posteriores da escola, tendo investigado com maior ênfase a percepção visual e oferecido uma importante obra acerca do tema, Gesetze des Sehens (1936). O segundo é David Katz, psicólogo formado na Escola de Göttingen, discípulo de Georg Elias Müller108, e que teve certa aproximação do gestaltismo em sua produção intelectual tardia, como atesta a sua obra Gestaltpsychologie (1944). Consideremos inicialmente a contribuição de Metzger. A maneira como este psicólogo se reporta à fenomenologia é relevante porque, apesar de se manter nas mesmas referências de Koffka, acaba oferecendo um retrato um pouco mais rico e eloqüente do que fizera este último autor. A atenção de Metzger incide principalmente no afastamento de preconceitos, citando uma grande quantidade de meios pelos quais o nosso esforço descritivo pode falhar nesta incumbência. Deste modo, como expõe o autor em sua Psychologie (1941), a fenomenologia consistiria em: De início, simplesmente aceitar o que encontramos [das Vorgefundene] como ele é; ainda que ele pareça [erscheint] inabitual, inesperado, ilógico, absurdo e pressupostos inquestionáveis ou linhas de pensamento confiáveis o contradigam. Deixar a coisa ela mesma falar, sem recorrer ao conhecido, ao anteriormente aprendido, ao evidente em si [Selbstverständlich], ao conhecimento de conteúdos, às exigências lógicas, aos pré-juízos [Voreingenommenheiten] do uso lingüístico e às lacunas do vocabulário. Confrontar a coisa com reverência e amor, direcionando a dúvida e a 108

Da mesma forma que Edgar Rubin, como vimos anteriormente. Acerca da importância deste dois autores para o gestaltismo, vale recuperar a afirmação de Germain e Sacristán (1967): “[...] não há dúvida de que o professor Katz pode ser indicado, junto a Rubin, Bühler e outros, entre os que mais contribuíram ‘de fora’ para o desenvolvimento da ‘psicologia da forma’.” (p. 4)

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desconfiança em primeiro lugar contra os pressupostos [Voraussetzungen] e conceitos com os quais se procurou apreender, até então, o dado [das Gegebene]. (METZGER, 1941/1968, p. 12)

Ainda que muitas das fontes de engano identificadas pelo psicólogo sejam oriundas do hábito ou das eventuais expectativas que o observador poderia ter acerca do dado, o seu estímulo à aceitação deste é tal que mesmo a eventual falta de razão ou plausibilidade da maneira como ele se mostra deve ser tomada de forma positiva. Sua preocupação, no entanto, incide mais claramente na quantidade de vias pelas quais o que foi previamente aprendido pode intervir na apreensão de um fenômeno, partindo dos conteúdos aprendidos até as formas pelas quais o raciocínio acerca do fenômeno é estruturado e chegando mesmo às maneiras de se conferir expressão lingüística a isto. A injunção de se ‘confrontar a coisa com amor e reverência’ se torna claramente um esforço por depurar a experiência presente de todo fator que possa fazer dela algo afastado da atualidade, tributário de qualquer coisa cuja origem ou explicação se encontra em algum momento da vida psíquica precedente. A apreensão tem de ser inteiramente presente – ou pelo menos assumir este como um ideal do qual se aproximar de maneira assintótica. Esta característica também nos parece relevante para pensarmos as diferenças entre a fenomenologia gestaltista e a husserliana, pois esta última não poderá nunca ser caracterizada por uma tomada tão permissiva do dado. Pelo contrário, ela implicará um esforço constante de eliminação de certos predicados que a consciência natural atribui a ele, bem como de toda característica que possa ser considerada contingente, factual, na maneira como ele se dá. Uma outra fonte importante para a compreensão disto é a caracterização feita por Metzger do tipo de análise que os estudos em psicologia da Gestalt se permitem realizar, que não consiste de modo algum na tentativa de separar totalidades complexas em átomos e instaurar o quadro que já dissemos à exaustão ser repulsivo para o pensamento da escola. Em oposição a esta compreensão da análise, como nos informa o pesquisador em seu breve artigo Certain Implications in the Concept of Gestalt (1928): [...] há outro tipo de análise que não só nos é permitido aplicar, mas que é totalmente indispensável e, na opinião dos psicólogos da Gestalt, nunca foi conduzida longe o suficiente pela psicologia mais antiga. Esta é a completa e minuciosa descrição de todos os detalhes do fato em questão, de todas as partes, processos das partes e qualidades das partes do todo, tal como elas se parecem ou comportam em seu lugar particular no todo atual, e não se pareceriam ou comportariam em outro lugar, nem em outro lugar do mesmo

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todo, nem como parte de um todo diferente, nem como coisas separadas e independentes. (METZGER, 1928, p. 12 e 13)

Esta análise, evidentemente, é a fenomenologia, e nesta formulação de Metzger, ela se encontra intimamente vinculada à compreensão da experiência no caráter gestáltico da mesma – i.e., no fato de sua organização ser sempre uma afirmação da anterioridade significativa do todo em relação às partes. O que se faz aqui, bem entendido, é afirmar a possibilidade de uma análise de caráter holístico e não comprometida com o atomismo. Passemos, então, ao último autor a ser aqui considerado, David Katz. Recuperá-lo neste momento é relevante por uma razão especial. Como vimos com os demais autores examinados nesta seção, em suas definições de fenomenologia não há nenhuma remissão aos conceitos filosóficos de seus antecessores intelectuais, como Brentano e Stumpf, ou àqueles de Husserl, cujo trabalho já conquistara notoriedade nas primeiras décadas do século XX109. Não há citações explícitas destes investigadores, de modo a se procurar estabelecer um grau mínimo de proximidade com seus pensamentos ou mesmo algum fator de contraste ou incompatibilidade. Não é oferecido termo algum que se preste a indicar diretamente a relação em questão e somos deixados, na maior parte das vezes, na responsabilidade por compreender as propostas de cada autor envolvido e, por meio do trabalho exegético, estabelecer nós mesmos as relações mais plausíveis no âmbito conceitual. O único autor que procede de outro modo é Katz, o qual busca estabelecer estas referências, ainda que de maneira muito sucinta e pouco satisfatória. Por destoar dos outros gestaltistas nesta tentativa de articular definição e herança intelectual, a sua fala acrescenta algo de relevante ao que vimos até então. Em sua Gestaltpsychologie, o autor afirma que, por oposição aos métodos clássicos de avaliação da experiência, que procuravam evitar a intervenção de conteúdos da aprendizagem na estruturação de uma representação, no gestaltismo: [...] apelamos, então, à descrição simples, não desvirtuada por pré-juízo algum, do respectivo estado de coisas presente. Nós deixamos, até certo ponto, os fenômenos mesmos virem até as palavras. Sempre que aqui, em psicologia, procedemos de maneira descritiva e sem pré-juízos, falamos em método descritivo ou fenomenológico. Este método, empregado [angewandt] com o mais alto êxito pelo fisiólogo Ewald Hering em suas clássicas 109

Note-se que as referências de Köhler a Husserl, as quais citamos acima, não são apresentadas quando o gestaltista se refere à fenomenologia praticada por sua escola, mas sim em seções destinadas a outros assuntos.

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investigações acerca da teoria das cores e desenvolvido [ausgebaut] pelo filósofo Edmund Husserl em sua fenomenologia, é de considerável significado para o entendimento da psicologia moderna. Ela também influenciou fortemente a psicologia da Gestalt, sobretudo a Köhler, de modo que eu chego mesmo a afirmar que a crítica que a psicologia da Gestalt exerceu contra a psicologia mais velha e o seu próprio desenvolvimento [Aufbau] positivo recaem sob a produtividade do método fenomenológico e sustentam-se a partir dele. (KATZ, 1944/1948, p. 24 e 25)

No que concerne à definição propriamente dita, Katz não traz nenhum elemento novo ao que já sabíamos por meio de outras fontes, oferecendo-nos a mesma definição de Koffka, segundo a qual a fenomenologia seria uma descrição não marcada por pré-juízos. Ao ressaltar a sua importância para a crítica da psicologia clássica, ele também não nos traz novas informações, limitando-se a indicar que a atenção aos dados da experiência ingênua seria o ponto de corte com a análise que sacrifica esta mesma experiência perante concepções científico-naturais as mais diversas. O ponto em que o psicólogo nos traz algo novo concerne, claramente, à relação estabelecida entre o gestaltismo e autores que o antecederam. De acordo com ele, a escola de Berlim teria como antecedentes intelectuais relevantes tanto Ewald Hering, quanto Edmund Husserl, tendo herdado de certo modo a sua orientação metodológica destes pensadores e definido a sua posição perante a psicologia clássica justamente por meio dessa herança. Já tivemos condição de nos reportar ao primeiro destes autores anteriormente, ainda que de modo passageiro, ao citarmos alguns intelectuais que teriam se servido da teoria de Müller acerca das energias sensoriais específicas (HERING, 1884/1913). Esta indicação de Katz, no entanto, não poderá nos servir de forma positiva pelo simples fato de nosso estudo não contar com um exame efetivo das teorias de Hering, as quais certamente encontram acolhida nas obras de alguns historiadores da psicologia e da fenomenologia que se dedicam a mostrar o cenário anterior ao pensamento gestaltista e husserliano, bem como a idéia geral de descrição em ciências positivas (ASH, 2011; SPIEGELBERG, 1994). É digno de nota, contudo, que o primeiro nome mencionado seja justamente o de Ewald Hering e que este seja o único a ter o seu trabalho qualificado em termos de eficiência e minimamente especificado, citado por meio de exemplos. O campo no qual ele teria exitosamente empregado a fenomenologia, como vimos, seria o da percepção cromática. Atenção similar, no entanto, não é dispensada ao segundo investigador citado, aquele do qual nos ocupamos prioritariamente neste estudo, Edmund Husserl. Não

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encontramos, acerca dele, indicação alguma além de seu nome e aquele do método por ele ‘desenvolvido’. Este ‘desenvolver’, inclusive, não parece ser colocado, na fala de Katz, como um ‘originar’, mas sim como um ‘herdar de outrem e elaborar à própria maneira’. Katz afirma que o método é aplicado por Hering e ‘desenvolvido’ por Husserl, o que parece nos indicar que ele enxerga algum aporte teórico relevante das teses do fisiólogo nas do filósofo, ainda que não se preocupe em nos dizer qual é, seja nesta passagem de sua obra, seja em qualquer outra110. Da mesma forma que esta relação entre os dois pensadores citados, permanece em certa obscuridade, em carência flagrante de detalhes, também a relação entre ambos e o gestaltismo. A única afirmação mais direta de Katz – e que ele indica ser claramente uma interpretação própria –, é a de que a crítica gestaltista à psicologia clássica se encontra marcada por aquela influência. Em que pesem as diferenças que já anunciamos ao longo deste capítulo, teremos de guardar esta afirmação para o nosso capítulo conclusivo, no qual, após termos uma imagem minimamente satisfatória das fenomenologias gestaltista e husserliana, poderemos avaliar criticamente sua consistência e suas implicações. Por ora, encontramo-nos apenas em meio a indicações superficiais, que não se distanciam tanto daquelas que elencamos na apresentação do problema deste estudo, ao mostrarmos as opiniões da literatura secundária acerca da relação entre gestaltismo e fenomenologia husserliana. A única diferença relevante aqui é a de que não se trata da fala de um autor afastado do gestaltismo, mas sim de um autor que acompanhou o desenvolvimento desta escola e ofereceu em sua obra algumas contribuições diretas a ele. Evidentemente, é de maior peso que um autor como este nos diga, ainda que em formulações tão econômicas, que aquela relação é o caso. Ele fala de perto. Não obstante, isto pode não nos assegurar muito, uma vez que o autor não procura explorar as suas afirmações ou oferecer acerca delas justificativas quaisquer, por mínimas que sejam. É ainda relevante registrarmos que nenhuma destas considerações dos quatro psicólogos aqui vistos é explicitamente favorável à relevância da fenomenologia de Carl Stumpf para a definição da fenomenologia gestaltista, defendida abertamente por Spiegelberg (1994). Se, em outros aspectos da teoria da forma, a influência deste intelectual é bastante evidente, como vimos em nossa passagem pela psicologia da percepção por ela 110

O que, em última instância, não constitui problema relevante, pois, como nos indicam Fisette (2009, p. 535) e Spiegelberg (1994, p. 23), este aporte é afirmado pelo próprio Husserl em suas Amsterdam Vorträge (1928).

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proposta, aqui ela não é tão fácil de se avaliar. Como a própria literatura não dá relevo à sua figura e o nosso problema é centrado nas possíveis relações com Husserl, manteremos a nossa posição inicial acerca da indicação de Spiegelberg – i.e., voltaremos a ela apenas em nosso capítulo conclusivo.

3.6. Desenvolvimentos ulteriores do gestaltismo: Para que possamos concluir adequadamente a nossa consideração da Escola de Berlim, é preciso que passemos brevemente por outros campos de investigação por ela assumidos e vejamos as implicações que a gradativa expansão do gestaltismo pôde trazer para o núcleo de sua teoria. Com efeito, o gestaltismo não apenas contribuiu para o estudo de uma grande quantidade de fenômenos psicológicos além da percepção – como memória, atenção, comportamento, inteligência prática e resolução de problemas, aprendizagem, experiência de valores, entre outros –, mas também realizou as suas incursões para além do campo psicológico, desenvolvendo teorias fisiológicas e físicas. Um tal projeto de expansão da teoria defendida pela escola, que passará a encontrar o conceito de forma e as suas leis de organização não apenas na totalidade dos eventos psíquicos, mas também em eventos extra-psíquicos, já foi considerado por alguns comentadores um projeto de claro tom naturalista

(CAMPOS,

1945;

DARTIGUES,

1972/2008;

ENGELMMAN,

2002;

GUILLAUME, 1966)111. A despeito de sua relevância geral para a compreensão do gestaltismo por ele mesmo, deste movimento, interessam-nos apenas alguns pontos bastante específicos. Em primeiro lugar, é importante que consideremos a exposição de Köhler em The Place of Value in a World of Facts acerca da maneira como o gestaltismo compreende o problema da relação entre necessidade e fato, pois nesta obra encontramos o mais extenso diálogo travado por um gestaltista com o pensamento de Husserl. Em segundo lugar, é importante entender como, em Dynamics in Psychology, o psicólogo mostrará que o tratamento dispensado pelo gestaltismo aos seus problemas implica uma necessária passagem para além da fenomenologia, em direção aos fenômenos extra-psíquicos aos quais nos referimos acima. Nesta obra, ele defende uma concepção fundamentalmente 111

Nas palavras introdutórias de sua Psychologie de la Forme (1948), este último autor afirma: “A Teoria da Forma (Gestalttheorie) é, ao mesmo tempo, uma filosofia e uma psicologia. Por um lado, introduz as noções de forma ou de estrutura, tanto na interpretação do mundo físico como na do mundo biológico e mental; estabelece a conexão de fatos que as concepções tradicionais separam e funda, sobre essas aproximações, uma filosofia monista da natureza.” (p. IX)

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psicofísica das contribuições da escola, as quais seriam embasadas por uma tese isomórfica que torna intimamente vinculadas as dimensões psíquica e orgânica.

3.6.1. O problema dos valores: The Place of Value in a World of Facts é uma das obras do início do século XX que se dedicou ao conhecido tema da ‘crise das ciências’, encontrando-se, neste sentido, próxima a obras como Die Krise der Psychologie, de Bühler, e Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, de Husserl. Como nos indica Spiegelberg (1994, p. 73), naquela época, as ciências positivas passaram por duro questionamento no meio acadêmico basicamente por duas razões: (1) uma parcela substantiva dos progressos e das benesses sociais por elas previstos como resultados de seu próprio desenvolvimento não havia sido realmente conquistada; (2) este desenvolvimento parecia ocorrer de maneira que a ciência não oferecesse recursos satisfatórios para o homem pensar acerca das maneiras de se conduzir ou lidar com problemas morais relevantes. Falar em uma ‘crise das ciências’, portanto, era falar preponderantemente no descompasso entre as promessas de progresso social e o progresso efetivo, bem como na aparente exterioridade dos contributos científicos em relação aos valores e à orientação ética do homem. A questão central de The Place of Value in a World of Facts, evidenciada pelo próprio título da obra, é a compreensão do valor como algo que se manifesta em meio a fatos, mas que não parece ser ele mesmo um fato qualquer, e sim algo marcado por caráter de necessidade (requiredness). A atenção de Köhler, deste modo, dirige-se à compreensão do que significa percebermos que um determinado tipo de disposição ou característica do que nos é fenomenalmente dado é algo que simplesmente deve ser, não podendo se afirmar de outra maneira senão aquela por nós constatada, ou ser falseada de algum modo, seja por meio de nossa intervenção, seja de outrem. Reflexões acerca do que a necessidade é atravessam uma grande quantidade de problemas e campos filosóficos distintos, manifestando-se, e.g., em teoria do conhecimento, pelas idéias de correção, validade e verdade; em ética, pela idéia de ação adequada ou moralmente consistente; em estética, pela noção de beleza ou de algum valor afetivo intrínseco a certa forma de expressão. Para o gestaltismo, no entanto, ela interessa por ser clara expressão daquilo que Wertheimer já chamara, em suas Untersuchungen zur

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Lehre von der Gestalt II, de ‘co-pertencimento imanente’ (innere Zusammengehörigkeit), característica central para da estruturação de qualquer Gestalt e justamente o critério pelo qual podemos falar em uma definição autóctone para as mesmas, independente de qualquer espécie de processo constitutivo. A análise do valor por Köhler, deste modo, toca em uma das mais fundamentais questões do pensamento berlinense. Ademais, a maneira como ele a conduz é bastante relevante para o nosso estudo porque ela conta com um exame de diferentes perspectivas filosóficas acerca da relação entre necessidade e fato, nas quais pensadores como Platão, Immanuel Kant e Edmund Husserl são criticados pelo gestaltista. De acordo com Köhler, eles teriam oferecido, em seus diferentes sistemas de pensamento, argumentos dedicados a afastar ambos os conceitos, a conferir-lhes naturezas não apenas distintas, como incompatíveis por princípio, e, deste modo, teriam contribuído mais para obscurecer o problema de como necessidades se mostram em meio a fatos do que para clarificá-lo. Platão teria operado uma distinção metafísica entre ambos os conceitos, situando o fato em um mundo de cópias e simulacros e a necessidade em um mundo de idéias perfeitas e incorruptíveis, descrito de maneira excessivamente reverente pelo filósofo, através de palavras de pouco valor explicativo e que apenas exaltavam a bondade, beleza e justiça presumidamente inerentes a este mundo. Kant, por sua vez, teria operado uma distinção subjetiva entre os conceitos, situando o fato no diverso sensível, como parte das afecções que a coisa-em-si traria à estrutura mental responsável pela constituição do objeto de representação, e a necessidade precisamente nas determinações que esta estrutura impõe112, aplicando aos dados sensíveis as intuições puras do espaço e do tempo, bem como as categorias do entendimento. Neste movimento de distinguir os dois conceitos por artifícios filosóficos e situá-los em lugares obscuros e inacessíveis, ambos os pensadores teriam sido, no julgamento de Köhler, acompanhados por Husserl. Decerto, interessa aos nossos propósitos considerar com maior vagar as críticas dirigidas especificamente a este autor, mesmo porque o psicólogo confere a ele uma atenção consideravelmente maior do que aos demais.

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Temos plena ciência dos riscos assumidos pela interpretação de Köhler acerca destes dois filósofos, a saber, a de resumir o pensamento platônico em um realismo de idéias e a de compreender o exame kantiano das precondições lógicas do aparecimento como a descrição de uma estrutura mental. Não obstante, são estas as colocações do psicólogo, e não buscaremos considerar a sua consistência porque uma digressão como esta não traria ganhos relevantes ao nosso percurso.

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3.6.2. As críticas a Husserl: O ponto a partir do qual Köhler aborda o pensamento de Husserl são as Logische Untersuchungen (1900-1901), com especial atenção ao primeiro volume destas, intitulado Prolegomena zur reinen Logik (1900). Ao longo de sua argumentação, o psicólogo mostra ter algum conhecimento de certas características assumidas pela filosofia de Husserl em obras posteriores, mas não confere a elas o mesmo espaço conferido à obra citada. Como teremos condição de ver em maiores detalhes nas primeiras seções de nosso próximo capítulo, o problema com o qual Husserl lidou nos Prolegomena foi resultante da crescente influência do naturalismo no pensamento do século XIX, a qual teria dado origem a episódios como a chamada Psychologismus Streit, caracterizada pela aplicação, ao âmbito a priori do pensamento – à lógica e à teoria do conhecimento, sobretudo –, de esquemas explicativos a posteriori, de natureza empírica. Tratam-se, basicamente, de tentativas de exposição do fundamento genético de formas de pensamento que, em geral, não são aproximadas das formas empíricas, marcadas pela contingência e pela mutabilidade, mas sim consideradas válidas em si mesmas. De acordo com Köhler, Husserl teria sido um lógico de especial relevância nas tentativas de se recuperar o sentido legítimo da necessidade, situando-a em seu terreno próprio e afastando estas leituras empiristas. Köhler afirma que, para este pensador, duas hipóteses de base resumem o espírito naturalista em questão: (1) a crença na natureza indutiva de nossos processos de aprendizagem; e (2) a concepção evolucionista dos organismos – na juntura das quais, evidentemente, teríamos um fisicalismo radical, que tomaria todo evento psíquico como necessariamente referente a um processo fisiológico pontual. Poderíamos resumir o quadro da seguinte maneira: toda expressão do pensamento seria resultado de processos de um organismo de estrutura mutável, diretamente dependente, no que é, das interações contingentes com o meio em que habita, e os aprendizados deste organismo não ocorreriam senão por meio de processos indutivos, que definiriam, a partir do trato com as particularidades, esquemas sempre provisórios para nos orientarmos tanto prática, quanto cognitivamente: Os indivíduos aprenderam a operar mentalmente de certas maneiras, conceitos foram formados pela superposição de muitos casos individuais na memória, – tal seria a interpretação empirista da lógica e de seu material conceitual. No esforço pela sobrevivência através de muitos milhares de anos, aqueles indivíduos teriam sobrevivido e, por conseguinte, poderiam ter, da mesma maneira, gerado descendentes que estivessem equipados com

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mecanismos mais práticos de pensamento e associação – esta seria a explicação evolucionista da lógica. (KÖHLER, 1938, p. 45 e 46)

Em sua convergência, ambas as tendências nos afastariam dos conceitos e princípios lógicos eles mesmos, fazendo-nos perder de vista as características essenciais desta disciplina. Tais características seriam justamente aquelas que mostrariam o que é necessário, por oposição ao que é apenas contingente e provável, evidenciando, no mesmo movimento, a inadequação de princípio de toda fundamentação empírica. Daí a necessidade daquilo que se tornará o amplamente conhecido mote fenomenológico – i.e., de um retorno às coisas mesmas. O desafio enunciado por este procedimento às tendências naturalistas em lógica, de acordo com Köhler (1938), poderia ser compreendido por meio de algumas poucas injunções, das quais uma definição preliminar de fenomenologia poderia ser derivada: Espere um momento, ele [Husserl] parece dizer, antes de você tentar explicar. Olhe cuidadosamente para a coisa que se encontra perante você antes de começar a escondê-la sob um véu de idéias rotineiras sobre aprendizagem e evolução. Tente ter uma visão plena do que pretende explicar. De outra maneira, você pode ser completamente desencaminhado. Uma vez que, no entanto, todos tendemos a ser carregados por hábitos naturalistas de pensamento, e uma vez que, desta maneira, a base mesma da meditação filosófica se torna misturada com hipóteses questionáveis, olhar para as coisas mesmas é uma arte difícil, a qual devemos desenvolver antes de tudo. É esta arte que Husserl chama fenomenologia. (p. 45 e 46; acréscimo nosso)

As primeiras tentativas de examinar criticamente a filosofia de Husserl seguem de imediato esta breve definição – evidentemente calçada apenas no caráter descritivo da fenomenologia e passando ao largo do próprio instrumental conceitual por ela proposto para que as suas descrições possam assumir consistência argumentativa113. Estas tentativas, no entanto, acompanham uma breve consideração histórica de Köhler, segundo a qual a fenomenologia não teria sido popular nos Estados Unidos de meados do século XX, por conta da preferência dos pesquisadores deste país pelos métodos e conceitos científicos já estabelecidos e seu desinteresse em afastar estes recursos e admitir a preeminência de

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Como veremos nos parágrafos que introduzem o segundo tomo das Logische Untersuchungen e que estabelecem a necessidade desta tarefa descritiva, encontram-se também previstas outras características igualmente essenciais do método fenomenológico, como a formulação de juízos em plena abstenção de preconceitos; a necessidade de oferecer suporte intuitivo a suas teses, preenchendo plenamente as significações em que são pré-delineadas; a não-formulação de teorias passíveis de eliminação ou superação ulterior; etc. Köhler não cita nenhuma destas características aqui, resumindo fenomenologia à descrição.

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outros procedimentos de investigação. A exposição das suas próprias opiniões acerca do método, portanto, surgem por ocasião do exame das possíveis razões da rejeição americana, as quais seriam basicamente duas: (1) a aparente proximidade entre a fenomenologia e a introspecção, cuja ausência de valor científico já era tomada por certa naquele tempo114; e (2) a radicalidade própria ao emprego do princípio fenomenológico por Husserl, que toma a coisa mesma como algo que deve ser depurado de qualquer convicção acerca de sua existência ou pertencimento a uma cadeia de fatos. De acordo com o psicólogo, o primeiro argumento não seria de todo justificável, uma vez que ele parece expressar mais uma fobia generalizada acerca dos tratamentos dispensados à experiência imediata do que uma posição efetivamente ponderada e que possui suas razões de ser bem estabelecidas. Toda disposição já marcadamente negativa e pessimista perante determinada coisa poderia contar antes como preconceito do que como postura científica. Integrar a fenomenologia de maneira apressada e displicente ao conjunto de doutrinas tomadas por cientificamente desinteressantes seria um procedimento inadequado ao exercício da ciência. O segundo argumento, no entanto, poderia ter alguma consistência, uma vez que os critérios adotados por Husserl para a exclusão de hipóteses na consideração do dado seriam, de acordo com Köhler, pouco claros, deixando as próprias diretrizes fenomenológicas parecerem também hipóteses, só que admissíveis. O próprio fundamento da fenomenologia encerraria, assim, uma espécie de descuido gravíssimo, que seria condenar hipóteses justamente a partir de hipóteses; demarcar como condenáveis certas maneiras de abordar o que nos aparece e admitir outras que não trariam em si, de maneira inteiramente transparente, a própria justificação115. Não será difícil perceber que este entendimento da segunda crítica pode mesmo reabilitar a primeira, antes tomada por ilegítima, uma vez que, para o gestaltismo, a introspecção, com seu interesse em afastar a presumida influência da memória e reduzir a percepção atual a conteúdos sensoriais essencialmente disjuntos, é justamente um procedimento que enfatiza de maneira arbitrária certos aspectos da experiência em detrimento de outros. Para o gestaltista, que se interessa pelo dado em sua plenitude, não há 114

Vale salientar que o behaviorismo já havia se consolidado, então, como a psicologia norte-americana de maior influência e que uma de suas afirmações de base é a inacessibilidade dos fatos conscientes ao estudo experimental. 115 Encontramos aqui a maneira pela qual Köhler acusa a fenomenologia husserliana de assumir uma postura especulativa, a qual indicamos previamente quando citamos o repúdio do psicólogo a uma fenomenologia dedicada prioritariamente a objetos atemporais e que admita especulação em seus procedimentos.

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sentido em se considerar de antemão que apenas certo aspecto dele é útil ao estudo psicológico e outro não. Se ao exame fenomenológico faltassem justificativas satisfatórias para fazer com que a sua atenção à experiência não parecesse arbitrária, ele poderia estar perigosamente próximo da introspecção: Ao tentar descartar todos os elementos hipotéticos de nossa visão das coisas, podemos ser fácil e inadvertidamente influenciados precisamente por hipóteses acerca deste procedimento. O que constitui a natureza verdadeiramente fenomenológica de algo? O que deve ser considerado uma adição hipotética a isto? Qual, em outras palavras, é o critério que Husserl aplica quando separa uma da outra? Não estou certo de que Husserl esteja plenamente ciente do perigo latente nestas perguntas. A principal objeção contra a introspecção não era o seu interesse nas ‘coisas mesmas’, mas sim a sua seleção arbitrária de alguns aspectos da experiência como genuínos e outros como artificiais. Se Husserl estiver em risco de proceder de maneira similar, então uma crítica similar poderia, obviamente, aplicar-se ao seu tipo de fenomenologia. (KÖHLER, 1938, p. 47; grifo nosso)

Parece-nos inteiramente claro que o psicólogo não é simpático ao pensamento de Husserl, uma vez que busca encontrar já em seus primeiros passos um tropeço que sequer tem consciência de sua condição de tropeço. Além disto, parece-nos digno de nota que Köhler encerre esta breve crítica usando a expressão ‘o seu tipo de fenomenologia’, tomando o procedimento, evidentemente, não como a palavra final entre as propostas que se apresentam por este nome, mas apenas como uma dentre outras possíveis. Ao defender esta posição, ele reforça novamente o que já dissera Koffka nos Principles, a saber, que a fenomenologia tem sentidos que não devem ser confundidos com aquele que o gestaltismo a confere. Já aqui a afirmação de Katz, segundo a qual a fenomenologia de Husserl teria sido tão importante para a crítica gestaltista à psicologia clássica, pode começar a nos parecer estranha. Curiosamente, ele afirma que, entre os gestaltistas, Köhler é aquele em que esta influência mais se faz sentir, como já vimos. As passagens acima consideradas, no entanto, parecem depor contra a validade desta afirmação. Retornemos ao curso da exposição de Köhler, no entanto. Ele continua a sua caracterização do trabalho de Husserl, afirmando que o pensador busca afastar a necessidade lógica da psicologia por ser esta uma ciência de fatos, estando marcada por todos os problemas até aqui descritos, oriundos da inspiração naturalista. Se os fatos são apenas o que ocorre, o que é e o que pode vir a ser em determinadas circunstâncias, e a verdade é algo que não admite esta intermitência, este trânsito entre o ‘ser efetivo’ e o ‘ser

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meramente possível’, ela deve ser procurada em outro lugar além do domínio da facticidade. Ela não poderia ser devidamente descrita e compreendida por nenhuma ciência de fatos. Perante este problema, diz-nos Köhler, uma solução como a proposta por Kant, e.g., não seria interessante, pois, no entender do psicólogo, a própria alocação da necessidade em uma estrutura mental que a imprime nos diferentes dados materiais que nos surgem, não seria nada além de uma hipótese, posto que a observação direta da estrutura e de sua atuação não seria possível a ninguém116. Em vez de reconhecer os objetos como frutos de um processo constitutivo, Husserl os assumiria como imediatamente dados, em sua forma e organização próprias, sendo justamente esta uma das razões pelas quais voltar às coisas mesmas seria algo necessário. O principal exemplo por ele considerado é a transcendência das leis e conceitos lógicos – ou de outras ciências formais – em relação aos nossos atos psíquicos, nos quais estas mesmas leis e conceitos são dados. Estaríamos, aqui, diante de dados tão transcendentes quanto os dados da percepção ordinária: Quando nos damos conta da verdade de uma proposição, não observamos nenhuma operação de nossa mente: olhamos, em vez disto, para o conteúdo de uma proposição como algo exterior, distinto de nossas operações mentais. [...] não há ‘subjetividade’ na necessidade lógica de uma proposição, uma vez que a necessidade lógica está diante de nós, como um objeto está diante de nós quando o percebemos. (KÖHLER, 1938, p. 49)

Quando visamos a necessidade, portanto, olhamos para além do mundo dos fatos. Olhamos para algo que não se prende a determinações temporais ou espaciais quaisquer, a um conteúdo que parece estar fora do curso dos eventos. “A verdade e a correção”, afirma Köhler (1938), “estão em um mundo atemporal e ideal próprio.” (p. 50) O que fazemos, ao ter consciência de suas expressões, é nos apoiarmos no curso mediano da experiência para atingir este plano de idealidades. Se o psicólogo expõe de maneira adequada a relação do sujeito cognoscente com o conteúdo dado em sua apreensão da verdade, ele comete um engano consideravelmente grave ao tomar isto por índice da ausência de processos constitutivos na consciência. A inadequação desta afirmação só poderá se tornar evidente quando abordarmos, em nosso próximo capítulo, algumas teses fundamentais das Logische Untersuchungen e pudermos ver que a fenomenologia possui como um de seus pilares teóricos a Konstitutionslehre, presente já em certas passagens dos Prolegomena e 116

Köhler não ignora, contudo, a virada transcendental da fenomenologia, na qual a aproximação de Kant é, evidentemente, um dos fios condutores.

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sistematicamente tratada nas descrições da consciência intencional na Quinta Investigação. Köhler parece falhar em sua interpretação de Husserl e imputar à sua teoria da percepção algo presente na teoria da percepção gestaltista – esta sim preocupada com tomar os dados por algo organizado por critérios que lhes são imanentes. Transcendência e constituição, na fenomenologia ortodoxa, não se opõem em absoluto. Um outro aspecto da argumentação de Köhler é centrado na descrição do valor epistêmico desta distinção entre necessidade e fato, dizendo que ambos demarcam modos inteiramente distintos de conhecimento e que as legalidades que presidem cada um destes modos são inteiramente incompatíveis. A natureza temporal e perecível não seria a única marca distintiva dos fatos, mas também a impossibilidade de sabermos de antemão quando uma determinada combinação de fatos vista agora pode ocorrer de novo, ou mesmo se ela o pode. A ciência natural busca escapar a estas dificuldades postulando leis por observação controlada e indução, encontrando, assim, os vínculos causais que os próprios fenômenos naturais estabeleceriam entre si. Entretanto, o desenvolvimento mesmo dos diferentes campos da ciência natural mostra que uma prova inteiramente consistente e inabalável destes vínculos não pode jamais ser oferecida, sempre abrindo as diferentes conquistas teóricas aqui possíveis à refutação e eventual superação. A razão disto seria a simples ausência de conexões evidentes entre fatos: não haveria fenômeno algum da natureza que pudesse, por sua simples apresentação ao investigador, insinuar quais outros fenômenos lhe seriam imediatamente conseqüentes, como se a relação entre eles fosse análoga à relação de implicação lógica. E nenhuma soma de verificações ou provas poderia sanar essa dificuldade, uma vez que estes sustentos são dados a posteriori e aquele problema se coloca em um registro a priori. A idéia geral de ‘lei’ presente aqui não pode ser a mesma que a presente nas leis lógicas ou nas leis de qualquer ciência formal, uma vez que estas são válidas em todos os mundos possíveis. Estamos diante de duas acepções inteiramente incompatíveis do termo, portanto. Husserl operaria uma distinção entre os conceitos de fato e necessidade, bem como refutaria o psicologismo ou qualquer outra tendência naturalista de explicação das ciências formais, a partir do exame escrupuloso dos tipos de legalidade que definem cada conceito. Como elas não se atravessam e são, de direito, plenamente diferentes, esforços como estes não podem ser considerados teoricamente consistentes.

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A partir disto são definidas as últimas críticas de Köhler a Husserl. O psicólogo identifica também nele os mesmos erros antes apontados em Platão e Kant, como a alocação da necessidade em uma espécie de reino particular, afastado, e caracterizado por meio de palavras perigosas117. Ainda que estas afirmações tenham certo sustento na experiência, resultando de um procedimento especial de observação, elas não podem ser consideradas conclusivas. Husserl não teria feito uma análise completa da necessidade justamente por negligenciar o vínculo que toda expressão da mesma deve ter com os fatos. Ele se esforçou a tal ponto para indicar que as legalidades de cada um destes são distintas, que acabou por não oferecer um estudo cuidadoso da sua aparição conjunta. Com efeito, diz Köhler, se não houvesse manifestação atual da necessidade – se ela não se desse em uma circunstância particular, perante um observador particular, em condições de observação particulares, ela não poderia, de maneira alguma, ser conhecida. A necessidade, por diferente que possa ser das contingências, deve sempre o seu mostra-se a estas, insinua-se em meio a algo que não pode ser de outra natureza que não a factual. Não podemos considerá-las apenas por seu afastamento, como todos os pensadores citados até então fizeram – Husserl de maneira particularmente precisa, na visão do psicólogo. Por mais que possamos reconhecer na verdade e na necessidade em geral um destacamento em relação à transitoriedade – i.e., uma universalidade e uma atemporalidade –, não precisamos fazer disto o critério para a ejeção do mundo dos fatos, da mesma maneira que não questionamos a condição de fato de um simples objeto extenso que está sempre lá, malgrado a minha existência ou inexistência como seu observador. Da mesma maneira que não tomamos a permanência do objeto extenso como critério para retirá-lo de sua condição factual, não deveríamos tomar a permanência própria à necessidade como critério para o mesmo fim. Deste modo, Köhler (1938) afirma, em sua última oposição a Husserl: Ao banir toda necessidade em um mundo por si, Husserl evidentemente retratou o mundo dos fatos como muito mais pobre do que realmente é. Quando algo aparece como necessário perante os olhos das pessoas, elas não olham apenas, bem como não olham sempre, para um mundo fora de suas vidas. (p. 53)

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As quais Köhler, estranhamente, não cita. Podemos inferir a partir de sua descrição, que seriam palavras que denotariam a exterioridade e a atemporalidade da necessidade.

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Os exemplos contrários a isso seriam abundantes. O aprendizado de um teorema ou de qualquer preceito matemático ocorreria em circunstâncias pontuais, em meio ao curso concreto de pensamento de um indivíduo específico. A simples construção de uma ponte traria, de maneira bastante clara e direta, a manifestação factual de relações matemáticas necessárias, mostrando como, no mundo, esta necessidade poderia se dar e mostrar verdadeiramente a sua condição de necessidade. O oferecimento de premissas corretas para um interlocutor capacitado poderia levá-lo sem dificuldades à conclusão devida. A necessidade surgiria nos meandros da contingência, sendo, aparentemente, algo como um ‘fato especial’. Justamente isto deveria ser tomado como objeto de investigação e a fenomenologia de Husserl não o faria. É certo que, expondo estas críticas, torna-se importante pelo menos indicar a maneira como o gestaltismo busca responder ao problema da relação entre necessidade e fato, ainda que não faça parte de nosso propósito, como já anunciamos, tratar sistematicamente disto. A chave da resposta se encontra precisamente no conceito de “copertencimento imanente”, ou no caráter segundo o qual todo fenômeno apresenta critérios de organização próprios e que posicionam as suas partes possíveis em um lugar específico dentro do conjunto, que estabelecem um sentido pregnante para estas partes e as tornam momentos estruturantes de uma totalidade harmônica. A organização de uma Gestalt não é arbitrária, como já vimos, mas sim marcada por este arranjo autóctone que não apenas afasta contribuições subjetivas espontâneas para a sua definição, como as imposições de experiência passada, mas também as alterações voluntariamente operadas acerca dela, como aquelas possibilitadas pela atenção. A boa forma por ela assumida, dependente das circunstâncias atuais de organização, é preeminente em relação a estas duas possibilidades de modulação subjetiva, sendo sempre o ponto do qual a experiência parte e aquele para o qual ela retorna. A partir destas características, torna-se claro que toda Gestalt é um fato que transparece em sua própria vertebração uma necessidade, um ‘ter de ser’. Por meio da apreensão de Gestalten, temos condições de enxergar como o fato não é sempre contingente, como a necessidade promana dele e mostra-se como sendo resultado preciso daquelas condições peculiares em que a organização se instaurou. Fato e necessidade se encontram unidos aqui. Ainda que esta simples observação não seja suficiente para que o conceito de necessidade seja inteiramente compreendido, ela indica um caminho pelo qual

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se investigar o problema. E o que veremos em outros desdobramentos do gestaltismo, sobretudo aqueles que excedem o campo psicológico, não atestará outra coisa senão a tentativa a cada vez mais ambiciosa de aplicar os conceitos de Gestalt e as leis formais a diferentes âmbitos da natureza, de modo a encontrar neles uma via privilegiada para compreender qualquer fenômeno enquanto tal.

3.6.3. A insuficiência da fenomenologia: Já em The Place of Value in a World of Facts, Köhler indicava a necessidade de se complementar o exame da vida fenomenal com recursos explicativos de outra ordem, atentando especialmente à relação, já considerada relevante por Wertheimer em seus Experimentelle Studien, entre aquela vida e os processos fisiológicos que lhe são subjacentes. Com efeito, não apenas a relevância do estudo da relação entre o fenômeno e o organismo que o possibilita é ressaltada, mas, junto a isto, a aposta do gestaltismo na tese de que todo processo possível à primeira daquelas instâncias é diretamente remontável a um processo da segunda instância, havendo uma espécie de correspondência necessária entre ambos. O autor se exprime da seguinte maneira: Pessoalmente – mas isto vai além da fenomenologia – eu compartilho da opinião daqueles que afirmam que todos os fenômenos, sem exceção alguma, são correlatos de processos somáticos no sistema nervoso. Nessa medida, eles são, todos eles, geneticamente subjetivos, tenham eles fenomenalmente o caráter de ‘subjetividade’ ou qualquer que possa ser o seu grau de ‘objetividade’ fenomenal. Neste outro sentido, no entanto, subjetividade significa dependência em relação ao organismo físico e suas funções [...]. (KÖHLER, 1938, p. 70)

Não se trata, como podemos ver, de sugerir uma espécie de acompanhamento de uma cadeia de processos por outra, como se a relação por eles travada fosse um paralelismo ou um simples fluir conjunto, sem que uma cadeia pudesse ter influência na outra. Köhler fala explicitamente em ‘gênese’, estabelecendo que a totalidade dos fenômenos por nós experimentados encontra a sua origem efetiva nos processos nervosos, o que faz restar o organismo como o ‘sujeito’ que possibilita a sua variedade de manifestações pontuais. A despeito do quão pertinentes à realidade compartilhada ou do quão íntimos e inacessíveis possam parecer os fenômenos vividos, eles se encontram igualmente condicionados pelos processos que tomam lugar no organismo. Por relevante que possa ser o exercício de uma

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fenomenologia da experiência ingênua, ela não seria um recurso bastante para que a compreensão plena da experiência fosse obtida. A fenomenologia encontrar-se-ia, deste modo, na condição de recurso necessário, mas não suficiente para a aquela compreensão. Para tanto, seria preciso passar da descrição e para a explicação. Ainda que estas idéias sejam exploradas já na obra de que nos ocupamos, como indica a citação há pouco recuperada, é em outra obra mais tardia, Dynamics in Psychology (1940), que o autor as considera de maneira mais direta e relevante. Ele mostra com maior clareza a insuficiência da fenomenologia, dizendo-nos que, por escrupulosa e completa que a descrição de uma determinada experiência possa ser, ela não nos oferece elementos satisfatórios para compreendermos o seu fundamento real, a causa de que advém. O seu valor teórico não pode ser pleno, pois ela acaba carregando em si pontos de obscuridade que simplesmente não são de sua competência clarificar. Os fatos que ela pode constatar e cercar com o seu exame qualitativo são determinados de fora, ocorrem como ocorrem em função do que não aparece, dão-se sempre como efeito tardio de algo naturalmente primeiro e que deve ser incorporado ao programa de compreensão da experiência. Se “[...] não sabemos por que nossas experiências são como são, devido ao fato de elas dizerem pouco sobre sua gênese” (KÖHLER, 1940, p. 5), o que urge fazer é precisamente encontrar meios de se contornar isto. Ao psicólogo, caberia realizar adequadamente a inspeção descritiva e sanar as suas limitações de princípio com o estudo genético-causal. Deste modo: [...] uma das principais tarefas que a psicologia tem de resolver consiste na descoberta daquelas relações funcionais que são responsáveis pela ocorrência e pelas características de nossa experiência. Queremos saber não apenas o que ocorre na vida mental, mas também como e por que ocorre. (KÖHLER, 1940, p. 5 e 6)

Ou ainda, expondo o raciocínio de maneira mais sintética: A experiência humana comum não é, apenas ela, um material com o qual possamos construir uma ciência psicológica. Técnicas indiretas revelam muitas relações funcionais pelas quais os conteúdos e o curso dos eventos mentais são determinados. Estes fatos de dependência funcional encontramse, amiúde, fora do campo da consciência direta [...]. (KÖHLER, 1940, p. 41 e 42)

Novamente, um pequeno recuo ao que já conhecemos acerca da teoria gestaltista da percepção pode nos mostrar isto. Pensemos no estudo acerca de fenômeno .

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Fenomenologicamente, na condição ótima de estimulação do sujeito experimental, temos apenas que ele percebe o movimento e o relata de algum modo. Nada além. Não há nesta experiência nenhum elemento vivido que possa induzir o sujeito a descrer da percepção que acaba de ter e especular sobre a ausência de algum dos estímulos que presumidamente estariam perante ele, para que um movimento contínuo e definido pudesse ser percebido. A explicação física do fenômeno, como já notamos, encontra-se na manipulação da distância que os estímulos estáticos têm entre si e no tempo transcorrido entre as suas apresentações. A explicação fisiológica, baseada na hipótese do curto-circuito cerebral, mostra uma interpretação possível da razão pela qual a percepção do fenômeno é sincrética e íntegra como é, e não uma soma de percepções parciais. Nada na experiência do sujeito aponta imediatamente para ambas as frentes de explicação. A experiência é apenas a da visão de um movimento com xyz propriedades, que podem ser descritas de algum modo. Daí o psicólogo dizer: [...] as descobertas psicológicas, em geral, referem-se a fatos de dependência funcional que não são experimentados como tais. Deste modo, as regras mediante as quais formulamos estas relações implicam a ocorrência de certas funções em um domínio que certamente não é o domínio fenomênico. (KÖHLER, 1940, p. 46; grifos nossos)

O mesmo poderia ser dito de qualquer observador confrontado com as imagens criadas por Wertheimer em suas Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt II. Ele teria plenas condições de dizer que vê agrupamentos de pontos por igualdade, proximidade ou qualquer um daqueles fatores, e ainda sabê-lo, como nos diz Spillmann (2012), de maneira intuitiva e auto-evidente. Mas ele não estará apto a dizer por que a sua percepção é esta e não outra. A dimensão fenomenal da vida, portanto, é algo que, para ser devidamente devassado, exige não apenas o seu exame interno, a apreensão do sentido por ela assumido a cada vez, mas sim um salto para outro lugar, um lugar privilegiado a partir do qual todas as defasagens que o exame inicial daquela dimensão comporta podem ser identificadas, criticadas e supridas. A realização de uma ciência rigorosa que se volte a fenômenos está fora dos fenômenos.

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3.6.4. A fisiologia gestaltista e o isomorfismo psicofísico: Temos, portanto, que a pretensão de se fazer passar os estudos psicológicos do âmbito fenomênico àquele que é sua condição genética, de modo não apenas a compreender a experiência do sujeito no seu aspecto vivido, mas também a partir de forças externas que a determinam e que não possuem expressão fenomênica literal, conduziu a Escola de Berlim a investigações acerca da fisiologia humana. É importante ressaltar que, mais uma vez, não se tratava de assumir como válidos os parâmetros comuns propostos por este campo de estudos, aqueles que pudemos ver também em nosso capítulo inicial. Em consonância com a perspectiva holística da escola, já amplamente sustentada em suas teses psicológicas, os gestaltistas buscariam fazer à fisiologia experimental clássica o mesmo tipo de crítica feita à psicologia precedente, censurando-lhe a pretensão de entender os processos orgânicos complexos como somas de processos parciais independentes entre si, determinados por circuitos anátomo-fisiológicos segregados que se ocupariam de converter em atividades químicas específicas as diferentes formas de estimulação exógena e endógena. De acordo com os gestaltistas, o organismo deveria ter seu funcionamento concebido como uma Gestalt, na qual os diferentes eventos orgânicos adquiririam suas propriedades ou momentos particulares a partir das disposições gerais do corpo vivo, de um modo sistêmico que obedecesse à mesma sobre-determinação das partes pelo todo que encontramos na teoria da experiência que expusemos ao longo deste capítulo118. Como afirma Wertheimer (1924) em sua já citada preleção Über Gestalttheorie, esta perspectiva atomista: [...] não é o caso apenas na psicologia, mas também, correspondentemente, na fisiologia, nas ciências biológicas. Também aqui já se tentou [...] colocar uma pequena máquina após outra pequena máquina - em soma -, para, de alguma maneira, tornar senhor destas aquilo que, em um organismo vivo, funciona de maneira significativa ou, como muitas vezes se diz, eficiente. Também aqui se toma hoje, freqüentemente, ainda o conceito de reflexo como uma cópula 118

No capítulo inicial de La Structure du Comportament (1942), Merleau-Ponty (2006) se dedica a analisar detalhadamente a concepção fisiológica clássica, mostrando como suas teorias supunham a integridade individual do excitante físico; do ponto corpóreo no qual toma lugar a recepção do estímulo; da cadeia de processos orgânicos disparada pela estimulação; e da resposta eliciada por todos estes fatores. O filósofo diz: “Analisa-se o funcionamento do organismo indo da periferia ao centro; concebem-se os fenômenos nervosos com base no modelo de estimulações discretas que são recebidas na superfície do organismo; estende-se ao interior do sistema nervoso a descontinuidade de suas terminações sensoriais, de modo que o funcionamento seja finalmente representado como um mosaico de processos autônomos, que interferem e se corrigem uns aos outros.” (p. 30). A este atomismo fisiológico se opõe a Gestalttheorie, do mesmo modo como fez em relação ao atomismo psíquico.

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puramente sem sentido de duas coisas unitárias [Stückdingen], que não pertencem de modo algum conjuntamente [miteinander zusammengehören]. O pedaço-estímulo [Stück-Reiz] afeta ‘mecânica, automaticamente’ este outro pedaço-efeito [Stück-Effekt] – de maneira, por princípio, inteiramente arbitrária. (p. 8)

Seria preciso desenvolver uma concepção de organismo que destoasse desta concepção ainda marcada pelo mesmo mecanicismo presente na psicologia clássica. O gestaltismo, assim, veio a gestar uma teoria fisiológica própria. Antes de considerar os desdobramentos teóricos desta abordagem, devemos notar que o desenvolvimento da fisiologia geral durante as primeiras décadas do século XX ainda era considerado bastante limitado pelos próprios intelectuais que o conduziam, não possuindo recursos de observação suficientemente precisos para estabelecer de maneira que lhes parecesse satisfatória a correspondência psicofísica ‘experiência – evento orgânico’. Já se inferia, como demonstra Köhler (1940, p. 47 e 63), que a experiência visual era processada nos lóbulos occipitais do cérebro, e.g., ou que as funções do tato se referiam à circunvolução central posterior, mas uma observação mais fina dos eventos fisiológicos era inviável. Guillaume (1966) descreve: O estudo direto [de fatos fisiológicos] está repleto de dificuldades; as funções cerebrais subtraem-se à investigação direta do fisiologista; a maioria das conclusões é tirada da observação do órgão após a morte; uma intervenção experimental direta não nos permite seguir, no órgão vivo, os processos hipotéticos construídos pelas teorias. (p. 30; acréscimo nosso)

Inserida neste mesmo cenário tecnologicamente limitado, a fisiologia gestaltista acaba sendo, em grande parte, especulativa e dependente de métodos indiretos de investigação, da mesma forma que todas as demais teorias da época. Köhler (1940), entretanto, demonstra certo otimismo diante destas condições: Nosso conhecimento dos processos cerebrais é ainda rudimentar. Por isso, muitos crêem que, por muito tempo ainda, as regras psicológicas terão de permanecer meras regras e que sua tradução a uma linguagem biológica mais concreta, e, em conseqüência, sua interpretação causal sistemática, deverão ser postergadas indefinidamente. Não compartilho de tal opinião. Pelo contrário, parece-me que nosso conhecimento tanto das regras psicológicas, quanto do sistema nervoso já alcançou o estágio em que as primeiras pontes de um domínio para outro podem ser construídas. (p. 48)

Note-se que a impossibilidade de uma observação in vivo dos processos fisiológicos não significava um completo desconhecimento das regularidades funcionais do organismo

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e, menos ainda, de suas estruturas anatômicas. Como indica Köhler, os psicólogos têm a seu dispor três classes de material para darem seqüência às suas investigações psicofísicas: (1) os dados oriundos da investigação psicológica; (2) o conhecimento do sistema nervoso e suas funções; e (3) o conhecimento de certos ramos da física, da química e da físicoquímica, os quais são diretamente aplicáveis no estudo de processos nervosos. Deste modo, as teorias fisiológicas poderiam ser esforços de coordenação e integração destes três registros de conhecimento, em que as informações hauridas do exame psicológico permitiriam a construção de hipóteses acerca dos processos fisiológicos a partir do conhecimento que temos da estrutura anatômica dos órgãos-sede; das funções que ela desempenha no conjunto íntegro do organismo; das propriedades químicas pertencentes aos seus tecidos e às substâncias que nele se processam; e dos fenômenos físicos gerais que podem ocorrer neste sistema. A observação meramente psicológica, deste modo, encontrase referida a diferentes eixos de análise em que os seus contributos podem ser consideravelmente expandidos, aprofundados e complexificados. A fecundidade daquela observação se potencializa e permite fazer do estudo científico da experiência precisamente aquilo que Köhler pretendia – uma conjunção dos exames fenomenal e extra-fenomenal. Koffka (1935/1975, p. 73), considera com maior vagar as justificativas deste procedimento, afirmando que, se a ciência tradicionalmente afiançou a possibilidade de conhecermos o mundo físico com propriedade, não poderia levantar oposições a conhecermos, a partir da mesma experiência imediata que assegura o êxito daquela atividade, as condições fisiológicas gerais de nossa vida fenomenal. Com efeito, esta estaria mais próxima da dinâmica do organismo do que do próprio meio físico, voltando-se a ele apenas a partir do funcionamento corpóreo – i.e., de modo mediato. Daí se considerar que os fatos psicológicos pudessem oferecer um material mais puro para as investigações fisiológicas do que para qualquer outro tipo de investigação. Indicadas as possibilidades e limites do estudo fisiológico, bem como a sua relação com o estudo psicológico, é preciso considerar mais diretamente como a teorização acerca de correlatos neurais ocorre. Köhler (1940, p. 49) descreve como isto se dá. Se percebemos, e.g, que entre dois fatos fenomenais (A e B) se estabelece uma relação específica (R), podemos inferir que tanto os fenômenos, em sua individualidade, possuem processos neurais correspondentes (aos quais podemos chamar α e β), como que a relação fenomenal

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que lhes é inerente possui também uma relação fisiológica correspondente, que se ocupa de referir estes processos neurais uns aos outros (a qual podemos chamar ρ). Assim, à relação fenomenal entre A e B – representada pela função R (A,B) –, corresponderia uma relação fisiológica entre α e β – representada por ρ (α, β). A limitação apresentada por Köhler, devida ao caráter especulativo do procedimento, é a de que este tipo de passagem sempre impede uma delimitação muito precisa dos eventos orgânicos considerados, uma vez que deve recorrer a noções sobre o funcionamento fisiológico do cérebro que são por demais amplas e cujos princípios físicos trazem consigo uma série de outras relações particulares possíveis além daquelas que está em questão descrever. Estas outras relações, por mais que não sejam verificadas no estudo efetivamente realizado, devem sempre fazer parte do campo de investigações psicológico a ele referente, pois a base física que o sustenta as traz consigo. Assim, podemos dizer que ao lado da função ρ (α, β) pode existir a função ρ’ (α’, β’), que trata de resumir dois outros correlatos neurais (α’ e β’) possíveis no sistema considerado sob a forma de uma relação específica (ρ’), também conforme ao sistema. E assim para quantas outras relações o princípio físico puder inserir no fenômeno investigado. A despeito da tentativa de assegurar o rigor científico deste tipo de estudo, portanto, ele ainda comportava uma margem de indeterminação à época inextirpável. Köhler não apresenta nenhum exemplo para este difícil raciocínio, mas podemos assumir nós mesmos esta responsabilidade para facilitar a compreensão do problema. Se temos, e.g., dois fatos fenomenais que podemos relacionar de maneira causal, como ver determinada cor e sentir um prazer em conseqüência, satisfazemos o primeiro passo do procedimento – temos R(A, B), em que A é a visão da cor, B o prazer e R a relação causal. A partir disto, inferimos a existência de correlatos neurais para cada um daqueles termos e estabelecemos a hipótese de que existe um fluxo eletroquímico da região encefálica em que é registrada a experiência visual para aquela em que se dá o processo de prazer. Satisfazemos assim o segundo passo – chegamos a ρ(α, β), em que α e β são processos fisiológicos situados em córtices cerebrais distintos e ρ é o fluxo energético entre ambos. Para explicar ρ, entretanto, deveríamos recorrer a princípios físicos eletrodinâmicos, e.g., que dariam conta de explicar este fluxo, mas, ao mesmo tempo, abririam a possibilidade de que outros eventos não previstos pelo fenômeno que estudamos viessem a acontecer. Assim, dada a impossibilidade de se fechar com maior precisão o evento investigado, estas

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possibilidades deveriam ser sempre consideradas na própria investigação – temos, assim, relações secundárias do tipo ρ’ (α’, β’). Em meio a tais dificuldades, entretanto, o gestaltismo conseguiu postular teses fisiológicas bastante fecundas e que seriam ainda reconhecidas após o declínio da escola no cenário psicológico geral. É o caso da tese central da fisiologia gestaltista, o ‘isomorfismo psicofísico’, o qual foi articulado de diferentes maneiras às propostas da neurociência recente (METZ-GÖCKEL, 2010; SEKULER, 2012; SPILLMANN, 2012; TOCCAFONDI, 2011; WESTHEIMER, 1999). As primeiras expressões de tal idéia podem ser encontradas já no experimento do fenômeno , quando Wertheimer lança a hipótese do curto-circuito, a qual indica precisamente uma semelhança estrutural entre os eventos percebidos e as condições neurais de sua sucessão. O diferencial da proposta gestaltista em relação a outras explicações psicofísicas, como a do já mencionado paralelismo fechneriano, reside no fato de que a correspondência entre as dimensões psíquica e física se dá pelo estrito compartilhamento das condições de organização dos seus respectivos processos, e não pela relação ponto a ponto de elementos. Não se trata de indicar o caractere físico que estaria intimamente vinculado a um dado caractere psicológico, mas sim que, sejam as expressões de cada um destes lados como forem, elas assumem uma só forma, estruturam-se de maneira inteiramente solidária. De acordo com a formulação de Engelmann (2002): “[...] as Gestalten fenomenológicas da consciência teriam a mesma forma ou seguiriam a mesma matemática topológica que as estruturas físicas.” (p. 5). Ou ainda, seguindo o jargão de Köhler (1940) na exposição acima retomada: “[...] se uma experiência A pode variar de um modo específico, seu correlato α deve ser capaz de variações correspondentes.” (p. 50). Vejamos alguns exemplos oferecidos por Guillaume (1966) para termos maior clareza acerca do que se diz aqui: Uma dualidade de objetos visíveis corresponde a uma dualidade no processo cerebral. Quando a figura se destaca do fundo, há no campo psicofísico, separação de duas fases (tomando esta palavra no sentido que possui em física). A diferenciação de uma mancha homogênea sobre um fundo homogêneo de outra cor, provém de uma ruptura no equilíbrio do campo cerebral; há uma diferença de potencial no nível do contorno, quer dizer, na região de descontinuidade do processo cerebral. A parte mais excitada apresenta, em relação à parte menos excitada, maior densidade de energia. [...] Na formação de um grupo de pontos, de linhas, de sons etc., a unidade interna do grupo, a ligação de seus elementos correspondem, fisiologicamente, a relações de causalidade física, que cumpria descrever em

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termos de interações, de tensões, de atrações e de repulsões reais. A eficácia de fatores figurais, como a proximidade e a semelhança, é devida a sua ação sobre a estrutura do processo físico cerebral. (p. 92 e 93)

No próprio caso do fenômeno , a cada percepto pontual corresponderia um processo nervoso pontual e ao percepto de movimento corresponderia uma descarga eletroquímica da área inicialmente excitada em direção à área posteriormente excitada. A estrutura de ambos os eventos seria uma só. Aquele que levaria o isomorfismo a sua mais aprimorada condição seria justamente Köhler. O autor desenvolveu extensamente a idéia de que o cérebro, antes de ser considerado, em suas funções, a partir da micro-anatomia das redes neuronais, como tendiam as fisiologias da época, deveria ser tratado primordialmente como um sistema físico – mais especificamente, um campo eletrodinâmico. E, como em todo campo, deveria ser assumido de modo sistêmico e obedecer às leis segundo as quais nenhuma mudança local – i.e., em suas partes – pode ser concebida sem que uma mudança em todo o seu arranjo se dê em conseqüência (KÖHLER, 1940, p. 55). No artigo Ein altes Scheinproblem (1929), o autor mostra, em um exemplo ainda mais radical que os acima recuperados, como a experiência imediata em toda a sua complexidade possui correlatos neurais que lhe são estruturalmente próximos, afirmando que tanto os diferentes objetos percebidos como o próprio eu que os percebe são dados no âmbito fenomenal e possuem seus respectivos processos cerebrais analogamente articulados: Queremos assumir que ao ‘estar uma ao lado da outra’ [Nebeneinander] visível de duas coisas, como um lápis e um tinteiro, e à sua distância concreta visível correspondem simplesmente o ‘estar um ao lado do outro’ e a distância determinada dos processos cerebrais a elas concernentes – em resumo, que o espaço visual [Anschauungsraum] e a distribuição espacial dos processos imediatos concernentes no campo cerebral [Hirnfeld] são, até certo ponto, geometricamente similares ou mesmo congruentes um em relação à outra. Assim, a consideração do exemplo discutido mostra que se situa em um lugar definido do campo físico cerebral o complexo de processos para o meu corpo como coisa visual [Anschauungsding], que, ao redor dele, os processos para outras coisas visuais tomam lugar, e que, por causa das relações geométricas recíprocas destes processos, no espaço visual devem se encontrar, em toda parte, coisas visuais uma ao lado da outra e lá, fora delas todas, uma coisa especialmente importante (para mim), à qual chamo ‘meu corpo’. (KÖHLER, 1929, p. 397)

Deste modo, temos que a importância de considerarmos esta incursão do gestaltismo na fisiologia não reside apenas na estrita dependência – de acordo com a

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perspectiva de seus autores – da estruturação de um projeto de psicologia científica pleno em relação à descrição da vida psicofísica, mas também no fato dela exemplificar um dos primeiros dentre diversos outros avanços no espaço de aplicação possível de sua teoria. É um dos passos fundamentais rumo ao já citado naturalismo. Com um breve comentário deste concluiremos o nosso exame da Escola de Berlim. 3.6.5. O naturalismo da Gestalt: Outro desdobramento particularmente relevante da teoria berlinense é a sua tentativa de compreender fenômenos naturais por meio do conceito de Gestalt, mostrando que diversos fenômenos físicos podem exemplificar com perfeição a idéia de que as propriedades gerais do campo ou do sistema em que eles se dão são essenciais para a definição de propriedades menores neles inseridas. Ainda que surja como o último item de nosso percurso, esta tese geral se encontra sustentada em uma obra já antiga da escola, a saber, Die physischen Gestalten in ruhe und im stationären Zustand: eine naturphilosophische Untersuchung (1920), de Köhler, dedicada, sobretudo, ao exame de fenômenos eletrostáticos. Para os nossos propósitos, no entanto, bastará considerar algumas das idéias apresentadas por Koffka (1935/1975) nos Principles, nas quais ele mostra como a atuação do chamado ‘princípio de máximo-mínimo’ em fenômenos naturais – i.e., do princípio segundo o qual o comportamento de sistemas físicos tende naturalmente ao máximo de proveito em seus desempenhos pelo mínimo dispêndio de energia – pode servir de indício para encontrarmos neles uma tendência ao equilíbrio, à harmonia e à economia inteiramente condizentes com a idéia de boa forma. O psicólogo afirma: Um exemplo muito instrutivo é apresentado pelas gotas de água. Suspensas num meio de igual densidade, elas serão esferas perfeitas; colocadas em uma base sólida a que tenham escassa adesão, o formato esférico dessas gotas é ligeiramente achatado; caindo no ar, adotam nova configuração que, embora menos simples do que a esfera, ainda é perfeitamente simétrica e preenche a condição segundo a qual oferece a mínima resistência ao ar que está atravessando, de modo que possa cair o mais depressa possível [...]. (p. 120)

São também citados os exemplos da gota de óleo em um recipiente cheio de água e o de uma bolha de sabão soprada ao vento, os quais se explicam pelo mesmo princípio físico, referente ao movimento natural tanto da gota como da bolha de reduzirem ao

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máximo as tensões impostas pelo meio e comportarem o máximo de volume no mínimo de área superficial. O formato esférico seria aquele perfeitamente adaptado para este fim. Na introdução desta mesma obra, Koffka (1935/1975, p. 28 e 29) apresenta como a já considerada pretensão gestaltista de reintegrar ciência e vida possui claras implicações para o modo como a escola pensa não apenas a psicologia, mas também a natureza e as diversas ciências que dela se ocupam. Ela buscaria se afastar tanto de uma tradição materialista – a qual veria nos fenômenos psíquicos uma mera expressão do movimento das partículas materiais do organismo, sujeitas às mesmas leis mecânicas que governam a natureza – como de uma tradição vitalista – a qual atribuiria apenas ao âmbito da vida a existência de ordem e significado nestes movimentos mecânicos, de modo a assumi-la como um princípio integrador, finalista, que impediria uma análise puramente contingente de seus fenômenos. Uma terceira opção já poderia certamente ser entrevista nas poucas idéias que apresentamos neste item. De acordo com Koffka (1935/1975), o conceito de ordem não deveria se restringir ao mundo orgânico por ser perfeitamente verificável em eventos naturais nos quais vida alguma existe para que se possa colocá-la na condição de princípio gestor da harmonia e orientação existentes: “A vida e a natureza não são reunidas pela negação de uma das mais destacadas características da primeira, mas pela demonstração que essa também pertence à segunda.” (p. 29) De acordo com Guillaume (1966), tais idéias poderiam ser compreendidas como certo retorno a uma visão teleológica da natureza, já abandonada de longa data pela física científica. O autor afirma: Sua fórmula pode fazer pensar em uma concepção finalista da natureza. Afirma a tendência para a realização de uma certa ordem; define um processo pelo efeito final ao qual tende, a produção de uma forma privilegiada para a qual convergem, por vias diversas, sistemas muito diferentes. (p. 26)

Por meio destas breves considerações, podemos compreender em linhas bem gerais o grande salto do projeto gestaltista de uma psicologia científica alicerçada na descrição fenomênica da experiência a uma espécie de filosofia empírica da natureza. Nas décadas posteriores, muitas críticas dirigidas à escola incidirão, sobretudo, em trabalhos que postulam e aprofundam esta viragem. Ela marca, no entanto, o fim de nosso percurso, uma vez que nos interessa aqui apenas entender como o projeto implica este desenvolvimento – i.e., tem nele um passo entendido como necessário tão logo a insuficiência do exame 262

fenomênico se evidencia. O que será de imensa importância para compreendermos as relações entre fenomenologia e gestaltismo, uma vez que não temos aqui apenas um projeto de ciência positiva que se espraia em diversos domínios possíveis de investigação, mas sim uma tentativa de encontrar os princípios de estruturação mais elevados da própria natureza, bem como postular a sua identidade em relação a diversos outros fenômenos já conhecidos. A fala de Guillaume, que identifica aí uma espécie de monismo, parece-nos inteiramente adequada, portanto. Uma ciência positiva movida a âmbitos cada vez mais amplos e, em seus desenvolvimentos radicais, formulada como um monismo naturalista – é precisamente a relação disto com a filosofia husserliana que nos cabe compreender.

3.7. Conclusão: Cabe esboçarmos aqui, portanto, uma breve conclusão. A partir de nosso percurso nos capítulos iniciais, tivemos condições de abordar o gestaltismo berlinense de maneira privilegiada, tendo uma imagem mais consistente do paradigma psicológico ao qual ele se opunha e dos antecedentes intelectuais que o moveram a encontrar na descrição da experiência um recurso importante para esta oposição. Partimos de um exame de dois textos de Max Wertheimer publicados em 1912, o primeiro deles referente aos estudos antropológicos do autor acerca das formas primitivas de pensamento quantitativo, o segundo referente aos estudos experimentais acerca de fenômenos estroboscópicos. Em ambos os casos, encontramos antecipações da tese fundamental acerca da experiência postulada pelos trabalhos posteriores da escola, a saber, a de que há uma diferença categorial entre totalidade e partes, a qual não permite que a primeira seja reduzida a um arranjo arbitrário e meramente aditivo das últimas. A partir disto, consideramos as propostas fundamentais da psicologia da percepção proposta pela escola, passando pelas hipóteses que ela cria estarem presentes nas teorias experimentais anteriores e que poderiam ser superadas pelas suas contribuições. Deste modo, encontramos um novo conceito de Gestalt, que, em consonância com os resultados das investigações de Wertheimer, opunha-se à tese de que os objetos dados na experiência podem ser constituídos a partir de unidades elementares, como as sensações, e atos de síntese, qualquer que seja a sua natureza. Em vez disto, eles seriam prontamente dados como unidades fechadas, íntegras, que deveriam ter os seus critérios imanentes de organização

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explicitados. Foi à consideração destes critérios que passamos a seguir, indicando certa quantidade de fatores da Gestalt propostos ao longo da produção literária dos principais representante da escola. Após, buscamos examinar a afirmação de que a metodologia gestaltista assumiria como sua etapa fundamental certa fenomenologia da experiência ingênua, precisando o sentido desta a partir das fontes textuais que mais se ocuparam de sua definição e especificação. Construímos uma imagem geral desta fenomenologia e encontramos a explícita afirmação de que, apesar de sua condição de passo fundamental para o estudo da experiência, ela não bastava para o conhecimento verdadeiramente científico desta, tendo de se articular ao exame dos processos fisiológicos que se encontram em sua base, como fatores genéticos não-experimentados e que nos permitem passar à explicação efetiva do que é fenomenalmente dado. Por fim, após uma avaliação deste projeto de uma fisiologia gestaltista, o qual mostraria a realização da psicologia como uma psicofísica ou uma psicologia fisiológica, vimos de maneira breve um outro desdobramento das pesquisas berlinenses acerca de fenômenos não-psíquicos, o estudo de formas físicas. Pudemos delinear, deste modo, como o projeto gestaltista compreende, em sua versão tardia, uma cosmovisão própria e pode, com efeito, ser tomado como um naturalismo consideravelmente radical, suportado pelo conceito mesmo de Gestalt, que se torna critério de avaliação de uma imensa quantidade de fenômenos. Com isto, estamos de posse de algum conhecimento acerca das bases epistemológicas da escola, de suas principais teorias e

comprometimentos

intelectuais

e

de

algumas

conseqüências

relevantes

do

desenvolvimento de seu programa. Resta-nos passar ao estudo da fenomenologia de Edmund Husserl, em nosso próximo capítulo, para que tenhamos dela uma apreensão similar.

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Capítulo IV A Fenomenologia de Edmund Husserl Neste capítulo devemos apresentar em linhas gerais o projeto filosófico de Edmund Husserl. Ainda que a introdução deste seja muitas vezes feita através de comentários acerca dos sentidos do termo ‘fenomenologia’ entre pensadores precedentes119, das diversas heranças filosóficas que pesam sobre a obra de Husserl120 ou da periodização típica de sua produção intelectual121, buscaremos adotar uma via mais simples e que nos dirija mais facilmente aos problemas abordados pelo filósofo, a qual consiste no breve comentário de sua formação e de como esta se encontra vinculada ao que vimos em nossos capítulos iniciais. Apesar de sua formação original como matemático, a qual contou com um doutoramento acerca do cálculo de variações sob orientação de Carl Weierstrass, em 1882, na Universidade de Viena, Husserl logo desenvolveu acentuado interesse em problemas filosóficos e psicológicos acerca da própria fundamentação das matemáticas. Este interesse o conduziria, em 1884, aos cursos de Franz Brentano sobre empirismo e filosofia prática 119

Como podemos encontrar, e.g., em Zilles (2008, p. 7) e em Lalande (1999), que ressaltam o emprego do termo, evidentemente, por Georg W. F. Hegel em sua Phänomenologie des Geistes (1807); por Immanuel Kant, em carta a Marcus Herz, quando o pensador evoca a expressão phænomenologia generalis para fazer referência ao que posteriormente constituiria a estética transcendental; por Johann Heirich Lambert, ao descrever a teoria do erro sensível em seu Novum Organum (1764); etc. Entre os antecedentes diretos de Husserl, encontramos o termo em Brentano, como já ressaltamos na nota 60, e em Stumpf, evidentemente. 120 Neste sentido, podemos acompanhar as indicações de Ricoeur (1986/2009) para apenas ressaltar a possível extensão de tal exame, dado que Husserl tem vínculos estreitos com alguns dos mais relevantes pensadores modernos – além, evidentemente, daqueles existentes com a Escola de Brentano, para a qual o nosso estudo atenta. De acordo com o filósofo francês: “Husserl se liga a Kant, não só na interpretação idealista do seu método, mas até nas descrições que continuam a análise do Gemüt que permanecia mascarado pelas preocupações epistemológicas da Crítica. Ao mesmo tempo, a fenomenologia alcança em profundidade o espírito de Hume: pelo seu gosto por aquilo que é ‘originário’, ‘pleno’, ‘presente’, para além das abreviações e dos símbolos do discurso, ela dá seqüência à grande tradição inglesa da crítica da linguagem, e estende a sua disciplina de pensamento a todos os setores da experiência – experiência das significações, das coisas, dos valores, das pessoas. Enfim, a fenomenologia se liga, de modo mais radical ainda, a Descartes, à dúvida e ao cogito cartesianos. A redução que ela efetua das falsas evidências – do ‘evidente em si’ (Verständlichkeit) – ao fenômeno verdadeiro, ao aparecer autêntico, segue bem a linha da dúvida cartesiana. E o cogito se torna bem outra coisa que uma primeira verdade, seguida de outras verdades em uma cadeia de razões; ele é o único campo da verdade fenomenológica, em que todas as pretensões de sentido são confrontadas com as presenças que constituem o fenômeno do mundo. Assim a fenomenologia continua o transcendental kantiano, o originário humeano, a dúvida e o cogito cartesianos. Ela não representa, em absoluto, uma repentina mutação da filosofia.” (p. 7 e 8) 121 Entre as quais encontramos a popular divisão em três fases, centradas nas fenomenologias psicológicodescritiva, transcendental e genética (ZILLES, 2008, p.13); a divisão proposta por Eugen Fink, a qual acompanha as universidades em que Husserl trabalhou, i.e., Halle (1887-1901), Göttingen (1901-1916) e Freiburg (1916-1928) (SPIEGELBERG, 1994, p. 70); e diversas outras. Como já pudemos indicar em diversos momentos de nosso estudo, assumimos, por questão de simplicidade, a primeira destas.

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em Viena, cujo vínculo com a psicologia é salientado por Depraz (2007). A autora afirma: “[...] o que está em jogo sob esses rótulos de prático e de empírico é o lugar que então se busca dar à psicologia como descrição das vivências, seja de fatos da percepção ou de vivências da própria lógica.” (p. 20) Em 1886, como já tivemos ocasião de dizer, Husserl seria conduzido pelas mesmas razões aos cursos de Carl Stumpf, em Halle, os quais o introduziriam nos princípios experimentais da psicologia introspeccionista e em suas teses sobre a percepção e a imaginação. Com efeito, foram estes dois intelectuais que o moveram diretamente à filosofia e à psicologia, bem como à dedicação ao exame dos problemas há pouco citados. Acerca de seus contatos iniciais com a filosofia, existem poucas informações, entre as quais a de que ele freqüentou as preleções de Wilhelm Wundt quando iniciava, ainda no fim da adolescência, os seus estudos em astronomia na Universidade de Leipzig, os quais permaneceriam incompletos. Sob orientação de Stumpf, Husserl desenvolveu a sua primeira obra psicológica, Über den Begriff der Zahl: psychologische und logische Untersuchungen (1887), a qual lhe serviria de tese de habilitação para o ingresso na docência, em Halle, e seria posteriormente incluída como parte dos mais abrangentes estudos de Philosphie der Aritmetik: psychologische Analysen (1891) (DEPRAZ, 2007, p. 19). Como nos indica Tartarkiewicz (1968), este interesse em situar a psicologia como ciência primordial a partir da qual se pensar problemas filosóficos foi também influenciado por Gustav Fechner, cujo projeto de explicação matemática de fatos psíquicos já conhecemos122. É bem sabido que essas ambições serviriam posteriormente para que Husserl delimitasse o primeiro interlocutor relevante de seu futuro método – e o fizesse, evidentemente, com conhecimento de causa. Esta pretensão de se fundamentar psicologicamente determinadas áreas não-psicológicas de conhecimento consiste, como já pudemos ver em nosso capítulo anterior, no problema do psicologismo, o qual Husserl pôde diagnosticar com maior clareza a partir da influência de pensadores como Gottlob Frege, Hermann Lotze, Kazimierz Twardowski e Bernard Bolzano. Segundo Barry Smith e David W. Smith (1995, p. 5), seriam precisamente estes autores que orientariam Husserl ao pensamento algo platônico apresentado no primeiro volume das Logische Untersuchungen (1900-1901), o qual abriria caminho para as primeiras formulações de sua fenomenologia. 122

“Fechner [...] desempenhou em certa época da vida de Husserl um papel sumamente importante. Pois com Fechner nasceu a idéia de que a psicologia poderia ser a ciência ideal e que herdaria todos os problemas da filosofia.” (p. 23)

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Nestas poucas considerações acerca da formação intelectual do jovem Husserl, encontramos alguns indícios da já citada proximidade do pensador com as psicologias experimental e descritiva de seu tempo, assim como a origem psicológica do primeiro problema assumido pela fenomenologia, perante o qual ela se colocaria como reação e possível superação. Com efeito, a obra de Husserl é gestada neste cenário e logo se arranca dele, assumindo outros interesses e movendo-se em outros sentidos, mas não deixa em momento algum de manter um profícuo diálogo com ele. A partir destas considerações, o percurso que seguiremos aqui contará com um exame da origem da fenomenologia husserliana a partir do problema do psicologismo, propondo-se, em alternativa à redução da lógica e da teoria do conhecimento ao empirismo, como um exame puramente descritivo e intuitivo das experiências fundamentais que alicerçam a idéia de uma lógica pura, tomada como ciência de necessidades e não de fatos. As relações teóricas da primeira definição de fenomenologia com a psicologia descritiva serão avaliadas, de modo a entendermos como a descrição fenomenológica poderia constituir um recurso epistêmico mais consistente do que a descrição psicológica convencional. Em seguida, examinaremos algumas teses das Logische Untersuchungen que se mostram relevantes para o nosso problema, como os conceitos de parte e todo aplicados aos fenômenos conscientes, as diferentes classificações das vivências psíquicas e a concepção propriamente fenomenológica de intencionalidade. De resto, acompanharemos a alteração radical imposta por Husserl ao seu pensamento e que o levaria a considerar a fenomenologia uma filosofia transcendental, o que ocorrerá por ocasião do exame das técnicas descritivas propostas pelo filósofo. Deste modo, nossa pretensão é ter uma imagem geral de seu pensamento ao longo de suas primeiras fases, para que possamos pensar com maior propriedade, em nosso capítulo conclusivo, as suas relações com o gestaltismo.

4.1. O problema do psicologismo: Os Prolegomena zur reinen Logik (1900), tomo introdutório às Logische Untersuchungen, dedicam-se especificamente à avaliação minuciosa e à refutação deste problema que, acabamos de comentar, situa a origem da fenomenologia em um campo de discussões especialmente relevante da psicologia e da filosofia de seu tempo. Como já nos referimos às generalidades deste problema tanto em nosso capítulo anterior, quanto em nas

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palavras introdutórias acima, podemos ser mais sucintos agora e nos permitir a passagem direta à posição de Husserl perante ele.

4.1.1. A lógica como doutrina das ciências e a definição de psicologismo: O ponto basilar a partir do qual o psicologismo é caracterizado como problema por Husserl nos Prolegomena é o fato de ele desrespeitar a necessidade distinguirmos com clareza as ciências ditas formais, cujas atividades não dependem da experiência – a exemplo das matemáticas e da lógica –, das ciências empíricas, que se distribuem conforme os diferentes domínios de investigação material assumidos por cada disciplina. De acordo com a concepção de ciência aventada por Husserl, uma disciplina científica não deveria se ocupar apenas de oferecer fundamentações (Begründungen) isoladas a cada proposição que vem a formular no curso de suas análises. A conquista da evidência que sustenta o ser ou o não-ser de um dado estado de coisas não deve ser assumida sem referência às outras conquistas de mesmo caráter acerca dos outros estados de coisas pertencentes ao mesmo domínio de investigações. Uma disciplina científica, portanto, deve ser capaz de articular os diferentes recursos explicativos que oferece acerca de diferentes fenômenos em um todo unitário, coerente, e esta articulação deve ser rigorosamente lógica, de modo a estabelecer gradações de generalidade entre as proposições existentes, bem como cadeias dedutivas através das quais as proposições menos abrangentes possam ser inferidas a partir das mais abrangentes. O objetivo maior de toda ciência, por conseguinte, não seria a mera apresentação desconexa de proposições válidas, mas sim sua organização por um laço intelectivo fundamental que atendesse às pretensões da razão teórica, fazendo equivaler ao próprio estatuto científico a idéia de uma unidade sistemática em sentido teorético. A lógica, enquanto a disciplina formal que estabelece as condições universais do pensamento verdadeiro, seria encarregada de conferir às descobertas pontuais da ciência tal caráter fechado. Neste sentido, ela seria a verdadeira ‘doutrina da ciência’ (Wissenschaftslehre), descrevendo os conceitos e leis puras do pensamento teórico e orientando, por estes preceitos, toda aplicação da razão aos eventos mundanos (HUSSERL, 1900/2005, p. 39 e 40). Dada esta relevância da lógica, prestaria um claro desserviço à tarefa das ciências positivas em seu conjunto, e, sobretudo, à da filosofia, a defesa de uma perspectiva que

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retirasse aquela disciplina de sua legítima condição de reflexão puramente ideal, a priori e universalmente válida acerca de toda teoria possível. E é exatamente isto que ocorria em larga escala entre os lógicos e epistemólogos da época de Husserl, os quais, ignorando ou simplesmente descartando a distinção entre os campos formal e empírico da ciência, defendiam o chamado ‘psicologismo’. Vejamos com um pouco mais de atenção em que ele consiste. Em seu sentido mais abrangente, o termo ‘psicologismo’ indica toda tentativa de subsumir à psicologia – i.e., à investigação das factualidades concretas da consciência humana – problemas que são pertencentes a outros campos de conhecimento. Como já tivemos ocasião de observar parcialmente, em diferentes setores da psicologia no século XIX, houve a defesa da tese segundo a qual esta ciência deveria ocupar um lugar fundamental na descrição de toda e qualquer modalidade de saber, uma vez que as leis da própria experiência seriam por ela explicitadas e qualquer empreendimento cognitivo nada mais seria do que uma atividade psíquica, um modo específico da consciência. Entre os psicólogos experimentais, temos o já mencionado exemplo de Mach e sua idéia de uma economia do pensamento, para a qual as diferentes formas de conhecimento não seriam nada além de esquemas adaptativos da espécie em sua relação com o meio, podendo ser alteradas tanto quanto o pode a própria constituição biológica da espécie em questão. Entre os projetos filosóficos de psicologia, temos Brentano, que encontrava no exame imanente da consciência e na discriminação escrupulosa de suas leis, por meio de uma psicologia descritiva, a base para toda conquista teórica possível. Como vimos em nosso capítulo anterior, trata-se de considerar que esta fundamentação se estende mesmo aos setores mais aplicáveis e socialmente úteis das ciências, podendo se converter em um verdadeiro motor do progresso humano. Poderíamos ainda recuperar aqui a eloqüente descrição da relevância da psicologia para as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) feita por Wilhelm Dilthey em suas Ideen für eine beschreibende und zergliedernde Psychologie – mesmo que a presença deste filósofo em nosso trabalho não tenha passado, até então, de meras menções em nota de rodapé. Cremos que o peso das atribuições por ele feitas à psicologia e a clareza com que a coloca como ponto de balizamento para diversos empreendimentos científicos justifica a retomada de sua fala, a despeito também de seu tamanho:

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Uma empiria que renuncie à fundamentação do que acontece no espírito, ao nexo compreendido na vida espiritual, é forçosamente estéril. Tal pode comprovar-se em cada uma das ciências do espírito. Cada uma delas carece de conhecimentos psicológicos. Assim, toda a análise do fato religião recorre a conceitos como sentimento, vontade, dependência, liberdade, motivo, que só podem ser clarificados num contexto psicológico. Lida com nexos da vida psíquica, já que é nesta que brota e ganha força a consciência de Deus. Mas estes nexos são condicionados pela textura psíquica geral, regular, e só a partir dela são compreensíveis. A jurisprudência ocupa-se de conceitos como norma, lei, imputabilidade, de nexos psíquicos que exigem uma análise psicológica. Sem uma compreensão clara da conexão regular de cada vida anímica, é-lhe impossível expor a urdidura em que surge o sentimento jurídico ou aquela em que os fins se tornam efetivos no direito e as vontades são submetidas à lei. As ciências políticas, que lidam com a organização exterior da sociedade, encontram em toda a relação associativa os fatos psíquicos de comunidade, domínio e independência. Estes exigem uma análise psicológica. A história e a teoria da literatura e da arte vêem-se em toda a parte remetidas para os sentimentos estéticos, compostos, do belo, do sublime, do humorístico ou do ridículo. Estes, sem análise psíquica, permanecem como simples representações obscuras e mortas para o historiador da literatura, que não compreenderá a vida de nenhum poeta, se não conhecer os processos da imaginação. É assim, e nenhuma delimitação de especialidades o pode impedir: assim como os sistemas culturais, a economia, o direito, a religião, arte e a ciência, a organização externa da sociedade nas associações da família, do comum, da Igreja, do Estado, dimanaram da textura viva da alma humana, assim também só a partir dela se podem explicar. Os fatos psíquicos constituem a sua componente mais importante; não podem ser estudados sem a análise psicológica. Encerram em si um nexo, porque a vida psíquica é uma trama. Por isso, a compreensão desta conexão interna que em nós existe condiciona em toda a parte o seu conhecimento. Conseguiram surgir como um poder que se fecha sobre os indivíduos, porque existe uniformidade e regularidade na vida psíquica, e tal possibilita uma ordem análoga para muitas unidades de vida. Assim como o desenvolvimento de cada uma das ciências do espírito está ligado à constituição da psicologia, também não é possível conseguir a articulação das mesmas num todo sem compreender a urdidura psíquica em que se encontram entrosadas. Sem referência alguma à conexão psíquica em que se fundam as suas relações, as ciências do espírito são um agregado, um feixe disperso, e não um sistema. Qualquer idéia, por muito bronca que seja, assenta em alguma idéia grosseira acerca do nexo dos fenômenos psíquicos. Só a partir da tessitura psíquica ampla, uniforme, se podem tornar compreensíveis as relações em que se encontram a economia, o direito, a religião, a arte e o saber entre si e com a organização externa da sociedade humana, pois deste marco foram elas brotando lado a lado e, graças a ela, coexistem em cada unidade psíquica de vida, sem mutuamente se confundir ou destruir. (DILTHEY, 1894/2008, p. 19 a 21)

Em todos estes casos, ainda que os projetos psicológicos sejam distintos, trata-se de colocar a descrição das leis fundamentais do psiquismo – sejam estas leis de caráter experimental ou intuitivo – como o solo seguro a partir do qual a realização de outros tipos de estudo – extra-psicológicos – poderia legitimamente se dar. Deste modo, surgiram

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propostas de fundamentação psicológica de diversos campos de investigação, como a teoria do conhecimento, a lógica, a estética, a ética, as ciências jurídicas e políticas, entre outros. A filosofia germânica se ocupou amplamente de problemas deste caráter, abrindo espaço para a chamada Psychologismus-Streit, ou ‘disputa psicologista’, entre os anos de 1890 e 1914, sobretudo. A expressão do psicologismo que mais ocupou os intelectuais deste período, entretanto, foi exatamente aquela tematizada por Husserl em seus Prolegomena: a tentativa de explicar psicologicamente a lógica e a teoria do conhecimento (KUSCH, 2011, p. 1). Deste modo, o sentido estrito conferido por Husserl ao termo em suas primeiras obras privilegiou este aspecto específico de uma posição filosófica sabidamente mais ampla. Como formula o pensador no resumo de sua preleção Über die Psychologische Begründung der Logik (1900): O psicologismo se caracteriza pela tese: os fundamentos teoréticos da lógica se encontram na psicologia. Assim, ele argumenta, é auto-evidente que as regras do conhecimento, como uma função psicológica, devam ser fundamentadas apenas através da psicologia do conhecimento. (HUSSERL, 1900/1959, p. 145)

Deste modo, malgrado sua defesa por autores de diferentes orientações intelectuais123, pode-se dizer que a característica principal da posição psicologista é a recondução de todo princípio lógico às condições naturais, concretas, do pensamento humano, entendendo que as leis que nos possibilitam o exercício da razão teórica nada são além de leis mentais, condições estruturais pelas quais o curso de nossas representações psíquicas se define quando nos engajamos em uma atividade cognitiva: o ‘princípio de contradição’, deste modo, tornar-se-ia uma incapacidade natural a nosso pensamento de concebermos um mesmo estado de coisas como sendo verdadeiro e falso ao mesmo tempo; o ‘terceiro excluído’, uma impossibilidade de pensarmos em algo que não seja ou verdadeiro ou falso; o ‘princípio de identidade’, uma impossibilidade de considerarmos que um dado objeto possa não ser idêntico a si mesmo. Estes poucos exemplos, centrados nos princípios da lógica clássica ou aristotélica, já bastam para que entendamos que, de fora a fora, o que temos é uma conversão dos critérios formais para a edificação do discurso verdadeiro em constrangimentos próprios ao campo representacional, como se fossem 123

Além dos autores já considerados, podemos citar entre os mais destacados psicologistas: o empirista John Stuart Mill; o hegeliano Benno Erdmann; o herbartiano Moritz Wilhelm Drobisch; os psicólogos Friedrich Edouard Beneke e Christoph von Sigwart; entre outros.

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meros obstáculos de ordem natural que exigiram que o nosso pensamento se desse de tal maneira e não de outra. Neste movimento, o psicologista promove um rebaixamento das leis lógicas a leis psicológicas – i.e., de legalidades ideais, cuja validade pode ser atestada sem nenhum recurso à experiência e que repousam sempre na evidência racional, a legalidades empíricas, obtidas por generalizações vagas da experiência e que têm por resultado sempre algo não-necessário, probabilístico. Em uma palavra, o psicologista reduz o necessário ao factual.

4.1.2. Alguns elementos relevantes de sua refutação: A extensa argumentação de Husserl contra a tese psicologista não poderá ser integralmente considerada aqui, pois nosso interesse reside apenas em mostrar o cenário de origem da fenomenologia e as suas preocupações iniciais. Para os nossos propósitos, basta que consideremos apenas alguns pontos mais decisivos desta argumentação, que nos darão a devida imagem não apenas dos pontos em que o psicologismo se mostrava teoricamente inconsistente, mas também do interesse que movia a própria crítica de Husserl. O seu primeiro esforço é o de mostrar as chamadas ‘conseqüências empiristas’ do psicologismo, i.e., os resultados claramente absurdos de se interpretar leis formais por meio da empiria. Elas seriam basicamente três: (1) teria de ser possível derivar regras precisas a partir de fundamentos teoréticos vagos, o que manifestamente não ocorre – as leis psicológicas, sendo imprecisas, teriam de comunicar às leis lógicas delas oriundas toda a sua imprecisão, quando vemos que estas são leis genuínas e não regras aproximativas; (2) leis naturais são cognoscíveis a posteriori, dependem de indução a partir de fatos particulares da experiência para serem fundamentadas e dispõem sobre conhecimentos probabilísticos, ao passo que leis lógicas são cognoscíveis a priori e dispõem sobre necessidades – para admitirmos a fundamentação psicológica das últimas, teríamos que retirá-las desta condição e colocá-las na condição das primeiras, i.e., ter a sua aplicação como algo contingente, ora ocorrendo, ora não, e isto simplesmente não pode ser admitido; (3) as leis lógicas, se fundadas psicologicamente, teriam de ter conteúdo psicológico, implicar a existência de certas representações, juízos ou fenômenos psíquicos que acompanhassem o seu emprego e fossem suas manifestações mentais apropriadas, o que também não ocorre – não encontramos nenhuma lei lógica que implique conteúdos de quaisquer tipos, sejam mentais,

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sejam extra-mentais. Diversas características facilmente reconhecidas na lógica teriam de ser desmentidas e reestruturadas caso admitíssemos uma lógica psicologicamente fundada. O resultado, no entanto, seria algo claramente distinto do que entendemos pela disciplina em questão, já que ela teria de perder a sua retidão, o caráter a priori de suas propostas e ainda lidar com conteúdos psíquicos. Husserl enxerga em tudo isto um absurdo manifesto. Outra passagem bastante relevante de sua argumentação é a enumeração dos ‘preconceitos’ que orientam as teses psicologistas, i.e., dos pressupostos não-clarificados que as mesmas assumem e que, se devidamente considerados, deveriam mostrar a inadequação de suas pretensões. Estes preconceitos também são três: (1) considerando-se que os preceitos para a regulação do psíquico são psicologicamente fundados, as leis normativas do conhecimento teriam de ter a mesma fundação, posto que o conhecimento seria um processo psíquico – no entanto, estas leis são fundadas na própria lógica enquanto disciplina teorética, não precisando recorrer a conceitos psicológicos para serem compreendidas; (2) atentando ao conteúdo efetivo da lógica, encontraríamos apenas representações, juízos, silogismos, demonstrações, verdade, probabilidade, necessidade, possibilidade, fundamento, conseqüência e outros conceitos similares, os quais seriam basicamente fenômenos e formações psíquicas – uma tal linha de raciocínio, com efeito, arrastaria toda espécie de conhecimento formal, como o matemático, para a psicologia, quando diferentes pensadores da época de Husserl já haviam demonstrado a inconsistência do psicologismo nas matemáticas124; (3) os juízos com os quais lida a lógica teriam a sua verdade reconhecida quando um determinado sujeito experimentasse um sentimento de evidência que os envolvesse, devendo este sentimento ser clarificado psicologicamente – contra o que, por fim, há que se ressaltar que as proposições lógicas puras não dizem nada acerca das condições pelas quais a evidência surge na experiência e este sentimento não deve ser confundido com o critério racional de validade da proposição. Os preconceitos psicologistas, deste modo, mostram o quanto este teórico se apressa em assumir que certos temas devem ter fundamentação psicológica quando eles não carecem de fundamentação alguma, sendo já justificados e tendo os privilégios que todos já sabemos que eles têm na ordem do conhecimento.

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Husserl refere-se basicamente a obras de Gottlob Frege, Alois Riehl, Paul Natorp e Hermann Lotze.

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Por meio destes e de diversos outros raciocínios, o que Husserl faz em seus Prolegomena é afirmar a necessidade de se preservar a distinção entre as ciências formais e as empíricas, pois, do contrário, a própria possibilidade de uma ciência estaria arruinada e as pretensões de conhecimento se abismariam no ceticismo e no relativismo. A verdade seria marcada pelo mesmo ir e vir de qualquer fato empírico, pela mesma transitoriedade, mutabilidade, não-necessidade. Nisto, como o próprio filósofo enuncia nos primeiros parágrafos de seu livro, ele se coloca inteiramente de acordo com o dito de Immanuel Kant, segundo o qual “não é crescimento, mas desfiguração das ciências quando se confundem as suas fronteiras.” (HUSSERL, 1900/2005, p. 32) Ao cientista formal não interessa em absoluto estudar as condições empíricas em que se sucedem os atos psíquicos nos quais se instancia determinada forma de legalidade ideal, como aquela do pensamento lógico ou matemático puros. As vivências concretas do homem enquanto entidade psicofísica, os vínculos causais que regem o fluxo de suas representações, as condições físico-orgânicas que definem a gênese destas, as tantas variáveis endógenas e exógenas que afetam sua orientação natural – nada disto interessa à pesquisa científico-formal em sua tarefa de explicitar as leis e os conceitos fundamentais pertencentes a determinado campo de objetualidades ideais. Ao lógico que enuncia a impossibilidade de um estado de coisas ser ao mesmo tempo falso e verdadeiro, como reza o princípio de contradição, não importa saber nada acerca das capacidades concretas do homem médio representar este ou qualquer outro estado de coisas. Ao matemático que afirma a indiferença da posição relativa de um termo de uma soma para o resultado final desta, como na fórmula (a + b) = (b + a), não importa saber nada acerca das condições reais de sucessão dos atos psíquicos de somar, equivaler etc. A legalidade ideal prescinde por completo, para se definir enquanto tal, de qualquer tipo de referência às condições factuais, empíricas, concretas do pensamento. Ainda que este pensamento concreto seja a condição natural para que toda razão teorética seja exercida, o domínio legal das objetualidades que ele instancia em suas vivências não é definido pelo tipo de legalidade que caracteriza o pensamento ele mesmo. O psiquismo é condição para aquelas operações, mas as leis próprias a tais operações não são em nada psíquicas. Elas transcendem o psiquismo125. 125

Nas Ideen, ao referir-se às circunstâncias em que temos trato direto com necessidades, Husserl (1913/2006) afirma: “Quando nelas a experiência é operante, ela não opera enquanto experiência. O geômetra que desenha suas figuras numa lousa executa traços de fato existentes na lousa de fato existente. Mas

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Nesta preocupação de Husserl em distinguir rigorosamente os campos formal e empírico das ciências, encontra-se já uma espécie de reflexão inicial sobre a sempre importante distinção fenomenológica entre ‘fatos’ e ‘essências’ – i.e., entre o que se dá de maneira contingente, espaço-temporalmente situada e pode bem ser de outro modo, e o que não tem em si nenhum destes predicados, mas apenas os de estrita necessidade e universalidade –, e as formas de cognição que lhes são correlatas, respectivamente, a ‘intuição empírica’ e a ‘intuição eidética’126. Esta distinção, da qual trataremos mais adiante, em seção a ela destinada, é a base para o primeiro advento técnico descritivo da filosofia de Husserl, a ‘redução eidética’. Antes disto, entretanto, vejamos como esta empresa crítica inicial abre espaço para o projeto fenomenológico do pensador.

4.2. A fenomenologia enquanto psicologia descritiva: O volume subseqüente das Logische Untersuchungen, intitulado Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis, traz a proposta positiva de Husserl após a extensa limpeza de terreno promovida nos Prolegomena, sendo o ponto em que a fenomenologia do pensador é pela primeira vez delineada e sistematicamente tratada. A recepção deste volume pela comunidade filosófica do início do século XX, no entanto, foi um pouco conturbada. Se os Prolegomena haviam concedido ao pensador certo renome nesta comunidade, a qual o tomou por defensor obstinado de certo realismo das estruturas ideais do pensamento, ocasionalmente aproximando-o do platonismo lógico-matemático, o trabalho posterior suscitou acusações de traição ao seu projeto original e inadmissível recaída no mesmo psicologismo que ele denunciara e desarticulara com tanta gravidade. O ponto central desta acusação é o de que, após mostrar que as leis da lógica e da teoria do conhecimento não são leis psíquicas e prescindem completamente de todo tipo de conhecimento que a psicologia poderia oferecer, Husserl afirma ser necessário realizar um trabalho de clarificação dos conceitos fundamentais envolvidos na idéia de lógica pura – conceitos tais como significação, juízo, evidência etc. – por uma espécie de descrição

tampouco quanto a execução física, a experiência daquilo que executa não é, enquanto experiência, fundante para sua visão e pensamento da essência geométrica. Por isso, é indiferente se ali ele alucina ou não, e se, em vez de desenhar efetivamente, projeta suas linhas e construções num mundo de imaginação” (p. 42) 126 Ainda que os Prolegomena lidem com essências apenas do âmbito formal, é importante ressaltar que este não esgota o conceito de essência em Husserl, o qual falará também em ‘essências materiais’ em obras posteriores.

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imanente de nossas vivências cognitivas – i.e., por um tipo especial de psicologia descritiva. O paradoxo parecia flagrante para os críticos de Husserl, pois dizer que a psicologia é irrelevante para investigações de tal sorte e, logo em seguida, dizer que a via privilegiada para a sua condução é, de certo modo, psicológica, consistiria em uma contradição quase jocosa127. Apesar desta crítica ter sido prevista e refutada por Husserl já na introdução do segundo volume, especificamente no terceiro aditamento do § 6, sua argumentação não impediu que ela ganhasse considerável popularidade. Vejamos como é feita esta primeira apresentação geral da fenomenologia e como ela conduz ao argumento que busca assegurar a sua legitimidade.

4.2.1. Características fundamentais do método: A primeira afirmação de Husserl acerca das investigações sobre os fundamentos da lógica é a de que elas precisam passar por um criterioso exame da linguagem, bem como dos diferentes atos de expressão e das significações (Bedeutungen) por eles mobilizadas. Empreender um estudo dos métodos científicos – sejam eles positivos ou não –, ou ainda, uma teoria geral do conhecimento, antes de estudar as significações e o uso correto das palavras consistiria no mesmo erro que fazer pesquisas que exigem o manuseio de aparatos tecnológicos ignorando completamente as condições deste manuseio. Sem um estudo da linguagem não seria possível entender a significação das proposições, que estão no pórtico de toda ciência128. É em relação a esta problemática que o pensador faz sua primeira menção à fenomenologia: Discussões sobre a linguagem pertencem, sem dúvida, aos preparativos indispensáveis para a edificação da Lógica pura, porque só com a sua ajuda se poderá fazer sobressair, numa clareza inequívoca, os objetos próprios da investigação lógica e, numa conseqüência mais lata, os tipos e diferenciações 127

Em seu texto Mein Weg in die Phänomenologie (1963), Heidegger (1973) ilustra bem este raciocínio: “O primeiro volume, aparecido em 1900, traz a refutação do psicologismo na lógica, procurando mostrar que a doutrina do pensamento e do conhecimento não pode fundar-se na psicologia. Opondo-se a isto, o segundo volume, aparecido no ano seguinte, e três vezes maior, contém a descrição dos atos conscientes essenciais para a edificação do conhecimento. Portanto, parecia impor-se uma psicologia. A que outra finalidade serviria o § 9 da Quinta Investigação sobre ‘O significado da delimitação dos fenômenos psíquicos de Brentano’? Conseqüência lógica: Husserl recai, com sua descrição fenomenológica dos fenômenos conscientes, na posição do psicologismo que precisamente procurara antes refutar.” (p. 496) 128 Toda investigação teórica, Husserl nos diz, termina em asserções, e apenas sob a forma de asserções ela se torna verdade e patrimônio da ciência, registrada para a posteridade e permitindo que aquela cadeia de pensamentos, procedimentos e verificações seja revisitada com qualquer intento por outros investigadores. Juízos, qualquer que seja a sua validade, têm de ter expressão lingüística para serem juízos.

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essenciais desses objetos. Não se trata, aqui, porém, de discussões gramaticais especiais, num sentido referido a uma qualquer língua historicamente dada, mas antes de discussões de tipo generalíssimo, que pertencem à esfera mais larga de uma Teoria do Conhecimento objetiva e, coisa que está com isso intimamente conectada, a uma fenomenologia puramente descritiva das vivências do pensamento e do conhecimento. Esta esfera no seu todo é aquilo que deve ser explorado por mor de uma clarificação e preparação gnosiológica da Lógica pura; daí que as nossas investigações se movam no seu interior. (HUSSERL, 1901/2007, p. 26)

Pelo termo ‘fenomenologia’, aqui, Husserl designa um esforço analítico e descritivo de nossas diferentes formas de representar objetos – i.e., de nossas diferentes vivências intencionais – que guarda certa relação com a psicologia por ser o simples exame qualitativo daquilo que esta ciência busca explicar em seus procedimentos experimentais. Atribuindo a tal tarefa pretensões similares às de Brentano e Dilthey acerca de seus próprios projetos psicológicos, Husserl afirma que ela não só serviria de base para a edificação

de

uma

psicologia

verdadeiramente

científica,

mas

também

para

empreendimentos científicos de natureza diversa, posto que nada mais seria do que uma explicitação imediata, pura, dos princípios de organização imanentes de nossa experiência, das condições gerais de nosso representar: A Fenomenologia pura representa um domínio de investigações neutras, no qual diferentes ciências têm as suas raízes. Por um lado, ela presta serviço à preparação da Psicologia enquanto ciência empírica. Ela analisa e descreve (especialmente enquanto fenomenologia do pensamento e do conhecimento) as vivências representativas, judicativas e cognitivas, que devem encontrar na Psicologia o seu esclarecimento genético e a sua investigação segundo conexões empírico-legais. (HUSSERL, 1901/2007, p. 27)

Pouco após estas reflexões, ainda na defesa do direcionamento inicial de suas análises a problemas de linguagem, o pensador estabelece uma distinção que posteriormente seria empregada também a propósito de outros tipos de experiência intencional, como a percepção, e que serve aqui de ocasião para a enunciação do famoso mote fenomenológico: o retorno às próprias coisas. Trata-se da distinção entre ‘atos meramente significativos’ e ‘atos intuitivos’, a qual traz em si, como processo que faz passar de um tipo de ato para outro, a idéia de ‘preenchimento de intenção’. Atos meramente significativos são aquelas experiências que se voltam a determinada objetualidade em sua ausência, visando-a apenas por meio da significação que pode ser a ela atribuída. Atos intuitivos são aqueles que apreendem o objeto em sua presença, ou –

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como dirá Husserl em vocabulário tardio – em sua doação originária, in propria persona. O preenchimento de intenção é a complementação, parcial ou plena, do ato meramente significativo – que presume ser de tal ou qual maneira uma objetualidade ou estado de coisas, visado através de sua significação – pelo ato intuitivo – que mostra se a dada objetualidade ou estado de coisas são de tal ou qual maneira pelo trato direto com os mesmos, pela sua visada direta129. Isto quer dizer: perante a presunção de um sentido, o sujeito que a opera pode ter diferentes graus de aproximação do objeto que se confrontará com aquilo que ele presume em seu ato inicial, podendo esta cópula entre os atos confirmar ou desautorizar o que antes fora presumido130. É de posse destas noções que o pensador estabelece como o seu interesse não tanto a elaboração de descrições puramente abstratas de nosso campo de representações, mas sim descrições que podem ser remontadas ao modo como estas mesmas representações se dão imediatamente, sem que haja qualquer critério de admissão de sua validade que não o próprio curso da vida intencional. A justificativa basilar oferecida pela fenomenologia a suas idéias não repousa sobre métodos dedutivos, argumentações por aporia, absurdo ou qualquer outro tipo de procedimento formal similar. Repousa, em vez disto, apenas na intuição, na apreensão da evidência e da indubitabilidade de certo conteúdo que nos é dado. Neste sentido, o filósofo afirma: Significações que são animadas apenas por intuições longínquas, vagas, impróprias – quando de todo por algumas – não nos podem satisfazer. Queremos retornar às ‘próprias coisas’. Com base em intuições plenamente desenvolvidas, queremos trazer, para nós, à evidência que isto, que aqui está dado numa abstração atualmente consumada, é verdadeira e efetivamente aquilo que as significações das palavras querem dizer [...]. (HUSSERL, 1901/2007, p. 30)

Podemos encontrar aqui uma clara ênfase naquela experiência peculiar que já fora valorizada por Brentano nas primeiras sentenças de sua Psychologie vom Empirischen Standpunkt, ainda que não claramente descrita por este filósofo ou incorporada aos seus métodos investigativos. Da mesma forma que a psicologia descritiva de Brentano, a

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Husserl (1901/2007) afirma: “[...] os objetos para cuja inquirição a Lógica pura está voltada são, desde logo, dados sob vestes gramaticais. Para falar mais precisamente, eles são dados como embutidos nas vivências psíquicas concretas que, tanto na função de significação como na do preenchimento da significação (neste último aspecto, como intuição ilustrativa ou produtora de evidência), correspondem a certas expressões lingüísticas e formam com elas uma unidade fenomenológica.” (p. 28) 130 Esta também é a base para uma teoria fenomenológica da adequação, que seria explorada na última das investigações lógicas, à qual não teremos ocasião de nos voltar aqui.

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fenomenologia seria feita por meio da direta atestação de qualquer reivindicação teórica na experiência do próprio sujeito que filosofa. A intuição (Anschauung) é o sustento de todo pensamento aqui desenvolvido. Outra característica da análise fenomenológica, e que também nos permite entrever a influência de Brentano, é a direção contranatural que ela exige ao pensamento, um curso inteiramente oposto ao curso normal de nossa experiência, instaurado por hábitos reforçados desde o início de nosso desenvolvimento psíquico. Nesta disposição normal, voltamo-nos para os objetos apenas, para os correlatos intencionais dos nossos diversos desempenhos conscientes. Não tematizamos estes mesmos desempenhos, não nos perguntamos o que é próprio de determinada modalidade da experiência pela qual objetos nos são dados. Em vez de um verter-se para dentro, operado pela própria consciência no sentido de compreender a si mesma e a suas operações, há um simples verter-se para fora, buscando encontrar no que não é si mesmo – i.e., no que, em seu próprio aparecimento, mostra-se diferente daquela instância para a qual aparece, um ob-jectum para um subjectum –, o ponto de incidência de todo interesse possível, seja este interesse prático ou teórico. Isto quer dizer: nossa disposição natural, irrefletida, é imediatamente voltada ao que nos aparece e não aos nossos desempenhos que asseguram este aparecimento. E é exatamente em direção contrária que vai a fenomenologia, atentando ao aparecimento e não ao aparecente. Trata-se de uma reflexão centrada no ato, e não no objeto: Em vez de nos entregarmos à consumação dos atos edificados de diversas maneiras uns sobre os outros e de, com isso, estar exclusivamente voltados para os seus objetos, devemos antes ‘refletir’, ou seja, tornar objeto este próprio ato e o seu teor de sentido imanente. Enquanto os objetos são intuídos, pensados, postos em relação uns com os outros, considerados sob o ponto de vista ideal de uma lei, não deveremos nós dirigir o nosso interesse teórico para esses objetos e para aquilo enquanto que eles aparecem ou valem na intenção de cada ato, mas, em contraposição, para precisamente aqueles atos, que, até agora, não eram de todo objetivos; e estes atos devemos nós, agora, em novos atos de intuição e pensamento, considerá-los, analisá-los, descrevê-los, fazer deles objetos de um pensamento comparativo e diferenciador. (HUSSERL, 1901/2007, p. 34)

Ainda uma outra característica da fenomenologia é a sua estrita obediência ao princípio da ausência de pressupostos, i.e., sua recusa em admitir como parte de suas reflexões quaisquer conhecimentos obtidos fora da esfera puramente fenomenológica de análise, que não tenham sido objetos de um puro ver. Deste modo, a fenomenologia não

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elaboraria teorias falsificáveis acerca dos fenômenos por ela descritos, não criaria esquemas explicativos que pretendessem conferir inteligibilidade a dado conjunto de fatos, mas que fossem inteiramente transitórios e superáveis, a cada vez cedendo espaço a esquemas mais refinados ou abrangentes que pudessem desempenhar a mesma função explicativa. Este movimento de auto-superação das ciências positivas é inteiramente alheio ao tipo de conquista intelectiva que a fenomenologia pretende para si: “A ‘teoria’, que nela se almeja não é outra coisa senão a tomada de consciência e a compreensão evidente acerca do que o pensar e o conhecer, em geral, são [...]” (HUSSERL, 1901/2007, p. 45), tratando-se de um assentamento de bases absolutamente estáveis, não-falsificáveis, para o conhecimento. Se a teoria científica é aquela que lida com fatos e institui generalidades apenas a partir deles, buscando explicar o singular a partir de um esquema de leis gerais da natureza, a teoria de valor apriorístico deve ser uma identificação dos critérios mais fundamentais de estruturação de algo, das relações específicas e necessárias que constituem suas leis racionais mais basilares: Explicar, no sentido da teoria, é a conceptualização do singular a partir de leis gerais [...]. No domínio dos fatos, trata-se, com isso, do conhecimento de que aquilo que acontece sob uma colocação circunstancial de circunstâncias, acontece necessariamente, ou seja, segundo leis da natureza. No domínio do apriorístico, trata-se, de novo, do captar conceptual da necessidade das relações específicas de grau inferior a partir das leis racionais mais primitivas e mais gerais [...]. (HUSSERL, 1901/2007, p. 47)

Estas são as características elencadas por Husserl na exposição inicial de seu método. Em seu primeiro esboço, portanto, a fenomenologia seria: (1) um procedimento analítico-descritivo de nossas diferentes vivências intencionais, não oferecendo explicações genéticas acerca destas, nem observações sobre seus vínculos causais com outros fatores quaisquer – sejam eles fenomenais, sejam extra-fenomenais; (2) que busca sustentar intuitivamente as suas proposições, não se contentando com esquemas puramente abstratos de demonstração de sua validade; (3) que rompe com nossa tendência psíquica natural de nos dedicarmos à simples consumação dos atos conscientes, tornando estes mesmos atos tema de investigação; e (4) que pretende se abster de quaisquer pressupostos, voltar-se apenas ao que é dado e haurir dele a razão que o permite ser isto que é, não criando teorias ou especulações superáveis acerca de nada.

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4.2.2. As relações entre descrição e teoria psicológica: A partir desta caracterização, temos já uma imagem clara do que seria a fenomenologia em sua formulação inicial. Resta-nos compreender apenas a já citada refutação de Husserl à crítica de recaída no psicologismo, a qual conferiria legitimidade a seu método. O filósofo busca mostrar que, não obstante a fenomenologia ser, em certo sentido, psicologia descritiva, ela não pode ser considerada um procedimento afim aos demais procedimentos em psicologia descritiva, contornando algumas falhas teóricas destes que fazem com que eles recaiam no psicologismo quando pretendem realizar qualquer fundamentação científica, mas não a fenomenologia. Esta seria um tipo inteiramente inédito de psicologia descritiva e poderia mesmo, com vistas a se prevenir de acusações como aquela, abandonar referências nominais ao campo psicológico e se assenhorar plenamente do novo tipo de tarefa que se propõe realizar, dizendo-a ser uma tarefa já não tanto psicológica, mas sim puramente fenomenológica. Por meio de que argumento, contudo, o pensador pretende oferecer sustento a tais idéias? O cerne de sua posição está na distinção entre descrição pura e teoria em psicologia. Lógica e psicologia enquanto teoria, enquanto uma ciência em alguma medida estabelecida e que sustenta, a partir de um critério de validação qualquer – experimental ou filosófico –, certo conjunto de proposições, são necessariamente disciplinas separadas. Deste modo, qualquer proposição entendida como válida para a psicologia experimental – e.g., a de que o princípio que ordena e atribui forma ao conjunto de sensações imediatamente apreendidas, tornando-as objeto, é a associação – ou para a psicologia descritiva – e.g., a de que os fenômenos psíquicos podem ser divididos em três categorias, das quais a representação é a mais básica – não é de modo algum importante para qualquer conquista teórica no campo não apenas da lógica, mas de qualquer ciência formal. Nada do que a psicologia, em qualquer uma de suas vertentes, pode oferecer de positivo em termos de teoria importa para o trabalho naquela orientação epistêmica. Em contrapartida, há uma dimensão muito fundamental da psicologia que consiste apenas na escrupulosa descrição dos dados da experiência, na explicitação de suas diferentes tramas de sentido, das mais ínfimas e originárias complexões materiais e formais operantes em sua constituição. Isto pode ser chamado psicologia pelo simples fato de ser uma análise daquilo que é o objeto por excelência de qualquer psicologia desta época, a experiência imediata. E é destas descrições puras, deste exame crítico dos dados

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conscientes, que dependem a lógica e as demais ciências formais em sua clarificação filosófica. O que Husserl parece querer fazer é mostrar que, na atividade do psicólogo, há certa dimensão muito arcaica que não pode pagar pelos problemas trazidos por seus desenvolvimentos teóricos posteriores, pela sua consolidação enquanto disciplina efetiva, propriamente científica. O psicologista partiria desta psicologia in toto para explicar tudo o mais; o fenomenólogo partiria apenas da descrição pura. Daí o fundamento psicológico que ele oferece não ser um psicologismo e respeitar ainda a legalidade própria ao campo estudado: Não é a Psicologia, enquanto ciência completa, que é um fundamento da Lógica pura, mas antes certas classes de descrições, que, constituindo a etapa prévia para as pesquisas teóricas da Psicologia (a saber, na medida em que ela descreve os objetos empíricos cuja conexão genética essa ciência quer perseguir), constituem, ao mesmo tempo, a base para aquelas abstrações fundamentais nas quais o lógico capta com evidência a essência dos seus objetos e conexões ideais. (HUSSERL, 1901/2007, p. 44)

A rigor, o próprio Husserl parece antever as possíveis dificuldades geradas por esta manutenção do termo ‘psicologia’ para caracterizar o sentido de seu método, afirmando ser preferível chamá-lo apenas de fenomenologia. Esta escolha, entretanto, parece atender a preocupações mais pragmáticas do que teóricas, já que a origem das descrições puras é aquela mencionada e mantém, na acepção da época, expresso vínculo com a psicologia: Dado que gnosiologicamente, tem um muito peculiar significado isolar a pesquisa puramente descritiva das vivências de conhecimento – que é indiferente a todos os interesses de uma teoria psicológica – da pesquisa que é propriamente psicológica, que tem em mira a explicação empírica e a gênese, faremos bem se, em vez da Psicologia descritiva, falarmos antes de Fenomenologia. Isto recomenda-se também por uma outra razão, porque a expressão Psicologia descritiva designa, no modo de falar de muitos investigadores, a esfera de investigação da Psicologia científica, circunscrita por meio do privilégio metódico da experiência interna e pela abstração de toda e qualquer experiência psicofísica. (HUSSERL, 1901/2007, p. 44)

Temos, deste modo, o método apresentado e a relação especial que ele apresenta com a psicologia considerada. Se em uma grande quantidade de pontos da fenomenologia de Husserl podemos encontrar uma clara referência a Brentano, ao vermos precisamente que tipo de psicologia descritiva a fenomenologia se propõe ser, a constatação de certo afastamento acaba ocorrendo. Decerto, a preocupação em diferenciar a descrição

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comprometida com certas concepções teóricas da descrição em total abstenção de pressupostos não foi parte das propostas daquele pensador. Apenas por esta segunda maneira de atentar aos fenômenos conscientes, deve-se salientar, um efetivo retorno às próprias coisas é possível. Após estas considerações acerca de seu método, Husserl dá início às seis investigações que compõem o segundo tomo de sua obra. Na Primeira Investigação, ele desenvolve uma teoria geral da significação, a qual inicia o exame da linguagem acima citado e discrimina certo número de experiências intencionais nas quais a comunicação de um sentido é possível – a exemplo da conexão associativa de signos, das comunicações dialógica e monológica, entre outras. Na Segunda Investigação, ele faz uma avaliação das teorias da abstração de seu tempo, com especial crítica aos pensadores empiristas modernos e aos seus herdeiros intelectuais a ele contemporâneos. De particular interesse ao nosso problema, entretanto, é a Terceira Investigação, na qual o pensador estabelece franco diálogo com as teorias de seu mestre Carl Stumpf acerca das ‘partes psicológicas’ e ‘partes físicas’ dos fenômenos e com o conceito de Gestaltqualität, de Christian von Ehrenfels, definindo as bases de sua mereologia fenomenológica.

4.2.3. A mereologia fenomenológica: A Terceira Investigação Lógica é dedicada ao desenvolvimento de uma mereologia, ou uma teoria sobre partes e todos, buscando explicitar como os diferentes conteúdos da consciência arranjam-se em conjuntos que comportam diferentes possibilidades de segmentação em partes menores. Como ressalta Sokolowski (2004, p. 31), esta reflexão define uma das estruturas formais de maior importância para o estudo propriamente fenomenológico da consciência, uma vez que surge em análises de diversos tipos de atividade intencional. À diferença do que encontramos em determinadas obras da tradição filosófica precedente, como o livro  da Metafísica de Aristóteles, Husserl não desenvolve sua teoria com o propósito de descrever a estrutura de entes reais – i.e., como, a partir de elementos extensos mais basilares, determinada coisa complexa pode se definir enquanto coisa, ou, no sentido oposto, como uma coisa já dada enquanto articulação de partes pode ser desmembrada. O propósito de Husserl é descrever as relações de parte e todo pertinentes aos conteúdos visados pela consciência, realizando a sua investigação no âmbito

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das representações, e não no dos entes reais presumidamente extra-conscientes. A proximidade desta discussão ao problema psicológico fundamental para o surgimento da psicologia da Gestalt – i.e., a oposição entre o atomismo psíquico e as primeiras teorias a defenderem os fatores formais da experiência – não é pequena. Com efeito, dado o seu direto apoio nas análises de Stumpf acerca das partes físicas e psicológicas das representações visuais e auditivas, podemos dizer que esta passagem da obra de Husserl se insere no cenário discutido – e certamente como um avanço nas teses da psicologia descritiva dos dados sensoriais (HUSSERL, 1901/2007, p. 249 e 250). No que diz respeito à classificação das partes, o critério principal é o da independência possível da parte em relação ao seu todo de origem. Deste modo, temos partes independentes, chamadas pedaços (Stücke), e partes dependentes, chamadas momentos (Momente). As primeiras são aquelas partes que, não obstante surgirem como pertencentes ao conjunto de conteúdos de um todo mais abrangente, podem ser retiradas deste todo e apresentadas de maneira autônoma, constituindo elas mesmas novos todos, igualmente sujeitos à decomposição em partes de um ou outro caráter. Entre a diversidade de objetos possíveis à nossa percepção, podemos encontrar exemplos de partes independentes nos membros de nosso corpo, nos ossos, órgãos ou músculos, os quais podem ser separados de uma totalidade corpórea determinada e apresentados como novos todos, possuindo suas novas partes. Dos músculos, os diversos feixes tissulares; dos órgãos, suas subestruturas anátomo-funcionais específicas; etc. Em uma árvore, as folhas, frutos, ramos e raízes podem ser partes independentes, uma vez que podem nos surgir isoladamente, apenas elas, sem qualquer conteúdo de suporte. Em contrapartida, o segundo dentre aqueles tipos de parte, os momentos, são aquelas partes que não podem ser retiradas de seu todo originário e apresentadas como conteúdos independentes, novos todos, estando estritamente referidas a pelo menos um segundo tipo de conteúdo para poderem aparecer. O já citado exemplo de Stumpf acerca da relação entre cor e extensão é bastante valorizado por Husserl ao longo de sua investigação. Poderíamos, entretanto, pensar em outros exemplos, como a dependência de um timbre em relação a determinado percepto sonoro; do brilho e da nitidez em relação à própria cor; da acidez, do amargor ou de qualquer sabor básico em relação à experiência de um gosto determinado. Sokolowski (2004, p. 32 e 33) cita ainda algumas fórmulas correspondentes a

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certas grandezas físicas, as quais não podem existir senão como interação de grandezas mais elementares: a força dependendo da massa e da aceleração; a corrente elétrica dependendo da carga por unidade de tempo; o momentum dependendo da massa e da velocidade; etc.131 Por fim, podemos ainda citar os exemplos de Smith (1988): [...] a raiva que subjaz a uma expressão facial complexa (e que dá unidade ao que, de outro modo, seria um amontoado de contrações musculares simultâneas). [...] o fim visado [...] ou o propósito sob uma cadeia de ações da parte de uma ou diversas pessoas (ações que se reduziriam, na ausência de tal fim, apenas a partes separadas de comportamento). (p. 21 e 22)

A inseparabilidade de um conteúdo em relação a outro, entretanto, não pode ser confundida com sua indistinção em relação a este mesmo conteúdo. A inseparabilidade diz respeito apenas às condições gerais de aparecimento do conteúdo aos diferentes modos intencionais de nossa consciência. Quer dizer que ele sempre surge à percepção, à imaginação, à memória ou a qualquer possibilidade de nossa experiência como um conteúdo que traz consigo aquele outro de que depende. A despeito disto, sua distinção em relação a este mesmo conteúdo é perfeitamente possível – i.e., não obstante α e β aparecerem sempre juntos, podemos tratar α como α e β como β. Sabemos que as propriedades de uma cor – tonalidade, brilho, nitidez etc. – não são as mesmas de um corpo extenso – profundidade, largura, altura etc. Podemos pensar em cada um daqueles conteúdos, cor e extensão, dentro do que lhes é próprio, e isto não perturba a necessidade de seu aparecimento conjunto. Assim, podemos nos referir a eles como momentos abstraídos de um todo, malgrado sua condição concreta sempre ser outra que não esta a que nos referimos – sempre exigir a sua conjunção. Deste modo, Husserl (1901/2007) nos oferece a seguinte definição acerca destes dois tipos de partes ou conteúdos: “Os conteúdos independentes estão presentes aí onde os elementos de um complexo representativo [complexo de conteúdo] podem ser representados separados, segundo a sua natureza; os conteúdos dependentes, aí onde tal não acontece.” (p. 255). Ele também aponta para a necessária modificação ou supressão do 131

Os exemplos físicos oferecidos por Sokolowski, bem como os anatômicos oferecidos por nós, servem apenas para orientar a exposição das idéias de Husserl acerca das relações entre parte e todo, e não para sugerir a enganadora informação de que a fenomenologia admite em suas descrições puras exemplos científicos de quaisquer ordens, como se o não filosoficamente clarificado pudesse servir de apoio a uma clarificação filosófica qualquer. Como já vimos e tornaremos a ver, há, entre as ciências positivas e a fenomenologia, uma cesura radical e isto só faz aumentar no curso do desenvolvimento da obra de Husserl.

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todo caso uma de suas partes dependentes seja retirada, o que não ocorre em relação às partes independentes. O halo de variações possíveis ao redor do conteúdo independente é o maior que se pode ter, pouco importando que sua representação seja situada nos meios mais artificiais ou inapropriados. Isto não se dá em relação ao conteúdo dependente. Nas palavras do filósofo: Relativamente a certos conteúdos, temos a evidência de que a modificação ou a supressão de pelo menos um dos conteúdos dados em conjunto com ele (mas não nele incluídos) teriam de os modificar ou suprimir. Noutros conteúdos, falta-nos esta evidência; o pensamento de que eles próprios permaneceriam intocados por qualquer modificação ou supressão de todos os conteúdos que com eles coexistem, não encerra nenhuma incompatibilidade. Conteúdos do primeiro tipo são pensáveis apenas como partes de todos mais abrangentes, enquanto os últimos aparecem como possíveis, mesmo quando fora deles absolutamente nada existisse, portanto, também nada que se ligasse com eles para formar um todo. (HUSSERL, 1901/2007, p. 255)

Os momentos são, portanto, características essencialmente conectadas de um todo. Não se reduzem, de modo algum, a fatos empíricos, estando fundados, como já denunciara Stumpf, em necessidades a priori referentes ao todo em questão. É exatamente este caráter estrutural do conceito de momento que permite a Husserl aproximar sua concepção de outras idéias já introduzidas na psicologia descritiva precedente. O filósofo afirma: “É evidente que os momentos de unidade não são outra coisa senão aqueles conteúdos que foram designados, por Ehrenfels, por ‘qualidades de figura’ [Gestaltqualitäten], por mim próprio por momentos ‘figurais’132 e, por Meinong, por ‘conteúdos fundados’.” (p. 259) O que encontramos nestas afirmações é de grande relevância: aqui, a fenomenologia é claramente aproximada, pelo seu próprio autor, de dois postulados teóricos oferecidos pela Escola de Graz, o conceito primitivo de Gestalt e o conceito de superiora, os quais, a essa altura de nosso estudo, sabemos serem severamente incompatíveis com a compreensão berlinense de experiência. Este, com efeito, é um dos mais claros indícios textuais da afinidade intelectual entre Husserl e os predecessores imediatos da escola berlinense de gestaltismo, ponto a que teremos ocasião de voltar em nosso capítulo conclusivo. Por ora, basta indicarmos que, para o próprio Husserl, a identificação, na consciência intencional, de certos gêneros de conteúdos que sempre aparecem em uma 132

Husserl se refere a um conceito introduzido em sua Philosophie der Artihmetik (1891) a propósito dos atos psíquicos de enumeração. Como se trata de uma idéia pré-fenomenológica e que tem sua expressão fenomenológica exatamente no texto que ora comentamos, seu enfoque não nos interessa aqui.

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relação necessária de mútua implicação, malgrado as diferentes particularizações que deles pode ter a experiência atual, coloca os avanços teóricos da fenomenologia descritiva ao lado daqueles que afirmam existir na consciência um princípio que identifica os padrões de organização dos todos experimentados e os preserva diante de toda variação material possível. Em ambos os casos, a estrutura do vivido seria privilegiada, e não suas instâncias possíveis – i.e., os diferentes exemplos particulares que podemos ter da estrutura em questão. Ainda que, já nas Logische Untersuchungen, o modo de consideração da consciência pelo fenomenólogo difira sensivelmente do modo de consideração das psicologias descritivas precedentes, a proximidade é sustentada pelo pensador, o que nos permite estimar que a maneira como Husserl enxergava estes contributos psicológicos era consideravelmente generosa. Senão, de que maneira poderíamos compreender o curioso caso com que nos deparamos aqui – no qual o filósofo claramente condena o modus operandi daquelas psicologias, mas encontra entre seus conceitos alguns que já se mostram bastante afins aos conceitos que o seu próprio método, reputadamente mais preciso e conseqüente, pode propor? O valor do contributo tem de ser bastante elevado para que ele seja considerado tão positivo mesmo que toda a maneira pela qual ele foi postulado e justificado esteja marcada por erros considerados graves e inadmissíveis.

4.2.4. Conceito de vivência e distinção entre vivências intencionais e reais: Na seqüência de seus estudos, Husserl aprofundará o exame da linguagem feito na Primeira Investigação, considerando as possibilidades de formulação de uma gramática universal – i.e., de uma teoria que mostre clara e distintamente as condições gerais de formação de proposições, independentemente dos constrangimentos impostos pela materialidade de um determinado idioma e o fundo cultural que o institui. Isto ocorre na Quarta Investigação. De maior importância para o nosso percurso, porém, é a Quinta Investigação, posto que nesta Husserl busca mostrar a sua compreensão de consciência intencional – a qual difere consideravelmente da compreensão brentaniana –; definir outros conceitos psicológicos de consciência que, se não são de todo superados por esta concepção prioritária, são, pelo menos, secundários em relação a ela; e definir certos desempenhos básicos presentes em toda operação consciente. Os estudos empreendidos na Quinta Investigação oferecem um bom exemplo do que depois seria chamado de ‘fenomenologia

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estática’, i.e., um estudo dos processos conscientes que se propõe realizar uma espécie de corte no fluxo temporal destes mesmos processos e descrever o que se passa neles, como se a consciência estivesse destituída de movimento e suas estruturas e momentos se desnudassem perante a avaliação do fenomenólogo133 (DRUMMOND, 2007, p. 161). Na perseguição deste objetivo, Husserl nos oferece mais recursos para entendermos com maior precisão o papel singular da fenomenologia em meio às outras psicologias descritivas. Antes de mais, devemos considerar o que ele entende por ‘vivência’134 (Erlebnis), posto que é a partir deste conceito e pela sua distinção entre ‘vivências intencionais’ (intentionale Erlebnisse) e ‘vivências reais135’ (reelle Erlebnisse) ou ‘não-intencionais’ que todo o esquema descritivo da Quinta Investigação se define. Em formulação breve, podemos dizer que vivência é todo conteúdo ou desempenho consciente que se encontra na definição ou no próprio visar dos diferentes objetos que nos aparecem em nossas diversas experiências. Trata-se, deste modo, tanto dos aspectos materiais e formais originários a partir de que a experiência se estrutura, quanto do que esta própria experiência já estruturada nos mostra – i.e., do fenômeno ele mesmo136. O duplo caráter do conceito já nos 133

A esta fenomenologia se opõe uma fenomenologia genética, a ser desenvolvida já nas últimas obras de Husserl e que busca analisar a consciência intencional em seu dinamismo natural, não abstraindo do fluxo temporal que orienta suas vivências e dos efeitos que este fluxo tem nas diferentes conformações destas. Cabe apenas ressaltar aqui que o sentido do termo ‘genético’ neste contexto nada tem a ver com o sentido assumido na psicologia de Brentano, não se ligando a nenhum tipo de estudo positivo da consciência. 134 Em algumas das traduções a que recorremos consta o termo ‘vivido’, e não ‘vivência’. 135 Devemos considerar aqui, ainda que brevemente, uma das maiores dificuldades impostas aos tradutores pelo vocabulário husserliano, o caso dos termos real e reell. A maior parte dos idiomas para os quais a obra de Husserl foi traduzida não dispõe de termos aparentados e semanticamente próximos, como os alemães, para fazer uma tradução adequada e que preserve o sentido conceitual dos mesmos. Tanto real quanto reell são normalmente traduzidos por uma mesma palavra nas edições inglesas e em diversas das edições de idiomas neolatinos, a saber, a palavra ‘real’ (dada a homografia nos idiomas em questão, não é preciso escrevê-la mais de uma vez). Isto pode gerar severas dificuldades de compreensão textual, contudo, pois de acordo com Fragata (1985): “Real diz-se de tudo o que existe no sentido vulgar ou natural, à maneira das coisas do mundo. [...] Reell significa ‘real’, numa acepção oposta à primeira, pois designa a realidade do que é ideal ou ‘irreal’ [...]” (p. 86). Isto quer dizer: real designa a realidade possível aos objetos tomados em uma perspectiva natural, ao passo que reell, de sentido muito mais específico, diz respeito à realidade do que é absolutamente indissociável da estrutura da consciência que é condição de objetos, i.e., de uma estrutura constituinte. Em uma simplificação que nos parece possível, são, respectivamente, realidades objetiva e subjetiva – tendo-se bem presente o que significam ambos os termos para Husserl. Entre os autores consultados para este estudo, temos uma variedade de propostas de tradução para o termo reell, algumas delas visando contornar o problema da tradução uniforme: Júlio Fragata, Márcio Suzuki, Diogo Ferrer, Pedro Alves e Carlos Aurélio Morujão optam pelo cognato ‘real’; Artur Morão propõe ‘ingrediente’ ou ‘incluso’; e Dario Teixeira Filho e Zeljko Loparic, ‘genuíno’. Por empregarmos basicamente as traduções de Ferrer, Alves, Morujão e Suzuki em nossas referências diretas a Husserl, teremos de preservar sua escolha, ainda que ela não seja a melhor. Indicaremos, contudo, em cada caso, os termos alemães adequados para evitar incompreensões. 136 Na formulação do § 36 das Ideen I, Husserl (1913/2006) diz: “Por vividos no sentido mais amplo entendemos tudo aquilo que é encontrável no fluxo de vividos: não apenas, portanto, os vividos intencionais,

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indica o que significam aqueles dois tipos de vivência acima citadas. As primeiras dentre elas, as vivências intencionais, possuem sentido objetivo, i.e., compreendem aqueles eventos conscientes que se referem a algo além do próprio sujeito de experiência, a algo que, em seu simples aparecer, contrasta-se com ele e se revela como objeto. As últimas, as vivências reais, possuem sentido subjetivo, i.e., restringem-se ao próprio sujeito de experiência, revelando-se como partes dependentes ou momentos da estrutura mesma de sua consciência, não sendo nada além dela. Esta segunda classe de vivências constitui aquilo que Husserl chama ‘fluxo de vivências’ (Flu der Erlebnisse), ou a corrente unificada de experiências subjetivas, possibilitada por uma síntese temporal própria, que nos oferece as condições gerais para a experiência de objetos e da qual o próprio objeto, em seu aparecimento, se destaca. As vivências intencionais, portanto, são atos que transcendem o próprio fluxo de vivências e visam objetos, enquanto as não-intencionais se limitam ao fluxo e nele efetuam as operações necessárias para a constituição de um dado objeto intencional. Neste sentido, as vivências não-intencionais ocupam um lugar mais fundamental em relação aos modos da experiência possível, oferecendo as bases para todo aparecimento. Elas também comportam uma divisão interna, consistindo, basicamente, em ‘sensações’ (Empfindungen) e atos de ‘apreensão’ (Auffassung). Enquanto as sensações seriam os conteúdos mínimos, desconexos, destituídos de sentido que servem como ‘pontos de apoio’ para o aparecimento de um objeto, os atos de apreensão seriam exatamente a atividade basilar da consciência que se volta para as sensações e as interpreta, animando-as e permitindo-as surgirem como objeto já constituído, a ser visado por determinada atividade intencional. Por mais que também aqui se faça sentir a influência da tradição empirista, que defende, como já dissemos, que o nosso contato fundamental com a realidade se dá por meio da sensação, há que se evitar a aproximação deste conceito em relação ao conceito psicológico homônimo. Não se trata aqui de um evento psicofísico da consciência – i.e., de um conteúdo fenomenal mínimo estritamente dependente de variações fisiológicas de nosso aparelho sensório quando nele afere um estímulo objetivo, esta gênese devendo ser

as cogitationes atuais e potenciais tomadas em sua plena concreção, mas tudo o que for encontrável em momentos reais [reelle] desse fluxo e em suas partes concretas.” (p. 89 e 90) Em nossas seções acerca desta obra, consideraremos as razões do emprego deste termo explicitamente cartesiano na definição. Por ora, basta que consideremos que, por ele, Husserl denota os atos de consciência.

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tematizada por métodos positivos de estudo. Os motivos para isto já foram explicitados em nossa exposição da fenomenologia como psicologia descritiva. Não sendo conceito psicofísico, a sensação aqui é apenas o que pode ser reflexivamente encontrado na base de nossas experiências de objeto. Uma dada impressão cromática, uma nuance de brilho e sombra, um timbre, uma altura, uma textura específica etc. – conteúdos que, neles mesmos, nada dizem, não veiculam sentido e não apontam para nada definido na experiência, mas que são relevantes para a definição das qualidades dos diferentes objetos intencionais. São os dados materiais, ou ainda, os dados hiléticos – recuperando-se o vocábulo grego υλη (hylé), que significa ‘matéria’ – pressupostos pelos atos de apreensão. Estes, pela doação de uma forma – ou uma μορφη (morphé) –, fazem passar as sensações à condição de objeto. Disto se depreende a preeminência das vivências não-intencionais em relação às intencionais: toda sensação e todo ato de apreensão se definem como momentos da consciência cuja operação é anterior ao aparecimento propriamente dito. O exame da percepção feito por Husserl (1901/2007) em sua Quinta Investigação nos instrui bastante sobre a forma como ele compreende cada conceito destes e os articula, além de indicar outras peculiaridades de sua teoria da experiência que mostram o quão ciente o pensador estava destas propostas que pudemos ver em nosso capítulo inicial. Ele afirma: [...] no caso da percepção externa, o momento de cor, que constitui um elemento integrante real do meu ver concreto (no sentido psicológico da aparição visual perceptiva), é, por conseguinte, um ‘conteúdo vivido’ ou ‘de consciência’, do mesmo modo que o caráter do percepcionar, e do mesmo modo que a completa aparição perceptiva do objeto colorido. Pelo contrário, o próprio objeto, se bem que seja percepcionado, não é vivido nem está na consciência; e, do mesmo modo, também não o é a cor nele percepcionada. (p. 380)

Por um lado, Husserl afirma que temos como vivências ou conteúdos de consciência tanto

os componentes materiais apreendidos em uma percepção pontual, como a própria apreensão a eles dirigida e a experiência resultante desta interação, i.e., a aparição plena de uma objetividade como o visado na experiência. Esta aparição do objeto, no entanto, não se identifica ao objeto ele mesmo, mas sim à maneira circunstancial como ele nos é dado por meio da relação a cada vez possível entre os momentos materiais e os atos de interpretação. Vivências são, portanto, o conteúdo mais grosseiro e basal da percepção, a maneira como

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ela é interpretada por nossa consciência e o produto direto desta operação, que é uma visada específica do objeto, que nos anuncia este objeto como aquilo a que a nossa experiência tende, mas não esgota de modo algum. Por outro lado, em oposição a todos estes aspectos de nossa experiência, encontra-se o objeto ele mesmo, que está para além de nossas vivências e não pode nunca ser tomado por momento da consciência. As propriedades que este mesmo objeto mostra se encontram, como é evidente, junto a ele, e não podem também ser reduzidas a vivências. Preservando o exemplo da cor, o filósofo continua: Enquanto que a cor vista – isto é, a cor que, na percepção visual, é atribuída ao objeto aparecente enquanto sua propriedade –, se existe de todo, não existe certamente enquanto vivência daquele que vê, corresponde-lhe, porém, nesta vivência, ou seja, na aparição perceptiva, um elemento integrante real [reell]. Corresponde-lhe a sensação de cor, o momento subjetivo de cor qualitativamente determinado, que sofre a ‘apreensão’ objetivante na percepção (à ‘aparição da coloração objetual’). (HUSSERL, 1901/2007, p. 380)

A propriedade – seja ela sensível, seja de que tipo for – que pode ser dita de um objeto que nos aparece em um determinado ato não pode ser reduzida à condição de vivência, mas a ela corresponde algo que é efetivamente vivência, e este algo é um elemento real que opera nos processos que dão lugar ao objeto aparecente. Este corresponder de um momento real a uma propriedade objetiva, no entanto, não é de modo algum um equivaler e é precisamente neste corte que se encontra uma das informações relevantes para compreendermos a peculiaridade da teoria husserliana da experiência perante as demais aqui tratadas. O que Husserl nos diz aqui é que, claramente, o conteúdo mínimo que se encontra no fundamento material a partir de que o objeto é constituído não resta o mesmo conteúdo quando a ele é dirigida a apreensão, que o animará e fará função do objeto. Por mais que ele seja o ponto de partida e ofereça a própria matéria a ser enlaçada por um sentido e posta como parte objetual, ele não se mantém o mesmo durante este processo todo. A sua integração a todos os demais elementos interpretados, que também fundamentam o objeto, faz com que lá, neste contexto novo, ele seja distinto do que é se tomado isoladamente. Parece que Husserl aponta precisamente para distância entre a propriedade objetiva meramente percebida ou intencionada, vista no próprio objeto ao qual ela pertence e como parte do qual ela aparece, e a mesma propriedade tomada in

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abstracto, fora desta contextura que lhe é, pelo menos em olhar acrítico, aparentemente natural. Haveria aqui uma diferença descritiva relevante que não poderia ser negligenciada. É precisamente nesta discussão que Husserl encontra a circunstância favorável para criticar uma perspectiva da relação entre sensação e qualidade objetiva à já qual pudemos nos reportar duas vezes em nosso capítulo introdutório, quando expusemos as obras de Fechner e Mach. Trata-se da perspectiva que entende existir uma unidade a tal ponto intensa entre ambas que elas não poderiam ser senão duas manifestações possíveis de uma só e mesma realidade. Husserl (1901/2007) afirma: Precisamente nos nossos dias, é muito benquista uma concepção segundo a qual uma e outra seriam a mesma coisa, apenas considerada sob diferentes ‘pontos de vista e interesses’; psicológica ou subjetivamente considerada, chamar-se-ia sensação, física ou objetivamente, chamar-se-ia propriedade da coisa externa. Basta, porém, indicar aqui a distinção, fácil de perceber, entre o vermelho desta esfera, visto objetivamente como uniforme, e o indubitável adumbramento [Abschattung] das sensações objetivas de cor na própria percepção – uma diferença que se repete em todos os tipos de propriedades objetivas e nos complexos de sensação que lhe correspondem. (p. 380 e 381)

O argumento do pensador contra aquela tese é o de que não encontramos, quando refletimos e descrevemos a experiência, uma relação de identidade entre um conteúdo que se mostra completamente invariável, posto que anterior a todo contexto, a toda relação, a todo sentido, e outro conteúdo que é marcado precisamente por todas estas características, que é objetivamente dado e pode variar de maneiras potencialmente infinitas nas suas maneiras de se mostrar. O termo evocado por Husserl para descrever esta segunda condição, adumbramento, o qual será visto mais atentamente apenas nas últimas seções deste capítulo, indica precisamente esta condição sempre nuançada pela qual um objeto nos aparece – nuance que pode a cada vez se alterar e nos oferecer novos dados acerca do objeto, apresentá-lo de maneiras diferentes e que, não obstante, nos permitem compreender a sua unidade. A sensação, deste modo, é o conteúdo depurado, dissecado, isento de vida. A qualidade vista em um objeto é exatamente o oposto disto – é o conteúdo integrado em um contexto contingente. Parece-nos bastante sintomático que o termo evocado por Husserl para descrever o papel da sensação na constituição seja o francês points d’appui – ‘pontos de apoio’ – e não o alemão Bausteine – pedras de construção –, como vimos em Mach. A sensação é a ‘condição de’, mas que se altera ao ceder lugar à coisa de que é condição. Ela

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não é uma condição que componha a própria coisa e possa ser identificada como algo sumamente idêntico em cada uma das etapas da experiência, a constituiva e a constituída. A partir disto, o pensador buscará negar uma tal perspectiva da sensação e da propriedade, considerando-a inteiramente estranha ao que pode ser psicologicamente constatado em nossa experiência. Esta posição, com efeito, será sustentada não apenas para a percepção, mas para toda atividade intencional possível: É fenomenologicamente falsa a afirmação seguinte: a distinção entre o conteúdo consciente na percepção e o objeto exterior nele percepcionado será uma simples distinção quanto ao modo de consideração, o qual considera a mesma aparição uma vez num contexto subjetivo (no contexto da aparição referida ao eu) e, outra vez, num contexto objetivo (no contexto da própria coisa). Nunca é demais sublinhar o equívoco que permite designar como aparição não só a vivência em que consiste o aparecer do objeto (por exemplo, a vivência perceptiva concreta, em que o próprio objeto está supostamente presente), mas também o objeto aparecente. O engano deste equívoco desvanece-se assim que damos fenomenologicamente conta do que, do objeto que aparece, se pode encontrar realmente [reell] na vivência da aparição. A aparição da coisa (a vivência) não é a coisa que aparece (o que presumivelmente se nos ‘depara’). Vivemos as aparições na tessitura da consciência; as coisas aparecem-nos como sendo no mundo fenomênico. As próprias aparições não aparecem, são vividas. (HUSSERL, 1901/2007, p. 381)

Se, como já dissemos, entendermos como vivências apenas a apreensão, o apreendido e a experiência parcial que nos direciona a um objeto, que nos mostra este objeto por um adumbramento específico, a transcendência da coisa se torna evidente. Ela não é abarcada por nenhum destes momentos reais da experiência, estando além dela, com tudo o que lhe puder pertencer. Deste modo, restam em lados claramente distintos da experiência intencional o conteúdo empregado nos processos constitutivos e a qualidade objetiva que surge perante o sujeito que viveu estes processos. A sensação vivenciada na base do aparecimento é categorialmente distinta da qualidade sensível que se nos mostra enquanto propriedade do objeto. O agente desta distinção é precisamente o ato de apreensão, uma [...] referência objetivante ao objeto que aparece, que nós atribuímos à complexão de sensações vividas na aparição, a saber, quando dizemos que, no ato do aparecer, a complexão de sensações é vivida, mas também ‘apreendida’ de um certo modo, ‘apercebida’, e que nesta apreensão interpretativa das sensações consiste aquilo que denominamos como o aparecer do objeto. (HUSSERL, 1901/2007, p. 382)

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A partir de tudo isto, podemos afirmar que Husserl se encontra ainda dentro de um paradigma que toma a percepção por um processo sintético que compreende duas fases essenciais, bem como assume os conceitos centrais de sensação, fator de síntese e objeto enquanto produto sintetizado. Ele compartilha, portanto, do pressuposto de uma imensa quantidade de psicólogos experimentais, ainda que cada um daqueles conceitos tenha definições distintas e que os métodos para estudá-los sejam também outros. O quadro conceitual que vale para Husserl, no entanto, fazendo-se abstração destas diferenças, é o mesmo quadro que o gestaltismo berlinense procurou a todo custo afastar. É inteiramente óbvio que nenhuma afinidade intelectual pode existir entre as compreensões de experiência de ambas as escolas quando algo tão fundamental quanto os critérios de ordenação e definição desta experiência são vistos de maneira completamente antagônica por elas. Cabe ressaltar que esta posição de Husserl atravessará toda a sua obra, não sendo de modo algum peculiaridade das Logsiche Untersuchungen. Por distantes que possam ser da descrição elementarista e sensualista, a admissão de sensações como fator genético a partir de que objetos nos são possíveis já coloca Husserl entre aqueles. Considerando-se que a fenomenologia gestaltista é, como vimos, inteiramente pautada na tese de que as totalidades dadas na consciência ingênua devem ser compreendidas enquanto tais e observadas em suas demandas internas de organização, podemos chegar à curiosa conclusão de que, para o gestaltismo, para o sentido de fenomenologia por eles assumido, Husserl seria um mau fenomenólogo, já que não atentaria a isto e sacrificaria algo essencial do dado em prol de um esquema sintético. Este descompasso entre o holismo gestaltista e a descrição husserliana de uma consciência que opera por sínteses é uma das conclusões relevantes deste trabalho, a qual exploraremos no capítulo final. Para concluirmos esta seção, é importante ressaltarmos apenas que é exatamente esta função pela qual a consciência apreende algo dado e sintetiza um objeto que Husserl chamaria, posteriormente, de constituição, recuperando o termo kantiano e assinalando uma das tarefas centrais da fenomenologia como um todo. A descrição minuciosa desta função nos diferentes atos que nos são possíveis será a incumbência de uma ‘doutrina da constituição’ (Konstitutionslehre). Com efeito, a fenomenologia de um determinado ato – como a percepção, a imaginação, o juízo etc. –, só será possível quando os esquemas constitutivos próprios a este ato, que possibilitam o aparecer de seu objeto próprio, forem

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devidamente descritos. A via sintética, portanto, define uma das características mais fundamentais do método aqui enfocado.

4.2.5. A polissemia do conceito psicológico de consciência e a intencionalidade: De posse destas noções introdutórias acerca das vivências intencionais e nãointencionais, temos condição de acompanhar a caracterização feita por Husserl do sentido de consciência tematizado por sua fenomenologia, o que também ocorre na Quinta Investigação. De acordo com ele, há três sentidos fundamentais de consciência na psicologia de seu tempo: (1) O primeiro deles teria sido considerado pela psicologia em sua busca por se afirmar como ciência das unidades concretas da consciência ou das manifestações psíquicas individuais. Estas manifestações seriam basicamente ocorrências reais (reale), naturais, que em seus múltiplos modos de ligação (Verknüpfung) e interpenetração (Durchdrigung), comporiam a unidade real (reell) da consciência. Trata-se, portanto, de uma concepção da consciência como unidade fenomenológica das vivências do eu (Icherlebnisse). Ainda que as diferentes acepções do termo ‘real’ possam nos trazer certas dificuldades aqui, uma consideração atenta do conceito mostrará claramente que o que está em questão é apenas a composição estrutural da consciência por fatos naturais. Como vivências, encontraríamos aqui eventos psíquicos os mais diversos: [...] as percepções, as representações da fantasia e as representações da imagem, os atos de pensamento conceitual, as suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e os temores, os desejos e as volições, e coisas semelhantes, tal como têm lugar em nossa consciência. (HUSSERL, 1901/2007, p. 379)

Sendo apenas um entrelaçamento de eventos psíquicos em fluxo, a consciência manteria com eles uma relação de todo e partes. Podemos encontrar este raciocínio em todos os autores considerados em nossos dois capítulos iniciais, ainda que mais facilmente nos representantes do sensualismo psicológico, com toda a sua ênfase na diversidade de conteúdos que compõem as totalidades dadas em nossos processos mentais. Para estes, certamente a relação de todo e parte indicada por Husserl seria centrada no conceito de pedaço, uma vez que a totalidade da consciência é apenas um agregado de átomos psíquicos. Entre psicólogos descritivos, no entanto, parece-nos também possível encontrá-

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la, uma vez que a maior atenção dispensada a atos e funções psíquicas não equivale a uma negação dos conteúdos que os acompanham. A constante reflexão de Ehrenfels acerca das relações entre propriedades formais da experiência e o complexo de representações sobre os quais elas se afirmam é exemplo claro da vigência deste raciocínio entre psicólogos descritivos. Para eles, a relação de todo e parte certamente admitiria também a existência de momentos, haja vista toda a sua argumentação acerca de características estruturais do psiquismo. Ainda que as relações mereológicas mudem, não muda a aplicação do primeiro conceito de consciência para todas as psicologias consideradas. (2) O segundo sentido é o da consciência como percepção interna, a qual acompanharia as diferentes vivências que nos são possíveis e as tomaria como objetos de um ver específico. Este conceito já não apresenta a mesma abrangência do sentido anterior. Como já observamos em nosso segundo capítulo, a percepção interna foi explorada por Brentano e considerada o recurso metodológico fundamental de uma psicologia verdadeiramente científica, na medida em que poderia apreender os fenômenos psíquicos de maneira intuitiva e conhecer as suas características com o privilégio epistêmico oferecido pela auto-evidência. A percepção interna, deste modo, seria uma percepção adequada, que nada atribuiria a seus objetos que não estivesse efetivamente presente neles, constituindo uma parte real (reell) dos mesmos. De acordo com Husserl, este sentido de consciência seria anterior ao primeiro, possuindo uma prioridade intrínseca, uma vez que é a partir da percepção das vivências do eu que se pode concebê-lo como unidade real (reelle) das mesmas137. (3) O último sentido e aquele priorizado pela fenomenologia é o de consciência como designação global para ‘atos psíquicos’ ou ‘vivências intencionais’ e é a propósito de sua descrição que se coloca a maior parte da Quinta Investigação. Ainda que o próprio Husserl dialogue pouco com o pensamento moderno na seqüência de seus argumentos, procurando mais se afastar dos pressupostos que considera enganosos na psicologia brentaniana, é importante registrar o quanto sua concepção do vínculo entre sujeito e objeto inovou bastante em relação a ele. Quem atenta particularmente a isto é Sokolowski (2004), comentador que busca situar o pensamento husserliano em oposição ao que chama de 137

Nas Logische Untersuchungen, Husserl assume a tese geral de Brentano segundo a qual a ‘percepção interna’ equivale à ‘percepção adequada’, mas, em fase tardia de seu pensamento, isto não se mantém. Tal diferença será considerada mais adiante.

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‘predicamento egocêntrico’ – tese que seria subjacente a boa parte das tentativas modernas de explicar o que é a vida consciente. Tal tese seria referente à preponderância da estrutura da mente, ou do sujeito epistêmico, na determinação do que nos aparece: tudo quanto poderíamos apreender do mundo seria reduzido a certa atividade de uma instância subjetiva isolada, mais eminente, e que faria do aparecente o que ele é. Na análise desta experiência subjetiva, acabaríamos por saber mais sobre as nossas formas de conhecimento do que sobre as coisas elas mesmas, e consideraríamos legítimas perguntas sobre como o pensamento transcende a si mesmo e se orienta para aquilo que não é pensamento – i.e., para as coisas e para o mundo. O que está em pauta aqui, em poucas palavras, é uma tese favorável à produtividade do pensamento, à sua necessidade de transcrever em uma linguagem inteiramente própria o que lhe vem de fora para que isto possa aparecer, possa fenomenalizar-se. É neste sentido que Sokolowski (2004) afirma: Nas tradições cartesiana, hobbesiana e lockiana, que dominaram nossa cultura, nos foi ensinado que quando estamos conscientes estamos principalmente conscientes de nós próprios ou de nossas idéias. A consciência é tomada por ser como uma ilusão ou um gabinete fechado; a mente vem em uma caixa. Impressões e conceitos ocorrem nesse espaço fechado, nesse círculo de idéias e experiências, e nossa consciência é direcionada a eles, não direcionada diretamente às coisas ‘fora’. [...] tudo de que podemos estar realmente certos de início é da existência de nossa própria consciência e dos estados dessa consciência. (p. 18).

De acordo com o autor, esta radical divisão entre sujeito epistêmico e objetos cognoscíveis é afastada pela fenomenologia em prol de uma espécie de ‘publicidade da mente’, na qual a correlação consciência-objeto é tal que a própria distinção entre o intramental e o extra-mental perde completamente o sentido. Isto ocorre porque a consciência analisada em primeira pessoa se mostra necessariamente como um movimento para fora de si mesma, uma tendência direta ao que ela não é, àquilo com o que ela se contrasta. A tarefa da fenomenologia é a de compreender o campo da consciência, e não o que lhe seria supostamente exterior, como a presumida realidade em si dos entes materiais, das grandezas físicas, das leis da natureza etc. Estudar a implicação de objetos por uma consciência, portanto, não é recair no esquema dualista moderno que assume a cesura essencial entre o que vivemos e as coisas do mundo, vendo-se, depois, em graves problemas para costurar novamente estas duas dimensões. Em vez disto, é conferir plena legitimidade ao que nos aparece, tomá-lo como dado de realidade em si mesmo, e que não

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precisa de nada além para ser avaliado, criticado e conhecido. Ao afirmar uma correlação originária e indissolúvel entre o visar e o visado, o que a fenomenologia faz é retirar o caráter

psicológico

do

aparecimento

e

restituir-lhe

um

caráter

ontológico

(SOKOLOWSKI, 2004, p. 24). O que nos aparece é o que pode ser, a rigor, dito real para nós, e toda investigação filosófica que procure se orientar por outros pressupostos é, de saída, problemática, pois escapa precisamente ao único âmbito do qual podemos partir para qualquer atividade reflexiva: o âmbito do que nos é dado imediatamente, do que se nos mostra como sendo de tal ou qual maneira138. A propósito disto, Dartigues (1972/2008) afirma: Se o objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto-percebido ou objeto-pensado, rememorado, imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que poderá parecer estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. (p. 23)

Uma interessante interpretação da intencionalidade é oferecida por Sokolowski a partir da recuperação dos conceitos de parte e todo. O filósofo chama atenção para o erro que é tomarmos o momento abstraído por um pedaço, i.e., confundirmos nossa simples capacidade de atentar a um conteúdo dependente como se estivesse deslocado de seu contexto geral de aparecimento com a possível independência daquele conteúdo em relação a este mesmo contexto. Afirmar uma subjetividade apartada de objetos, como amplamente fizeram os modernos, é recair exatamente neste engano, que toma o distinto pelo separado: [...] as pessoas freqüentemente tomam a mente por ser uma esfera fechada em si mesma, isto é, um pedaço que pode ser separado do contexto mundano ao qual ela naturalmente e essencialmente pertence. Assim, elas perguntam como a mente pode até sair de si mesma e alcançar o que se passa no mundo. Mas a mente não pode ser separada do exterior desse modo; a mente é um momento para o mundo e para as coisas nele; a mente é essencialmente correlata com seus objetos. A mente é essencialmente intencional. Não há 138

Apesar da ulterior definição da fenomenologia como um ‘idealismo transcendental’ por Husserl, à qual passaremos mais adiante, ele não evita dizer que, a bem da verdade, sua filosofia é a mais conseqüente expressão do realismo até então proposta. Por paradoxal que possa soar esta afirmação, ela se sustenta exatamente por este raciocínio que confere ao que aparece valor ontológico, que entende o fenômeno como real nele mesmo, e não em relação a uma outra dimensão mais fundamental da realidade. O sentido de realismo aqui defendido não é compatível com o sentido clássico, ao qual nos referimos em todas as demais passagens deste estudo.

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‘problema de conhecimento’ ou ‘problema do mundo externo’, não há problema de como alcançar a realidade ‘extra-mental’, porque a mente, de princípio, nunca poderia ser separada da realidade. A mente e o ser são momentos um para o outro; não são pedaços que podem ser segmentados fora do todo ao qual pertencem. (SOKOLOWSKI, 2004, p. 34)

Por meio desta breve digressão pela literatura secundária, temos já condição de ver em que o conceito de intencionalidade em Husserl se afasta do conceito em Brentano, acompanhando mais de perto a argumentação da Quinta Investigação. Para este filósofo, como já tivemos ocasião de observar, a intencionalidade designa uma propriedade essencial do psiquismo que faz referirem-se duas instâncias, o estado intencional da consciência individual, por um lado, e uma ‘objetualidade imanente’ ou ‘inexistente’, por outro. Ainda que não ofereça reflexões propriamente voltadas para o estatuto ontológico do objeto intencional, Brentano acaba deixando algumas indicações acerca da maneira como o compreendia, sobretudo ao afirmar que este objeto é interiormente dado – i.e., é parte integrante da totalidade do fenômeno consciente –, e que ele não se relaciona necessariamente a uma entidade real, formalmente independente da experiência, ainda que a sua existência precisamente como correlato seja sempre assegurada por percepção interna. Seu in-existir é também um existir absoluto, passível de captação pelo voltar-se atento do psicólogo aos atos por ele desempenhados. É certo que Husserl preserva diversas características da teoria brentaniana, como, e.g., o direcionamento essencial da consciência a objetos; a existência de diferentes modos de relação objetiva entre a consciência e os seus correlatos, que se expressam nos diferentes tipos de ato intencional; a necessidade de todo aparecimento ser representação ou fundado em representações. Algumas destas características já são bastante evidentes no que discutimos até aqui acerca do método de Husserl, outras terão maior atenção posteriormente. O pensador, no entanto, dirige algumas críticas à compreensão de seu mestre, das quais importa-nos recuperar aqui basicamente duas, na medida em que elas nos indicam teses inteiramente centrais da concepção fenomenológica da experiência. Husserl (1901/2007) especifica as críticas da seguinte maneira: Expressões deste tipo [i.e., aquelas empregadas por Brentano para descrever a inexistência intencional] levam a duas más interpretações; primeiro, que se trataria de uma ação real [reelle] da consciência ou eu sobre a coisa ‘consciente’, pelo menos de uma relação entre ambos que seria verificável descritivamente em cada ato; segundo, que se trataria de uma relação real

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[reelles] entre duas coisas que poderiam de igual modo ser encontradas na consciência, o ato e o objeto intencional, e, assim, de qualquer coisa como um encaixe recíproco real [real] de um conteúdo psíquico no outro. (p. 407; acréscimo nosso)

Ao expor seus argumentos contra estas más interpretações, Husserl inverte sua ordem, considerando inicialmente a segunda delas. A segunda má interpretação consistiria na afirmação de que tanto o ato quanto o objeto ao qual ele se volta se encontram presentes na consciência de forma imanente e que o vínculo pelo qual eles se relacionam é um fato natural. A refutação desta tese por Husserl consiste basicamente na indicação de que o objeto não pertence ao conteúdo descritivo do ato, sendo sempre uma transcendência. Para o pensador, o fato de a consciência ter relação intencional com algo significa apenas que nela estão presentes certas vivências que têm o caráter de intenção e que estabelecem, a partir deste caráter, um visar específico, seja ele perceptivo, judicativo ou de qualquer outro tipo. Não existiriam duas coisas distintas, psiquicamente presentes e em relação – o ato por um lado e o objeto por outro, ambos igualmente vividos pelo sujeito de experiência. Haveria apenas a vivência intencional, cujo caráter descritivo seria resumido precisamente na intenção específica ali instaurada – o ‘visar perceptivamente x’, ‘visar judicativamente y’ ou qualquer desempenho estruturalmente semelhante. O fato de um objeto estar intencionalmente presente quer dizer apenas que um determinado sujeito experimenta uma vivência intencional em sua plenitude psíquica, um voltar-se para algo como o correspondente objetivo do que vive. Experimentar-se como sujeito que se volta a algo não pode equivaler a experimentar-se como sujeito que compreende em si este algo a que se volta. Não se pode confundir o tender a com o possuir. Como já pudemos ver no item anterior, o objeto visado em uma vivência intencional é constituído por meio de vivências não-intencionais, que oferecem as condições materiais e formais para que esta constituição seja possível. Estas vivências, limitadas ao fluxo, afirmam o objeto como transcendência. Os exemplos mais freqüentes em Husserl (1901/2007) acabam sendo perceptivos, mas ele busca estender as conclusões neles obtidas para qualquer vivência intencional possível: [...] o que é válido das representações vale também das outras vivências intencionais sobre elas edificadas. Representar um objeto, por exemplo, o Palácio de Berlim, é, segundo dizemos, um tipo de disposição descritivamente determinado de tal e tal maneira. Julgar acerca deste palácio,

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alegrar-se pela sua beleza arquitetônica ou acalentar o desejo de o poder fazer, e coisas semelhantes, tudo isto são novas vivências, caracterizadas fenomenologicamente de um novo modo. Todas têm em comum serem modos da intenção objetiva que não podemos, no discurso normal exprimir de outro modo senão dizendo que o palácio é percepcionado, fantasiado, representado em imagem, ajuizado, que é objeto desta alegria, daquele desejo etc. (p. 409 e 410)

A demonstração de que, descritivamente, encontramos como partes da consciência apenas o tender a um objeto e as vivências materiais que ele interpreta, e não o objeto mesmo, é a maneira como Husserl refuta a tese geral da objetualidade imanente. A primeira má interpretação sugerida pela terminologia brentaniana consistiria em afirmar que a relação intencional seria uma ação intrínseca à consciência, em que o ‘eu’ no qual ela é polarizada se voltaria, a cada vez, para a coisa de que é consciente. Ambas as instâncias, este ‘eu’ e o objeto consciente, seriam encontráveis em toda experiência pontual passível de descrição, ambos como conteúdos distintos. A refutação desta tese por Husserl consiste em mostrar que a consciência de um ‘eu’ não acompanha a consciência natural de objetos, surgindo apenas quando nos voltamos reflexivamente para as nossas experiências e as avaliamos de algum modo. Para sustentar isto, Husserl (1901/2007) recorre a certos exemplos, que facilitam a visão de que a experiência, em seu correr natural, não se encontra marcada pela consciência de qualquer ‘eu’: [...] se, por exemplo, nos abandonarmos a uma consideração perceptiva de um processo que nos aparece, ou ao jogo da fantasia, à leitura de um conto, à realização de uma demonstração matemática e a coisas semelhantes, não notamos qualquer eu enquanto ponto de referência dos atos que consumamos. A representação do eu pode bem ‘estar de prevenção’, irromper com uma facilidade particular ou, melhor, consumar-se de novo; mas só quando ela efetivamente se consuma e se põe em unidade com o ato em questão é que ‘nós’ ‘nos’ referimos ao objeto de uma maneira tal que, a este referir-se do eu, corresponde qualquer coisa descritivamente explicitável. (p. 411)

Na consideração reflexiva da consciência, o que surge é uma estrutura complexa, em que não apenas o objeto intencionado se encontra presente, mas também um ‘eu’ ao qual ele se mostra, havendo uma clara bipolaridade do conteúdo fenomenal assim tomado. Este conteúdo aparecente que nos mostra existir um pólo subjetivo da vivência intencional em questão, no entanto, não é um conteúdo dado no momento mesmo em que essa vivência ocorre. O ‘eu’ não aparece em nenhuma experiência banal, sendo exigido apenas por meio desta avaliação que podemos fazer acerca do que vivemos. Por isso Husserl (1901/2007)

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afirma: “Na descrição, a referência ao eu que vive não pode naturalmente ser contornada; mas a própria vivência em questão não consiste numa complexão que contivesse a representação do eu como vivência parcial.” (p. 412 e 413)139 Brentano, deste modo, erraria por indicar na experiência conteúdos que ela não mostra e por conferir um estatuto enganoso aos conteúdos que ela efetivamente mostra. Em oposição a isto, a intencionalidade é mais adequadamente descrita como um simples direcionar-se da consciência para fora de si mesma, por sua capacidade de fazer do sujeito um dativo de aparecimentos, correlato necessário do mundo, que se nos mostra no que ele efetivamente é. Ela não consiste na capacidade de visar correlatos que ela mesma produz acerca do mundo, o que ainda estaria, de certo modo, próximo do pensamento moderno que já mostramos ser incompatível com o interesse de Husserl. Após esta tematização da consciência intencional, a qual conta com um sem-número de outras discussões que não poderemos abordar aqui, as Logische Untersuchungen são encerradas com uma extensa análise dos atos judicativos e um esboço de teoria do conhecimento fenomenológica, temas da Sexta Investigação. Passaremos ao largo disto e, nas próximas seções, buscaremos examinar quais são as técnicas descritivas propostas pela fenomenologia, para que ainda nos situemos em seus fundamentos e compreendamos melhor como ocorre o exercício do método. 4.3. As técnicas descritivas da fenomenologia: Nas seções anteriores, conseguimos expor algumas das pretensões fundamentais da fenomenologia enquanto método e algumas teses por ela sustentadas em seu exame da consciência, mas não expusemos ainda os principais recursos por ela dispostos para o seu exercício. A rigor, a fenomenologia dispõe duas técnicas de redução para o filósofo que se encarrega de praticá-la, as chamadas ‘redução eidética’ (eidetische Reduktion) e ‘redução transcendental’ (transzendentale Reduktion), as quais já citamos de passagem ao considerarmos algumas idéias da psicologia de Brentano. Apenas a primeira daquelas duas técnicas, no entanto, encontra-se como parte integrante do método desde as obras iniciais de Husserl, sendo justamente a ela que deveremos passar inicialmente. A segunda técnica, 139

Note-se que a negação do eu como conteúdo patente nas vivências intencionais não equivale à negação de seu papel de unidade responsável pelas sínteses operadas na consciência. Se nas Logische Untersuchungen um tal ‘eu’ já era francamente admitido, nas Ideen ele adquirirá ainda maior relevância, como veremos adiante.

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por sua vez, tem relevância especial não apenas por sua utilidade metodológica, mas também porque o seu advento marca a primeira viragem teórica relevante da fenomenologia, que levará o pensador a uma redefinição do sentido fundamental de sua filosofia. Apesar desta anterioridade de uma técnica em relação à outra e de podermos encontrar elementos relevantes para a definição da primeira delas nas Logische Untersuchungen – sobretudo na Segunda Investigação – buscaremos considerar ambas a partir das duas primeiras seções das Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (1913)140.

4.3.1. A distinção entre fato e essência e a redução eidética: O primeiro destes procedimentos redutivos repousa sobre uma distinção conceitual de grande relevância, aquela entre ‘fato’ (Tatsache) e ‘essência’ (Wesen). Antes de considerarmos o procedimento ele mesmo, portanto, cabe avaliarmos em que consistem estes conceitos, para que compreendamos o procedimento de maneira mais satisfatória, bem como as vantagens que ele pode trazer ao estudo da consciência. Por ‘fato’, Husserl entende toda e qualquer conformação presente da experiência – i.e., o aspecto particular, contingente, mutável que ela assume a cada uma de suas manifestações pontuais. O caráter ‘fático’ (tatsächlich) da experiência, ou simplesmente, sua ‘facticidade’ (Tatsächlichkeit), remete àquilo que ela tem de arbitrário, evanescente, desnecessário, idiossincrático e estritamente dependente das condições pelas quais aparece – o que pode ser sempre outro e não se mostra em nada como devendo ser. Trata-se daquilo que não pode, sob hipótese alguma, caracterizar o que os vividos têm de próprio e de constitutivo, posto que se limita às diferentes concretizações destes. Trata-se, portanto, daquilo a que um esforço descritivo rigoroso dos fenômenos tem de se voltar, uma vez que fornece o meio no qual os componentes invariantes dos atos conscientes se desdobram, mas é também o que deve ser superado quando o que se intenta alcançar é precisamente o estável e imutável. De acordo com o pensador, os atos cognitivos que se voltam a fatos:

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O fato de estes elementos da Segunda Investigação surgirem basicamente em função da polêmica de Husserl contra o empirismo de seu tempo torna o acesso a eles um pouco mais difícil. A apresentação das Ideen, por outro lado, considera o tema por si mesmo e já toca em suas características primordiais, o que satisfaz as nossas pretensões de introdução.

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[...] põem o real [Reales] individualmente, eles o põem como espaçotemporalmente existente, como algo que está neste momento do tempo, tem esta sua duração e um conteúdo de realidade que, por sua essência, poderia igualmente estar em qualquer outro momento do tempo; põem-no, por outro lado, como algo que está neste lugar, com esta forma física (por exemplo, está dado juntamente com um corpo desta forma), embora este mesmo real considerado segundo sua essência, pudesse igualmente estar noutra forma qualquer, em qualquer outro lugar, assim como poderia modificar-se, quando é faticamente imutável, ou poderia modificar-se de modo diferente daquele pelo qual faticamente se modifica. Dito de maneira bem geral, o ser individual é, qualquer que seja sua espécie, ‘contingente’ [zufällig]. Ele é assim, mas poderia, por sua essência, ser diferente. (HUSSERL, 1913/2006, p. 34)

É importante salientar que esta compreensão husserliana de fato não é inteiramente compatível com a compreensão das ciências positivas. Como já tivemos ocasião de observar, estas encontram no próprio âmbito dos fatos as condições suficientes para a máxima realização de suas pretensões de conhecimento, que consistem meramente em extrair a generalidade empírica que condiciona as diferentes manifestações simples dos eventos naturais, entendendo-a como o fruto de uma generalização que não deixa nunca de ser falsificável. O conhecimento positivo, deste modo, parte de fatos e consolida-se em fatos, nunca escapando deste nível de análises e projetando-se em direção àquilo que, por princípio, o excede. Desde a sua tentativa de mostrar a fenomenologia como uma ciência que não elabora teorias, no entanto, Husserl busca indicar que a via adequada para as suas investigações é inteiramente diferente desta. Em fenomenologia, o fato não fornece esperanças maiores às exigências teóricas do filósofo. Para que estas sejam atingidas, é preciso um corte categórico com a dimensão factual da experiência, pois a investigação filosófica deve assentar bases não-falsificáveis para o conhecimento, que se caracterizem por necessidade apodíctica. Isto nos conduz diretamente ao conceito de ‘essência’. A despeito da confessa recuperação, por parte de Husserl, do termo platônico ειδος, ou ‘idéia’, para caracterizar o entendimento fenomenológico de essência, este não possui nenhum comprometimento metafísico em sua definição, não aludindo a um plano de realidades distintas daquelas experimentadas e às quais estas devem ser referidas para encontrarem sua legitimidade ou explicação últimas141. Essência quer dizer apenas a estrutura ou a arquitetura inteligível que

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Como podemos encontrar na própria filosofia de Platão, a qual, segundo Morente (1980, p. 93) professava uma espécie de ‘realismo das idéias’, assegurando a estas uma existência efetiva, transcendente ao mundo das

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faz do fenômeno aquilo que ele é, definindo tanto as características mínimas que devem constar em cada instância que dele vier a se formar – i.e., em cada aparecimento seu –, como os limites dentro dos quais esta diferenciação pode se dar (DRUMMOND, 2007, p. 68). Trata-se do conjunto de predicados que não podem ser suprimidos sob hipótese alguma do sujeito considerado, posto que, se o fizermos, não estaremos mais falando deste mesmo sujeito – teremos passado a um âmbito de análise que não o abrange mais e desvirtuado nossa pretensão inicial de conhecer o que ele tem de próprio (LYOTARD, 1954/2008, p. 17). Apoiando-se em sua caracterização do fato, acima recuperada, Husserl (1913/2006) afirma: Se dissemos que, ‘por sua essência própria’ todo fato poderia ser diferente, com isso já exprimíamos que faz parte do sentido de todo contingente ter justamente uma essência e, por conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua pureza, e ele se encontra sob verdades de essência de diferentes níveis de generalidade. Um objeto individual não é meramente individual, um este aí!, que não se repete; sendo ‘em si mesmo’ de tal e tal índole, ele possui sua especificidade, ele é composto de predicáveis essenciais que têm de lhe ser atribuídos (‘enquanto ele é como é em si mesmo’), a fim de que outras determinações secundárias, relativas, lhe possam ser atribuídas. (p. 35)

A essência, portanto, circunscreveria esses predicáveis que têm de ser atribuídos a algo. Em formulação mais direta, ela designa “[...] antes de mais nada, aquilo que se encontra no ser próprio de um indivíduo como o que ele é.” (HUSSERL, 1913/2006, p. 35). Podemos encontrar nas figuras geométricas alguns exemplos bastante oportunos desta idéia142. Imaginemos um triângulo qualquer. Não é difícil a constatação de que este triângulo imaginado pode ser do tamanho que bem entendermos; ter sua área interna preenchida por uma coloração qualquer ou não, sendo, neste último caso, representado como um simples contorno; ser um triângulo retângulo, escaleno ou isósceles; situar-se em qualquer orientação espacial tendo por referência o plano horizontal; etc. Todas estas características do nosso ato de representar imaginariamente um triângulo são indiferentes na definição do que efetivamente nos permite ter consciência de que aquela figura específica na qual pensamos é um triângulo. São predicados completamente prescindíveis.

cópias e simulacros imperfeitos. A posição de Husserl não é compatível com esta, como ressalta Lyotard (1954/2008): “Experimenta-se [...] a essência como uma intuição vivida. Mas, a visão das essências (Wesenschau) não tem qualquer caráter metafísico. A teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada” (p. 18) 142 Com efeito, Husserl considera a geometria uma ‘eidética do espaço’.

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Por outro lado, o triângulo nunca pode deixar de ter três lados; de ser uma figura da geometria plana, apresentando apenas duas dimensões, das quais a profundidade nunca é exemplo; ter a soma interna de seus ângulos resultando em 180º; ter o maior de seus ângulos como diametralmente oposto ao maior de seus lados; etc. Se alterarmos uma forma triangular de modo a fazê-la ter 185º em seus ângulos internos, e.g., ou se fizermos o absurdo de lhe acrescentar um lado, ela já não será mais um triângulo – teremos modificado seus predicados essenciais e, por conseqüência, perdido o sujeito que outrora os comportava. Não haverá mais triângulo e sim algo outro, que desencaminhará as análises originais no próprio momento em que aparecer. Em sua explicação destas características sem as quais os fenômenos não podem mais ser o que em princípio são, Lyotard (1954/2008) nos oferece um exemplo similar àquele já apontado por Stumpf a propósito da relação entre cor e extensão: [...] a cor poderá apreender-se independentemente da superfície em que se encontra espalhada? Não, porque uma cor separada do espaço em que se nos apresenta é impensável. Porque se, ao fazer variar pela imaginação o objeto cor, lhe retiramos o predicado extensão, suprimimos a possibilidade do próprio objeto cor, atingimos uma consciência da impossibilidade. Esta revela a essência. (p. 18)

Podemos sumarizar a distinção entre fato e essência da seguinte maneira: este pensamento, esta percepção, esta conjectura etc. presentemente vividos, são fatos para a fenomenologia, ao passo que a razão intrínseca a cada um destes atos, que estrutura a sua própria possibilidade de ser, enquanto acontecimento experimentado pela consciência presente, é a sua essência. Em um texto tardio referente às suas Pariser Vorträge (1929), Husserl (2010a) afirma: Para o tipo, é totalmente irrelevante a individualidade do fato exemplar, por exemplo, da percepção-da-mesa que até agora decorre momentaneamente; e a própria situação geral de que eu, este ego fático, tenha, em geral, vivências desse tipo entre as minhas vivências fáticas é irrelevante e a descrição não depende, de todo, de uma verificação dos fatos individuais e da sua existência. (p. 37)

Vejamos agora como esta distinção conceitual é operacionalizada pela primeira técnica redutiva da fenomenologia de Husserl. A sua afirmação fundamental é a de que este ‘o quê’ um determinado fenômeno é, definido por sua essência, pode ser ‘posto em idéia’ (‘in Idee gesetzt’ werden), atestado de algum modo na experiência. Desta maneira, toda

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intuição empírica que nos oferece como correlato um objeto individual qualquer pode ser vertida em uma ‘visão de essência’ (Wesensschau) ou ‘ideação’ (Ideation) que possibilita a pura apreensão do ειδος do objeto em questão. Temos uma relação intencional peculiar aqui, na qual, a esta intuição especial, um objeto também especial é dado: “A essência [...] é uma nova espécie de objeto. Assim como o que é dado na intuição individual ou empírica é um objeto individual, assim também o que é dado na intuição de essência é uma essência pura.” (1913/2006, p. 36) Se, como sabemos, a cada ato possível corresponde um objeto próprio ao seu tipo, quando encontramos uma forma de experiência nova como esta, o mesmo tem de valer, a essência mostrando-se aqui como o objeto esperado. Esta intuição pode se dar de maneira privilegiada por meio de um tipo específico de experiência intencional, a imaginação (Phantasie), e é precisamente através dela que a ‘redução eidética’ ocorre. Esta consiste na atividade filosófica que promove, por variações imaginárias, a passagem das manifestações plurais – fáticas – dos diferentes atos possíveis à consciência, bem como das diferentes objetualidades que surgem como correlatos intencionais destes atos, a seus tipos primordiais, às estruturas ideais – essenciais – que determinam todas as suas atualizações possíveis. É pela imaginação das múltiplas formas de aparecimento de um objeto enquanto correlato de um modo específico de experiência que o fenomenólogo pode apreender com correção o que é fático e o que é essencial naqueles aparecimentos. Visando-os por meio da imaginação, impõe a eles toda sorte de variações de conteúdo, de maneira a separar seus predicados prescindíveis e intuir os predicados imprescindíveis. Nestas considerações, podemos ver mais uma vez o quanto a idéia de uma ‘intuição ideal’, anunciada por Brentano como sustentáculo de seu exame imanente da consciência, mas não considerada de maneira mais detida por ele, encontra maior relevância na definição da fenomenologia enquanto método. A maneira mesma de aceder à essência de uma determinada possibilidade da experiência e de atingir o conhecimento apodíctico acerca dela, que distanciaria a fenomenologia de toda elaboração teórica positiva, é precisamente um uso criterioso da imaginação, que nos permitiria retomar aquela experiência e desnudá-la por completo, expondo a sua vertebração própria. Morujão (2002) assim explica o recurso descritivo, marcando sua distância em relação a outros meios de se atingir a generalidade a partir da particularidade, como os procedimentos empíricos de generalização:

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Fazendo ‘variar’ de modo arbitrário um objeto qualquer, verifica-se que essa arbitrariedade não pode ser completa: que há condições sem as quais as ‘variantes’ deixariam de ser variantes do objeto. Esse ‘invariante’ define precisamente a essência do objeto, que se revela em pessoa. Como essência, é-nos dada num modo particular de evidência: revela-se como idealidade pura ‘numa consciência de impossibilidade que se motiva pela presença da própria essência’. Inconfundível com a essência obtida pelos processos clássicos de abstração e de generalização, limitada aos casos individuais sobre os quais se estabelece e sempre sujeita a alteração logo que a experiência faça surgir novos dados, a essência definida pela variação apresenta-se como um absoluto, no modo de existência do puro possível. (p. 150 e 151)

Uma generalidade que pretenda a condição de essência, mas seja apenas uma inferência abstraída de fatos, é também, necessariamente, fato. Não há continuidade entre fato e essência em fenomenologia, como há em diferentes vertentes do empirismo143, mas sim divisão categórica. Fato remete a essência por requerer algo não-transitório para ter sentido; essência remete a fato porque um princípio inteligível puro de algo deve dar lugar às manifestações plurais deste algo. Ambos os conceitos, entretanto, são categorialmente diferentes. A análise eidética, condição sine qua non do exercício da fenomenologia, impede resolutamente que ela recaia na simples análise intimista das experiências subjetivas, a cada vez diferentes e sempre veladas com um falso caráter de incomunicabilidade, de idiossincrasia absoluta – fantasma presente no empirismo, como já pudemos notar, o qual está sempre sob o risco do ceticismo e do relativismo radicais. É a importância da distinção entre fato e essência que indica, com economia e precisão especiais, a seguinte afirmação de Ricœur (1986/2009): “Toda fenomenologia se faz no plano da intuição de um eidos; ela não se detém no vivido individual incomunicável, mas atinge no vivido a sua articulação interna inteligível, sua estrutura universal.” (p. 10) Por fim, é precisamente em função desta relevância que Husserl (1913/2006) afirma que o exercício da intuição eidética é o ‘princípio dos princípios’ que orientam a fenomenologia: 143

A rigor, o único empirista que parece trabalhar com um conceito de essência é Locke, para o qual há ‘essências reais’, referentes à natureza física, à constituição ontológica de um determinado objeto, e ‘essências nominais’, de ordem fenomenal e lingüística, as quais delimitam o campo das realizações possíveis de nosso conhecimento. Em Bacon, Berkeley e Hume, encontramos apenas a oposição dos fatos pontuais aos conceitos que podemos inferir acerca deles, havendo ainda a diferença de que o primeiro destes pensadores não se encontra no registro gravemente anti-realista dos últimos. Em todo caso, queremos dizer que, não obstante o diferente estatuto da generalidade em sua oposição aos fatos para os diferentes empiristas, todos eles compreendem ambos os termos como pertencentes a um contínuo, diferindo não em natureza, mas em grau. A generalidade mais forte visada pelas descrições fenomenológicas não pode ser caracterizada deste modo. Poderíamos recuperar aqui, a título de ilustração, a boa formulação de Sartre (1939/2007) em seu Esquisse d’une Théorie des Émotions, segundo a qual: “[...] é tão impossível atingir a essência amontoando os acidentes quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos à direita de 0,99.” (p. 17)

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[...] toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do conhecimento, tudo o que nos é oferecido originariamente na ‘intuição’ (por assim dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá. (p. 69)

4.3.2. As atitudes natural e fenomenológica e a redução transcendental: Cumpre agora que consideremos a segunda técnica descritiva citada anteriormente, bem como o seu significado para o desenvolvimento geral do projeto filosófico de Husserl. Poucos anos após a publicação das Logische Untersuchungen, mais precisamente em 1905, o filósofo elaborou um manuscrito que seria posteriormente conhecido como as Seefelder Blätter, no qual já dava indícios de que seu pensamento se movia no sentido de uma radicalização do distanciamento requerido entre as disposições do fenomenólogo em sua atividade descritiva e aquelas do observador ordinário. Seria, contudo, apenas nas cinco lições oferecidas na Universidade de Göttingen, em 1907, e posteriormente compiladas sob o título de Die Idee der Phänomenologie, as quais serviriam de introdução à preleções de Ding und Raum, que Husserl formularia claramente o projeto de uma ‘fenomenologia transcendental’ e introduziria um novo recurso descritivo à sua ciência: a έπολή (epoché) filosófica, também conhecida como ‘redução transcendental’, ‘suspensão fenomenológica’ e outros termos similares. Este movimento marca uma nova definição de fenomenologia que a distancia dos referenciais psicológico-descritivos inicialmente assumidos e a situa no terreno de uma filosofia transcendental de inspiração kantiana144. A redução em questão consiste no trânsito entre duas ‘atitudes’ ou ‘orientações’ (Einstellungen) específicas de nossa experiência intencional: a primeira delas, mais basal, imediatamente descerrada em nossas vivências ordinárias e acríticas, é a chamada ‘atitude natural’ (natürliche Einstellung); a segunda, eminentemente filosófica, crítica e inacessível sem um franco empenho intelectual por parte do sujeito da experiência, é a ‘atitude fenomenológica’ (phänomenologische Einstellung), ou simplesmente ‘atitude filosófica’. A adequada compreensão deste novo recurso descritivo, portanto, requer a especificação destas duas atitudes.

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É importante que recuperemos aqui, no interesse de situarmos melhor o sentido desta mudança, a definição de filosofia transcendental oferecida por Kant na Introdução à segunda edição de sua Kritik der reinen Vernunft (1781) – definição que se aplica também ao pensamento husserliano deste momento em diante: “Chamo transcendental a todo conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que de nosso modo de os conhecer, na medida em que este deva ser possível a priori.” (KANT, 1781/2001, p. 53)

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A ‘atitude natural’ é marcada por todas aquelas características que a investigação psicológico-descritiva da fenomenologia primitiva já buscava contornar, tal como vimos em nossa breve passagem pelas Logische Untersuchungen. Ela é a atitude na qual nos encontramos em toda e qualquer experiência irrefletida, voltada diretamente aos próprios correlatos intencionais dos atos que realizamos, sem que venhamos a converter estes mesmos correlatos ou os atos que a eles se dirigem em tema de análise crítica. Em sua caracterização de nosso ‘mundo circundante natural’ (natürliche Umwelt), Husserl ressalta que ele nos surge como possuindo uma extensão espacial e um devir temporal infindos. No que se refere ao espaço, por meio da experiência sensível, as coisas aparecem como estando simplesmente aí, disponíveis para nós, independente de nos ocuparmos diretamente delas de alguma forma, por meio de algum desdobramento de nossa experiência, ou de não o fazermos. Em meio a estas coisas estão entes naturais, seres vivos de variado tipo, homens com os quais travamos contatos complexos, que excedem em muito os nossos simples dados de percepção e nos permitem presumir pensamentos, motivações, convicções e demais estados anímicos que eventualmente acompanhem as suas diferentes condutas. Estão também dados, de maneira indireta, diversos objetos fora de nosso campo perceptivo, que parecem poder ser, se nos colocarmos nas condições devidas, intuídos como todas as demais coisas que nos cercam. Podemos deixar a nossa atenção flutuar entre este número reduzido de dados diretos e a imensa variedade de dados presumidos sem que consideremos qualquer diferença de princípio entre ambos, uma vez que o fato de estes não estarem aí para nós em uma determinada circunstância não impede que em outra venham a estar. Tal âmbito co-presente (mitgegenwärtig) da experiência estende-se de maneira imensurável, o que se evidencia quando consideramos as diferentes variações de nossa atenção perante este horizonte de indeterminações que se afirma ao redor do que nos é patente – as nossas possibilidades de executar diferentes inspeções nestes cenários, mudar a obscuridade e a indistinção que pode inicialmente caracterizá-los, vivificar o que antes se mostrava menos acessível. Todas estas possibilidades encontradas no caráter espacial do mundo afirmam-se com mesma força em sua ordenação temporal, mostrando-nos um mundo cujos eventos se estendem em um contínuo potencialmente infinito em qualquer um dos sentidos que o pudermos considerar, aquele que o desfaz em episódios passados ou que o projeta em condições vindouras. Nossas representações podem ser livremente voltadas a qualquer

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momento deste aparente contínuo, tornando ainda mais extenso o campo de inatualidades da experiência presente. Além de todas estas características, o mundo natural mostra-se como um campo marcado por valores e interesses práticos os mais diversos. Reconhecemos de pronto o caráter de utilidade em certos objetos, bem como toda uma ampla gama de atribuições morais e qualidades estéticas de outros, como atesta qualquer compreensão mínima que se possa ter da vida coletiva organizada. O todo da realidade assim apreendida – i.e., da realidade apreendida pela consciência natural – é visto como simples ‘estar aí’ e ‘ser disponível’. O mundo circundante natural é habitado por sujeitos que têm um trato fundamentalmente interessado com as diversas coisas ou acontecimentos que se encontram ao seu redor, avaliando aquilo que aparece não tanto no que ele mostra ser, de maneira pura e autônoma, à consciência, mas em sua submissão a uma trama previamente ordenada de sentidos e propósitos particulares, em sua maioria voltados a necessidades práticas. O aparecente se torna mais o que as condições concretas e factuais do sujeito, enquanto indivíduo específico e contingentemente situado, fazem dele, e já não tanto uma expressão do sentido que lhe é inerente e que uma adequada observação deveria ser capaz de captar. Nas palavras de Held (2006): Como espaço de possibilidades de julgamento e ação, um horizonte limitado também libera a visão das possibilidades nele contidas. Cada mundo particular permite ao homem ver aquilo que vem ao seu encontro em acontecimentos no interior desse mundo particular. [...] O que uma pessoa vê em seu mundo particular, aparece-lhe na luz dos interesses que eventualmente o conduzem. Por isso o seu olhar não se mantém naquilo que o fenômeno (o que aparece) é em si, porém, vai imediatamente além do fenômeno, direcionando-se para aquilo ao qual ele é útil. (p. 109)

No entanto, como característica especialmente relevante desta disposição da consciência perante o mundo – e aquela sobre a qual a redução transcendental incidirá com maior gravidade – Husserl indica a manutenção da chamada tese da existência do mundo. Para a experiência irrefletida, tudo quanto vem a se mostrar como correlato de nossos atos conscientes é algo que existe em plena independência destes mesmos atos – existe em si mesmo, como coisa ou acontecimento mundano situado entre outras coisas ou acontecimentos de mesmo caráter. Em vez de definir o aparecente no movimento mesmo pelo qual o visa, o ato é experimentado como algo que se volta ao que existe em si e por si,

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malgrado o tipo de relação intencional que possamos com ele travar. Em vez de constituir o objeto intencional, portanto, o ato parece apenas voltar-se ao que já está lá, em independência completa de nossas diferentes perspectivas – o ato parece apenas iluminar um correlato real, que não depende de nossa consciência em nada para ser o que é. Trata-se, a rigor, de uma espécie de decisão metafísica, inerente à experiência natural, quanto ao ser dos objetos visados por nossa consciência em seus diferentes modos – uma decisão de caráter realista145, no sentido clássico, por coisas existentes nelas mesmas. Nas palavras de Husserl (1913/2006), a tese pode ser definida da seguinte maneira: [...] encontro constantemente à disposição, como estando frente a frente comigo, uma efetividade espaço-temporal da qual eu mesmo faço parte, assim como todos os outros homens que nela se encontram e que de igual maneira estão a ela referidos. Eu encontro a ‘efetividade’, como a palavra já diz, estando aí, e a aceito tal como se dá para mim, também como estando aí. (p. 77)

O afastamento desta tese na consideração dos fenômenos da consciência intencional é o principal efeito da έπολή filosófica e o meio de acesso à outra atitude sobre a qual devemos agora discorrer, a ‘atitude fenomenológica’. Parece-nos possível, assim, resumir a atitude natural a três caracteres centrais: (1) a manutenção do que Husserl já chamou de ‘atitude de consumação dos atos conscientes’ – i.e., do voltar-se direta e irrefletidamente ao mundo que nos surge como correlato de nossos diferentes atos da consciência, sem tematizar estes atos; (2) a subordinação do aparecente a

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Podemos encontrar uma boa analogia disto com a descrição oferecida por Morente (1980) acerca da resposta realista à pergunta metafísica fundamental ‘O que existe?’. De acordo com o autor: “Há uma resposta a essa pergunta, que é a resposta mais natural [...]: aquela que a natureza em nós mesmos [...] nos dita imediatamente, a mais óbvia, a mais fácil, aquela que ocorre a qualquer um. Quem existe? Pois muito simples: esta lâmpada, este copo, esta mesa, estas campainhas, este giz, eu, esta senhorita, aquele cavalheiro, as coisas e dentre as coisas, como outras coisas, como outros entes, os homens, a terra, o céu, as estrelas, os animais, os rios; isso é o que existe. Esta resposta é a mais natural de todas, a mais espontânea e é aquela que a humanidade repetidas vezes e constantemente tem enunciado. Muitos séculos demorou a humanidade a mudar de modo de pensar sobre esta pergunta, e ainda que tenha mudado o modo de pensar dos filósofos, continua pensando dessa forma todo aquele que não é filósofo. Mais ainda: continuam pensando dessa forma os filósofos enquanto não o são; [...] enquanto não são filósofos, espontânea e naturalmente, vivem na crença de que o que existe são a coisas, entre as quais, naturalmente e sem distinção, estamos nós.” (p. 67; grifos nossos). Ainda que a experiência natural adote tal postura de maneira irrefletida – o que é inteiramente diferente de uma tese filosófica que busca, por meio de argumentação que se pretende criteriosa, defender a mesma perspectiva –, a comparação nos parece válida, sobretudo em se considerando as passagens que buscamos ressaltar na exposição de Morente. A relação estabelecida pelo filósofo entre a perspectiva ingênua acerca das coisas do mundo e a atividade filosófica parece-nos bastante similar à relação entre a atitude natural e a filosófica: em ambos os casos, o homem ordinário e o próprio filósofo, enquanto não reflete filosoficamente acerca de algo, situam-se nas primeiras daquelas categorias.

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interesses que ofuscam seu sentido próprio e fazem dele uma simples expressão das contingências vividas pelo sujeito de experiência enquanto um ‘eu’ fático; e (3) a adesão ingênua à tese da existência dos objetos visados como coisas existentes em independência dos atos que as visam. A ‘atitude fenomenológica’ busca contornar todos estes pontos, mas tem seu aspecto fundamental na oposição à tese da existência do mundo e na conseqüente redução do fenômeno à simples condição de fenômeno – i.e., ao simples mostrar-se de um determinado objeto à consciência subjetiva146. Trata-se de uma dissolução daquele assentimento imediato e involuntário da experiência banal, uma simples retirada de seu valor positivo que não deve, contudo, ser confundida com qualquer variação modal possível de seu conteúdo. Retirar isto a que assentimos do espaço de validade que lhe conferimos tão gratuitamente e colocar em um espaço de invalidade ou de maior ou menor possibilidade, é operar em relação ao seu conteúdo variações modais tão estéreis ao pensamento filosófico quanto a própria atitude de assentimento que está em causa. A neutralização de uma tese não implica a assunção da tese oposta ou de variações probabilísticas da tese original. ‘O mundo é dado para além de meus atos’, ‘O mundo não é dado para além de meus atos’ e ‘É possível que, em tais e tais circunstâncias, o mundo seja dado para além de meus atos’ são proposições que, a despeito de sua óbvia diferença semântica, não deixam de se ombrear em termos de valor teórico – um valor, com efeito, nulo. Trata-se, para o fenomenólogo, de assumir uma atitude de plena abstenção de juízos acerca do problema; trata-se de sua desconsideração sumária, posto que ele não constitui etapa necessária ou sequer relevante para a realização do verdadeiro propósito da investigação filosófica. Ainda, como diz Husserl (1913/2006) freqüentemente, trata-se de uma ‘retirada de circuito’ (Ausschaltung) ou de uma ‘colocação entre parênteses’ (Einklammerung): [...] a tese é um vivido, mas dele não fazemos ‘nenhum uso’ [...]: trata-se antes, nesta como em todas as expressões paralelas, de designações indicativas de um determinado modo específico de consciência, que vem se juntar à simples tese originária [...] e que modifica de maneira específica o seu valor. Essa modificação de valor cabe a nossa inteira liberdade e se opõe 146

Dizemos que o aspecto fundamental da redução fenomenológica é este porque todos os demais já são obtidos por meio da redução psicológica que encontramos nas Logische Untersuchungen. É possível uma tematização dos atos da consciência e uma tentativa de descrevê-los em plena abstenção de pressupostos sem que isto signifique uma prática da redução fenomenológica. Esta se afirma apenas pelo sustar da tese.

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a todas as tomadas de posição do pensamento que possam estar em coordenação com a tese [...]. (p. 79 e 80)

Que resta, deste modo, das objetualidades experimentadas quando retiramos o inadequado sustento a elas conferido pelo nosso realismo tácito? Resta a condição de puro correlato intencional, o seu ser-para-uma-consciência. De coisa real, o aparecente é levado a pura unidade de sentido, a fenômeno transcendentalmente reduzido. Em termos epistêmicos, uma conseqüência de grande relevância deste procedimento é o fato de ele sustar não apenas estas formas ingênuas e irrefletidas de se apreender os fenômenos conscientes, mas toda e qualquer possibilidade de se experimentar mundo a partir da tese que reduz os seus objetos à disponibilidade e ao estar-aí anteriormente considerados. Isto inclui, por razões óbvias, toda ciência positiva, uma vez que os diferentes domínios de investigação desta buscam compreender e explicitar as leis que governam eventos naturais, presumidamente reais. Nenhuma espécie de procedimento científico, bem como nenhuma tese vinculada às ciências pode ser considerada relevante para qualquer etapa do exame fenomenológico. Se, em algum momento deste exame, ocorrer um tal recurso, por menos relevante que ele seja, a redução terá sido desfeita e a fenomenologia não estará mais em curso. Husserl (1913/2006) afirma: Tiro, pois, de circuito todas as ciências que se referem a esse mundo natural, por mais firmemente estabelecidas que sejam para mim, por mais que as admire, por mínimas que sejam as objeções que pense lhes fazer: eu não faço absolutamente uso algum de suas validades. Não me aproprio de uma única proposição sequer delas, mesmo que de inteira evidência, nenhuma é aceita por mim, nenhuma me fornece um alicerce – enquanto, note-se bem, for entendida tal como nessas ciências, como uma verdade sobre realidades deste mundo. Só posso admiti-la depois de lhe conferir parênteses. Quer dizer: somente na consciência modificante que tira o juízo de circuito, logo, justamente não da maneira em que é proposição na ciência, uma proposição que tem pretensão à validez, e cuja validez eu reconheço e utilizo. (p. 81)

É bastante claro que, a partir disto, o fenomenólogo não pode reconhecer valor teórico em qualquer espécie de exame da consciência como aqueles retratados em nosso estudo até então. Procedimento experimentais, sejam eles como aqueles propostos pelo elementarismo psicológico, sejam como os propostos pelo gestaltismo, lidam com efetividades presumidamente extra-conscientes e, portanto, não podem ser úteis ao esforço daquele teórico. Procedimentos descritivos como os da escola brentaniana, apesar de se aproximarem em maior medida do problema transcendental, acabam denegando-o e

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aceitando, em um momento ou outro de suas considerações, a lida com estas efetividades. Para um estudo fenomenológico da consciência, nenhuma concessão ao que não é aparecimento pode ser feita. Esta operação, contudo, não é efetuada apenas em relação ao que nos aparece, mas também em relação a nós mesmos. Se a experiência natural tem por sede uma subjetividade concreta, particular, situada em meio a contingências, que se compreende como ente psicofísico em interação com um mundo real, a experiência purificada pela suspensão fenomenológica deve encontrar algum sustentáculo subjetivo que não seja mundano, que possa prescindir de tudo aquilo que encontramos como característico do ‘eu natural’. Por meio da atitude filosófica, descortina-se um eu que é pura condição do que aparece, unidade sintética de atos de variado tipo que possibilitam toda a diversidade da vida intencional, o ser objeto de todo objeto. De acordo com Husserl em suas Pariser Vorträge, ao realizar a redução fenomenológica: Eu não me ganho a mim próprio, digamos, como um pedaço do mundo, dado que pus universalmente o mundo fora de validade, não como eu singularizado, mas antes precisamente como o eu em cuja consciência o mundo no seu todo e eu próprio enquanto objeto mundano, como homem que é no mundo, recebem por vez primeira o seu ser e a sua validade de ser. (HUSSERL, 1929/2010a, p. 20)

Em oposição ao eu natural, portanto, o eu reflexivo é fundamentalmente desinteressado, ou ainda, se se quiser preservar a palavra ‘interesse’ em sua caracterização, interessado apenas nos próprios atos desempenhados pelo eu natural (MORUJÃO, 2002). É este eu que é ocasionalmente chamado por Husserl de ‘resíduo fenomenológico’ (phänomenologische Residuum): estrutura necessária a todo aparecimento, agente último de toda síntese objetual, resultado preciso do ordálio praticado pela suspensão. No recuo por ela operado em relação à atividade do eu natural, entretanto, nada de qualitativamente diferente se dá na experiência deste eu. Nada do que ele visa muda em termos de conteúdo: a experiência continua sendo esta experiência, deste objeto específico, desdobrando-se em tais e tais aspectos e perfis, da mesma maneira como seria caso a vivêssemos ingênua e acriticamente. A única coisa que se altera é o assentimento natural que damos à existência do visado como independente de nossos atos, como objetos mundanos. Altera-se, e aqui sim de maneira radical, o caráter posicional da experiência:

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A percepção da casa, mesmo quando inibo a atividade da crença perceptiva, é, tomada tal como a vivo, precisamente percepção desta e justamente desta casa, aparecendo desta e daquela maneira, mostrando-se com precisamente estas determinações, de lado, de perto ou de longe. Do mesmo modo que a recordação, clara ou vaga, é recordação da casa clara ou vagamente representada, ou que o juízo, por mais falso que seja, é um visar judicativo deste e daquele estado de coisas visado etc. (HUSSERL, 1929/2010a, p. 24)

Podemos perceber aqui uma diferença decisiva do idealismo fenomenológico em relação às demais posições idealistas na história da filosofia, pois, enquanto estas implicam uma decisão metafísica acerca do que o mundo e a totalidade dos entes efetivamente são, havendo uma plena absorção de seu ser na consciência, aquele se define como uma posição fundamentalmente distanciada de problemas metafísicos. Se o idealista clássico se opõe ao realista por admitir que o Ser depende das possibilidades estruturais de nossa experiência – sejam elas puramente cognitivas ou empíricas –, ao passo que este afirma exatamente o oposto – i.e., a independência do Ser em relação àquelas possibilidades –, o idealista fenomenológico não elabora teses acerca do que o Ser, em última instância, é. A redução de todo o nosso horizonte possível de experiências ao que é característico da própria experiência é uma operação puramente descritiva; não quer dizer uma redução de tipo berkeleyano do esse ao percipi ou, ainda, um giro à maneira kantiana, que privilegia a experiência ainda admitindo seu vínculo com uma realidade numênica indevassável. Como indica Ricœur (1986/2009): “[...] o observador se abstém de se pronunciar (epoché) sobre o estatuto ontológico último do aparecer e só se ocupará com o aparecer puro.” (p. 14) Ou ainda, nas palavras do próprio Husserl (1913/2006): [...] a consciência tem em si mesma um ser próprio, o qual não é atingido em sua essência própria absoluta pela exclusão fenomenológica. A consciência remanesce, assim, como ‘resíduo fenomenológico’, como uma espécie própria por princípio de região do ser, que pode, com efeito, tornar-se o campo de uma nova ciência – a fenomenologia. (p. 84)

Deste modo, temos nas reduções eidética e transcendental os dois principais recursos descritivos da fenomenologia de Husserl, os quais poderíamos caracterizar, recuperando os termos de Fragata (1985), respectivamente como uma redução à essência e uma redução ao fenômeno147. 147

Note-se que há autores como Føllesdal (2009) que entendem haver uma distinção entre a redução transcendental e a redução fenomenológica. Enquanto a primeira seria definida por todas as características que procuramos expor neste tópico, a segunda seria a prática conjunta das reduções transcendental e eidética.

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4.3.3. Algumas considerações acerca do idealismo fenomenológico: É exatamente na discussão da έπολή transcendental que encontramos algumas das informações mais importantes acerca da posição epistemológica peculiar da fenomenologia nesta sua nova fase. Em primeiro lugar, temos uma nova especificação de suas relações com a psicologia, as quais não admitem mais a proximidade antes considerada entre as duas disciplinas, mas sim um afastamento categórico. Em segundo lugar, temos o oferecimento de novas razões para acentuar a distância da fenomenologia em relação ao empirismo, enfocado tanto em seu aspecto puramente filosófico, quanto no aspecto mais diretamente científico encampado pelo positivismo. Em terceiro lugar, temos uma explicitação mais clara das afinidades entre fenomenologia e o racionalismo de tipo cartesiano. Buscaremos considerar de maneira breve estes diferentes eixos apenas na medida em que tais diálogos nos permitem compreender de maneira privilegiada o novo terreno em que se situa a fenomenologia e o quanto ela estará dedicada a uma tematização da consciência que é completamente diferente daquelas até então vistas aqui. Para isto, recorreremos novamente às mesmas obras que nos orientaram na seção anterior. (1) No que se refere à psicologia, é importante salientar que, por meio da έπολή transcendental, as possibilidades de aproximarmos a fenomenologia daquela disciplina se encontram sumariamente cortadas. O exame dos fenômenos conscientes como vivências transcendentalmente reduzidas não abre espaço para a admissão de possíveis vínculos destas vivências com efetividades, o que acabava acontecendo mesmo com a metodologia das Logische Untersuchungen na medida em que ela assumia o caráter psicológico da experiência analisada e a possibilidade dos objetos intencionais ainda se referirem a algo formalmente distinto do dado (MOURA, 2006, p. 19). O fato de propor uma redução psicológica que fizesse análise apenas de representações em seu aspecto ideal, não impedia que estas estivessem presumidamente ligadas ao que excede a consciência. Nem mesmo o fato de não se tematizar esta ligação, presente de forma apenas vestigial e secundária na fenomenologia primitiva, impedia que a concepção de experiência por ela aventada ainda estivesse de algum modo tocada pelo sustento da tese da atitude natural. O simples fato da tese não ter sido vista naquela obra mostraria este comprometimento, ao que Husserl logo Dado o emprego aparentemente intercambiável das expressões por Husserl nas obras consultadas, não assumimos a distinção proposta pelo comentador e nos referimos ao mesmo procedimento quando usamos uma ou outra.

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atentaria, buscando corrigir sua afirmação inicial de que a fenomenologia seria uma psicologia descritiva, ainda que um tanto diferente daquela proposta pela Escola de Brentano. Em sua Introdução a Die Idee der Phänomenologie, Biemel (2008) recupera um fragmento póstumo de Husserl que é particularmente elucidativo para a consideração desta viragem. Neste fragmento, o pensador afirma: As ‘Investigações Lógicas’ fazem passar a fenomenologia por psicologia descritiva (embora fosse nelas determinante o interesse teórico-cognoscitivo). Importa, porém, distinguir esta psicologia descritiva, e, claro, entendida como fenomenologia empírica da fenomenologia transcendental [...]. O que nas minhas ‘Investigações Lógicas’ se designava como fenomenologia psicológica descritiva concerne à simples esfera das vivências, segundo o seu conteúdo incluso [reell]. As vivências são vivências do eu que vive, e nessa medida referem-se empiricamente às objetividades da natureza. Mas, para uma fenomenologia que pretende ser gnoseológica, para uma doutrina da essência do conhecimento (a priori), fica desligada a referência empírica. Surge assim uma fenomenologia transcendental, que foi efetivamente aquela que se expôs em fragmentos nas ‘Investigações Lógicas’. (p. 11 e 12; acréscimo nosso)

Em tom similar, na Introdução de suas Ideen, Husserl (1913/2006) considera da seguinte maneira esta gradativa necessidade de reformular a fenomenologia nos anos posteriores à escrita de sua obra supracitada: [...] a fenomenologia pura, para a qual queremos abrir acesso na continuação – a mesma que fez sua primeira aparição nas Investigações Lógicas e cujo sentido me foi sendo cada vez mais profunda e ricamente desvendado no prosseguimento do trabalho do último decênio –, não é psicologia, e o que impede a inclusão dela na psicologia não são demarcações contingentes dos domínios, nem terminologia, mas fundamentos de princípio. Por maior que seja a importância metodológica que a fenomenologia possa reivindicar no caso da psicologia, por mais ‘fundamentos’ essenciais que ponha à disposição desta, ela (como ciência de idéias) é tão pouco psicologia quanto a geometria é ciência da natureza. (p. 26 e 27)

Os fundamentos de princípio que asseguram uma diferença a tal ponto radical se resumem precisamente às duas técnicas descritivas que acabamos de caracterizar. Em oposição ao interesse da fenomenologia por essências, a psicologia se interessa por fatos; em oposição ao interesse daquela por fenômenos desconectados da realidade, formalmente reduzidos à consciência, interessa-se por fenômenos reais. Ainda que projetos psicológicos como o brentaniano possam ser menos facilmente reduzidos a estes dois pressupostos, uma vez que o interesse do pensador era justamente praticar um empirismo intuitivo e que permitisse o acesso às estruturas a priori da consciência, e não compilar fatos para servirem 318

de base a induções, os demais projetos psicológicos considerados em nosso estudo, a despeito do quão diferentes possam ser sob outras perspectivas, parecem assumir ambas as características indicadas por Husserl. Em qualquer estudo fisiológico ou físico das condições extra-fenomenais de gênese do fato psíquico, temos, evidentemente, o estudo de ocorrências reais da natureza externa e do organismo, bem como respostas conscientes que podem ser qualificadas do mesmo modo. O próprio caráter experimental destes estudos mostra o interesse factual dos mesmos, já que eles consistem basicamente em observação – tanto simples, quanto controlada – de acontecimentos particulares. Já no que se refere à psicologia descritiva, os diferentes graus de aproximação que os seus proponentes admitiram da psicologia genética, bem como a sua lida com a consciência em seu aspecto concreto, são também suficientes para a encontrarmos no escopo da análise de Husserl. À diferença de tudo isto, a fenomenologia, em sua nova formulação, não pode admitir nenhum destes apoios das psicologias precedentes no mundo natural e em seus acontecimentos pontuais. A consciência à qual ela se volta é a consciência transcendentalmente purificada e o que ela busca conhecer nesta são as estruturas eidéticas que a definem. Ainda na citação acima recuperada, é digna de nota a comparação feita por Husserl entre a relação da fenomenologia com a psicologia e aquela da geometria com a ciência natural. Em ambos os casos, o que temos é uma clara relação de dependência teórica e metodológica de uma disciplina em relação à outra, de modo que só se pode considerar a disciplina dependente suficientemente estruturada ou verdadeiramente apta para desenvolver as suas investigações próprias, na medida em que ela se serviu diretamente das contribuições da disciplina independente para a clarificação de seus princípios. Com efeito, como atesta a própria história das ciências, a ciência natural se desenvolveu em ampla dependência de métodos geométricos de exposição e prova, fora o benefício obtido com o tratamento matemático geral das variáveis postuladas acerca do fenômeno natural. A relação da psicologia com a fenomenologia seria análoga, na medida em que apenas esta poderia oferecer àquela a rigorosa exposição de seus princípios, a clarificação do que são, em si mesmos, os fenômenos que ela se propõe analisar e o seu sustento cognitivo último para que possa pretender a condição de ciência. Toda psicologia sem fundamentação fenomenológica seria uma ciência desprovida de orientação – da única orientação que

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asseguraria a ela o êxito pretendido ao se denominar uma disciplina autônoma. Da mesma forma que nas Logische Untersuchungen, é bastante claro que Husserl retém aqui a pretensão de colocar a fenomenologia como uma ciência provedora, ainda que o sentido próprio ao método seja outro. Já não se trata mais, contudo, de fundamentar a psicologia ainda por uma psicologia, mesmo que de tipo especial. (2) No que respeita ao empirismo de modo geral, tanto em suas expressões mais filosóficas quanto naquelas mais próximas da práxis científica, a posição de Husserl é também relevante. Se, em um primeiro momento, ele tende a reconhecer certas vantagens do procedimento assumido por esta vertente de pensamento, em outro, busca encontrar na maneira como ele é conduzido conseqüências tão graves quanto aquelas já indicadas a propósito do problema psicologista. Inicialmente, Husserl (1913/2006) faz um elogio do motivo empirista fundamental, definindo-o como um: [...] radicalismo cognitivo-prático, que pretende fazer valer, contra todos os ‘ídolos’148, todos os poderes da tradição e da superstição, toda espécie grosseira ou refinada de preconceito, o direito da razão autônoma, como única autoridade em questões de verdade. (p. 60 e 61).

Seria possível reconhecer nisto certo retorno às próprias coisas – i.e., uma tentativa, por parte do filósofo, de compreender e se orientar apenas pelos eventos examinados, abstendo-se de qualquer conhecimento ou interesse prévios acerca destes mesmos eventos, e entendendo que toda forma mediata de conhecê-los deveria ser fundada nas formas imediatas. Um dos erros severos deste pensador, entretanto, seria advindo justamente da maneira como ele entende este recurso às formas imediatas de conhecimento, pois ele as equivaleria à intuição sensível. Isto acarretaria, por razões evidentes, uma ênfase indevida na importância do fato para o conhecimento, uma vez que os sentidos só nos comunicam particulares, eventos espaço-temporalmente situados. Em sua tentativa de evitar a modulação da experiência pelos preconceitos, portanto, o empirista condena como fantasmas metafísicos, como construções especulativas inteiramente nocivas ao verdadeiro espírito científico, idéias fundamentais para a fenomenologia, como a de essência, que se

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O termo ‘ídolo’ adquire sentido estrito, entre os empiristas, na obra capital de Francis Bacon, o Novum Organum (1620), na qual indica certos preconceitos que se impõem à tentativa do cientista realizar uma rigorosa interpretação da natureza (interpretatio naturæ), enfraquecendo a consistência cognitiva desta ou mesmo impedindo-a. Bacon desenvolve uma especificação dos diferentes ídolos – os idola tribus, specus, fori e theatri –, mas a sua consideração individual não nos interessa aqui.

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afasta do plano dos fatos para considerar os seus princípios de estruturação. Conceder a um tal apriorismo, em sua perspectiva, seria agir contra a proposta mesma de se ater ao imediato. O empirista afirmaria: O maior mérito da moderna ciência da natureza foi justamente ter libertado a humanidade de tais assombrações filosóficas. Toda ciência tem que lidar apenas com o que é efetivamente real, passível de experimentação. O que não é efetividade, é imaginação, e uma ciência de imaginações é justamente ciência imaginária. (HUSSERL, 1913/2006, p. 61)

Ora, como já vimos há pouco, é exatamente pela via da imaginação que a fenomenologia pretende sustentar o conceito de essência e a possibilidade de, por meio de uma análise calçada na variação das instâncias representadas de um fenômeno, atingirmos aquela mesma essência. Ela mostra, portanto, a possibilidade de uma ciência em que o recurso à imaginação não surge como nada de indesejável, mas sim, pelo contrário, como o meio legítimo em que o conhecimento radical dos fenômenos ocorre. Uma ‘ciência imaginária’, deste modo, não surgiria como um mero chiste ou uma contradição em termos, mas como uma via privilegiada para se compreender a consciência. Por meio deste contraponto, vemos que algumas das teses e procedimentos basilares do método husserliano – a intuição de essências e a variação imaginária – constituem, para o empirismo, um flagrante retrocesso naquele tipo de conquista que o pensamento moderno nos teria legado. Além disto, segundo Husserl, seria exatamente nesta postulação de princípios a priori ainda não justificados que o empirismo recairia quando afirma que todo juízo deve ser fundado na experiência sensível sem, no entanto, sustentar esta posição por uma análise da experiência judicativa que possa mostrar se este é o caso ou não – i.e., que possa ver se ela tem esta relação de estrito apoio na sensibilidade ou não. Qual a possível justificativa de uma asserção como esta quando não se sabe exatamente a extensão e as características do próprio ato de julgar? Parece ocorrer aqui exatamente aquilo que, em seu pretenso retorno às coisas mesmas, o empirismo tenta contornar: a admissão de princípios exteriores à observação e que orientam a sua incidência sobre a natureza. O paradoxo é explícito. O empirismo, portanto, parte de um princípio louvável, mas o exerce de maneira equivocada, enfatizando o aspecto errado da experiência e falhando em não admitir pressupostos. O seu retorno às próprias coisas é corrompido; o seu ‘radicalismo cognitivo’, pouco radical.

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O positivismo149 é citado pelo filósofo logo após ele elencar estas críticas ao empirismo em geral, não havendo, a rigor, muita distinção entre o que ele dirige a cada uma destas orientações epistemológicas. O ponto principal de crítica aqui é também o mau exercício da suspensão e a recaída em pressupostos não-clarificados, que restam como preconceitos. O positivista ergueria a pretensão de descrever o que os fenômenos são enquanto dados da experiência sensível imediata, mas construiria, em sua explicação destes mesmos dados, esquemas completamente exteriores à experiência possível, que não podem ser reconhecidos por nenhum sujeito de experiência no simples curso de sua vida fenomenal. Nas palavras de Xirau (1966): A ciência natural não respeita a realidade; força-a, submete-a a toda sorte de manipulações e violências, formula perguntas sobre seu ser recôndito e lhe exige que as conteste. Os métodos de experimentação constituem um sistema complicado de procedimentos mediante os quais o homem de ciência, pela astúcia e pela força, rompe a superfície pacífica da realidade, desarticula-a e penetra em sua ‘entranha’. [...] Assim, nada mais distante do positivismo que uma concepção ingênua da consciência e das realidades que se dão nela. Ao olhar não prevenido, a consciência não parece nunca com um fluxo de sensações. Não tenho nunca diante de mim sensações, mas coisas, objetos, paisagens, pessoas, figuras, melodias, amores, ódios, normas, ideais... Em presença disto, o positivismo, em vez de dizer ‘o que’ é e ‘como é’, converteo em problema, declara-o contraditório e impossível e formula uma ‘teoria’ que nos diz não o que são em sua presença imediata, mas o que ‘realmente’ são em sua ausência recôndita. Estas realidades, em aparência tão simples, são na verdade misteriosas. Parecem reais, mas não o são. Sua aparência é simples aparência. (p. 43)

Há, na posição positivista, uma infidelidade fundamental, portanto, já que, em seu propósito de conhecer a realidade tal como se nos dá, decompõe esta realidade em esquemas explicativos nunca experimentados diretamente, distanciados por inteiro do que significa, com efeito, a vida consciente. Desta crítica advém a célebre passagem das Ideen na qual Husserl (1913/2006) afirma ser a fenomenologia a filosofia que verdadeiramente toma para si esta empresa de descrever o dado imediato e a persegue com a cautela e a precisão necessárias: 149

Parece-nos que ainda permanece em aberto a questão sobre Husserl, em suas críticas, assumir o positivismo a partir do referencial comteano ou não. Apesar de encontrarmos fontes que autorizam explicitamente a interpretação favorável a isto (TOURINHO, 2010, p. 387), a decisão certamente é dificultada pelo fato de Husserl não mencionar pensadores específicos quando se dirige ao interlocutor positivista. Se em obras tardias como a Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie (1936), Husserl lista entre as ciências positivas algumas disciplinas não pertencentes à hierarquia de Comte, como a psicologia, não podemos esquecer que este campo buscou avidamente se submeter às exigências científico-naturais ao longo da segunda metade do século XIX.

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Se ‘positivismo’ quer dizer tanto quanto fundação, absolutamente livre de preconceitos, de todas as ciências naquilo que é ‘positivo’, ou seja, apreensível de modo originário, então nós somos os autênticos positivistas. Com efeito, não deixamos que nenhuma autoridade – nem mesmo a autoridade da ‘moderna ciência da natureza’ – subtraia nosso direito de reconhecer todas as espécies de intuição como fontes igualmente válidas de legitimação do conhecimento. (p. 64)

A fenomenologia seria um ‘positivismo superior’, como indica Dartigues (1972/2008, p. 13), exatamente por sustentar uma suspensão verdadeira, suficientemente radical, para que o dado seja explicitado no sentido que assume enquanto referido à estrutura transcendental da consciência. Um último erro a ser indicado também diz respeito à evicção do conceito de idéia e do tipo de verdade que este traz consigo. Como já denunciara Husserl em seus Prolegomena, quando tratava do psicologismo em lógica, o positivista confundiria dois registros que cumpre sempre manter separados: as duas formas de intuição admitidas pela própria fenomenologia, a saber, as intuições eidética e empírica. Por privilegiar de maneira dogmática esta última, raciocínios que só poderiam ser adequadamente descritos em referência à primeira – como as proposições lógicas, matemáticas ou provenientes de qualquer ciência formal – são retirados de seu solo legítimo e necessariamente desfigurados. Isto quer dizer: proposições que só podem ter sustento eidético são consideradas proposições de sustento empírico, levando aos problemas que pudemos indicar de passagem logo ao início deste capítulo. Os positivistas “[...] ora misturam as diferenças cardeais das espécies de intuição, ora as vêem contrastadas, mas, presos a seus preconceitos, eles só querem reconhecer uma única delas como válida, ou até como existente.” (HUSSERL, 1913/2006, p. 64). (3) Por fim, além de oferecer razões novas para que a fenomenologia se afaste da psicologia e de incrementar os seus argumentos contra o empirismo lato sensu e o positivismo, a έπολή transcendental nos permite ver outras características positivas do método husserliano adquiridas em sua nova formulação. Uma delas é a sua forte relação com o racionalismo de tipo cartesiano, a qual será um dos temas principais de uma obra que nos serviu bastante até então, as Pariser Vorträge, bem como de outra, mais relevante e gestada na mesma época, as Cartesianische Meditationen. Nestas, a fenomenologia é mostrada como um método que assume o espírito cartesiano de fundação absoluta e intocada por pressupostos e busca exercê-lo de maneira ainda mais conseqüente e precisa que o próprio Descartes teria feito, uma vez que despiria o esforço de compreensão do 323

pensamento – ou, em termos próprios à fenomenologia – da consciência, das preocupações realistas que teriam perturbado o curso das Meditationes de Prima Philosophia (1641) A via cartesiana mostraria de maneira adequada o percurso correto para toda reflexão filosófica de rigor – i.e., um voltar-se do pensamento a si mesmo, prescindindo de qualquer referência positiva ao mundo externo, para que o próprio pensamento seja criteriosamente analisado e uma cadeia de idéias claras e distintas, válidas a priori e puramente racionais, possa ser construída a partir da obtenção de uma verdade fundamental de mesmo caráter. Entretanto, é exatamente após a obtenção da primeira dentre todas as idéias claras e distintas apontadas nas meditações de Descartes – i.e., a evidência do ego cogito –, que Husserl inicia as suas críticas, afirmando que o filósofo, apesar de chegar às portas da filosofia transcendental por reconhecer a plena evidência de uma unidade ideal de todos os atos de pensamento, um sujeito ao qual todos estes atos podem ser remontados e do qual são desempenhos, cede a um nefasto preconceito realista ao dar início à busca por outras realidades formais que não a do próprio pensamento, tendo em vista escapar ao solipsismo e provar a existência de um mundo externo. De acordo com Husserl (1929/2010b), é exatamente no momento em que Descartes realiza a sua primeira descoberta decisiva que ele comete o erro capital de se orientar por preconceitos realistas, pervertendo o caminho verdadeiramente promissor para a sua filosofia – i.e., uma exegese das diferentes formas pelas quais aquele eu desempenha seus atos –, e dando origem ao “[...] contra-senso [...] do Realismo Transcendental” (p. 72). Diante da constatação da evidência do ego cogito, portanto, o que Descartes deveria ter feito é uma análise filosófica das diferentes maneiras pelas quais este sujeito a priori visa intencionalmente diferentes objetos, travando com eles relações significativas. Em termos estritos, uma análise de como cada cogito visa o cogitatum que, por razões de essência, lhe é correlato. A tarefa basilar da filosofia seria, portanto, o desenvolvimento de uma ‘egologia’, ou uma ciência descritiva das estruturas essenciais do ego150. E a fenomenologia assumiria para si esta tarefa.

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O acompanhamento da argumentação de Husserl mostrará a necessidade de ela se dar ainda no seio do solipsismo, pois a exegese dos atos intencionais realizados pelo ego cogito ocorre antes de qualquer pretensão de superar a aparente redução da realidade ao subjectum. A egologia, portanto, seria uma ciência solipsísticotranscendental. Isto, contudo, não representa um verdadeiro problema para a filosofia de Husserl, posto que tal solipsismo será superado posteriormente pela fenomenologia da intersubjetividade, na qual, a partir de atos perceptivos mais fundamentais, a consciência adquire conhecimento de outra vida intencional além da própria (HUSSERL, 1929/2010a, p. 43).

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Não nos interessa considerar aqui nada além destas afirmações iniciais de Husserl acerca da pertinência da via cartesiana e da maneira como ela poderia ser corrigida e mais adequadamente explorada. Interessa-nos apenas marcar que os desenvolvimentos da fenomenologia enquanto filosofia transcendental fazem com que ela assuma para si referências inteiramente distintas daquelas referências psicológico-descritivas de sua primeira formulação. É de considerável importância para este estudo que tenhamos clareza do fato de que o vínculo da fenomenologia com a psicologia não tarda a ser considerado um erro pelo próprio Husserl, que não cuidará apenas de dizer que o seu esforço não se identifica mais a nada como uma psicologia descritiva, mas que ele também se afasta, por questões de princípio, de toda espécie de psicologia e que a sua definição legítima torna ainda mais estreita a relação do método com a compreensão da filosofia no pensamento moderno – com seu enfático interesse gnosiológico, suas radicais pretensões de fundamentação do pensamento e uma visão tão pouco generosa dos aspectos mais concretos e mundanos de qualquer problema intelectual. A crítica a cada vez renovada do empirismo e do positivismo, agora condenáveis também por não compreenderem a relevância da έπολή para a filosofia, não é índice de outra coisa. É possível afirmar, portanto, que a partir destas referências encontramos na fenomenologia de Husserl: (1) uma caracterização da psicologia como uma ciência factual e real, ignorante do problema radical implicado pelo estudo das propriedades essenciais de fenômenos transcendentalmente reduzidos, bem como a afirmação de que ela se encontra em uma condição dependente da fenomenologia, no que tange à clarificação última de seus princípios; (2) uma evicção sumária da ênfase empirista e positivista na facticidade, que subtrai da intuição seu papel decisivo na elaboração de uma filosofia de rigor e conduz a embaraços na fundamentação dos próprios princípios metodológicos que orientariam toda empresa cognitiva; (3) uma adoção do modelo racionalista cartesiano de filosofia e uma pretensão de exercê-lo com maior gravidade que seu próprio criador, contornando os seus prejuízos realistas e afirmando a necessidade de uma exegese filosófica dos modos do ego cogito cogitata.

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4.4. A estrutura da percepção: Após esta caracterização sumária do que é a fenomenologia husserliana, do sentido de experiência por ela tematizado e dos recursos descritivos por ela empregados para conhecer esta experiência, devemos considerar um dos mais fundamentais exemplos de análise fenomenológica oferecido por Husserl, o qual nos trará importantes informações para pensarmos sua relação com a teoria da experiência no gestaltismo: a fenomenologia do ato perceptivo. É certo que obras inteiras do pensador foram dedicadas especialmente a este tema, como as já citadas preleções Ding und Raum, mas podemos encontrá-lo também de outra maneira, uma vez que ele constitui uma etapa relevante de muitos argumentos centrais em todas as obras fundamentais da fenomenologia. Muitos conceitos desta filosofia, com efeito, são apresentados por meio de certa consideração da percepção, como já pudemos ver nas descrições dos diferentes tipos de vivências e das atitudes natural e fenomenológica. As vivências, em sua distinção entre vivências reais e intencionais, são habitualmente apresentadas por meio da distinção entre sensações e objeto percebido. As atitudes, por meio de um contraste entre o mundo circundante natural, composto por entidades espaço-temporais percebidas como externas a nós, e o mundo como correlato objetivo necessário da consciência transcendental, destituído desta afirmação de existência. Nossas seções anteriores, bem como as citações de Husserl que nelas recuperamos, podem atestar essa relevância com facilidade. A estas ainda pode se juntar a Quinta Investigação Lógica, na qual vimos algumas peculiaridades do conceito husserliano de sensação, que o afastam dos conceitos de Fechner e Mach, além de mostrarem uma relação peculiar do mesmo com a abstração. Cumpre que consideremos, portanto, como o último tema relevante deste capítulo, as teses básicas da fenomenologia acerca da percepção, o que faremos, basicamente, por meio da interpretação husserliana da distinção entre percepção externa e interna, já presentes em Brentano.

4.4.1. A percepção transcendente: A percepção surge como o ato fundamental para a descrição da vida intencional, pois, como afirma Husserl (1901/2007) em adesão à tese de Brentano: “[...] cada ato ou é

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uma representação ou tem representações por base.” (p. 375)151. Por meio da percepção, temos a mais recorrente das duas possibilidades de intuição descritas por Husserl, aquela em que estamos em trato direto com os objetos visados, em que somos capazes de apreendê-los in propria persona, ou, como também dirá o pensador, em sua ipseidade de carne e osso (leibhaftig). Há que se notar que, ao contrário da outra forma de intuição prevista, a intuição eidética, no ato perceptivo, visamos objetualidades que se dão por perfis, havendo sempre uma dinâmica de presença e ausência intrínseca ao aparecimento de seu correlato. Ao contrário da apreensão de uma essência, que não permite defasagens, a apreensão de um objeto perceptivo é sempre defasada, posto que pressupõe a chamada estrutura do ‘adumbramento’ (Abschattung), que divide o conteúdo visado em um conjunto de aspectos manifestos e outro de aspectos presumidos, a identidade do objeto resultando da síntese destes dois. Dizer que algo obedece a esta estrutura é dizer que este algo se dá à nossa experiência por perfis e que vivenciamos sempre menos do que visamos em seu aparecimento – ou ainda, que o presentemente dado é menos do que o sentido geral que podemos atribuir à experiência, este sempre o sentido de um objeto unitário, pleno. Deste modo, devemos ver como isto ocorre neste primeiro tipo de percepção descrito por Husserl, a ‘percepção transcendente’, que se volta a objetos exteriores, normalmente extensos, espaço-temporalmente situados. A descrição fenomenológica da percepção transcendente estabelece que, por razões de essência, este modo específico de experiência é sempre perspectiva. Uma vez que o tipo de objeto por ela visado é um objeto extenso, dotado das três dimensões que sabemos serem próprias a toda matéria, temos que esta mesma condição extensa nos impõe uma restrição incontornável no que diz respeito à possibilidade de termos pleno acesso intuitivo àquilo que caracteriza o objeto, às suas qualidades sensíveis. Em função de nossa disposição espaço-temporal relativamente ao próprio objeto, sempre o percebemos a partir de certo conjunto limitado de perfis, que se nos mostram de maneira direta, ao mesmo tempo em que outros de seus perfis se ocultam à nossa apreensão. Isto quer dizer: se observamos um objeto em uma posição específica, temos intuitivamente dados alguns perfis, assim como temos ocultos outros perfis que a nossa perspectiva presente não nos permite visar. 151

É importante salientar que a maneira como Husserl assume esta tese não é inteiramente condizente com a maneira brentaniana, pois, como já tivemos condições de ver, a compreensão de intencionalidade de ambos é consideravelmente diferente. Para um tratamento sistemático deste problema, remetemos a Madureira (2008).

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Mudando a posição do próprio objeto ou do observador, poderão se tornar ausentes aqueles mesmos perfis que eram diretamente dados havia pouco, trazendo à atualidade, neste mesmo movimento, algo dos perfis que antes estavam inacessíveis. Esta dinâmica permite incontáveis formas de se avaliar o objeto extenso, mas nunca uma forma privilegiada que abarque todos os seus perfis possíveis e subtraia do próprio perceber a defasagem que a situação espaço-temporal instaura. A intuição perceptiva nunca é adequada, portanto. Ser desta maneira imperfeita in infinitum faz parte da essência insuprimível da correlação entre coisa e percepção de coisa. Se o sentido da coisa se determina pelos dados da percepção de coisa [...], então ele exige tal imperfeição, ele nos remete necessariamente a nexos contínuos de unidade de percepções possíveis, que de maneira sistemática e firmemente regrada vão, de algumas direções já tomadas, em infinitas direções, cada uma das quais estendendo-se ao infinito, mas sempre dominadas por uma unidade de sentido. Sempre resta, por princípio, um horizonte de indeterminidade determinável, por mais que tenhamos progredido na experiência, por maiores que sejam os contínuos de percepções atuais da mesma coisa que tenhamos percorrido. (HUSSERL, 1913/2006, p. 104)

Além daquilo que se dá à consciência de forma atual – i.e., dos perfis intuídos – há uma ampla margem de percepções possíveis, referentes a perfis que, a despeito de sua inatualidade, são igualmente constitutivos do percebido, sendo intencionados precisamente em sua ausência. A este modo de intencionar perfis objetais, Husserl chama ‘co-intuir’ (mitschauen) ou ‘co-intencionar’ (mitmeinen). Podemos entender precisamente o que se quer dizer aqui ao vermos que em toda percepção transcendente, temos consciência de perceber objetos inteiros, tridimensionais, que possuem aspectos que não conhecemos de pronto e simplesmente não temos condições de conhecer sem que uma perspectiva mais favorável seja assumida. Não tomamos os objetos percebidos como imagens bidimensionais que nada têm em si além do que podemos presentemente avaliar. Deste modo, toda percepção transcendente é uma mistura de dados intuitivos e de antecipações perceptivas que servem de base para que a consciência opere uma ‘síntese de identidade’, a qual nos permite entender as múltiplas aparições do objeto como referentes a um só e mesmo objeto. Na percepção, portanto, temos consciência de um objeto a partir de uma simples sucessão de impressões sensíveis parciais. Sokolowski (2004) comenta esta descrição a partir do exemplo da percepção de um cubo: É essencial para a experiência de um cubo que a percepção seja parcial, com apenas uma parte do objeto sendo diretamente dada a cada momento.

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Contudo, não é o caso de que somente experienciamos os lados que são visíveis desde nosso ponto de vista presente. Como vemos aqueles lados, também intencionamos, co-intencionamos, os lados que estão escondidos [...]. Os lados presentemente visíveis estão envolvidos por um halo de lados potencialmente visíveis, mas realmente ausentes. Estes outros lados são dados, mas dados precisamente como ausentes. (p. 25)

Outro exemplo oportuno fornecido pelo autor é o de uma fala contínua, como uma frase, que sempre pressupõe, em qualquer um de seus momentos que não o inicial, aquilo que já fora dito antes para ser bem compreendida. Tal compreensão é estritamente dependente desta conjugação entre elementos presentes e elementos ausentes – ou entre elementos intuídos e elementos co-intencionados. Com efeito, é esta correlação intrínseca entre a atualidade e a potencialidade da experiência que Husserl (1929/2010a, p. 29) busca postular. Nas Ideen, o pensador afirma: É da conformação própria de certas categorias eidéticas que suas essências só possam ser dadas por um lado e, subseqüentemente, ‘por vários lados’, jamais, porém, ‘por todos os lados’; correlativamente, as singularizações individuais a elas correspondentes só podem, portanto, ser experimentadas e representadas em intuições empíricas inadequadas, ‘unilaterais’. Isso vale para toda essência referente a coisa, ou seja, para toda essência que a ela se refira segundo qualquer um dos componentes eidéticos da extensão ou da materialidade [...]. (HUSSERL, 1913/2006, p. 36)

O exemplo mais imediatamente acessível destas categorias eidéitcas é justamente o do objeto extenso, visado por percepção transcendente. A ele se aplica esta exigência de essência que faz com que o acesso ao que ele é se torne possível apenas por meio de perspectiva. A identidade visada em meio à sucessão de perfis de um objeto pode ser legitimamente considerada uma transcendência, precisamente por ser o núcleo estável que se preserva a despeito do quão díspares possam ser as maneiras circunstanciais pelas quais ele é intencionado. Podemos ter, nas condições presentes, experiências a cada vez distintas e que nos comunicam apenas dados parciais, que não equivalem aos dados que podemos acessar a partir de uma outra perspectiva do objeto. Ainda que nas Ideen Husserl faça também abstração do tempo como função constitutiva da experiência, como já dissemos ocorrer antes, o pensador nos indica que o curso das vivências sucessivas pelas quais os objetos nos são dados é também relevante para que compreendamos a contínua variação

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pela qual eles aparecem152. Deste modo, a coisa visada na percepção é uma constância ideal que transcende um fluxo potencialmente infinito de dados espacial e temporalmente diferenciados. Malgrado todo este movimento, a consciência repousa. Ela encontra abrigo em algo e este algo é precisamente o objeto, a coisa. Da consciência empírica de uma mesma coisa, que abrange ‘todos os aspectos’ desta e se confirma em si mesma numa unidade contínua, faz parte, por necessidade de essência, um sistema multifacetado de contínuas diversidades de aparências e perfis, nas quais se exibem ou perfilam em continuidades determinadas todos os momentos objetivos que entram na percepção com o caráter daquilo que se dá a si mesmo em carne e osso. (HUSSERL, 1913/2006, p. 98)

Ainda outro aspecto importante da percepção transcendente – e que já não é mais função das objetualidades visadas e sim do próprio ato que visa – é a distinção naturalmente estabelecida por ela em relação à clareza e ao destacamento dos seus conteúdos. Em toda percepção, temos uma divisão do campo perceptivo em uma série de conteúdos marginais, secundários, qualitativamente mais imprecisos, menos definidos, e outra série de conteúdos que se destacam em relação a estes, apresentando a precisão e a definição qualitativa que lhes faltam, impondo-se como conteúdos preponderantes no campo como um todo. Em um raciocínio consideravelmente similar àquele de Stumpf, o qual distingue entre um primeiro plano e um plano de fundo no campo perceptivo, Husserl chama estes conteúdos mais destacados de ‘tema’ (Thema) e os conteúdos periféricos de ‘horizonte’ (Horizont). Ele os descreve a partir de certo caráter de apreensão que toda cogitatio perceptiva assume ao visar o seu cogitatum: O apreender [das Erfassen] é um destacar, todo percebido se dá sobre um fundo de experiência [Erfahrungshintergrund]. Em torno ao papel estão livros, canetas, tinteiro etc., de certo modo também ‘percebidos’, perspectivamente ali, no ‘campo intuitivo’ [Anschauungsfelde], mas enquanto se está voltado para o papel, não há nenhuma apreensão, mesmo secundária, voltada para eles. Eles apareciam e, não obstante, não eram realçados, postos por si. Toda percepção de coisa tem, assim, um halo de intuições de fundo (ou de visões de fundo, caso já se compreenda no intuir o ‘estar-voltado-para’), e este também é um ‘vivido de consciência’ ou, mais brevemente, ‘consciência’, e mesmo consciência ‘de’ tudo aquilo que está de fato contido no ‘fundo’ objetivo co-intuído. (HUSSERL, 1913/2006, p. 87)

152

“A percepção mesma, porém, é o que é no fluxo constante da consciência, e ela é ela mesma um fluxo constante: o agora da percepção se converte sem cessar na consciência subseqüente de um passado recente, e ao mesmo tempo um novo agora já desponta etc.” (HUSSERL, 1913/2006, p. 98)

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Ao lado da necessidade de se visar os objetos extensos por perspectiva, portanto, há uma característica do próprio ato que faz de seus dados ora mais destacados, ora menos. No próprio dar-se da percepção, existe uma função apreensiva que se encarrega de fazer com que aquela divisão se instaure, mas que se encontra também sob domínio do próprio sujeito de experiência, na medida em que ela pode dirigir um tal olhar apreensivo para objetos que não se encontravam antes cobertos por ele. A relação de destacamento de algo a partir do retraimento de outro algo se altera, deste modo. O que antes era tema, ou campo intuitivo, pode vir a se tornar horizonte, ou fundo co-intuído. Se antes encontramos maneiras pelas quais a intuição plena do objeto escapa em função de seu dar-se por perfis, aqui encontramos que, a despeito da manutenção de uma dada perspectiva, diferentes visadas de um objeto se possibilitam de acordo com o foco apreensivo a ele dirigido. Como ainda afirma o pensador: “Trata-se, exclusivamente, do halo de consciência inerente à essência de uma percepção efetuada no modo do ‘estar voltado para o objeto’ e, mais ainda, daquilo que está contido na própria essência desse halo mesmo.” (HUSSERL, 1913/2006, p. 87). É certo que Husserl busca mostrar aqui uma característica essencial de todo ato possível e não apenas da percepção transcendente153. O que ele faz, no entanto, é introduzir a consideração desta característica por meio do exame da percepção, repetindo o movimento que citamos no início desta seção. Não será difícil de notar, neste ponto de nosso estudo, certa proximidade entre a estrutura fenomenológica de tema e horizonte e a estrutura gestaltista de figura e fundo, ainda que aqui se trate claramente de uma função

153

“Tudo o que apresentamos sobre vividos de percepção vale manifestamente para [...] vividos por essência distintos. [...] Reconhecemos então mais uma vez que faz parte da essência de todos esses vividos – eles mesmos sempre tomados em plena concreção – aquela notável modificação que converte a consciência no modo do ‘estar voltado para’ atual para a consciência no modo da inatualidade, e vice-versa. O vivido é, por assim dizer, ora consciência ‘explícita’, ora consciência implícita, meramente potencial, de seu objeto. O objeto pode nos aparecer também já na recordação e na imaginação, tal como na percepção, mas ainda não estamos com o olhar do espírito ‘dirigido’ para ele, nem mesmo secundariamente, e tampouco dele nos ‘ocupamos’ em sentido particular. Constatamos algo semelhante em quaisquer cogitationes que tomemos da esfera dos exemplos cartesianos, nos vividos do pensar, do sentir e do querer, só que, como se mostrará [...], diferentemente do eu ocorre nos exemplos privilegiados, porque mais simples, das representações sensíveis, o ‘estar dirigido para’, o ‘estar voltado para’, que distingue a atualidade, não coincide com a atenção que apreende destacando os objetos da consciência. De todos esses vividos também é manifestamente válido que os atuais estão circundados por um ‘halo’ de vividos inatuais, o fluxo de vivido jamais pode consistir de puras atualidades.” (HUSSERL, 1913/2006, p. 88)

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subjetiva, e não objetiva, como pretendem ser todos os fatores da Gestalt154. Mais uma vez, voltaremos a isto em nosso capítulo conclusivo.

4.4.2. A percepção imanente: Consideremos agora a percepção imanente. Desde as Logische Untersuchungen, sabemos ser de suma importância para a fenomenologia a realização de uma inspeção da atividade intencional que assuma uma direção contranatural, i.e., que se atenha aos processos conscientes que não são imediatamente dados quando experimentamos qualquer coisa, quando sustentamos atitude de simples consumação dos atos, própria ao observador ordinário. Da mesma forma que a psicologia brentaniana, a fenomenologia é uma reflexão acerca de atos, o que se preserva nesta sua nova formulação. Nas palavras de Husserl (1913/2006): [...] vivendo no cogito, não temos a própria cogitatio conscientemente como objeto intencional; ela pode, porém, se tornar tal a qualquer momento, faz parte de sua essência a possibilidade de princípio que o olhar se volte ‘reflexivamente’ para ela e isso, naturalmente, na forma de uma nova cogitatio, que se direciona para ela à maneira de uma cogitatio apreensiva. Noutras palavras, toda cogitatio pode se tornar objeto de uma assim chamada ‘percepção interna’ e então, posteriormente, objeto de uma valoração reflexiva [...]. (p. 92)

Em vez de simplesmente admitirmos o direcionar-se da consciência a certo objeto e fazermos experiência deste objeto, voltamos o nosso esforço ao próprio ato que o visa, tornando-o objeto de uma apreensão e de uma reflexão específicas. Este movimento é precisamente a percepção imanente. Ao tematizar uma experiência qualquer, o que ela visa não são os objetos transcendentes ao fluxo de vivências que surgiram como correlatos daquela experiência, mas sim os componentes imanentes, reais (reelle) mobilizados por ela e que possibilitaram este mesmo visar. Quando, e.g., nos recordamos de determinada coisa e decidimos tomar este recordar como objeto de contemplação, procedemos a uma percepção imanente deste ato, a qual poderá servir de base para operarmos as reduções já descritas e realizarmos um estudo fenomenológico da recordação. O ato analisado se torna objeto intencional para outro ato, portanto, que é o de percepção imanente. O mesmo se dá para todo outro tipo de ato possível, sendo a vida intencional sondável em sua plenitude por 154

No que há também proximidade de Stumpf, uma vez que a distinção deste se refere à função psíquica operada, e não ao aparecimento que lhe corresponde.

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esta atividade perceptual específica. Esta conjunção dos atos faz com que a percepção imanente componha uma só cogitatio concreta com o ato analisado. Se a percepção transcendente não guarda em si mesma o seu objeto, mas, como o seu próprio nome sugere, visa-o como algo que se encontra lá fora, em outro lugar que não a própria instância que realiza o ato de percepção, o objeto da percepção imanente, por ser ele mesmo um ato, compõe com ela um todo indissolúvel, podendo apenas ser abstraído deste, mas nunca separado. O ato visado pela percepção imanente, portanto, é um momento desta mesma percepção. Husserl (1913/2006) sumariza a distinção entre percepção imanente e transcendente da seguinte maneira: Por atos dirigidos à imanência ou, de maneira mais geral, por vividos intencionais referidos à imanência, entendemos aqueles da essência dos quais faz parte que os seus objetos intencionais, no caso de existirem, pertencem ao mesmo fluxo de vivido que eles mesmos. Isso é, portanto, correto, por exemplo, em toda parte onde um ato seja referido a um ato (uma cogitatio a uma cogitatio) do mesmo eu [...]. Direcionados para a transcendência são os vividos intencionais em que isso não ocorre; como, por exemplo, todos atos dirigidos para essências ou para vividos intencionais de outros eus com seus fluxos de vivido; da mesma maneira, todos os atos dirigidos a coisas, a realidades em geral [...]. (p. 92 e 93)

Tanto nas Logische Untersuchungen, quanto nas Ideen, Husserl apresenta certo otimismo em relação a esta forma de experiência perceptiva, estando ainda próximo ao pensamento de Brentano155. Ele afirma que, à diferença da percepção transcendente, a imanente, por não ter seu objeto dado por perfis, não sofreria de nenhuma defasagem em sua apreensão. Nas próprias Ideen, ao ressaltar esta doação absoluta do visado em percepção interna, ele afirma: Toda percepção imanente garante necessariamente a existência de seu objeto. Se a apreensão reflexiva se dirige a meu vivido, apreendi um ‘algo ele mesmo’ absoluto, cuja existência não pode por princípio ser negada, ou seja, é impossível por princípio a evidência de que ele não seja; seria um contrasenso; tomar por possível que um vivido assim dado na verdade não seja. Por maior que seja a extensão inapreensível do fluxo de vividos, do meu fluxo de vividos, isto é, do pensante, por desconhecido que ele seja nos trechos já transcorridos ou por vir, assim que dirijo meu olhar para a vida fluindo em seu presente efetivo e nela apreendo a mim mesmo como o puro sujeito desta 155

Registre-se aqui que não estamos afirmando uma plena incorporação do conceito brentaniano à fenomenologia. Na própria Quinta Investigação, Husserl (1901/2007, p. 401) deixa claro que tem restrições à formulação de seu mestre. Não tematizaremos estas restrições aqui, mas cremos ser importante assinalar a sua existência. Deste modo, ficará mais claro que estamos nos referindo acima apenas à manutenção da idéia de que a percepção interna é marcada pela auto-evidência.

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vida [...], eu digo de maneira cabal e necessária: eu sou, esta vida é, eu vivo: cogito. (HUSSERL, 1913/2006, p. 108)

Parece-nos inteiramente possível identificar nesta reivindicação um eco daquela propriedade conferida por Brentano aos fenômenos psíquicos, segundo a qual estes sempre estariam certos de uma existência real de seus objetos, além da existência especificamente intencional. Mutatis mutandis, trata-se de assegurar que a volta reflexiva da consciência sobre si mesma permite incondicional certeza acerca do dar-se de um dado, não podendo nunca haver auto-engano ou qualquer possibilidade de ilusão aí. À diferença da percepção transcendente, que, por princípio, deixa-nos em contato com objetos que nunca se dão como um absoluto, mas sim como unidades ideais presumidas a partir de perfis contingentemente visados, a percepção imanente sempre visa um absoluto. E isto permite que ela seja uma percepção adequada, assegurando-se aqui o mesmo privilégio epistêmico que Brentano assegurara à sua psicologia156. Na Quinta Investigação, tal como apresentada na segunda edição das Logische Untersuchungen, marcada pela nova definição de fenomenologia, Husserl (1901/2007) afirma: Toda e qualquer percepção é caracterizada pela intenção de captar o seu objeto como presente na sua ipseidade em carne e osso. A esta intenção corresponde com uma perfeição assinalável a percepção, ela é adequada quando o objeto em si próprio, efetivamente e no sentido mais estrito, está presente ‘em carne e osso’, é captado sem resto naquilo que ele mesmo é, por conseguinte, quando está realmente [reell] incluído no próprio percepcionar. Com isto, torna-se compreensível e mesmo evidente, a partir da essência pura da percepção, que a percepção adequada é apenas percepção ‘interna’ [...]. (p. 386 e 387)

Se na avaliação das técnicas descritivas encontramos as formas como a fenomenologia depura o dado que visa analisar tanto de suas contingências, quanto de seu caráter de realidade, aqui, vemos algo sumamente relevante também a nível metodológico: a maneira mesma como a fenomenologia acessa o dado que passará por aquele tratamento.

156

Em obra tardia, no entanto, Husserl modifica esta sua posição. Nas Cartesianische Meditationen, o filósofo afirmará que o dar-se do objeto de percepção interna e o próprio ato de percepção ocorrem em um mesmo fluxo temporal imanente à consciência, o que abre precedentes para que a defasagem nesta forma apreensão seja considerada. Não é conveniente que entremos em detalhes sobre esta diferença, contudo.

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4.4.3. Algumas considerações acerca da relação da percepção com outros atos: Resta-nos, após mostrarmos as duas faces do ato perceptivo e suas determinações essenciais, considerar brevemente a idéia de que a percepção é primária e muitas outras formas de experiência têm nela a sua condição de possibilidade. Mencionaremos, a título de ilustração desta tese, alguns dos atos que nos são possíveis e a relação que eles travam com a percepção. Em atos de rememoração, e.g., temos não tanto ‘imagens mentais’ que ocupam o lugar de objeto da experiência, mas sim um visar das próprias percepções e vivências que outrora nos puseram em contato com o objeto tematizado pela nossa lembrança atual. O ato incide exatamente sobre o já percebido, não precisando, para ser compreendido, de nenhum objeto de tipo próprio, como seria o caso de uma imagem mental, supostamente constituída pela própria rememoração para substituir o objeto que não mais percebo, mas ao qual quero fazer referência. Em vez disto, viso, pela lembrança, a mesma identidade antes intuitivamente acessível, bem como todo um conjunto de experiências pretéritas em que seu aparecimento se deu, posicionando o mesmo objeto a partir de uma crença imediata em seu ‘ter-sido’. De maneira análoga, nos atos de imaginação, opero composições, decomposições e combinações diversas, mais ou menos comprometidas com a realidade, em algo antes percebido diretamente, posicionando este objeto a partir de uma crença imediata em seu ‘poder-ser’ algo outro (SOKOLOWSKI, 2004, p. 80). Ainda, nos atos judicativos, tenho sempre a percepção dos elementos evocados em um juízo para que, posteriormente, possa uni-los para construir objetos categoriais, necessariamente fundados em objetos perceptivos mais elementares. Se desejamos afirmar por meio de um juízo a pertinência de uma propriedade a uma substância, criando um estado de coisas que obedeça à fórmula “S é P”, e.g., é porque temos experiências mais fundamentais, de ordem sensível, destes mesmos elementos evocados no juízo, a saber a substância e a propriedade, ou o sujeito e o predicado. A partir de uma síntese promovida pela própria consciência judicativa, criamos o estado de coisas como um objeto categorial, derivado diretamente de objetos perceptuais.

4.5. Conclusão: Terminado nosso percurso neste capítulo, cabe que façamos aqui um pequeno balanço, como fizemos nos capítulos anteriores. Nossa apresentação da fenomenologia de

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Edmund Husserl buscou partir dos problemas apresentados pelo pensador no primeiro volume das Logische Untersuchungen, concernentes à intromissão de teses psicológicas – tanto experimentais, quanto descritivas – em campos científicos formais, tendo em vista fundamentar empiricamente estes mesmos campos. Por meio de uma breve consideração das razões pelas quais Husserl via estas pretensões como ilegítimas – em suma, a perda da necessidade e o constante risco de relativismo cético –, vimos como o volume subseqüente da obra introduziu uma fenomenologia psicológico-descritiva como o piso teórico fundamental para compreendermos o que é a lógica pura e a teoria do conhecimento, uma vez que descreveria, sem comprometimentos teóricos, as vivências fundamentais da consciência que nos possibilitariam ordenar aqueles campos de conhecimento. Acompanhamos o desenvolvimento de alguns dos temas relevantes desta investigação, como a postulação de uma doutrina de partes e todos acerca dos conteúdos da consciência; a especificação do conceito de vivência e suas subdivisões; o exame de conceitos psicológicos de consciência, dentre os quais se encontra o conceito que interessava à fenomenologia desenvolver, aquele de consciência como sede de atos intencionais. Passamos às técnicas descritivas da fenomenologia, as quais nos possibilitam uma redução do fenômeno à sua essência, bem como à condição de unidade de sentido transcendentalmente purificada. Por meio desta segunda redução, compreendemos em linhas gerais uma viragem teórica consideravelmente importante da fenomenologia, formalmente introduzida nas Ideen, que definiria o método como filosofia transcendental e reorganizaria totalmente as suas relações com a psicologia, bem como enriqueceria os seus vínculos com o pensamento moderno. Por fim, tivemos condição de avaliar a maneira como ela compreende a experiência perceptiva, bem como alguns pequenos exemplos sua importância para a experiência intencional como um todo.

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Capítulo V Sobre as Relações entre Gestalttheorie e Fenomenologia Consideradas algumas idéias relevantes das psicologias experimental e descritiva para situarmos o advento da Gestalttheorie berlinense e da fenomenologia husserliana, consideradas as propostas metodológicas e teóricas básicas de ambas as escolas, devemos, neste capítulo final de nosso estudo, que serve tanto de desenvolvimento para a nossa argumentação própria quanto de conclusão, contrastá-las para delimitarmos melhor aquelas que nos parecem ser as condições gerais de sua inter-relação.

5.1. Exame geral das relações: A partir da interpretação de ambas as escolas que desenvolvemos até aqui, parecenos possível explicitar sete critérios pelos quais a aproximação ou o afastamento das escolas pode ser, em linhas gerais, examinado. Tanto a enumeração dos critérios, quanto sua avaliação não têm pretensão à exaustividade, mas apenas à exposição daquilo que nos surge como passível de ser consistentemente asserido a partir da literatura primária. Os sete critérios são: (1) a posição de ambas as escolas perante a concepção positiva de ciência; (2) a autonomia de suas descrições e as conseqüências de sua radicalização; (3) os recursos técnicos por elas empregados neste procedimento; (4) a compreensão geral da estrutura da consciência por elas defendida; (5) a relevância geral da percepção para cada corpo teórico e como eles tematizam o caráter diferencial desta forma de experiência; (6) a concretude e a ingenuidade almejadas pelo seu esforço descritivo; e, por fim, (7) a função geral da mereologia em seus estudos. Consideremos cada um destes cirtérios individualmente.

5.1.1. Posição perante a ciência positiva: No que se refere à maneira como as escolas lidam com a ciência positiva, não poderíamos encontrar maiores disparidades. Como vimos amplamente, o gestaltismo é um projeto psicológico que busca se opor a certa maneira de se compreender a experiência imediata, defendida pelas psicologias mais antigas e que não faria senão importar para aquela compreensão uma série de pressupostos das ciências naturais, crendo ser possível

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operar nos processos fenomenais o mesmo tipo de corte operado em eventos físicos, a saber, aquele entre unidades materiais irredutíveis e princípios de inter-relação. O simples fato de se opor a uma visão científica da experiência, marcada pela admissão de teses também científicas, ainda que oriundas de outros domínios de investigação, não faz de modo algum com que o gestaltismo pretenda desenvolver as suas teses fora da ciência. Por mais que ele busque conferir certa autonomia à experiência e abordá-la de modo inicialmente compreensivo e qualitativo, esta postura, como já sabemos, tem por interesse melhor orientar a construção de hipóteses explicativas, as quais teriam apenas a vantagem de serem mais próximas do que é vivido e não um retrato irreconhecível e que desfigura o que nos é dado em perspectiva ingênua. Como já dissemos, o interesse é encontrar uma forma de sanar a fissura habitualmente existente entre ciência e vida, de modo a fazer com que ambas componham uma unidade e falem uma mesma linguagem. A compreensão do dado imediato é enriquecida pelo estudo das condições objetivas que o permitem ser como é, sejam estas condições de ordem física – como a mensuração das distâncias entre estímulos e do tempo transcorrido entre as suas emissões, nos Experimentelle Studien –, sejam fisiológicas – como a hipótese do curto-circuito cerebral aventada no mesmo estudo ou como a defesa explícita, por Köhler, do exame de fatos de dependência funcional e dos princípios isomórficos entre processo nervoso e experiência. O gestaltismo, deste modo, é uma psicologia estritamente comprometida com um modelo experimental de estudos, um modelo positivo, que busca avaliar, pela manipulação das condições de sucessão de um determinado fenômeno, os vínculos causais efetivamente existentes entre aquelas condições e suas expressões fenomenais correlatas, recorrendo, quando possível, à matematização direta destas mesmas relações. Quando não, a criação de situações-problema, a separação de participantes em grupos amostrais, a análise quantitativa dos padrões de resposta etc. mostram que outros recursos positivos são empregados no interesse de assegurar a cientificidade dos estudos conduzidos157. De resto, todo o desenvolvimento da escola pelos campos da física e da fisiologia já o mostram de maneira bastante óbvia.

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Apesar de parecer banal afirmar a condição de ciência positiva do gestaltismo, encontramos ainda hoje trabalhos relevantes na literatura secundária que buscam fazê-lo, como o artigo Receptions, readings and interpretations of Gestaltpsychologie, de Fiorenza Toccafondi (2002), em contraposição a interpretações que negligenciam esta característica e buscam ressaltar o lado filosófico da escola – como faz Merleau-Ponty em Phénoménologie de la Perception.

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No que se refere à fenomenologia, no entanto, a posição é inteiramente outra. Como vimos na exposição da metodologia das Logische Untersuchungen, o interesse maior do fenomenólogo se dirige aos atos realizados pela consciência, e não aos seus correlatos objetivos, tematizando aqueles de maneira puramente compreensiva, intuitiva, reduzindo-os à simples condição de dado e deixando inteiramente fora do escopo de análise a sua referência a efetividades físicas. Não há lugar aqui, evidentemente, para qualquer recurso positivo de investigação, uma vez que o pensamento causal, a elaboração de teorias e a passagem para âmbitos exteriores à experiência não podem ocorrer. Após a virada transcendental das Ideen, esta posição será ainda radicalizada, de modo a encontrarmos a afirmação de que a consideração do dado como transcendente à experiência é uma tese inerente ao curso da consciência natural, a qual deve ser vista, compreendida como tal, e posta entre parênteses, uma vez que compromete o exame efetivo dos fenômenos, decidindo de maneira irrefletida acerca de seu estatuto metafísico. Não apenas a tese deve ser sustada do estudo fenomenológico, mas devem ser igualmente sustadas todas as informações passíveis de serem empregadas neste estudo e que possam ter algum comprometimento, por remoto que seja, com a tese. Caem, deste modo, todas as ciências positivas, uma vez que são ciências de realidades e que desejam, em última instância, coordenar o que conhecem acerca de nichos específicos da natureza na omnitudo realitatis que é o mundo ele mesmo. Além disto, como pudemos ver em nossa seção dedicada ao idealismo fenomenológico, esta nova fase do pensamento de Husserl mostra novas razões para afastar o empirismo e o positivismo, identificando neles um esforço de suspensão de pressupostos que acaba se mostrando débil e abrindo espaço para decisões dogmáticas, que colocam o fato sensivelmente apreendido na condição de ponto de partida necessário para toda empresa de conhecimento, reduzem intuições de essência a intuições empíricas e traem o próprio fenômeno ao buscarem explicação para ele – ao sacrificarem, como afirma Xirau, a sua ‘presença imediata’ em prol de sua ‘ausência recôndita’. A ciência positiva, deste modo, mostra-se inteiramente insatisfatória em termos teoréticos e assume pontos de partida e de orientação para a sua reflexão que a fenomenologia busca rechaçar. No que mostra a incompatibilidade com tais posições, a mesma discussão acerca do idealismo indica um caminho: a proximidade intensa da fenomenologia em relação à via cartesiana da investigação filosófica, a qual consiste no esforço contínuo de se compreender de maneira

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intuitiva as diferentes possibilidades do ego cogito cogitata. O distanciamento entre o pensamento de Husserl e o espírito positivo, deste modo, é radical. Neste primeiro critério de análise, temos que gestaltismo e fenomenologia se mostram severamente distintos ou mesmo antagônicos, o primeiro admitindo como parte legítima – e mesmo necessária – de suas atividades precisamente aquilo que a última entende ser estéril e destituído de valor cognitivo verdadeiro.

5.1.2. A autonomia da descrição e as conseqüências de sua radicalização: No que se refere à autonomia de ambos os procedimentos descritivos, temos também diferenças de peso, as quais já se encontram, de certo modo, indicadas no item acima. A descrição gestaltista é claramente apresentada como uma etapa no interior de um método mais amplo, um passo inicial, necessário para a correção do tratamento experimental inadequado antes conferido à consciência, mas cuja realização efetiva só se dá em uma explicação também experimental, que segue a descrição, sustenta e enriquece os seus contributos e contorna as suas insuficiências. Não se trata apenas de afirmar que o experimento é um novo modo de se referir ao que fora antes qualitativamente descrito, um mero acréscimo possível, mas sim de dizer que ele é implicado pelo passo inicial do estudo psicológico, uma vez que não é possível conhecer efetivamente a consciência fazendo apenas fenomenologia. Como vimos na argumentação de Köhler e Koffka, a fenomenologia nos orienta em problemas de princípio, diz perante o quê estamos, mostra-o em seu sentido imediato e vivo, diz-nos suas propriedades e, se feita de maneira criteriosa, desbanca teorias implausíveis e orienta a formulação de teorias mais fortes. No entanto, ela não oferece informações satisfatórias acerca da gênese do próprio fenômeno, tendo de ser articulada com os conhecimentos oriundos da anatomia, da fisiologia e da física para nos servir no intento de formular explicações satisfatórias para a sua emergência. O conhecimento da experiência apenas a partir de si mesma é um passo inicial e de todo relevante, mas não basta. Ela tem de ser vista de fora para ser inteiramente compreendida, para que possa ser formada a sua imagem mais plena. Isto nos revela com clareza que, no gestaltismo, há um movimento de mão dupla entre fenomenologia e experimento: a primeira permite que o segundo se aproxime da vida ingênua e a explique de maneira satisfatória; o segundo mostra precisamente a razão de ser da primeira e impede que as

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tantas questões que ela não pode responder permaneçam sem resposta. Eles formam uma totalidade que não pode ser dividida sem prejuízos consideráveis – a psicologia clássica mostra bem onde pode parar um tratamento experimental da consciência que não seja fenomenologicamente sustentado; a fenomenologia isolada não permite o conhecimento pleno da consciência. No pensamento de Husserl, por oposição, a descrição fenomenológica é uma tarefa sui generis e que não admite desvios, como já dissemos há pouco. Ela não apenas vê a consciência como um âmbito inteiramente independente no qual conduzir as suas análises, que não pode ser formalmente relacionado a nada além de si mesmo e que guarda em si um ser próprio, absoluto, mas também assevera que as descrições não podem conduzir a nada que não descrições e não podem se apoiar sobre nada que não descrições de seu tipo específico. Todo conhecimento oriundo de uma esfera não-fenomenológica de análises não pode ocupar lugar algum aqui. Ele cai sob as reduções praticadas pelo fenomenólogo em qualquer um dos momentos do pensamento de Husserl, tanto a redução psicológica, quanto a transcendental – sobretudo nesta última. Apesar da constante fala do filósofo acerca das possíveis contribuições da fenomenologia para outros campos de conhecimento, a fenomenologia ela mesma não implica nenhum complemento. Ela sequer o admite, sendo praticada de maneira completamente independente e isolada. Neste segundo critério de análise, portanto, temos que a radicalização dos dois métodos descritivos conduz a resultados completamente opostos, uma vez que, para o gestaltismo, trata-se de exceder o que nos é fenomenalmente dado e afirmar o parentesco dos princípios de organização deste dado com os princípios de organização de outros nichos da natureza, enquanto que, para a fenomenologia, trata-se de afastar ainda mais a referência dos vividos intencionais ao que a transcende de maneira real, aprofundando-se em seus processos mais originários e nas minudências de toda constituição de objeto. Se uma das radicalizações conduz a um realismo de tipo especial, que defende a existência de uma matriz única de discurso que explique todos os diferentes eventos da natureza, a outra conduz a um idealismo de tipo especial, que defende a estrita necessidade de se descrever o puro dar-se de objetos à consciência e identificar, em última instância, todo ser ao aparecer. Se uma encontra realização ao afirmar teses sobre a transcendência, a outra o faz pela

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condenação severa de toda teorização deste tipo, tornando o âmbito da experiência ainda mais circunscrito e fechado em si.

5.1.3. Recursos empregados na descrição: Um outro aspecto relevante é a atenção dispensada por ambas as escolas aos recursos ou técnicas que devem ser empregadas nesta descrição. Em relação a isto, o gestaltismo não se orienta por nenhuma técnica específica, defendendo apenas o recolhimento do sujeito experimental às suas experiências imediatas e a tentativa de relatálas tal como ocorrem, sem comprometer este relato com nada que a própria experiência não traga em si, em seu sentido imanente. Apenas esta injunção parece bastar aos psicólogos, de modo que nenhum cuidado maior a acompanha, nenhuma tentativa de mostrar como este exame é possível, de explicar os processos cognitivos que asseguram a sua eficiência ou de instruir o seu futuro praticante acerca de como extrair o que importa extrair de suas experiências. Ainda que haja o cuidado de se afastar esta posição daquela assumida pelo introspeccionista, o qual privilegiaria arbitrariamente certos conteúdos da experiência em detrimento de outros, ou ainda, de se delinear com bastante atenção todas as maneiras pelas quais podemos nos afastar do dado e assumir em relação a ele uma postura negativa, como faz Metzger, não encontramos nada que possa efetivamente ser considerado uma técnica descritiva. Devemos ter uma postura plenamente receptiva ao dado, evitar que o seu aparecimento seja modulado por interesses que lhe são estranhos, evitar conceder a qualquer aprendizado, hábito cognitivo, determinação social ou exigência racional que possam fazer dele algo diferente do que se mostra ser – devemos aceitá-lo em todo o sincretismo próprio ao seu dar-se presente. A ênfase nesta abertura é tal que, pelo que nos consta, oferecer recursos ou técnicas descritivas ao sujeito responsável pela descrição seria algo bastante contraproducente, algo oposto à idéia mesma de uma ‘descrição ingênua’, já que o estaria munindo de orientações específicas e restringindo a disposição que ele deveria ter em relação ao que lhe aparece. Ademais, como encontramos na fenomenologia gestaltista a peculiar relação com o experimento já comentada, é bem possível que a economia na definição da tarefa descritiva seja precisamente uma tentativa de deixar o estudo mais detalhado e criterioso da experiência para a investigação positiva.

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A ausência de recursos descritivos não é de modo algum o caso na fenomenologia de Husserl, a qual sabemos ser expressamente orientada por duas formas de redução. O mero atentar ao dado e tomá-lo tal como se mostra, em pleno afastamento de pré-juízos, não assegura nenhuma conquista relevante aqui. É preciso mais do que isto. Se, com a redução eidética, temos uma passagem das manifestações pontuais da consciência ao nexo racional que as ordena, à sua essência, com a redução fenomenológica, temos justamente o já comentado movimento de se afastar de toda transcendência em sentido real, preservando o fenômeno apenas como fenômeno. Estes são os alicerces técnicos sobre os quais a descrição fenomenológica opera e, na perspectiva de Husserl, a razão mesma da validade de suas conclusões. O conhecimento do que a consciência tem de próprio não pode se dar sem que as contingências sejam afastadas e que a presença da tese seja sumariamente cortada, saltando-se dos fatos reais para as essências irreais. A fenomenologia propriamente dita é um exercício reflexivo diretamente dependente destes dois procedimentos redutivos, o que torna inteiramente evidente que o sentido de descrição por ela assumido é muito mais detalhado do que aquele assumido pelo gestaltismo. Neste terceiro critério de análise, portanto, temos a oposição entre um exame mais livre da experiência, o qual não se orienta por recursos descritivos específicos, e outro que assume uma posição mais grave, especificando em maior detalhe as diferentes maneiras pelas quais obter da experiência aquilo que deseja. Decerto, é uma diferença menos radical do que as anteriormente encontradas, mas, por ser a primeira diferença que se refere exclusivamente ao interesse descritivo de cada escola, ela deve ser ressaltada.

5.1.4. Compreensão da estrutura da consciência: No que se refere às teses fundamentais que orientam a concepção de consciência de ambas as escolas, bem como o seu entendimento de fenômeno, encontramos diferenças de extrema relevância. Como evidencia a própria idéia de Gestalt, a característica fundamental da experiência imediata para a Escola de Berlim é o fato de ela se dar sempre como uma totalidade significativa, cujas partes não se mostram como elementos componentes, unificados por processos sintéticos quaisquer, mas sim como conteúdos necessariamente dependentes da própria totalidade em que se inserem. Contra o dar-se imediato de totalidades harmônicas e fechadas, o interesse analítico mais penetrante não poderia fazer

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nada além de abstrair partes, que seriam sempre dependentes do contexto original de sua aparição e, por mais reduzidas e simplificadas que pudessem ser, nunca verdadeiramente passíveis de serem consideradas átomos psíquicos, elementos independentes de tudo o mais, desprovidos de complexidade. Mesmo o dado sensível mais simplificado se mostra a partir de uma estrutura de figura e fundo, a qual implica uma base de conteúdos indistintos para o aparecimento da qualidade tematizada – i.e., implica pluralidade. Acompanhamos com a devida atenção todo o rechaço gestaltista às teses clássicas em psicologia que procuravam caracterizar os fatos psíquicos a partir da distinção categorial entre sensações e objeto, tanto aquelas que entendiam ser a imposição de memórias e a associação o fator sintético responsável pela passagem das primeiras ao segundo, quanto as que defendiam ser esta o resultado de um ato intelectual. Toda espécie de argumentação em prol desta perspectiva da experiência em duas fases é entendida como fictícia, pois parte de conteúdos meramente presumidos, nunca encontrados verdadeiramente na vida fenomenal, concede papel relevante a fatores que a experiência não reconhece em si mesma e põe como tardio o que, em perspectiva fenomenológica, mostra-se precisamente como primeiro, o objeto. Em vez de conceder a esta visão teoricamente inconsistente, é preciso reconhecer a autonomia com a qual o objeto se nos mostra e indicar os critérios internos que asseguram este mostrar-se, os quais não dizem respeito a nenhum processo constitutivo de nosso psiquismo, mas sim à maneira como os próprios perceptos se dispõem uns em relação aos outros e, pelo padrão de sua relação, mostram-nos já uma realidade complexa. O exame detido destes critérios mostra que eles não são dependentes de nosso histórico pessoal de experiências e nem mesmo de nosso arbítrio, pois as possibilidades de alterarmos a configuração de um percepto são sempre limitadas e cedem ao que ele se mostrou ser de pronto. A tese central do gestaltismo acerca da experiência, portanto, é uma explícita negação de todo procedimento sintético ou constitutivo em favor da estruturação autônoma do fenômeno. A fenomenologia de Husserl, por sua vez, sustenta precisamente a centralidade do modelo sintético e constitutivo para a compreensão da experiência, assumindo uma posição bem mais próxima à psicologia clássica do que à gestaltista. Como já pudemos ver com atenção, o visar de um objeto por um ato da consciência é o resultado de um processo de apreensão de algo dado e animação (Beseelung) deste mesmo algo pela própria consciência.

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É na medida em que esta se volta ao dado e pode apreendê-lo e interpretá-lo de certo modo, que o mesmo pode ser considerado já não mais um simples conteúdo destituído de sentido, mas sim um objeto pleno, visado a partir de uma significação que o encerra. O objeto, deste modo, é constituído por meio de um desempenho consciente direcionado a conteúdos mínimos, que servem de ponto de apoio para que ele possa aparecer. No caso da percepção, estes conteúdos mínimos são precisamente as sensações; no caso de atos superiores fundados em percepção, eles são os objetos perceptuais já constituídos e que passam por um processo do qual uma objetualidade complexa deverá resultar. O que temos aqui, evidentemente, é ainda uma perspectiva da experiência em duas fases, na qual os dados se distinguem do objeto e podem passar a ele por meio de um ato sintético. É certo que há diferenças relevantes entre este modelo tal como Husserl o propõe e tal como a tradição psicológica o faz e nós devemos tê-las bem presentes. Para tanto, consideremos cada um dos conceitos-chave deste processo: (1) Sensação: para a psicologia, a sensação é um evento psicofísico, definido pela aferência de um estímulo físico pontual em certa parte da periferia sensível do organismo, a qual, sendo receptiva ao estímulo em questão, permite a sua conversão em excitação, a conseqüente geração de energias sensoriais nos nervos excitados e a condução destas energias até os núcleos nervosos centrais, em que o processo fisiológico encontrará expressão psíquica e nos comunicará uma qualidade sensível elementar. Da mesma forma que o estímulo físico, a porção do terminal nervoso periférico, o processo conversivo no tecido de recepção e os feixes de nervos responsáveis pela emissão das energias, a sensação é tomada de maneira inteiramente individual, sem que nada implique a sua inter-relação com outros conteúdos de mesma natureza, residindo precisamente aí, como já sabemos amplamente, o seu caráter de átomo ou elemento. Este vínculo preciso com um estímulo ou uma propriedade física que elicia a sensação, como vimos, foi pensado de diversas maneiras, seja colocando a sensação como um ‘sinal’ que faria as vezes da propriedade física a nível psíquico, seja entendendo-a como uma contraparte necessária da propriedade quando ela fosse pensada em relação a um sujeito e não em relação a outras propriedades. Para a fenomenologia, à diferença de todo este esquema de explicação da origem da sensação nos eventos mecânicos do organismo, trata-se apenas de buscar legitimar o conceito pelo exame reflexivo da experiência. Deste modo, as sensações surgem como

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meros conteúdos inferiores da consciência que são vivenciados de modo imanente e entendidos como parte real do fluxo de vivências, i.e., como conteúdos que não comportam em si mesmos nenhuma referência objetiva, nenhuma intenção e nenhum sentido. São dados prontamente reconhecidos como integrados ao próprio curso da consciência, mostrando natureza subjetiva e servindo apenas como ponto de partida para que um determinado processo constitutivo se dê, tornando-nos, assim, conscientes de um conjunto de perfis qualquer a partir do qual um objeto é visado. Ainda que as sensações assim consideradas sejam também descritas como difusas, pontuais, sem sentido e sem relações naturais entre si, não há, em Husserl, qualquer esforço por equivaler estes predicados à idéia de átomo ou elemento. Podemos dizer que ele as caracteriza de maneira similar ao psicólogo, mas não dá o passo decisivo que consiste em afirmar que elas comportam o caráter de núcleo indiviso, absoluto e fechado, o qual sabemos ser oriundo da concepção filosófico-natural moderna de objeto. Ademais, nenhuma relação com estímulos físicos é relevante aqui, uma vez que apenas o campo das vivências é considerado. A sensação não poderia ser sinal ou contraparte de nenhum transcendente em sentido real. Deste modo, encontramos diferenças bastante graves entre os conceitos psicológico e fenomenológico de sensação. Apesar de ambos ocuparem uma mesma função, a saber, a de elemento a ser incorporado em um processo sintético, a natureza de ambos difere radicalmente, bem como a extensão de seus predicados. (2) Processo sintético: para uma grande parte dos projetos psicológicos, o processo sintético que ocorre a partir do complexo de sensações apreendido é de natureza associativa, consistindo na imposição de representações mnêmicas ou imagens de percepções passadas sobre aquele mesmo complexo, de forma a tornar a vida psíquica precedente uma espécie de grade a partir da qual se interpretar a experiência presente em seu aspecto mais rudimentar. Como vimos, sobretudo em Helmholtz e em Mach, o modelo para a compreensão da experiência aqui é sumamente empirista, entendendo-se que a vida perceptual nos permite registrar os conteúdos a cada vez dados, mantendo-os como representações que atuam de forma precisa na definição do que vivemos, abrindo as afecções sensíveis atuais a uma relação com o já aprendido. Deste modo, os conteúdos que tenham sido apresentados em contigüidade espaço-temporal e por repetidas vezes, tendem a estabelecer entre si uma relação artificial de implicação, na qual um serve de índice para o

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outro. Assim, as sensações caracterizadas como indiferentes umas em relação às outras passam a ter certa proximidade – uma proximidade aprendida e não natural. Outras teorias, como a Produktionstheorie de Graz, sustentam que o processo que torna o complexo de sensações um objeto íntegro é de natureza racional e não empírica, colocando em cena outros critérios que não a associação para distinguir dados inferiores e superiores. No que se refere a Husserl, a tese de que existe uma operação sintética responsável por essa diferença é mantida, ainda que ele não a compreenda por meios empíricos ou racionais, como faziam essas duas perspectivas psicológicas. Em vez disto, o pensador se limita a afirmar que se trata de uma ‘interpretação’ ou de uma apreensão da consciência que, por ‘animar’ os dados sensoriais, é doadora de sentido, permitindo que integremos estes conteúdos que neles mesmos não comunicam nada a uma identidade objetual específica, da qual eles podem ser ditos propriedades. Para a fenomenologia, a consciência é de natureza sintética em qualquer um de seus desdobramentos possíveis. (3) Objeto: para a psicologia, o objeto da experiência é sempre um produto de síntese, a qual conjuga tanto as sensações propriamente ditas, quanto as representações ou imagens das sensações retidas na memória, oferecendo-nos uma totalidade complexa que reflete os critérios associativos acima comentados. Este processo, no entanto, não impede que os mesmos elementos sensoriais presentes no início do processo constitutivo, comunicados ao psiquismo pela cadeia de eventos mecânicos do organismo, sejam encontrados no próprio objeto, como se estivessem simplesmente justapostos ou agregados de maneira aditiva, sem que as fronteiras individuais de cada conteúdo se houvessem desfeito. Pelo que nos consta, esta imagem é perfeitamente resumida na expressão empregada por Mach ao indicar o caráter elementar das sensações, a saber, a de que estas são as ‘pedras de construção’ (Bausteine) do percepto. A perspectiva aqui é muito clara: por maior ou mais detalhada que possa ser uma coisa construída a partir de um conjunto de pequenas unidades componentes, que se preservam enquanto tais, as unidades elas mesmas podem ser sempre identificadas no resultado final. A relação estabelecida entre partes e todo aqui é a da simples agregação ou desagregação de unidades. Para a fenomenologia, em consonância com a negação do caráter empírico do fator sintético, trata-se de descartar a possibilidade de que imagens ou representações passadas intervenham como componentes relevantes para a definição da totalidade do objeto. Por maiores que possam ser as

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influências da disposição acrítica do sujeito de experiência na definição do objeto – como já vimos em nosso exame da experiência e do mundo circundante naturais –, por mais que ele possa ser visto segundo critérios utilitários ou idiossincrasias oriundas de hábitos psíquicos, Husserl não confere a tais fatores nenhum lugar em sua descrição da constituição de objetos. Em vez de fazerem parte do mecanismo mesmo pelo qual os objetos são dados, eles constam como fatores completamente inessenciais, acréscimos tardios e que não encontram lugar no esquema sintético proposto pelo pensador. Por fim, a sua compreensão do objeto defende uma diferença categorial clara entre o que se mostra como sua propriedade objetiva e o conteúdo real a partir de que o objeto se estrutura. Não é possível entender que os dados que nos aparecem após uma interpretação específica, que os anima e os coloca em função de uma totalidade objetiva qualquer, são os mesmos que encontramos quando dirigimos a nossa reflexão à experiência e distinguimos seu fundamento material. Em um caso, temos uma qualidade subsumida a um objeto perfilado, marcada por sentido, acessível por meio de perspectivas a cada vez distintas e inteiramente solidária a essas variações conteudísticas que ocorrem junto a ela. Em outro, temos o conteúdo puro e simples, descontextualizado e sem organicidade. Da mesma forma que encontramos na expressão de Mach uma forma privilegiada de compreendermos a tese psicológica clássica, parece-nos possível encontrar na expressão ‘pontos de apoio’ (points d’appui), evocada por Husserl na Quinta Investigação, o mesmo tipo de auxílio para entendermos as idéias do pensador. Há um salto entre duas condições distintas e não uma preservação, como na psicologia clássica. Deste modo, é possível afirmar que Husserl preserva de maneira bastante peculiar o quadro sintético proposto pelas psicologias que o precederam. Ele endossa a compreensão geral de que a experiência deve ser caracterizada pela sensação como dado constituinte, por uma função consciente de integração e pelo objeto como um resultado da incidência desta sobre aquela. Ainda que a definição propriamente fenomenológica de cada um destes conceitos difira radicalmente das definições psicológicas, a estrutura pela qual se compreender a experiência é basicamente a mesma – o valor posicional dos conceitos é o mesmo. E é ainda exemplo do tipo de raciocínio que o gestaltismo, pelas razões que já conhecemos bem, considerava essencialmente falso e preconceituoso. O que temos aqui não é pouco: trata-se de encontrar, neste quarto critério de comparação, uma oposição

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diametral entre os conceitos básicos de ambas as escolas em sua compreensão da experiência. Quando o gestaltista se volta à consciência e a estuda com os recursos que considera adequados, ele vê algo completamente diferente daquilo que vê o fenomenólogo quando faz o mesmo a partir de seus recursos. Não é a mesma experiência em jogo para cada uma das escolas.

5.1.5. Relevância geral da percepção e seu caráter diferencial: No que se refere à importância assumida pela percepção no exame geral da experiência proposto por ambas as escolas, bem como a algumas das teses que caracterizam a percepção ela mesma, é possível encontrar certas compatibilidades. O gestaltismo, apesar de ter investigações relevantes acerca de outros fenômenos psíquicos que não a percepção em seus primeiros momentos, como o estudo acerca do pensamento primitivo, acabou tornando-se uma teoria amplamente dedicada àquela forma de experiência, como já pudemos ver. Estudos em percepção encontram-se não apenas entre seus trabalhos iniciais, como a investigação acerca do movimento estroboscópico, mas também em diversos outros momentos em que a escola definiu as suas bases teóricas, como o próprio conceito de Gestalt e os fatores que orientam a sua organização. A maior parte de sua produção, com efeito, é dedicada à psicologia da percepção, mesmo quando a escola passou pelo movimento de expansão ao qual já nos referimos, que a fizeram se espraiar por diferentes setores da psicologia e das ciências naturais. Diversos dos critérios explicativos empregados no exame de outros fenômenos, portanto, sejam eles psíquicos ou nãopsíquicos, tiveram a sua fecundidade original no campo da percepção, mostrando-se esquemas também válidos fora do nicho em que inicialmente se legitimaram. Na fenomenologia, por sua vez, encontramos também uma relevância primordial para a percepção, que não apenas define uma das possibilidades de intuição reconhecidas pelo método – a mais recorrente e natural, deve-se salientar – mas que também ocupa um espaço privilegiado em relação a diversos outros atos intencionais possíveis, servindo-lhes de fundamento, além de ser a forma de experiência à qual Husserl mais freqüentemente recorre ao introduzir muitos dos conceitos ou argumentos fenomenológicos. Ainda que bastante genéricas, estas afirmações nos mostram que a atenção de ambas as escolas, em

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seu exame da experiência, reserva um lugar de destaque, ou mesmo de primazia, para a percepção. Esta observação, no entanto, seria de valor bastante reduzido se não encontrássemos algo de compatível no tratamento por elas dispensado ao fenômeno. Se, no que respeita à diferença entre o holismo gestaltista e o modelo sintético fenomenológico, já sabemos o suficiente, há um ponto em que a descrição da percepção por elas feita parece se aproximar de algum modo. Trata-se do reconhecimento de que o aparecimento de um percepto se dá sempre por meio da discriminação entre conteúdos mais patentes, que se mostram mais diretamente ao observador, e conteúdos mais basilares, que possibilitam o destacamento dos primeiros. O gestaltismo procurou pensar esta constatação acerca dos fatos perceptivos a partir da estrutura de figura e fundo, afirmando que a própria configuração de uma forma exige aquele movimento de segregação dos conteúdos percebidos em dois planos, que se diferenciam por clareza, distinção, acessibilidade e força de organização. Assim como em relação a todos os demais fatores da Gestalt – com exceção do hábito – a tese fundamental aqui é a de que a força atuante na definição de uma estrutura de figura e fundo é inerente à própria organização do percepto, não podendo ser reconhecida como um desempenho subjetivo e não tendo caráter empírico. Ela pertence à maneira como os dados percebidos se inter-relacionam no momento mesmo de sua definição e apresentação, aos critérios de fechamento e unificação oriundos deste movimento em sua relação com as demais condições atuais. Trata-se de um critério objetivo, portanto, em relação ao qual as demais disposições psíquicas, como a atenção, mostram-se secundárias. A maneira como a fenomenologia compreende aquela relação é centrada na idéia de que todo perceber comporta um apreender (Erfassen), que divide o objeto percebido entre intuições efetivas e intuições de fundo, ou dados co-visados que definem o entorno em que aquelas são dispostas. Este apreender é considerado uma função direta do ato perceptivo, não se definindo de modo algum a partir do objeto visado, e podendo ser alterado pelo próprio percipiente na medida em que ele se interessa por inspecionar aspectos indiretamente dados de seu campo de percepções e não mais os aspectos diretamente dados. Husserl acaba se mostrando muito mais próximo de Stumpf neste ponto, uma vez que o psicólogo também considerava tal característica de nossa percepção algo devido à função psíquica. Apesar das semelhanças entre as posições gestaltista e fenomenológica, que lidam com uma disjunção

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qualitativa no interior do próprio campo percebido, encontramos a diferença fundamental de que o gestaltismo busca conferir um caráter plenamente objetivo à sua descrição, situando-a na necessidade interna expressa na organização da forma, ao passo que a fenomenologia reconhece o seu caráter subjetivo na medida em que a toma por característica essencialmente pertencente ao ato. A proximidade entre as duas concepções, portanto, é relativa, e não deve ser considerada sem que este ponto específico seja ressaltado. Nosso quinto critério de análise, portanto, mostra-nos um resultado ligeiramente mais favorável do que os anteriores, ainda que não evidencie nenhuma compatibilidade forte entre as escolas.

5.1.6. Ingenuidade e concretude da percepção: Ainda um outro critério a ser considerado aqui é a constante reivindicação, por parte do gestaltismo, de um caráter fundamentalmente concreto para as suas análises, em contraste com a forte orientação idealista da fenomenologia de Husserl. Como vimos, o gestaltismo busca descrever uma experiência entendida como ‘ingênua’, descomprometida de quaisquer outros critérios de análise além daqueles colocados pela própria experiência, acessível ao médio dos homens, sem necessidade de qualquer qualificação intelectual específica ou prática em observação psicológica. Ao evidenciar em que âmbito desta experiência incide de maneira mais significativa o seu interesse de pesquisa, o gestaltismo, como já sabemos bem, refere-se à percepção, à maneira como temos contato direto com objetos que compõem o nosso mundo fenomenal e apreendemos coisas ou acontecimentos como totalidades organizadas e significativas. O interesse gestaltista, em poucas palavras, é avaliar de modo privilegiado este vínculo fundamental com o mundo, abaixo ou aquém do qual nada pode ser pensado em termos de experiência. A maneira de especificar o que efetivamente é esta percepção, no entanto, indica que ela consiste na apreensão de objetos como coisas externas, independentes e realmente caracterizadas pelas propriedades que nos apresentam em seu aparecer. Não se trata, na perspectiva do sujeito ingênuo, de caracterizar esta percepção como um processo psíquico dependente de quaisquer eventos físicos e fisiológicos, que só fazem evidenciar a distância que os conteúdos que nos são dados têm em relação à realidade em si mesma, à efetividade física. Por mais que esta questão seja considerada uma obviedade para o gestaltismo, não se trata de assumir o seu valor durante

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o procedimento descritivo, mas sim após ele, durante a explicação experimental do mesmo. O exame fenomenológico desta percepção tem que assumir de maneira positiva o seu contato direto com objetos que se mostram como existentes em si, efetivamente estruturados da maneira como nos aparecem e completamente independentes de nós, de qualquer aspecto de nossa experiência ou constituição psicofísica para serem como são. Tem de assumir os objetos como núcleos reais, estáveis e indiferentes, aos quais nos voltamos apenas de modo a iluminá-los nisto que são e conhecê-los e sua integridade própria. Nos termos de Köhler, tem de assumir este caráter de nossa percepção que não nos permite encontrar ‘lugar para um mundo mais objetivo’ do que este que nos é imediatamente presente. Todo o realismo essencial à experiência ingênua, portanto, é parte sumamente importante do estudo gestaltista. E vem reforçar isto a condenação clara, por parte deste psicólogo, à idéia de que determinados desdobramentos da fenomenologia deixam-se desviar para questões menos essenciais do que esta, realizando investigações desinteressantes ou aparentemente estéreis sobre objetos menos palpáveis, como os ditos objetos atemporais. Devemos lembrar bem o fato de Köhler ter dito que isto deveria vir às expensas do pesquisador responsável pelo mau emprego da fenomenologia, e não da fenomenologia ela mesma. Por mais que o método possa ser direcionado a temas como estes, a sua aplicação mais urgente seria aos dados da percepção objetiva e ao mundo ordenado que nos aparece na vida fenomenal. A fenomenologia de Husserl, no entanto, assume precisamente o caráter ideal aqui denunciado, uma vez que, mesmo em seu exame dos atos mais fundamentais da consciência, como o ato perceptivo, ela busca facultar a ele um tratamento completamente distinto deste que apela a uma experiência ingênua e não a depura de todas as suas tendências desviantes. Já falamos o suficiente sobre as técnicas redutivas que o possibilitam nas seções anteriores, não sendo necessário considerá-las novamente. É necessário, no entanto, evidenciar que todo estudo fenomenológico é um estudo eidético, voltado à razão intrínseca a um determinado fenômeno, que encerra os predicados inextirpáveis deste, e, por conseguinte, ele tem de se afastar da concretude da experiência para caracterizá-la como deseja. Se considerarmos a fase transcendental da fenomenologia, as disparidades serão ainda mais evidentes, posto que ela busca atacar precisamente esta admissão de uma realidade inerente aos objetos visados, considerando-a uma decisão natural e impensada

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acerca do estatuo metafísico dos mesmos, a qual não ofereceria senão prejuízos ao estudo da consciência. Como já dissemos há pouco, o interesse aqui é delimitar as essências irreais da consciência, o que não poderia ser mais distante do propósito gestaltista acima descrito. Ademais, diversos desdobramentos relevantes da fenomenologia de Husserl consistem precisamente no estudo de objetos atemporais, como já pudemos ver acerca das teses concernentes a uma lógica pura. Nosso sexto critério de análise, deste modo, indica que uma outra característica fundamental da experiência, tal como compreendida por ambas as escolas, exige o seu afastamento, a saber, a concretude desta experiência e o seu vínculo com a presumida realidade dos conteúdos nela presentes. Se antes é inteiramente óbvio que a fenomenologia gestaltista, sob a perspectiva da fenomenologia de Husserl, é praticada em atitude natural, dado o seu caráter científico, agora é também óbvio que ela é fenomenologia da atitude natural, o que a coloca em um lugar consideravelmente afastado daquele em que se encontra este pensador.

5.1.7. A função da mereologia: Por fim, um último tema a ser indicado é o tipo de mereologia proposto por cada escola, bem como o seu papel no corpo teórico destas e na condução de seus estudos. A mereologia gestalista é centrada na idéia de supra-somatividade e na clara denegação das ligações por mera conjunção (Undverbindungen), o que é inteiramente evidente quando consideramos o seu conceito de Gestalt e a relevância que ele tem para a produção da escola como um todo. Quando não se trata de negar a pertinência de processos que possam ser descritos de acordo com aquele tipo de ligação – i.e., como convergência de elementos que geram um todo cujas propriedades não excedem a soma das propriedades individuais dos elementos –, trata-se de colocá-lo completamente fora do campo de interesse e considerá-lo, basicamente, algo que ocorre quando os processos gestálticos não têm condições de se instaurar. A idéia de ‘parte independente’, portanto, não desempenha nenhum papel relevante nas análises propostas pelo gestaltismo. O seu interesse incide precisamente nas relações entre conteúdos ou processos de natureza diversa que, por conta da relação por eles travada, exercem sempre uma clara influência recíproca e definem-se como partes integradas a um complexo de conteúdos que as excede. O conceito mesmo de parte, no entendimento gestaltista, implica dependência, uma vez que as partes são ditas

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apenas da totalidade em que se inserem e na qual têm o seu sentido e as suas propriedades definidas. A centralidade de uma tal compreensão da relação entre parte e todo, como bem vimos ao fim de nosso capítulo dedicado ao gestaltismo, é tal que não apenas o desenvolvimento da escola como uma psicologia da percepção se encontra diretamente calçado nele, dedicado a mostrar a sua pertinência para a compreensão dos fatos sensíveis e a refiná-la por meio da demonstração de que o característico destes mesmos fatos está nas maneiras como aquela relação se conforma. Este é o interesse que move qualquer estudo gestaltista. A fisiologia proposta pela escola nega a pertinência de se analisar os fatos orgânicos como um encadeamento de processos individuais e desvinculados dos demais processos que ocorrem em concomitância no organismo. A física mostra que há sistemas físicos em que atuam princípios tendentes à organização, à economia de energia e à maximização de efeitos produzidos, além de definirem as diferentes variáveis neles encerradas a partir do que é o sistema como um todo. As teses mais fundamentais do gestaltismo, deste modo, são essencialmente mereológicas, consistindo claramente o propósito da escola em encontrar meios de legitimar esta sua compreensão da relação entre parte e todo nos mais diferentes meios possíveis à investigação científica. Na fenomenologia de Husserl, no entanto, a reflexão acerca da mereologia é diferente, entendendo como pertinentes tanto o conceito de parte dependente – a qual não pode se mostrar sem trazer consigo outro conteúdo a que está, por razões de essência, ligada – quanto o conceito de parte independente – a qual admite separação de seu todo originário sem que haja qualquer conteúdo que a deva acompanhar ou qualquer alteração em suas propriedades individuais. Deste modo, é bastante claro que Husserl não apenas incorpora em sua compreensão das relações entre partes e todo um conceito condenado pelo gestaltismo, mas que ele admite também, por conseqüência, todos os fenômenos para os quais este conceito é central e que são denegados pelo gestaltismo. Conteúdos complexos que se mostrem como mera justaposição de partes independentes, portanto, não são objeto de crítica aqui, mostrando, em verdade, uma das possibilidades fundamentais de estruturação de conjuntos, que se opõe àquela em que atuam partes dependentes e que exigem certa coesão interna para que o todo se defina. A posição de Husserl é bastante próxima à de Stumpf, uma vez que este psicólogo, como já sabemos, incorpora à sua teoria duas possibilidades de estruturação de objetos, as quais ele prefere chamar de ‘formações

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psíquicas’: as formas (Forme ou Gestaltqualitäten) e os conjuntos (Inbegriffe). Em termos distintos, o que ele faz aqui é apenas salientar que existem totalidades que se dão por mera soma de conteúdos individuais e outras que se dão por vínculos intrínsecos aos próprios conteúdos em jogo. A posição de Husserl, para além destas relações que nós vemos aqui, é considerada próxima à tradição psicológico-descritiva pelo próprio pensador, em sua Quinta Investigação. Nesta, ele não apenas recorre com freqüência ao exemplo do vínculo essencial entre cor e extensão, presente nos estudos de Stumpf acerca da representação do espaço, mas afirma explicitamente a identidade entre a sua concepção de ‘momento’, ou de parte independente, e o conceito de Gestalqualität de Ehrenfels, bem como o de superiora, de Meinong. Sabemos amplamente o quanto estes conceitos são considerados artificiais pelo gestaltismo berlinense, que não admitirá a referência da totalidade a partes que a antecedam e possibilitem enquanto totalidade. Por mais que todos os autores em questão, assim como o gestaltismo, afirmem a existência de conteúdos que se implicam e que o fazem por relações completamente intrínsecas aos próprios conteúdos, o pensamento berlinense encontrará falhas descritivas na concepção sustentada por todos eles, na medida em que ainda negligenciam a anterioridade do todo e insistem em sua compreensão por meio das partes. Uma Gestaltqualität seria uma ficção psicológica porque não temos as sensações como o prius a partir de que uma determinada organização poderá surgir; um superiora será igualmente absurdo, não apenas por não termos as sensações como base de coisa alguma, mas também por não termos atos intelectuais que constituam objetividades complexas a partir deles. Todas essas perspectivas que sacrificam o dar-se pleno da totalidade são inconsistentes para o gestaltismo e é precisamente em relação a elas que Husserl se coloca de forma tão favorável, dizendo ser a sua concepção de momento algo que lhes é equivalente. Deste modo, não temos apenas que o gestaltismo rejeita um dos conceitos fundamentais da mereologia husserliana, mas também que ele discorda na definição do único conceito com o qual ainda possui afinidades. É importante ainda ressaltar que a teoria em questão não ocupa de modo algum um papel tão relevante para as investigações fenomenológicas como um todo. É certo que, como já citamos em nosso capítulo dedicado a Husserl, alguns comentadores como Sokolowski (2004, p. 31) buscam entendê-la como uma das estruturas formais de maior destaque para o exercício da fenomenologia, estando a idéia de parte e todo ao lado das

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idéias de presença e ausência e de unidade e multiplicidade. Mesmo que esta afirmação seja válida, não se está aqui afirmando que a mereologia é a via primordial pela qual se fazer qualquer coisa em fenomenologia, como claramente é para o gestaltismo. Deste modo, encontramos em nosso sétimo critério de análise, não apenas diferenças conceituais relevantes, mas também diferenças no papel desempenhado pela mereologia de cada escola no conjunto de seu pensamento.

5.1.8. Reflexões de súmula: É certo que muitas relações podem ser ainda pensadas entre ambas as escolas e que os critérios aqui elencados estão inteiramente longe de exaurir a discussão ou mesmo de cercá-la plenamente. Cremos, no entanto, que estas são as questões de princípio mais relevantes que podem ser identificadas em nosso percurso e que elas nos trazem resultados consistentes para pensarmos as relações entre gestaltismo e fenomenologia. É bastante claro que estas relações são predominantemente negativas: (1) o gestaltismo se efetiva precisamente no campo das ciências positivas, repudiado pela fenomenologia no que se refere ao seu valor teorético real; (2) ele não apresenta um procedimento descritivo autônomo, exigindo o exame de outros fenômenos naturais que não a consciência para compreendê-la de maneira que lhe pareça satisfatória, realizando-se como um naturalismo, ao passo que a fenomenologia se define como uma tarefa absoluta, que não pode recorrer a nenhuma espécie de conhecimento que lhe seja exterior, realizando-se como um idealismo transcendental e um neocartesianismo; (3) ele não oferece recursos precisos para que o psicólogo faça a descrição que lhe cabe fazer, contando apenas com a injunção da plena receptividade ao dado imediato, enquanto a fenomenologia se esmera por apresentar, justificar e praticar rigorosamente pelo menos duas técnicas fundamentais para as suas descrições; (4) ele não admite a compreensão da experiência a partir de processos sintéticos que façam passar um conjunto de dados materiais à condição de objeto, defendendo a natureza sempre holística e supra-somativa dos aparecimentos, ao passo que a fenomenologia assume a experiência como produto de uma constituição ou síntese, a qual pode ser descrita naqueles termos; (5) ele confere uma relevância ímpar à percepção, mas entende o seu caráter diferencial como função do objeto, enquanto a fenomenologia, que também privilegia a percepção de maneira análoga, entende o seu caráter diferencial como

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função do ato; (6) ele assume as suas análises como concretas e tendentes à afirmação natural de uma realidade inerente ao aparecimento, enquanto a fenomenologia procura aceder à estrutura eidética de toda experiência e afasta sumariamente este realismo da consciência pré-filosófica; (7) ele defende uma mereologia que constitui o principal recurso teórico para as suas pesquisas e para a qual a concepção de parte independente não seria relevante, ao passo que a fenomenologia defende uma mereologia que não ocupa um lugar tão central em suas análises e que admite aquele conceito, além de se aproximar de teorias que são diretamente desafiadas pela compreensão gestaltista de parte dependente. Encontramos, deste modo, diferenças inconciliáveis em termos metodológicos e teóricos: o gestaltista e o fenomenólogo não assumem posições epistemológicas próximas; não compreendem a descrição da consciência de maneira similar; voltam-se à experiência e encontram coisas que não poderiam ser mais diferentes, posto que a sua relação efetiva é a da oposição diametral; tematizam de modo também incompatível aquela dimensão da experiência que ambos valorizam tanto, i.e., a percepção; defendem diferentes concepções acerca das relações estruturais entre os conteúdos fenomenalmente dados, um se aproximando da tradição que o outro busca superar. Deve-se somar a isto, evidentemente, o fato de a mais extensa e consistente referência do gestaltismo a Husserl – a exposição de Köhler em The Place of Value in a World of Facts – ser sumamente negativa, como pudemos analisar com cuidado em nosso terceiro capítulo, permitindo-se identificar falhas na premissa fundamental do procedimento filosófico – i.e., o retorno às coisas mesmas – e impugnar as suas conclusões acerca da relação entre necessidade e fato. Não encontramos, por conseguinte, meios razoáveis de sustentar a tão reivindicada proximidade intelectual entre as duas escolas. Em frontal oposição a isto, o que nos parece amplamente justificável fazer é defender a expressa incompatibilidade entre elas, uma vez que ambas diferem sensivelmente em todos estes aspectos por nós trabalhados neste capítulo final. Toda aproximação que se possa fazer entre as teses de uma escola e as de outra e que não se mostre consciente de divergências tão fundamentais quanto estas deverá ter o seu valor reduzido, justamente porque o sustento intelectual do que se pretende aproximar é marcado por diferenças de princípio e que se mostram incontornáveis. Com efeito, toda aproximação entre teses que não é acompanhada por uma aproximação entre as cadeias argumentativas que as sustentam

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pode reduzir a mera aparência a proximidade reivindicada. Assim, não sendo possível afirmar um parentesco intelectual forte entre algumas das características mais fundamentais de cada escola, o que restaria seriam meras convergências pontuais que, se analisadas a fundo, tornariam as idéias que a princípio convergem necessariamente afastadas. Contra isto, informações meramente históricas, como as oferecidas por diversos autores da literatura secundária, ou mesmo por David Katz (1944/1948), que se mostra fonte muito mais fidedigna, não podem satisfazer. Não podemos acompanhar a fala do gestaltista, que nos diz ser Köhler aquele que mais se deixou influenciar pelo pensamento de Husserl, quando é precisamente este psicólogo que se preocupa em refutar o pensador da maneira há pouco citada – o único dentre os introdutores do gestaltismo a travar um diálogo relevante e a fazer dele uma clara oposição. Não podemos acompanhar as demais falas que se satisfazem meramente em mostrar nomes, datas e lugares para defenderem a influência de Husserl sobre o gestaltismo, para as quais parece bastar que se diga quem estudou com quem, quando e onde para o problema acabar. Também não podemos acompanhar os esforços que se apóiam em informações conceituais mínimas, afirmam algo de grande monta e não se preocupam em demonstrar a validade da própria posição, ou pelo menos argumentar com maior vagar em favor dela. Para afiançarmos qualquer proximidade entre as escolas, parece ser preciso entender como, perante tantas incompatibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas, a proximidade pretendida pode efetivamente se sustentar como tal.

5.2. Problemas ulteriores: Enunciada a nossa conclusão principal, é relevante apenas que consideremos com maior atenção a posição de Spiegelberg (1994) acerca da relação entre a fenomenologia de Stumpf e a gestaltista e que indiquemos algumas das defasagens mais evidentes de nosso percurso, as quais nos restam como indicações para estudos futuros.

5.2.1. A possível influência da fenomenologia experimental de Carl Stumpf: Como pudemos ver em nossas passagens pela psicologia de Stumpf e pelo gestaltismo berlinense, não são apenas razões históricas que justificam a aproximação entre

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o intelectual e a escola psicológica, mas também razões teóricas bastante relevantes. Não apenas Stumpf enuncia a tese que seria posteriormente radicalizada pelo gestaltismo – a saber, a tese segundo a qual o exame da experiência deve partir das totalidades imediatamente dadas –, como desenvolve concepções acerca dos objetos possíveis às nossas funções psíquicas e estudos experimentais acerca da relação entre estímulo e sensação que serão claramente retomados pela Escola de Berlim. No que se refere ao primeiro destes temas, encontramos uma clara defesa da relevância do estudo psicológico da experiência atual, bem como de que os conteúdos parciais que podem ser ditos dela são apenas abstrações a partir desta estrutura unitária. Já sabemos, no entanto, que Stumpf encontra meios de reconduzir esta tese ao paradigma tradicional na medida em que defende como uma hipótese útil para a pesquisa científica a identificação destes conteúdos abstraídos a elementos componentes, ligados a estímulos de intensidade proporcional. Ainda que enuncie o primado psicológico do todo em relação às partes, o pensador indica a maneira como estas partes podem ser consideradas dados geneticamente prioritários ao todo, quando o interesse explicativo entra em cena. Acerca do segundo tema, tivemos condição de ver o quanto o conceito de ‘conjunto’ (Inbegriff), que se refere a objetos estruturados a partir da mera soma de elementos isolados, desempenhou um papel relevante na crítica dirigida por Wertheimer à psicologia precedente. Se, para Stumpf, ressaltar o caráter aditivo daquele processo não era senão um modo de distingui-lo das formas (Forme ou Gestalqualitäten), para Wertheimer ele parece ser o instrumento mesmo para indicar a falha do conceito em explicar a experiência tal como ela ocorre a um sujeito ingênuo, na medida em que descreve de maneira mecânica e fragmentária o que se mostra sempre como unidade e harmonia. Por fim, acerca do terceiro tema, vimos que Stumpf estabelece as condições experimentais de um paradoxo que poderia, se explorado neste interesse, colocar em cheque a hipótese clássica de uma correspondência fixa entre a intensidade do estímulo e a intensidade da sensação por ele deflagrada. O psicólogo não procedeu deste modo, dedicando-se, antes a preservar a hipótese por meio da afirmação de que as sensações que deveriam corresponder a incrementos mínimos nos estímulos efetivamente existem como sensações, não sendo, no entanto, advertidas em nosso campo perceptual devido a uma peculiaridade de nossa constituição psicofísica, que não nos permitiria apreender diferenças tão sutis. Como indica Koffka, no entanto, o próprio paradoxo pode ser entendido de forma

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a corroborar o conceito de Gestalt, na medida em que os estímulos ministrados, não obstante permanecerem objetivamente os mesmos, são percebidos como diferentes em função da relação estabelecida com o outro estímulo que o segue. Como é bastante claro, Stumpf está presente em alguns dos passos fundamentais para a definição da teoria da experiência pelo gestaltismo berlinense, ainda que diversas alterações sejam impostas às suas concepções. No que se refere ao conceito gestaltista de fenomenologia, contudo, o silêncio é absoluto, como já sabemos. Não dispomos de nenhum indício em literatura primária, a não ser aqueles oferecidos por Katz, acerca de uma possível remissão do entendimento gestaltista do método ao entendimento de qualquer pensador mais velho. Spiegelberg (1994), no entanto, afirma peremptoriamente que Stumpf se encontra na origem do entendimento gestaltista de fenomenologia e que, a rigor, o caso da Escola de Berlim seria um dos primeiros exemplos da inserção das idéias do psicólogo no meio científico e mesmo do desenvolvimento de uma vertente do movimento fenomenológico que tem nele o seu primeiro representante, do mesmo modo que Husserl seria para tantos outros. Para concluirmos o nosso estudo, que só pôde tematizar as relações entre Stumpf e o gestaltismo de maneira secundária, é relevante que consideremos brevemente a hipótese de Spiegelberg a partir do que vimos em nosso percurso. As possibilidades de aproximarmos os dois também em termos metodológicos nos parecem dignas de atenção. Em primeiro lugar, sabemos que Wertheimer, por ocasião de seu discurso ao septuagésimo aniversário de Stumpf, mostrou profundo apreço pela forma como o psicólogo lidava com os fatos na condução de seus estudos, definindo a sua posição como a de uma receptividade e um cuidado amplos, os quais não tomariam os fatos como um conjunto de informações a ser recortado em função de interesses exteriores à observação – não tomariam, nas palavras do gestaltista, os fatos ‘como objeto de ataque’. Em vez disto, a posição de Stumpf seria de um feitio quase paternal e poderia ser resumida naquele que Wertheimer ressalta como um dos ensinamentos do psicólogo aos seus discípulos, a ‘devoção ao real’. Não se trata, portanto, apenas de uma característica que ele encontra em seu mestre e que considera digna de reverência, mas também uma característica que ele diz ter incorporado diretamente em suas atividades próprias e que nos parece inteiramente compatível com a posição metodológica do gestaltismo. A decisão de Wertheimer, nos

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Experimentelle Studien, de não considerar o fenômeno  uma ilusão, de estudá-lo, antes de tudo, a partir do que é psiquicamente dado ao sujeito experimental, está em plena concordância com esta injunção de não atacar os fatos. O sujeito vê o movimento e isto é um acontecimento positivo, que deve ser compreendido enquanto tal, e não sacrificado em favor de hipóteses acerca da experiência que não conseguem explicá-lo de pronto. Toda a atenção da fenomenologia gestaltista ao dado enquanto dado, ou, no dizer de Koffka, o seu esforço por tomar A como A e explicá-lo a partir disto, parecem ter os mesmos objetivos. Em segundo lugar, sabemos que a fenomenologia de Stumpf se propõe um estudo descritivo acerca dos aparecimentos sensíveis, o qual deve preceder os estudos propriamente causais que evidenciam os vínculos de dependência daqueles aparecimentos em relação a outros fatores externos à vida psíquica. O contributo geral desta fenomenologia, que evidentemente toma a percepção como a função psíquica que mais lhe interessa, é o de realizar uma inspeção qualitativa desta forma de experiência e clarificar os nexos estruturais que a marcam, como pudemos ver nas considerações de Stumpf acerca das partes físicas e psicológicas das representações do espaço e dos processos de fusão na percepção acústica. Não se tratam, evidentemente, de generalidades empiricamente sustentadas, mas sim de propriedades essenciais do fato perceptivo analisado, que mostram fatores necessários que atuam em sua organização. A fenomenologia gestaltista pode ser colocada em uma condição bastante similar, uma vez que se define como um exame descritivo da experiência do sujeito ingênuo; tematiza de modo privilegiado a percepção; procura encontrar os critérios imanentes de organização desta; e busca fazê-lo de modo a orientar estudos experimentais e hipóteses explicativas mais consistentes, consoantes com a experiência efetiva. Por fim, em terceiro e último lugar, sabemos que a fenomenologia de Stumpf é experimental e que se apoiava amplamente na manipulação laboratorial das condições de estimulação do organismo, para que as respostas fenomenais deste pudessem ser melhor controladas e avaliadas. Trata-se, claramente, de colocar o procedimento psicofísico não em função de um estudo genético já em seus primeiros momentos, mas sim compreensivo. Parece-nos que em muitos de seus estudos, o gestaltismo atuou de maneira bastante próxima a esta, o que podemos enxergar com clareza ímpar nos Experimentelle Studien, das quais fez parte uma grande quantidade de variações da estimulação não apenas para que as

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condições ótimas do fenômeno  pudessem ser delimitadas, mas também para que as suas diferentes possibilidades de manifestação fossem avaliadas. Sabemos que o psicólogo variou não apenas a distância relativa entre os estímulos e o tempo entre as emissões, mas também a posição relativa, a forma, as cores, o número de estímulos, a presença de um movimento real que os acompanhasse, as disposições de atenção do sujeito experimental etc. Uma grande quantidade de experiências distintas foram oriundas destas condições tão diversificadas e o interesse inicial de Wertheimer ao abordá-las foi, como sabemos, descritivo. É certo que podemos encontrar outros exemplos em que a variação da estimulação esteve a serviço da descrição, ainda que não neste nível de detalhes. As figuras projetadas por Wertheimer nas Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt II podem ser vistas deste modo também, sobretudo aquelas cuja organização foi alterada para facilitar o estudo de fatores formais de caráter mais dinâmico, como o destino comum e a orientação objetiva. Decerto a variação é bem mais explorada nos estudos de 1912, mas elas ainda se encontram presentes nestes últimos. Deste modo, encontramos compatibilidade entre as fenomenologias de Stumpf e do gestaltismo em pontos bastante relevantes de ambas, ainda que não tenhamos condições de explorar esta compatibilidade com o rigor devido aqui. Ela é defendida nestes momentos finais de nosso estudo apenas como uma forma de indicar o nosso posicionamento favorável à indicação de Spiegelberg (1994), que se mostra muito mais plausível do que a afirmação de um vínculo forte entre os berlinenses e o pensamento de Husserl. Isto quer dizer: se a nossa tese central foi negativa até então, procurando mostrar que, pelo recurso às fontes primárias mais relevantes, é extremamente difícil falar em uma proximidade intelectual efetiva entre a Escola de Berlim e a fenomenologia de Husserl, agora procuramos apenas sinalizar uma via positiva pela qual se pensar a fenomenologia daquela escola em suas relações com a tradição em que ela se insere. Trata-se, no entanto, apenas de um sinal, i.e., de uma indicação de um campo inquestionavelmente fértil de estudos que deve ser considerado em outro momento que não este.

5.2.2. Comentários finais: Por fim, é relevante que indiquemos algumas outras vias pelas quais a presente investigação pode ainda se desdobrar, de modo não apenas a expandir os resultados aos

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quais chegou, mas também a verificar o quanto esta expansão pode exigir um remanejo ou uma reestruturação dos mesmos. Seguindo a hipótese acima indicada, podemos encontrar elementos relevantes para pensarmos a relação entre o gestaltismo e Stumpf a partir do artigo Über unbemerkte Empfindungen und Urteilstäuschungen (1913), de Köhler, no qual ele critica a já citada tese de seu professor segundo a qual poderíamos ter dados nãonotados na percepção e que estes seriam de algum modo relevantes para se argumentar em favor da hipótese de constância. O mesmo valeria para as passagens dos Principles of Gestalt Psychology em que as contribuições de Stumpf são diretamente analisadas e criticadas por Koffka. No que se refere à fenomenologia gestaltista, poderíamos encontrar ganhos relevantes no estudo de obras apenas citadas aqui, como Intelligenzprüfungen an Menschenaffen e Die Physische Gestalten in ruhe und im stationären Zustand, de Köhler, nas quais o método é ocasionalmente citado ou empregado. Com efeito, a primeira destas obras é um dos registros mais remotos do uso gestaltista do termo, o que pode conferir a ela um valor especial. O mesmo poderia ser dito das diferentes seções das Logische Untersuchungen em que Husserl se refere diretamente às teses da Escola da Graz, sejam as de Ehrenfels, sejam as de Meinong, pois assim teríamos uma imagem mais rica de suas relações com este gestaltismo primevo do que nos permite ter a Terceira Investigação. Por fim, o texto Über den Begriff der Zahl, pertencente à fase psicologista do pensamento de Husserl, pode ser também de grande valia neste sentido, uma vez que lá o filósofo postula o conceito de ‘momento figural’, o qual seria por ele mesmo identificado à Gestaltqualität de Ehrenfels, como já vimos. Não obstante serem tantas as possibilidades de aprimorarmos a nossa compreensão das relações aqui tematizadas e de sabermos o quanto estas fontes, bem como outras, podem guardar informações valiosas, pouco freqüentes na história da psicologia atual, encerramos o nosso percurso por aqui. É certo que não resolvemos o problema acerca da influência de Husserl no gestaltismo berlinense a nível histórico, uma vez que esta não foi propriamente a nossa intenção ao longo de todas estas páginas e que não lidamos com documentos ou demais fontes materiais que pudessem nos oferecer uma compreensão satisfatória desta perspectiva específica do problema. Cremos ter contribuído, no entanto, para a sua solução a nível teórico, uma vez que nos dedicamos basicamente a explicitar e tratar de maneira sistemática certas características de ambas as escolas que são facilmente

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acessíveis ao pesquisador que se dedica a elas, ainda que muitas vezes pareçam não ter sido consideradas por estudos que sustentam posições similares às que vimos no início de nosso percurso – o que certamente fazem a partir de certas interpretações dos conteúdos em jogo que o texto não torna imediatamente patentes. No fim das contas, o que nos parece mais correto fazer é atentar para a freqüência com que os próprios gestaltistas, ao definirem ou comentarem o seu método, buscaram estabelecer uma distância entre ele e outros procedimentos homônimos. A tentativa de afirmar e constantemente reiterar a unicidade de sua posição não pode ser de modo algum casual e, pelo que nos consta, é perfeitamente solidária a outra característica destas exposições que já foi comentada linhas acima – a ausência de remissões a idéias de outros pensadores. Parece-nos mais correto ler e interpretar o gestaltismo a partir desta singularidade que ele mesmo buscou afirmar para si, entendendo perguntas acerca de suas heranças intelectuais como meras vias para chegarmos às teses inéditas que a própria escola produziu e que a colocaram no lugar de relevância que já conhecemos bem. Decerto, eles não desejavam outra coisa.

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Apêndice: Citações Originais da Literatura Primária Capítulo 1 - O estudo experimental da consciência 1.1.1. “Unter Gefühl versteht man hier, wie in der Folge immer die eigenthümliche Empfindungsart der Gefühlsnerven wie des N. trigeminus, vagus, glossopharyngeus und der Rückenmarksnerven, d.h. die Empfindung des Kitzels, der Wollust, des Schmerzes, der Wärme, Kälte, die Tastgefühle.” (p. 249) “Das was durch die Sinne zum Bewustsein kommt, sind zunächst nur Eigenschaften und Zustände unserer Nerven, aber die Vorstellung und das Urtheil sind bereit, die durch äussere Ursachen hervorgebrachten Vorgänge in unseren Nerven als Eigenschaften und Veränderungen der Körper ausser uns selbst auszulegen.” (p. 249) 1.1.2. “I. Zuerst wird nun diess festzuhalten sein, dass wir durch äussere Ursachen keine Arten des Empfindens haben können, die wir nicht auch ohne äussere Ursachen durch Empfindung der Zustände unserer Nerven haben.” (p. 250) “II. Dieselbe innere Ursache ruft in verschiedenen Sinnen verschiedene Empfindungen nach der Natur jedes Sinnes, nämlich das Empfindbare dieses Sinnes hervor.” (p. 251) “III. Dieselbe äussere Ursache erregt in den verschiedenen Sinnen verschiedene Empfindungen, nach der Natur jedes Sinnes, nämlich das Empfindbare des bestimmten Sinnesnerven” (p. 251) “IV. Die eigenthümlichen Empfindungen jedes Sinnesnerven können durch mehrere innere und äussere Einflüsse zugleich hervorgerufen werden” (p. 253) “V. Die Sinnesempfindung ist nicht die Leitung einer Qualität oder eines Zustandes der äusseren Körper zum Bewustsein, sondern die Leitung einer Qualität, eines Zustandes eines Sinnesnerven zum Bewustsein, veranlasst durch eine äussere Ursache, und diese Qualitäten sind in den verschiedenen Sinnesnerven verschieden, die Sinnesenergien.” (p. 254) “Wir empfinden beständig uns selbst in dem Umgange mit der sinnlichen Aussenwelt und machen uns damit Vorstellungen von der Beschaffenheit der äusseren Gegenstände, welche eine relative Richtigkeit haben können, aber niemals die Natur der Körper selbst zu jener unmittelbaren Anschauung bringen, zu welcher die Zustände unserer Körpertheile im Sensorium gelangen.” (p. 258) “VI. Ein Sinnesnerve scheint nur einer bestimmten Art der Empfindung und nicht derjenigen der übrigen Sinnesorgane fähig zu seyn, und kann daher auch keine Vertretung eines Sinnesnerven durch einen andern davon verschiedenen stattfinden.” (p. 258)

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“VII. Ob die Ursachen der verschiedenen Energieen der Sinnesnerven in ihnen selbst liegen, oder in Hirn und Rückmarkstheilen, zu welchen sie hingehen, ist unbekannt, aber es ist gewiss, dass die Centraltheile der Sinnesnerven im Gehirn, unabhängig von den Nervenleitern, der bestimmten Sinnesempfindungen fähig sind.” (p. 261) “VIII. Die Sinnesnerven empfinden zwar zunächst nur ihre eigenen Zustände, oder das Sensorium empfindet die Zustände der Sinnesnerven; aber dadurch dass die Sinnesnerven als Körper die Eigenschaften anderer Körper theilen, dass sie im Raume ausgedehnt sind, dass ihnen eine Erzitterung mitgetheilt werden kann und dass sie chemisch, durch die Wärme, und die Electricität verändert werden können, zeigen sie bei ihrer Veränderung durch äussere Ursachen, dem Sensorium ausser ihrem Zustande auch Eigenschaften und Veränderungen der Aussenwelt an, in jedem Sinne verschieden nach dessen Qualitäten oder Sinnesenergieen.” (p. 263) “IX. Es liegt nicht in der Natur der Nerven selbst, den Inhalt ihrer Empfindungen ausser sich gegenwärtig zu setzen, die unsere Empfindungen begleitende, durch Erfahrung bewährte Vorstellung ist die Ursache dieser Versetzung.” (p. 268) “Dem Bewusstseyn, dem Ich ist jede Empfindung, jede Bestimmung von aussen, jede Passion schon ein Aeusseres” (p. 268) “X. Die Seele nimmt nicht bloss den Inhalt der Empfindungen der Sinne auf, und legt sie vorstellend aus, sie hat auf den Inhalt derselben Einfluss, indem sie der Empfindung Schärfe ertheilt. Diese Intention kann sich bei den Sinnen mit Unterscheidung der räumliche Ausdehnung auf einzelne Theile des empfindsamen Organes isoliren, bei dem Sinne mit feiner Unterscheidung der Zeitmomente auf einzelne Acte der Empfindung isoliren. Sie kann auch einem Sinne ein Uebergewicht über den andern ertheilen.” (p. 272) 1.1.3. “Dem Verfasser ist die Seele nur eine besondere Form des Lebens unter den mannigfachen Lebensformen, welche Gegenstand der physiologischen Untersuchung sind; er hegt daher die Ueberzeugung, da die physiologische Untersuchung in ihren lezten Resultaten selbst psychologisch seyn müsse. Die Lehre von dem Leben der Seele als einer besondern Lebensform des Organismus ist daher nur ein Theil von der Physiologie im weitern Sinne des Wortes.” (p. III e IV) 1.2. “[...] das Naturganze einen Vorrath von wirkungsfähiger Kraft besitzt, welcher in keiner Weise weder vermehrt noch vermindert werden kann, dass also die Quantitt der wirkungsfähigen Kraft in der unorganischen Natur ebenso ewig und unveränderlich ist, wie die Quantitt der Materie.” (p. 65)

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1.2.1. “Die psychischen Thätigkeiten, durch welche wir zu dem Urtheile kommen, dass ein bestimmtes Object von bestimmter Beschaffenheit an einem bestimmten Orte ausser uns vorhanden sei, sind im Allgemeinen nicht bewusste Thätigkeiten, sondern unbewusste. Sie sind in ihrem Resultate einem Schlüsse gleich, insofern wir aus der beobachteten Wirkung auf unsere Sinne die Vorstellung von einer Ursache dieser "Wirkung gewinnen, während wir in der That direct doch immer nur die Nervenerregungen, also die Wirkungen wahrnehmen können, niemals die äusseren Objecte.” (p. 430) 1.2.2. “Die bezeichneten unbewussten Schlüsse von der Sinnesempfindung auf deren Ursache sind nun in ihren Resultaten den sogenannten Analogieschlüssen congruent. Weil in einer millionenfachen Ueberzahl von Fällen die Erregung der Netzhautstellen am äusseren Augenwinkel von äusserem Lichte herrührte, welches von der Gegend des Nasenrückens her in das Auge fiel, urtheilen wir, dass es auch in jedem neu eintretenden Falle so sei, wo die genannte Netzhautstelle erregt wird, ebenso, wie wir behaupten, dass jeder einzelne jetzt lebende Mensch sterben werde, weil bisher die Erfahrung ergeben hat, dass alle früher lebenden Menschen gestorben sind.” (p. 430) “Eben diese unablässige Prüfung der Genauigkeit der Gesichtsbilder durch unsere Handlungen ist es nun auch, was uns die felsenfeste Überzeugung von ihrer unmittelbaren und vollkommenen Wahrheit und Treue verschafft, eine Überzeugung welche durch keine noch so wohlbegründet erscheinenden Einwürfe der Philosophie oder Physiologie erschüttert wird.” (p. 272) “[...] die Verbindung der Sinnesempfindung mit der Vorstellung vom Objecte derselben vielen Physiologen und Psychologen so fest und zwingend zu erscheinen, dass sie wenig geneigt sind, anzuerkennen, dass diese Verbindung, wenigstens grossentheils, auf erworbener Erfahrung, also auf psychischer Thätigkeit beruhe [...]. In dieser Beziehung sind nun alle diejenigen Erfahrungen von grosser Bedeutung, welche nachweisen, wie durch Erfahrung und Einübung, die unter veränderten Umständen angestellt sind, die Beurtheilung der Sinnesempfindungen verändert und den neuen Bedingungen angepasst werden kann, so dass man theils lernt, Einzelheiten der Empfindung, die sonst nicht beachtet werden, und keine Anschauung vom Object erzeugen [...]” (p. 431) “Nun ist es ein allgemeines Gesetz aller unserer Sinneswahrnehmungen, dass wir nur so weit auf unsere Sinnesempfindungen achten, als sie uns dazu dienen können, die äusseren Objecte zu erkennen; wir sind in dieser Beziehung Alle, mehr als wir vermuthen, höchst einseitige und rücksichtslose Anhänger des praktischen Nutzens. Alle Empfindungen, welche nicht directen Bezug auf äussere Objecte haben, pflegen wir im gewöhnlichen Gebrauche der Sinne vollständig zu ignoriren, und erst bei der wissenschaftlichen Untersuchung der Sinnesthätigkeit werden wir darauf aufmerksam [...]” (p. 146) “In solchen Fällen lehrt uns die Erfahrung ein zusammengesetztes Aggregat von Empfindungen als das Zeichen für ein einfaches Object kennen, und gewöhnt den Empfindungscomplex als ein zusammengehöriges Ganze zu betrachten, vermögen wir in 367

der Regel nicht ohne äussere Hilfe und Unterstützung uns der einfachen Bestandtheile eines solchen bewusst zu werden. [...] Selbst bei viel zusammengesetzteren Empfindungen, die nur häufig wiederkehrenden zusammengesetzten Objecten entsprechen, wird die Analyse der Empfindung durch blosse Beobachtung desto schwerer, je häufiger dieselbe Zusammensetzung wiedergekehrt ist, und je mehr wir uns gewöhnt haben, sie als das normale Zeichen der wirklichen Beschaffenheit des Objects zu betrachten.” (p. 433) “Sie geben uns zwar Nachricht von den Eigenthümlichkeiten der Aussenwelt, aber nicht bessere, als wir einem Blinden durch Wortbeschreibungen von der Farbe geben.” (p. 41 e 42) 1.2.3. “Wir sehen also, wie hiebei die Erinnerungsbilder aus früheren Erfahrungen zusammenwirken mit gegenwärtigen Sinnesempfindungen, um ein Anschauungsbild hervorzubringen, welches sich unserem Wahrnehmungsvermögen mit zwingender Kraft aufdrängt, ohne dass darin für das Bewusstsein sich trennt, was durch Erinnerung, was durch gegenwärtige Wahrnehmung gegeben ist.” (p. 436) “[...] nichts in unseren Sinneswahrnehmungen als Empfindung anerkannt werden kann, was durch Momente, die nachweisbar die Erfahrung gegeben hat, im Anschauungsbilde überwunden und in sein Gegentheil verkehrt werden kann.” (p. 438) “[...] aller Schein entsteht durch vorschnelle unreflectirte Inductionen, bei denen wir aus früheren Fällen Schlüsse auf neue Fälle ziehen, und wo die Neigung zu den falschen Schlüssen bestehen bleibt, trotz der auf bcwusste Ueberlegung gegründeten bessern Einsicht in die Sache.” (p. 450) 1.2.4. “Das Ohr kann also, der Erfahrung nach, zusammengesetzte Luftbewegungen in ihre Theile zerlegen.” (p. 140) “Aber das Auge kann zusammengesetzte Lichtwellensysteme, d. h. zusammengesetzte Farben nicht von einander scheiden; es empfindet sie in einer nicht aufzulösenden, einfachen Empfindung, der einer Mischfarbe. Es ist ihm deshalb gleichgültig, ob in der Mischfarbe Grundfarben von einfachen oder nicht einfachen Schwingungsverhältnissen vereinigt sind. Es hat keine Harmonie in dem Sinne wie das Ohr; es hat keine Musik.” (p. 154) 1.3.1. “Unter Psychophysik soll hier eine exacte Lehre von den functionellen oder Abhängigkeitsbeziehungen zwischen Körper und Seele, allgemeiner zwischen körperlicher und geistiger, physischer und psychischer, Welt verstanden werden.” (p. 8)

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1.3.2. “[...] das Weber’schegesetz bildet nur die Unterlage für die zahlreichsten und wichstigsten Anwendung des psychischen Masses; aber nicht die allgemeine und nothwendige. Die allgemeinste, weiter rückliegende, Unterlage des psychischen Masses liegt vielmehr in eben jene Methoden, durch welche der Bezug zwischen Reiz- und Emfpindungszuwüchsen überhaupt, innerhalb wie ausserhalb der Gränzen des Weber’schen Gesetzes, zu ermitteln ist; und die Ausbildung dieser Methoden zu immer grösserer Schärfe und Vollkommenheit ist daher das, worauf es vor Allem in der psychischen Masslehre ankommt.” (p. 66) “Leicht kann man bemerken, dass die Beziehung zwischen den Zuwüchsen d und d in der Fundamentalformel der Beziehung zwischen den Zuwüchsen eines Logarithmus und den Zuwüchsen der zugehörigen Zahl entspricht.” (p. 11) “Stehen nun nach Vorigem die Zuwüchse von Empfindung und Reiz in einem entsprechenden Verhältnisse, als die von Logarithmus und Zahl, steht auch der Punct, von dem an die Empfindung merkliche Werthe anzunehmen beginnt, in einer entsprechenden Beziehung zum Reize, als der Punct, von dem an die Logarithmen positive Werthe erlangen, zur Zahl , so wird man erwarten dürfen, dass auch Empfindung und Reiz selbst in einem entsprechenden Verhältnisse stehen, als Logarithmus und Zahl, welche wie jene als aus successiven Zuwüchsen summirt betrachtet werden können.” (p. 12) 1.4. “I. Das subjektivistische Axiom: Der einzige legitime Ausgang der Psychologie ist die Selbstbeobachtung; ihr Gegenstand sind die Erlebnisse. II. Das atomistische Axiom: Die Analyse der Erlebnisse findet fest umschriebene elementare Bewutseinsinhalte; die sogennanten verwickelten oder höheren Phänomene sind Komplexionen aus ihnen. III. Das sensualistische Axiom: Genetisch originäre Inhalte sind nur die Sinnesdaten mit Einschlu der elementaren Gefühle. IV. Das mechanistische Axiom: Die Bildung der Komplexionen und der Erlebnisverlauf untersehen dem Kontiguitätsgesetz, dem Assoziationsprinzip; es gibt Simultan- und Sukzessionsverkittungen.” (p. 17) 1.5. “[...] niemand hat der Impressionismus, die um 1890 die Kunst und das psychologische Deken weithin erfüllte, einen so bestechend klaren und erkenntnistheoretisch begründeten Ausdruck verliehen, wie er.” (p. 21) 1.5.1. “Die stärkste Anregung erhielt vor 25 Jahren meine natürliche Neigung für die behandelten Fragen curch Fechner’s ‘Elemente der Psychophysik’ [...]” (p. VII) “Die Ansicht, welche sich allmählich Bahn bricht, da die Wissenschaft sich auf die übersichtliche Darstellung des Tatsächlichen zu beschränken habe, führt folgerichtig zur Ausscheidung aller müigen, durch die Erfahrung nicht kontrollierbaren Annahmen, vor allem der metaphysischen (im Kantschen Sinne). Hält man diesen Gesichtpunkt in dem

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weitesten, das Physische und Psychische umfassenden Gebiete fest, so ergibt sich als erster und nächster Schritt die Auffassung der ‘Empfindungen’ als gemeinsame ‘Elemente’ aller möglichen physischen und psychischen Erlebnisse, die lediglich in der verschiedenen Art der Verbindung dieser Elemente, in deren Abhängigkeit von einander bestehn.” (p. V) 1.5.2. “Als relativ beständiger zeigen sich zunächst räumlich und zeitlich (funktional) verknüpfte Komplexe von Farben, Tönen, Drücken u.s.w, die deshalb besondere Namen erhalten, und als Körper bezeichnet werden.” (p. 2) “Schon der Ausdruck zeigt, da es auf eine Summe von Beständigem ankommt, welchem das Neue hinzugefügt, von welchem das Fehlende nachträglich in Abzug gebracht wird.” (p. 2) “Erst jetzt treten die Bestandteile des Komplexes als Eigenschaften desselben hervor. Eine Frucht ist sü, sie kann aber auch bitter sein. Auch andere Früchte können sü sein. Die gesuchte rote Farbe kommt an vielen Körpern vor. Die Nähe mancher Körper ist angenehm, jene anderer unangenehm. So erscheinen nach und nach verschiedene Komplexe aus gemeinsamen Bestandteilen zusammengesetzt. Von den Körpern trennt sich das Sichtbare, Hörbare, Tatsbare ab. Das Sichtbare löst sich in Farbe und Gestalt. In der Mannigfaltigkeit der Farben treten wieder einige Bestandteile in geringerer Zahl hervor, die Grundfarben u.s.w. Die Komplexe zerfallen in Elemente, d. h. in letzte Bestandteile, die wir bisher nicht weiter zerlegen konnten.” (p. 4) “Das dunkle Bild des Beständigen, welches sich nicht merklich ändert, wenn ein oder der andere Bestandteil ausfällt, scheint etwas für sich zu sein. Weil man jeden Bestandteil einzeln wegnehmen kann, ohne da dies Bild aufhört, die Gesamtheit zu repräsentieren und wieder erkannt zu werden, meint man, man könnte alle wegnehmen und es bliebe noch etwas übrig. So entsteht in natürlicher Weise der anfangs imponierende, später aber als ungeheuerlich erkannte philosophische Gedanken eines (von seiner ‘Erscheinung’ verschiedenen unerkennbaren) Dinges an sich. Das Ding, der Körper, die Materie ist nichts auer dem Zusammenhang der Elemente, der Farben, Töne, u.s.w., auer den sogenannten Merkmalen.” (p. 5) 1.5.3. “Ein Würfel wird, wenn er nahe, gro, wenn er fern, klein, mit dem rechten Auge anders als mit dem linken, gelengtlich doppelt, bei geschlossenen Augen gar nicht gesehen. Die Eigenschaften eines und dessselben Körpers erscheinen also durch den Leib modifiziert, sie erscheinen durch denselben bedingt.” (p. 7) “Der Aussdruck ‘Sinnestäuschung’ beweist, da man sich noch nicht recht zum Bewutsein gebracht [...] hat, da die Sinne weder falsch noch richtig zeigen. Das einzig Richtige, was man von den Sinnesorganen sagen kann, ist, da sie unter verschiedenen Umständen verschiedene Empfindungen und Wahrnehmungen auslösen.” (p. 8)

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1.5.4. “Der Gegensatz zwischen Ich und Welt, Empfindung oder Erscheinung und Ding fällt dann weg, und es handelt sich lediglich um den Zusammenhang der Elemente a, b, g..., A, B, C,..., K, L, M,..., für welchen eben dieser Gegensatz nur ein theilweise zutreffender unvollständiger Ausdruck war. Dieser Zusammenhang ist nichts wieter als die Verknüpfung jener Elemente mit andern gleichartigen Elementen (Zeit und Raum).” (p. 11) “Der durch Ueberlegung erworbene monistische Standpunkt wird durch die älteren stärkeren instinctiven Vorstelungen leicht wieder getrübt.” (p. 14) “Auf diesem Wege finden wir also nicht die vorher bezeichnete Kluft zwischen Körpern und Empfindungen, zwischen aussen und innen, zwischen der materiellen und geistigen Welt. Alle Elemente A, B, C,..., K, L, M,... bilden nur eine zusammenhängende Masse, welche, an jedem Element angefasst, ganz in Bewegung geräth [...]” (p. 17) “Das hier verwendete Princip geht über die allgemeine Voraussetzung, dass jedem Psychischen ein Physisches entspricht und umgekehrt in seiner Specialisirung hinaus. Letztere allgemeine Annahme, die in vielen Fällen als richtig nachgewiesen ist, wird in Allen Fällen als wahrscheinlich richtig festgehalten werden können, und bildet zudem die nothwendige Voraussetzung der exacten Forschung. Von der Fechner’schen Auffassung des Physischen und Psychoschen als zweier verschiedener Seiten ein und desselben Realen ist die unrige ebenfalls verschieden. Erstens hat unsere Auffassung keinerlei metaphysischen Untergrund, sondern entspricht nur dem verallgemeinerten Ausdruck von Erfahrungen. Dann unterscheiden wir auch nicht zwei verschiedene Seiten eines unbekannten Dritten, sondern die in der Erfahrung vorgefundenen Elemente, deren Verbindung wir untersuchen, sind immer dieselben, nur von einerlei Art und treten nur je nach der Art ihres Zusammenhangs bald als physische, bald als psychische Elemente auf.” (p. 50 e 51) 1.5.5. “Ich halte nun aufrecht, dass ein physikalischer Begriff nur eine bestimmte Art des Zusammenhanges sinnlicher Elemente bedeutet, welche in dem Vorigen mit A, B, C,... bezeichnet wurden. Diese Elemente – Elemente in dem Sinne, dass eine weitere Auflösung bisher noch nicht gelungen ist – sind die einfachen Bausteine der physikalischen (und auche der psychologischen Welt).” (p. 34) “Der Baum mit seinem grauen harten rauhen Stamm, den vielen im Winde bewegten Zweigen, mit den glatten, glänzenden weichen Blättern erscheint uns zunächst als ein untrennbares Ganze.” (p. 84) “Wenn zwei Tonfolgen von zwei verschiedenen Tönen ausgehen und nach denselben Schwingungszahlenverhätnissen fortschreiten, so erkennen wir in beiden dieselbe Melodie ebenso unmittelbar durch die Empfindung, als wir an zwei geometrisch ähnlichen, ähnlich liegenden Gebilden die gleiche Gestalt erkennen.” (p. 222)

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Capítulo 2 - O estudo descritivo da consciência 2.1.1. “Nicht sowohl Vielheit und Allseitigkeit in den Lehrsätzen als Einheit in der Ueberzeugung ist was auf psychischem Gebiet uns zunächst Noth thut. Wir müssen hier das zu gewinnen trachten, was die Mathematik, Physik, Chemie und Physiologie, die eine früher, die andere später, schon erreicht haben; einen Kern allgemein anerkannter Wahrheit, an welchen dann bald, durch das Zusammenwirken vieler Kräfte, von Allen Seiten her neue Krystalle anschiessen werden. An die Stelle der Psychologieen müssen wir eine Psychologie zu setzen suchen.” (p. VI) “Unter Seele versteht nämlich der neuere Sprachgebrauch den substantiellen Träger von Vorstellungen und andern Eigenschaften, welche ebenso wie die Vorstellungen nur durch innere Erfahrung unmittelbar wahrnembar sind, und für welche Vorstellungen die Grundlage bilden; also den substantiellen Träger einer Empfindung z.B., einer Phantasie, eines Gedächtnissactes, eines Actes von Hoffnung oder Furcht, von Begierde oder Abscheu pflegt man Seele zu nennen.” (p. 6) “Aehnlich wie die Naturwissenschaft, welche die Eigenthümlichkeiten und Gesezte der Körper, auf die unsere äussere Erfahrung sich bezieht, zu erforschen hat, erscheint dann sie als die Wissenschaft, welche die Eigenthümlichkeiten und Gesetze der Seele kennen lehrt, die wir uns selbst unmittelbar durch innere Erfahrung finden und durch Analogie auch in Andern erschliessen” (p. 6) 2.1.2. “Aber was von den Gegenständen der äussern Erfahrung, kann nicht in gleicher Weise von denen der inneren gesagt werden. Bei dieser hat nicht bloss keiner gezeigt, dass, wer ihre Erscheinungen für Warheit nähme, in Widersprüche sich verwickelte, sondern wir haben sogar von ihrem Bestande jene klarste Erkenntniss und jene vollste Gewissheit, welche von der unmittelbaren Einsicht gegeben werden. Und desshalb kann eigentlich Niemand zweifeln, ob der psychische Zustand, den er in sich wahrnehme, sei, und ob er so sei, wie er ihn wahrnehme. Wer hier noch zu zweifeln vermöchte, der würde zu einem vollendeten Zweifel gelangen, zu einem Skepticismus, der freilich sich selbst aufhöbe, indem er auch jeden festen Punkt, von dem aus er seinen Angriff auf die Erkenntniss versuchen könnte, zerstört hätte.” (p. 11 e 12) “Die neue Erklärung des Namens Psychologie enthält nichts, was nicht auch von den Anhängern der älteren Schule angenommen werden müsste. Denn mag es eine Seele geben oder nicht, die psychischen Erscheinungen sind ja jedenfalls vorhanden. Und der Anhänger der Seelensubstanz wird nicht leugnen, dass alles, was er in Bezug auf die Seele feststellen könne, auch eine Beziehung zu den psychischen Erscheinungen habe. Es steht also nichts im Wege, wenn wir, statt der Begriffsbestimmung der Psychologie als Wissenschaft von der Seele, die jüngere uns eigen machen. Vielleicht sind beide richtig. Aber der Unterschied bleibt dann bestehn, dass die eine metaphysische Voraussetzungen enthält, von welchen die andere frei ist, dass diese von entgegengesetzten Schulen anerkannt wird, während die erste

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schon die besondere Farbe einer Schule an sich trägt, dass also die eine uns allgemeiner Voruntersuchungen enthebt, zu welchen die andere uns verpflichten würde. Und indem so die Annahme der jüngeren Fassung uns die Arbeit vereinfacht, gewährt sie noch einen anderen Vortheil als den der Erleichterung der Aufgabe. Jede Ausscheidung einer gleichgültigen Frage ist als Vereinfachung auch Verstärkung. Sie zeigt die Ergebnisse der Forschung von wenigeren Vorbedingungen abhängig und führt so mit grösserer Sicherheit zur Ueberzeugung hin.” (p. 23) “Nur ganz flüchtig weise ich darauf hin, wie in der Psychologie die Wurzeln der Aesthetik liegen, die unfehlbar bei vollerer Entwickelung das Auge des Künstlers klären und seinen Fortschritt sichern wird. Auch das sei nur mit einem Worte berührt, dass die wichtige Kunst der Logik, von der ein Fortschritt tausend Fortschritte in der Wissenschaft zur Folge hat, in ganz ähnlicher Weise aus der Psychologie ihre Nahrung zieht. Aber die Psychologie hat auch die Aufgabe, die wissenschaftliche Grundlage einer Erziehungslehre, des Einzelnen wie der Gesselschaft, zu werden. Mit Aesthetik und Logik erwachsen auch Ethik und Politik auf ihrem Felde. Und so erscheint sie als Grundbedingung des Fortschrittes der Menschheit gerade in dem, was vor Allem ihre Würde ausmacht.” (p. 26) 2.1.3. “Die Aufschrift, die ich meinem Werke gegeben, kennzeichnet dasselbe nach Gegenstand und Methode. Mein Standpunkt in der Psychologie ist der empirische; die Erfahrung allein gilt mir als Lehrmeisterin: aber mit Anderen theile ich die Ueberzegung, dass eine gewisse ideale Anschauung mit einem solchen Standpunkte wohl vereinbar ist.” (p. V) “Nur während man mit seiner Aufmerksamkeit einem anderen Gegenstande zugewandt ist, geschieht es, dass auch die auf ihn bezüglichen psychischen Vorgänge nebenbei zur Wahrnehmung gelangen. So kann die Beobachtung der physischen Phänomene in der äusseren Wahrnehmung, indem sie für die Erkenntnis der Natur uns Anhaltspunkte gibt, zugleich ein Mittel psychischer Erkenntniss werden. Und die Hinwendung der Aufmerksamkeit auf die physischen Phänomene in der Phantasie ist sogar, wenn nicht ausschliesslich, doch jedenfalls zunächst und hauptsächlich für psychische Gesetze die Erkenntnissquelle.” (p. 36) “Diese sind wahr in sich selbst. Wie sie erscheinen, - dafür bürgt die Evidenz, mit der sie wahrgenommen werden – so sind sie auch in Wirklichkeit.” (p. 24 e 25) 2.1.4. “Ein Beispiel für die psychischen Phänomene bietet jede Vorstellung durch Empfindung oder Phantasie; und ich verstehe hier unter Vorstellung nicht das, was vorgestellt wird, sondern den Act des Vorstellens. Also das Hören eines Tones, das Sehen eines farbigen Gegenstandes, das Empfinden von Warm oder Kalt, so wie die ähnlichen Phantasiezustände sind Beispiele, wie ich sie meine; ebenso aber auch das Denken eines allgemeinen Begriffes, wenn anders ein solches wirklich vorkommt. Ferner jedes Urtheil, jede Erinnerung, jede Erwartung, jede Folgerung, jede Ueberzeugung oder Meinung, jeder Zweifel – ist ein psychisches Phänomen. Und wiederum ist ein solches jede

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Gemüthsbewegung, Freude, Traurigkeit, Furcht, Hoffnung, Muth, Verzagen, Zorn, Liebe, Hass, Begierde, Willen, Absicht, Staunen, Bewunderung, Verachtung u.s.w.” (p. 103) “Beispiele von physischen Phänomenen dagegen sind eine Farbe, eine Figur, eine Landschaft, die ich sehe; ein Accord, den ich höre; Wärme, Kälte, Geruch, die ich empfinde; sowie ähnliche Gebilde, welche mir in der Phantasie erscheinen.” (p. 104) 2.1.5. “Jedes psychische Phänomen ist durch das charakterisirt, was die Scholastiker des Mittelalters die intentionale (auch wohl mentale) Inexistenz eines Gegenstandes gennant haben, und was wir, obwohl mit nicht ganz unzweideutigen Ausdrücken, die Beziehung auf einen Inhalt, die Richtung auf ein Object (worunter hier nicht eine Realität zu verstehen ist), oder immanente Gegenständlichkeit nennen würden. Jedes enthält etwas als Object in sich, obwohl nicht jedes in gleicher Weise. In der Vorstellung ist etwas vorgestellt, in dem Urtheile ist etwas anerkannt oder verworfen, in der Liebe geliebt, in dem Hasse gehasst, in dem Begehren begehrt u.s.w. Diese intentionale Inexistenz ist den psychischen Phänomenen ausschliesslich eigenthümlich. Kein physisches Phänomen zeigt etwas Aehnliches. Und somit können wir die psychischen Phänomene definiren, indem wir sagen, sie seien solche Phänomene, welche intentional einen Gegenstand in sich enthalten.” (p. 115) “In welchem Sinne kann man also allein etwa sagen, dass von psychischen Phänomenen stets nur eines, von physischen dagegen viele zu gleicher Zeit auftreten? Man kann es, insofern die ganze Mannigfaltigkeit der psychischen Phänomene, die Jemanden in innerer Wahrnehmung erscheinen, ihm immer als reine Einheit sich zeigt, während von den physischen Phänomenen, die er gleichzeitig durch sogennante äussere Wahrnehmung erfasst, nicht dasselbe gilt.” (p. 125) “Wenn wir Farbe, Schall, Wärme, Geruch gleichzeitig wahrnehmen, so hindert uns nichts, jedes einem besonderem Dinge zuzuschreiben. Dagegen die Mannigfaltigkeit der entsprechenden Empfindungsacte, Sehen, Hören, Empfinden der Wärme und Riechen, und mit ihnen das gleichzeitige Wollen und Fühlen und Nachdenken, so wie die innere Wahrnehmung, die uns von ihnen allen Kenntniss gibt, sind wir genöthigt, für Theilphänomene eines einheitlichen Phänomens, in dem sie enthalten sind, und für ein einziges einheitliches Ding zu nehmen. Worin der Grund dieser Nöthigung besteht, das werden wir etwas später eingehend erörtern und dann auch noch manches hieher Gehörige ausführlicher darlegen. Denn das, was wir hier berührten, ist nichts Anderes als die sogennante Einheit des Bewusstseins, eine der folgenreichsten und immer noch angefochtenen Thatsachen der Psychologie” (p. 126) 2.1.6. “Die Vorstellung des Tones und die Vorstellung von der Vorstellung des Tones bilden nich mehr als ein einziges psychisches Phänomen, das wir nur, indem wir es in seiner Beziehung auf zwei verschiedene Objecte, deren eines ein physisches, und deren anderes ein psychisches Phänomen ist, betrachten, begrifflich in zwei Vorstellungen zergliederten. In

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demselben psychischen Phänomen, in welchem der Ton vorgestellt wird, erfassen wir zugleich das psychische Phänomen selbst, und zwar nach seiner doppelten Eigenthümlichkeit, insofern es als Inhalt den Ton in sich hat, und insofern es zugleich sich selbst als Inhalt gegenwärtig ist. Wir können den Ton das primäre, das Hören selbst das secundäre Object des Hörens nennen. Denn zeitlich treten sie zwar beide zugleich auf, aber der Natur der Sache nach ist der Ton das frühere. Eine Vorstellung des Tones ohne Vorstellung des Hörens wäre, von vorn herein wenigstens, nicht undenkbar ; eine Vorstellung des Hörens ohne Vorstellung des Tones daggegen ein offenbarer Widerspruch. Dem Tone erscheint das Hören im eigentlichsten Sinne zugewandt, und indem es dieses ist, scheint es sich selbst nebenbei und als Zugabe mit zu erfassen.” (p. 167) “Um sogleich unsere Ansicht auszusprechen, so halten auch wir dafür, dass hinsichtlich der verschiedenen Weise ihrer Beziehung zum Inhalte drei Hauptclassen von Seelenthätigkeiten zu unterscheiden sind. Aber diese drei Gattungen sind nicht dieselben wie die, welche man gemeiniglich aufstellt, und wir bezeichnen in Ermangelung passenderer Ausdrücke die erste mit dem Namen Vorstellung, die zweite mit dem Namen Urtheil, die dritte mit dem Namen Gemüthsbewegung, Interesse oder Liebe.” (p. 261) “Wir reden von einem Vorstellen, wo immer uns etwas erscheint. Wenn wir etwas sehen, stellen wir uns eine Farbe; wenn wir etwas hören, einen Schall; wenn wir etwas phantasiren, ein Phantasiegebilde vor.” (p. 261) 2.1.8. “[...] es zeigt sich, dass dieselbe psychische Erscheinung, z.B. dieselbe Empfindung, unter verschiedenen Umständen ganz verschieden gefühlt wird, dass sie bald mehr, bald minder gefällt, und sogar bald Lust, bald Unlust erregt. Wenn wir die Tonleiter aufwärts oder abwärts spielen, so hören wir dieselben Töne, aber mit anderen Gefühlen, und noch deutlicher und mannigfaltiger werden die Unterschiede bei anderen Anordnungen der Töne. Passt der Ton in den Zusammenhang der Melodie, so erscheint er angenehmer; passt er nicht, so wird er, wie sonor er sonst sein möge, von einem unangenehmen Gefühle begleitet sein. Wird eine Melodie in einer anderen Tonart gespielt, so gibt jeder Ton ein ganz ähnliches Gefühl, wie derjenige, welches an ihn, als er damals erschienen, geknüpft war. Auf dem Gebiete der Farben zeigt sich dasselbe. Es gibt solche, von denen wir sagen, dass sie wohl zusammen stimmen, und es gibt andere, bei denen das Gegentheil der Fall ist. Während die ersteren, nach- oder nebeneinander gesehen, ganz besonders angenehm werden, beleidigen die letzteren, in gleicher Weise in Verbindung gebracht, unser Auge. Wir werden später von den Erscheinungen des simultanen Contrastes sprechen, bei welchen eine Farbe, obwohl in ihrer Erscheinung ganz unverändert, für eine andere gehalten wird. In diesem Falle ist auch das merkwürdig, dass das Gefühl, welches die Empfindung der Farbe begleitet, verändert ist. Aehnlich wie bei der Uebertragung einer Melodie in eine andere Tonart mit jedem einzelnen Ton ein dem Gefühle des Tones, der früher die betreffende Stelle einnahm, verwandtes Gefühl verknüpft wird, finden wir hier, dass die Farbe, welche man mit einer anderen Farbe verwechselt, ein dem Gefühl, welches diese gewöhnlich erweckt, verwandtes Gefühl mit sich führt.” (p. 200 e 201)

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2.2.1. “[...] [wir] durch Zusammenfasung der betreffenden Einzelempfindungen erst zu erzeugen genöthigt sind.” (p. 250) “[...] was denn jene Vorstellungsgebilde ‘Raumgestalt’ und ‘Melodie’ in sich seien, – eine blosse Zusammenfassung von Elementen, oder etwas diesen gegenüber Neues, welches zwar mit jener Zusammenfassung, aber doch unterscheidbar von ihr vorliegt?” (p. 250) 2.2.2. “Es ist also zweifellos, dass die Vorstellung einer Melodie einen Vorstellungscomplex voraussetzt, und zwar eine Summe von einzelnen Tonvorstellungen mit verschiedenen, sich an einander schliessenden zeitlichen Bestimmtheiten.” (p. 252) “Wären die Vorstellungen etwa den Atomen gleich zu achten, und bestünde alles psychische Leben nur darin, schon fertige Voratellungsinhallte aus einem Bewusstsein in ein anderes zu übertragen, so könnte es Befremden erregen (wenn auch ein entschiedener Widerspruch selbst dann noch nicht zu finden sein würde), dass durch Vereinigung mehrerer solcher Elemente in einem Bewusstsein ein neues Element entstehen sollte.” (p. 254) “Sie verträgt sich vollkommen mit der Annahme einer durchgängigen und directen Abhängigkeit sämmtlicher psychischer Processe von physiologischen Vorgängen.” (p. 255) 2.2.3. “Wir haben also einerseits zwei Complexe von Tonvorstellungen, welche aus durchgängig verschiedene Bestandtheilen gebildet werden, und doch ähnliche (oder nach der gewöhnliche Sprechweise sogar dieselbe) Melodie ergeben, auf der anderen Seite zwei Complexe, welche aus tonal vollkommen gleichen Elementen gebildet werden und durchaus verschiedene Melodien ergeben. Hieraus geht undwiderleglich hervor, dass die Melodie oder Tongestalt etwas Anderes ist, als die Summe der einzelnen Töne, auf welchen sie sich aufbaut.” (p. 259) “Diese Beziehung ist nach unserer Auffassung in einem positiven Vorstellungselement, der Tongestalt, begründet, derart, dass ein und dieselbe Tongestalt immer gleiche Beziehung zwischen den Elementen ihres Tonsubstrates (den einzelnen Tonvorstellungen) bedingt.” (p. 262) “Unter Gestaltqualitäten verstehen wir solche positive Vorstellungscomplexen im Bewusstsein gebunden sind, die ihrerseits aus von einander trennbaren (d.h. ohne einander vorstellbaren) Elementen bestehen. – Jene für das Vorhandensein der Gestaltqualitäten nothwendigen Vorstellungscomplexe wollen wir die Grundlage der Gestaltqualitäten nennen.” (p. 262, 263)

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2.3. “Die das Verhältnis der Empfindungen zu den äueren Reizen betreffenden Gesetzlichkeiten: die spezifischen Energien und das Fechnersche Gesetz spielen auch in meinen Arbeiten eine Rolle.” (p. 248) 2.3.1. “In dem Verhältnis zwischen Farbe und Ausdehnung glaubte ich (und glaube ich noch) ein sinnenfälliges Beispiel oder Analogon des Verhältnisses zu sehen, wie es die Metaphysik zwischen den Eigenschaften einer Substanz annimt.” (p. 212) “Schon im Raumbuche bildet den Mittelpunkt der Beweisführung der Begriff der ‘psychologischen Teile”, d.h. der unselbständigen oder Teil-Inhalte, die sich ihrer Natur nach nicht getrennt vorstellen lassen, sondern nur unabhängige Veränderungsweisen der na sich einheitlichen Empfindung darstellen.” (p. 244) “Schon in jeder Sinnesempfindung bilden die ‘Attribute’: Qualität, Intensität, Ausdehnung usw. nicht eine Summe, sondern ein Ganzes, ja die Teile sind nur nachträgliche Abstraktionen. Im Gebiete der psychischen Funktionen sind intellektuelle und emotionelle Funktionen und überhaupt alle gleichzeitig gegebenen Bewutseinszustände innerlichst verknüpft (Einheit des Bewustseins) und werden in dieser Einheitlichkeit direkt wahrgenommen.” (p. 235 e 236) “Es gibt tatsächlich Gelegenheiten, die nicht nur eine Aufeinanderfolge, sondern einen inneren Nexus wahrnehmen lassen.” (p. 236) 2.3.2. “Sie gehören zum Material der intellektuellen Funktionen, sind nicht selbst Funktionen, noch auch Erzeugnissen von solchen.” (p. 4) “Unmittelbar gegeben nennen wir, was als Tatsache unmittelbar einleuchtet. [...] Mir scheint nun die Beschreibung des unmittelbar Gegebenen nur dann mit erschöpfender Vollständigkeit möglich, wenn man dreierlei dazu rechnet: Erscheinungen, Funktionen, endlich Verhältnisse zwischen den Elementen jeder dieser Gattungen und zwischen den Elementen der einen und anderen Gattung.” (p. 6 e 7) “Die Gesamtheit des unmittelbar Gegebenen ist real. Denn sie ist das, wovon wir überhaupt den Begriff des Realen gewinnen, um ihn dann erst auf anderes zu übertragen. Die Erscheinungen sind real als Inhalte, worauf sich Funktionen beziehen, die Funktionen sind real as Funktionen, die sich an Erscheinungen betätigen, die Verhältnisse als Verhältnisse zwischen Erscheinungen oder zwischen Funktionen usw. Von ‘bloen Erscheinungen’ können wir nicht in dem Sinne sprechen, als wären sie, ohne Bezug auf eine äuere Wirklichkeit, ein völliges Nichts. Die Erscheinungen gehören nur nicht der Wirklichkeit an, der sie das naive Denken zunächst zuschreibt, nämlich einer vom Bewutsein unabhängigen Wirklichkeit. Nicht blo aber sind Erscheinungen und Funktionen, jedes in

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seiner Weise und in seiner Stellung gegenüber dem anderen, real, sondern sie bilden unter sich eine reale Einheit. Denn sie sind in engster Verknüpfung miteinander gegeben [...].” (p. 10) 2.3.3. "Als primitivste Funktion betrachte ich dasWahrnehmen oder Bermerken (Notiznehmen)." (p. 16) “Bei jeder sinnlichen Wahrnehmung handelt es sich um ein Bemerken von Teilen in einem Ganzen, weiterhin auchvon Verhältnissen zwischen diesen Teilen. Wir fassen zuerst nur das Bemerken von Teilen ins Auge. Da die Teile innerhalb des Ganzen, dem sie angehören, bemerkt werden, so involviert jedes Wahrnehmen notwendig den Unterscheid des wahrgenommenen Teiles von den unwahrgenommenen Teilen der Erscheinungen, gleichsam des Vordergrundes vom Hintergrund. Das im Hintergrund Bleibende nennen wir auch wohl 'blo empfunden' oder perzipiert gegenüber dem Apperzipierten. Hier ist also durch den Zusatz 'blo' die Bedeutung des Audrucks 'empfinden' wesentlich verändert.” (p. 16 e 17) “Algemeinhin lät sich ja leicht sagen, es sei ein Fehlschlu oder eine unerlaubte ‘Verdinglichung’ das, was wir nachher unterscheiden, als schon vorher vorhanden anzunehmen. Aber wäre es auch wirklich eine bloe Annahme: warum sollte sie unerlaubt sein? Man hat es neuerdings auch dem Chemiker als Fehlschlu der Verdinglichung angerechnet, da er in die Kohlensäure die beiden Stoffe hineinverlege, die er nachher daraus gewinnt. Nun ist der Psychologe insofern günstiger daran, als er sich auch auf das Zeugnis der direkten Vergleichung berufen kann. Aber einer verkehrten Denkweise braucht sich auch der Chemiker nicht beschuldigen zu lassen. Man kann die atomistische Hypothese vertreten, man kann auch ihr Gegenteil, die Stetigkeits- und Umwandlungslehre, durchzuführen versuchen, womit man vorläufig bei den chemischen Vorgängen harten Stand haben wird: jedenfalls hat aber sowohl der Psychologe, der Perzipiertes und Apperzipiertes unterscheidet, wie der atomistische Chemiker ein Recht darauf, seine Aufstellung nicht als Produkt kindlich verkehrter Denkgewohnheiten angesehen zu wissen, sondern als mit dem vollen Bewutsein der Regeln wissenschaftlicher Forschung aufgestellte Theorie, die nach denselben Regeln durchgepüft werden mu.” (p. 20) “Darunter ist zu verstehen: das, was eine Melodie oder eine räumliche Figur der eine sonstige, als zusammenhängendes Ganzes aufgefate Vielheit von Erscheinungen unterscheidet von einer Vielheit sonst gleicher und gleich angeordneter Erscheinungen, die aber vom Bewutsein nicht zusammengefat werden.” (p. 28) “Es gibt nun aber auch Zusammenfassungen, bei denen keine sachliche Zusammengehörigkeit, keine verbindenden gemeinschaftlichen Beziehungen der Teile obwalten. Wir können das Heterogenste durch ein ‘und’ in unseren Gedanken verbinden. Daher möchte ich unter Mitberücksichtigung dieser Fälle mit dem allgemeinen Ausdruck ‘Inbegriff’ alles das bezeichnen, was als spezifisches Ergebnis einer Zusammenfassung im Bewutsein auftritt. Der Inbegriff ist nicht die zusammenfassende Funktion selbst, noch auch das

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zusammengefate Material. Er ist das notwendige Korrelat der zusammenfassenden Funktion. Formen (Gestaltqualitäten) sind dann spezielle Fälle von Inbegriffen, bei denen noch die sachlich verbindenden Beziehungen der Glieder hinzukommen.” (p. 29) 2.3.4. “[...] die Phänomenologie, d.h. eine bis zu den letzten Elementen vordringende Analyse der sinnlichen Erscheinungen in sich selbst. Die Erscheinungen von Farben, Tönen, Gerüchen, Gestaltungen in Raum und Zeit sind nicht die physische Welt selbst, wie sie sich dem Geiste des Naturforschers darstellt, noch auch sind sie die psychische Welt. Aber sie sind das Material, woraus der Physiker schöpft, und sie sind zugleich der Ausgangspunkt und der Nährstoff des gesamten Seelenlebens. Deshalb bedarf sowohl Natur – wie Geistesforschung dieser Untersuchung, und am meisten natürlich die Philosophie, die die Gesetze der Natur und des Geistes gleichsehr berücksichtigen soll.” (p. 186) “Die Untersuchung der sinnlichen Erscheinungen als solcher, die heute so groen Raum einnimmt, ist im Grunde nicht Psychologie, sondern eben Phänomenologie, eine von Physikern, Physiologen und Psychologen gemeinsam betriebene Vorwissenschaft. Psychologen gemeinsam betriebene Vorwissenschaft. Psychologen haben sich ihrer heute besonders angenommen, weil sie hier ein exakt und experimentell erforschbares Gebiet fanden, na dem sich auch die Gesetzlichkeiten der dadurch ausgelösten psychischen Funktionen verfolgen lieen.” (p. 242 e 243)

Capítulo 3 - A Gestalttheorie da Escola de Berlim “Moreover, it was not only the stimulating newness of our enterprise which inspired us. There was also a great wave of relief -- as though we were escaping, from a prison. The prison was psychology as taught at the universities when we still were students. At the time, we had been shocked by the thesis that all psychological facts (not only those in perception) consist of unrelated inert atoms and that almost the only factors which combine these atoms and thus introduce action are associations formed under the influence of mere contiguity. What had disturbed us was the utter senselessness of this picture, and the implication that human life, apparently so colorful and so intensely dynamic, is actually a frightful bore. This was not true of our new picture, and we felt that further discoveries were bound to destroy, what was left of the old picture.” (p. 728) 3.2.1. “Man sieht eine Bewegung: ein Gegenstand bewegte sich von einer Lage in eine andere. Man beschreibt den physikalischen Sachverhalt: bis zum Zeitpunkt z1 hat sich der Gegenstand in der Lage l1 (am Orte o1) befunden; vom Zeitpunkt zn an in der Lage ln (am Orte on); in der Zwischenzeit, zwischen z1, und zn, hat sich der Gegenstand sukzessiv, zeitund raumkontinuierlich, in den Zwischenlagen zwischen l1 und ln befunden und ist durch sie nach ln gelangt.” (p. 162)

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“Man zeichne auf den Objektstreifen eines Stroboskops zwei Objekte einfacher Art. Z. B. eine 3 cm lange Horizontale am Anfang des Streifens, eine zweite in der Mitte des Streifens etwa 2 cm tiefer. Bei relativ sehr langsamer Rotation des Stroboskops erscheint zuerst die eine Horizontale, dann die andere ; die beiden treten klar sukzessiv und dualiter auf. Bei sehr schneller Rotation sieht man sie simultan übereinander; sie sind gleichzeitig, zusammen da. Bei einer mittleren Geschwindigkeit sieht man bestimmte Bewegung: ein Strich bewegt sich klar und deutlich von einer oberen Lage in eine untere und zurück.” (p. 164) “Dabei muss das Wort ‘Täuschung’ in einem Sinn gleich hier abgewiesen werden; um Täuschung über den wirklichen physikalischen Sachverhalt darf es sich hier zunächst nicht handeln; die Untersuchung muss das psychisch Gegebene zu beschreiben und zu erforschen suchen.” (p. 167 e 168) “ ist etwas, a und b einheitlich betreffendes, sich auf ihnen aufbauendes, sie beide fassendes und verbindendes.” (p. 186) 3.2.2. “So hatten sich – im Extrem – zwei Formen gezeigt: a b mit dem -Vorgange dazwischen [...] und hier  ab so verschmolzen, da a und b nicht mehr als aus dem Ganzen abzusondernde, sich irgendwie aus dem Vorgang heraushebende Data gegeben waren.” (p. 214) 3.2.3. “Es mu nach neueren hirnphysiologischen Forschungen als wahrscheinlich angenommen werden, da mit einer Erregung einer zentralen Stelle a eine physiologische Wirkung in gewissen Umkreis um dieselbe gesetzt ist. Werden zwei Stellen, a und b, in Erregung versetzt, so ergäbe sich beiderseits solche Umkreiswirkung, der Umkreis ist für Erregungsvorgänge prädisponiert. Wird die Stelle a gereitzt, in bestimmt kurzer Zeit nachher die nahe Stelle b, so träte eine Art physiologischen Kurzschlusses von a nach b ein: in dem Abstand zwischen beiden Stellen finde ein spezifisches Hinüber von Erregung statt; ist der Grad der Umkreiswirkung von a z.B. an dem Höhepunkt seiner zeitlichen Verlaufskurve angelangt und bietet sich nun Umkreiswirkung von b, so flute Erregung hinüber, ein physiologisch spezifischer Vorgang, dessen Richtung dadurch gegeben ist, da a um die Umkreiswirkung um a zuerst da ist. Je näher die beiden Stellen a b einander sind, desto günstiger sind die Bedingungen für ein Entstehen des -Vorgangs [...].” (p. 248) “Es liegt hier die Vermutung zugrunde, da nicht die Erregungsvorgänge in den erregten Zellen selbst [...] oder die Summe dieser Einzelerregungen das einzig wesentliche sind: sondern da eine wichtige und für manche, psychologisch herauszufassende, Faktoren direkt wesentliche Rolle charakteristischen Quer- und Gesamtvorgängen zukomme, die, aus der Erregung der Einzelstellen [...] resultieren.” (p. 251)

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“[...] erscheinen die beiden Objekte in der Regel in besonderer Weise als duo in uno, als zwingende Gesamtgestalt: nicht zwei Linien von einem Punkt ausgehend sind da, sondern ein Winkel; nicht oben eine Horizontale, unten eine, sondern die Gestalt.” (p. 251) 3.3.1. “Allem ‘Komplexen’ liegt zunächst, als Grundlage, die Summe nebeneinander gegebener elementarer Inhalte, Bestandstücke (Empfindungen usw.) zugrunde. Man hat es im Grunde mit einer summativen Manigfaltigkeit von verschiedenartigen Bestandstücken (einem ‘Bündel’) zu tun; alles weitere baut sich auf der Und-Summe der Elemente irgendweiter auf [...]” (p. 49) “Ist ein Inhalt a mit einem andern b öfter zusammen dagewesen, (‘in raumzeitlicher Kontiguität’), so besteht die Tendenz, da das Auftreten von a das Erscheinen von b nach sich ziehe.” (p. 49) “In der Assoziation ist eine bloe Existentialverbindung gegeben, eine Verbindung nur bezüglich des Auftretens der (irgendwelchen) Inhalte; eine Verkettung, die prinzipiell sachfremder Natur ist; die verketteten Inhalte sind gegeneinander beliebig; ihr inhaltlichtes Zueinander kommt prinzipiell nicht in Frage; wie sie zueinander stehen, spielt keine Rolle, sie haben keine innere Ingerenz aufeinander. Es führt keine Brücke prinzipiell von einem zum andern als die bloe Existentialverbindung.” (p. 49) “[...] the sensation is a direct and definite function of the stimulus. Given a certain stimulus and a normal sense- organ, we know what sensation the subject must have, or rather, we know its intensity and quality” (p. 534) 3.3.2. “Man könnte das Grundproblem der Gestalttheorie etwa so formulieren suchen: Es gibt Zusammenhänge, bei denen nicht, was im Ganzen geschieht, sich daraus herleitet, wie die einzelnen Stücke sind und sich zusammensetzen, sondern umgekehrt, wo – im prägnanten Fall – sich das, was an einem Teil dieses Ganzen geschieht, bestimmt von inneren Strukturgesetzen dieses seines Ganzen.” (p. 3) “Ist es denn überhaupt wahr, daß, wenn ich eine Melodie höre, ich dann die Summe der einzelnen Töne als primär zu sehende Grundlage - die einzelnen Töne als Stücke jedenfalls habe; ist es vielleicht nicht umgekehrt so, daß das, was ich da überhaupt habe, was ich auch an dem Ort der einzelnen Töne habe, was da in mir entsteht, ein Teil ist, der sich auch in sich bestimmt von dem Charakter des Ganzen? Daß das, was mir in der Melodie gegeben ist, sich nicht irgendwie aufbaut (durch irgendwelche Hilfsmittel) sekundär auf der Summe der einzelnen Stücke an sich, sondern daß das, was im einzelnen vorhanden ist, entsteht, schon radikal abhängt von dem, wie sein Ganzes ist. Daß das Fleisch und Blut eines Tones in der Melodie schon von seiner Rolle in der Melodie abhängt, daß ein b als Vorhalt zum c etwas radikal anderes ist als das b als Tonika, daß es zum Fleisch und Blut der Gegebenheiten gehört, wie, in welcher Rolle, in welcher Funktion sie in ihrem Ganzen sind.” (p. 5 e 6)

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“Nicht also sind ‘die Stücke’ zunächst als das ’prius’ anzusetzen, als Fundament in UndVerbindung und unter prinzipieil sachfremden Bedingungen ihres Auftretens, sie stehen vielfach als Teile unter sachlichen Bedingtheiten von ihrem Ganzen her, sind von ihnen her ‘als Teile’ zu verstehen. [Wobei freilich ‘Ganze’ und ‘Teile’ in einem sehr prägnanten Sinn gemeint sind, der im weiteren konkret werden soll.] Nicht also sind ‘Gestalten’ hier ‘zur Summe hinzukommende Inhalte’, auf primär gegebenen Stücken sich ‘subjektiv aufbauende’, kontingente, ‘nur subjektiv bedingte’, ‘beliebige’ Gebilde; nicht einfach blinde, weitere ‘Qualitäten’, im Grunde ebenso stückhaft und unbehandelbar wie die ‘Elemente’; nicht blo etwas ‘zu einem Material hinzukommendes’, ‘blo Formales’; sondern es handelt sich um Ganze und Ganzprozesse mit vielfach sehr bestimmten inneren, sachlichen Gesetzlichkeiten, um Strukturen mit konkreten Strukturprinzipien. Auch die sogenannten ‘Elemente’ sind als Teile anzusetzen oder als Derivate.” (p. 53 e 54) 3.4. “Ich stehe am Fenster und sehe ein Haus, Bäume, Himmel. Und könnte nun, aus theoretischen Gründen, abzuzählen versuchen und sagen: das sind ... 327 Helligkeiten (und Farbtöne). (Habe ich ‘327’? Nein; Himmel, Haus, Bäume; und das Haben der ‘327’ als solcher kann keiner realisieren.) Und seien in dieser sonderbaren Rechnung etwa Haus 120 und Bäume 90 und Himmel 117, so habe ich jedenfalls dieses Zusammen, dieses Getrenntsein, und nicht etwa 127 und 100 und 100; oder 150 und 177. In dem bestimmten Zusammen, der bestimmten Getrenntheit sehe ich es; und in welcher Art des Zusammen, der Getrenntheit ich es sehe, das steht nicht einfach in meinem Belieb; ich kann durchaus nicht etwa nach Belieben jede irgend andere gewünschte Art der Zusammengefatheit einfach realisieren.” (p. 301) 3.4.3. “[...] man beim Entwerfen von Mustern, bei systematischer Variation eines Bestandstücks bald mit großer Sicherheit voraussagen kann, wie die Resultierung ausfallen wird; [...] es kommt auf die „gute" Fortsetzung an, auf die „kurvengerechte", auf das „innere Zusammengehören", auf das Resultieren in „guter Gestalt", die ihre bestimmten „inneren Notwendigkeiten" zeigt.” (p. 324) 3.5.1. “There seems to be a single starting point for psychology, exactly as for all the other sciences: the world as we find it, naïvely and uncritically. The naïveté may be lost as we proceed. Problems may be found which were at first completely hidden from our eyes. For their solution it may be necessary to devise concepts which seem to have little contact with direct primary experience. Nevertheless, the whole development must begin with a naïve picture of the world. This origin is necessary because there is no other basis from which a science can arise.” (p. 3) “[...] can have no meaning without a reference, indirect though it may be, to certain direct experiences.” (p. 27)

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“The name ‘experience’ seems to indicate that, though appearing as objective, the things around me were actually felt to be given ‘in my perception’. In this sense they would still have remained subjective. But this was not at all the case. They simply were there outside. I had no suspicion whatever of their beiung merely the effects of something else upon me. I must go further. There was not even a question of their depending upon my presence, upon my keeping my eyes open, and so forth. So absolutely objective were those things that for a more objective world no place was left. Even now, their objectivity is so strong and natural that I find myself constantly tempted to attribute to their interior certain characteristics which, according to the physicists, are facts of the physical world. When, in these pages, I use the term ‘objective experience’ it will always have this meaning. For instance, a chair as an objective experience will be something there outside, hard, stable and heavy. Under no circumstances will it be something merely perceived, or in any sense a subjective phenomenon.” (p. 20 e 21) “For our purposes, phenomenology is not to be restricted to the realm of logic and of timeless entites. If, furthermore, some exponents of phenomenology tend, by their work, to make us believe that their occupation is necessarily sterile, this is their fault, not that of the procedure as such. Even more important, the very vaguest speculation has sometimes found a shelter under the roof of phenomenology. With such aberrations we cannot wish to have any connection.” (p. 68) “It is most essential for phenomenological statements that they never be confused with hypotheses or even with knowledge about the functional genesis of phenomenal data. Where a thing has come from, to what its existence or that of its properties is due, is a valid question, but for the most part not a question for phenomenology. What properties the thing actually has – this is the question for phenomenology.” (p. 69 e 70) “[...] all questions of fundamental principle [...] can only be solved on phenomenological grounds” (p. 102) “Phenomenology is the field in which all concepts find their final justification. To what fields such concepts may be applied, once their meaning has been elucidated, is another question.” (p. 102) 3.5.2. “Das Vorgefundene zunächst einfach hinzunehmen, wie es ist; auch wenn es ungewohnt, unerwartet, unlogisch, widersinnig erscheint und unbezweifelten Annahmen oder vertrauten Gedankengängen widerspricht. Die Dinge selbst sprechen zu lassen, ohne Seitenblicke auf Bekanntes, früher Gelerntes, ‘Selbstverständliches’, auf inhaltliches Wissen, Forderungen der Logik, Voreingenommenheiten des Sprachgebrauchs und Lücken des Wortschatzes. Der Sache mit Ehrfurhct und Liebe gegenüberzutreten, Zweifel und Misstrauen aber gegebenenfalls zunächst vor allem gegen die Voraussetzungen und Begriffe zu ricthen, mit denen man das Gegebene bis dahin zu fassen suchte.” (Metzger, 1968, p. 12) “But there is another kind of analysis which we are not only allowed to apply, but which is wholly indispensable and, in the opinion of Gestalt psychologists, has never been carried

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far enough in older psychology. This is the minute and full description of all details of the fact in question, of all the parts, part-processes, and part-qualities of the whole, just as they look or behave at their particular place in the actual whole, and would not look or behave elsewhere, neither at another spot of the same whole nor as a part of a different whole nor as separate independent things.” (p. 12 e 13) “[...] so appellierten wir dabei an die durch keinerlei Vorurteile entstellte schlichte Beschreibung des jeweilig vorliegenden Sachverhalts. Wir lieen gewissermaen die Phänomene selbst zu Worte kommen. Immer wenn wir uns hier in der Psychologie vorurteilslos beschreibend verhalten, sprechen wir von deskriptiver oder phänomenologischer Methode. Diese Methode, von dem Physiologen Ewald Hering mit grötem Gewinn in seinen klassischen Untersuchungen zur Farbenlehre angewandt und von dem Philosophen Edmund Husserl in seiner Phänomenologie ausgebaut, ist für das Verständnis der modernen Psychologie von beträchtlicher Bedeutung. Sie hat auch die Gestaltpsychologie, vor allem bei Köhler, stark beeinflut, ja ich gehe so weit zu behaupten, da die Kritik, die die Gestaltpsychologie an der älteren Psychologie übt, und ihr eigener positiver Aufbau mit der Tragfähigkeit der phänomenologischen Methode steht und fällt.” (p. 24 e 25) 3.6.2. “Individuals have learned to proceed mentally in certain ways, concepts have gradually been formed by the superposition of many individual cases in memory, - such would be the empiristic interpretation of logic and of its conceptual material. In th struggle for survival through many thousands of years those individuals would have survived and therefore could have similarly endowed offspring who were equipped with more practical mechanisms of thinking or association, - this would be the evolutionary explanation of logic.” (p. 46) “Wait a moment, he seems to say, before you try to explain. Look carefully at a thing before you begin to hide it behind a veil of routine-ideas about learning and evolution. Try to get a full view of what you intend to explain. Otherwise you may be led complete astray. Since, however, all of us tend to be carried away by naturalistic habits of thinking, and insce, in this manner, the very basis of philosophical meditation becomes mixed up with doubtful hypotheses, looking at things themselves is a dificult art which we have to deveop first of all. It is this art which Husserl calls phenomenology.” (p. 46) “In trying to discard all hypothetical elements from our view of things we may easily and inadvertently be influenced precisely by hypotheses about this procedure: What constitutes the truly phenomenological nature of something? What is to be regarded as an hypothetical addition to it? What, in other words, is the criterion which Husserl applies when he separates one from the other? I am not sure whether Husserl is aware of the danger in these inquiries. The main objection against Introspection was not its interes in ‘things themselves’ but rather its arbitrary selection of some aspects of experience as genuine and others as artifacts. If Husserl were in danger of proceeding in a similar way, then a similar criticism would of course apply to his kind of phenomenology.” (p. 47)

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“When realizing the truth of a statement we do not look upon any operation of our mind: we look rather upon the content of the statemente as upon something outside, distinct from our mental operations. [...] there is no ‘subjectivity’ in the logical requiredness of a statement, since the logically required is before us, as an object is before us when we perceive it.” (p. 49) “Truth and correctness are in a timeless ideal world of their own.” (p. 50) “Banishing all requiredness into a world by itself Husserl has evidently pictured the world as much poorer than it really is. When something appears as required to people’s eyes, they do not only and not always look into a world outside their lives.” (p. 53) 3.6.3. “Personally – but this goes beyond phenomenology – I share the opinion of those who contend that all phenomena without any exception are the correlates of somatic processes in the nervous system. To this extent they are, all of them, genetically subjective, whether phenomenally they have the character of ‘subjectivity’ or whatever their degree of phenomenal ‘objectivity’ may be. In this other sense, however, subjectivity means dependence on the physical organism and its functions [...]” (p. 70) “[...] we do not generally know why our experiences are as they are, because they tell us little about their genesis” (p. 5) “[...] one of the main tasks which psychology has to solve consists in the discovery of those functional relations which are responsible for the occurence and the characteristics of our experience. We want to know not merely what happens in mental life but also how and why it happens.” (p. 5 e 6) “Common human experience alone is not a material with which we can build a science of psychology. Indirect techniques reveal a great many functional relationships by which the contents and the course of mental events are determined. These facts of functional dependence often lie outside the range of direct awareness [...]” (p. 41 e 42) “As a rule psychological discoveries refer to facts of functional dependence which are not as such experienced. Thus the rules in which we formulate these relationships imply the occurence of certain functions in a realm that is surely not the phenomenal realm.” (p. 46) 3.6.4. “Das ist nun nicht blo der Fall in der Psychologie, sondern entsprechendes ist ebenso der Fall in der Physiologie, in den biologischen Wissenschaften. Auch hier hat man damit sich zu helfen versucht, Maschinchen neben Maschinchen - in Summe - zu setzen, um nur irgendwie dessen Herr zu werden, was bei einem lebendigen Organismus sinnvoll oder wie man manchmal sagt, zweckmäßig funktioniert. Auch hier hat man heute vielfach noch den Begriff des Reflexes als einer rein sinnlosen Koppelung von zwei Stückdingen, die gar nicht miteinander zusammengehören. Der Stück-Reiz bewirkt ‘mechanisch, automatisch’ diesen oder jenen Stück-Effekt - prinzipiell völlig beliebig -.” (p. 8) 385

“Our knowledge of brain-processes is still rudimentary. Thus many believe that for a long time to come psychological rules will have to remain such mere rules, that their translation into a more concrete biological language, and therefore also their systematic causal interpretation, will have to be indefinitely postponed. I do not share this view. On the contrary, it seems to me, our knowledge both of psychological rules and of the nervous system has just reached the stage in which the first bridges can be built from one realm to the other.” (p. 48) “[...] if an experience A may vary in a specific way, its correlate  must be capable of corresponding variations.” (p. 50) “Wir wollen voraussetzen, da dem anschaulichen Nebeneinander zweier Dinge wie Bleistift und Tintenfa und ihrem konkreten anschaulichen Abstand einfach das Nebeneinander und der bestimmte Abstand der ihnen zugehörigen Hirnprozesse entspricht, kurz da derAnschauungsraum und die räumliche Verteilung der unmitteIbar zugehörigen Prozesse im Hirnfeld einander gewissermaen geometrisch ähnlich oder da sie sogar kongruent sind. Dann ergibt die Betrachtung des eben besprochenen Beispieles, da sich jeweils an einer bestimmten Stelle des physikalischen Hirnfeldes der Prozekomplex für meinen Körper als Anschauuugsding abspielt, da rings um ihn die Prozesse für andere anschauliche Dinge stattfinden, und da, wegen der gegenseitigen geometrischen Beziehungen dieser Prozesse, im Anschauungsraum überall Anschauungsdinge nebeneinander und dabei sie alle auerhalb eines (für mich) besonders wichtigen von ihnen liegen müssen, das ich ‘meinen Körper’ nenne.” (p. 397)

Capítulo 4 - A fenomenologia de Edmund Husserl: 4.1.1. “Den Psychologisumus charakterisiert nun die These: Die theor. Fundamente der Logik liegen durchaus in der Psychologie. Denn, so argumentiert er, selbstverständlich sind die Regeln der Erkenntnis, als einer psychologischen Funktion, nur durch Psychologie der Erkenntnis zu begrunden." (p. 346)

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