A GESTÃO CORPORATIVA DAS TENSÕES ESPACIAIS NO BRASIL: O ORDENAMENTO TERRITORIAL DA AÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS (THE CORPORATE MANAGEMENT OF SPATIAL TENSIONS IN BRAZIL: THE TERRITORIAL PLANNING OF FIRM\'S SOCIAL ACTION)

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO

A GESTÃO CORPORATIVA DAS TENSÕES ESPACIAIS NO BRASIL: O ORDENAMENTO TERRITORIAL DA AÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS THIAGO ADRIANO MACHADO1 Resumo: Nos últimos quarenta anos, tem sido ampliadas as atividades de responsabilidade social e de sustentabilidade empresariais, alargando as esferas de atuação do capital para além daquelas estritamente voltadas à produção de lucro. Apesar desse fenômeno ser efeito das políticas neoliberais, nas quais o Estado cede espaço ao “terceiro setor”, a ação social das empresas no Brasil já estava presente nas vilas operárias do início do processo de industrialização nacional. Dessa forma, o argumento central desse trabalho se refere ao papel estratégico de tais ações como forma de superar conflitos sociais e tensões espaciais referentes à reprodução do capital sobre as bases de um apropriado ordenamento territorial. Para tanto, analisa-se a organização da responsabilidade social empresarial no país a partir de três ordenamentos distintos, segundo seu vínculo com o processo global de acumulação do capital: o espaço molecular, o espaço monopolista e o espaço neoliberal.

Palavras-chave: responsabilidade social empresarial; tensões espaciais; ordenamento territorial

Abstract: In the last forty years it has been expanded social responsibility activities and business sustainability, extending the capital's spheres of activity other than those strictly aimed at producing a profit. Although this phenomenon is the effect of neoliberal policies, in which the state gives way to the "third sector", the social action of companies in Brazil was already present in workers' villages of the beginning of the national industrialization process. In this way the central argument of this work refers to the strategic role of such activities as a way to overcome social conflicts and spatial tensions for the reproduction of capital on the basis of an appropriate territorial planning. Therefore, we analyze the organization of corporate social responsibility in the country from three different ordering, according to its link with the global process of capital accumulation: the molecular space, monopoly space and the neoliberal space.

Key-words: corporate social responsibility; spatial tensions; territorial planning

1 – Introdução Nos últimos quarenta anos tem se ampliado a intervenção das empresas no campo

social

e

ambiental,

naquilo

que

se

convencionou

chamar

de

responsabilidade social empresarial e, mais recentemente, sustentabilidade empresarial. Tal tendência está de acordo com a manifestação de políticas neoliberais, sobretudo a partir dos anos 80, quando o estabelecimento dos 1

Doutorando do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. E-mail de contato: [email protected]

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programas de ajuste estrutural diante da crise do fordismo enfraqueceu a disponibilidade de investimento público na economia (Limonad, 2014). É neste período que a responsabilidade social se desenvolve como tal, aprofundando as discussões sobre a precarização da classe trabalhadora, os caminhos da cidadania na globalização e os horizontes da crise ambiental. O discurso

empresarial

assume,

assim,

"responsabilidades"

em

três

níveis

(econômico, social e ambiental), o que sustenta um paradoxo presente nessa equivalência forçada entre a produção de lucro, a promoção da cidadania e o equilíbrio ecológico. A responsabilidade social e a sustentabilidade empresariais podem ser compreendidas, assim, como mais um momento da filantropia na história do capitalismo, ainda que sejam caracterizadas exatamente por irem além da filantropia. Esta está vinculada desde a família de banqueiros, os Médici, da Florença do renascimento, até os industriais americanos do final do século XIX – Rockefeller, Gould, Carnegie, etc, e suas respectivas fundações. Há, contudo, escassez de abordagens que partam da organização espacial dessas atividades e de como elas têm influído na produção de espaço para reproduzir a relações sociais de produção a elas apropriadas. Partimos, desse modo, das tensões espaciais que conformam o ordenamento territorial (Moreira, 2007) para analisar como tais atividades se desenvolveram no território brasileiro.

2 – A Responsabilidade Social Empresarial no Brasil O desenvolvimento da responsabilidade social empresarial no Brasil só pode ser compreendido a partir do entendimento da própria formação da burguesia nacional e da passagem do complexo colonial para o industrial – dando início a uma integração do espaço econômico nacional no mercado internacional que vá além do fornecimento de matérias-primas e de bens primários para a exportação. Desse modo, é importante contextualizar a responsabilidade social na formação territorial brasileira desde a passagem do século XIX para o XX, momento decisivo para a implementação da indústria no país. O interesse de olhar para esse

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território a partir das tensões espaciais apoiadas nas barreiras à acumulação do capital tem por interesse verificar os distintos arranjos espaciais que servem de condição/produto da construção espacial em cada momento específico. Tais momentos são estabelecidos segundo seus ordenamentos territoriais definidos pelas tensões espaciais que lhe conformam. As práticas espaciais se diversificam e reestruturações socioespaciais são levadas a cabo, fundando um período com um novo arranjo espacial, o qual é a expressão de outra ordem de tensões. Primeiramente trato aqui do período que tem início com a república e se estende até a Revolução de 1930, no qual há a predominância político-econômica das elites regionais e o início da empreitada industrial no Brasil. A década de 1930 passa por uma grave reestruturação socioespacial ao alterar o centro do campo de poder para a burguesia maturada no período anterior, ainda que em consórcio com as oligarquias regionais. O desenvolvimento da indústria e a monopolização da economia em volta do capital financeiro marca esse segundo período que é sucedido em meados da década de 80 pela virada neoliberal, sendo demarcado pelo processo de redemocratização e subordinação à geopolítica estadunidense. Essa última reestruturação socioespacial é a que produz um ambiente profícuo para o estabelecimento da responsabilidade social.

2.1 – O Espaço Molecular O primeiro quadro de arranjo espacial da ação social das empresas no país, expressando, assim, um dado ordenamento, é aquele construído sobre as bases da proto-industrialização nacional. Possibilitada pelo excedente de capital agroexportador, essa industrialização demandou um rearranjo na estrutura espacial do domínio, agora forjado na exploração do operário fabril, para o qual lançou mão das chamadas vilas operárias. Estes núcleos residenciais voltados para o operariado são, portanto, a primeira forma de ação social empresarial a ser identificada no Brasil, dada as relações capitalistas de produção em desenvolvimento. Em face às barreiras à acumulação do capital que predominavam no fim do século XIX, as vilas operárias foram um modo de resolução de parte dessas

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questões por meio da produção de um espaço específico sobre o qual o capital pôde exercer o seu domínio e facilitar a formação das condições necessárias ao pleno desenvolvimento industrial. Os problemas referentes à acumulação que estavam na ordem do dia eram, especialmente, aqueles referentes à demanda efetiva – no caso do café, dada a variação do mercado internacional e o estoque crescente – e ao acesso e controle da força de trabalho, em decorrência da crise do regime escravocrata e da necessidade do estabelecimento das relações de trabalho livre. A partir do último quarto do século XIX se estrutura o arranjo espacial da indústria fabril numa articulação estreita com o capital agromercantil que lhe confere o quadro do desenvolvimento geográfico desigual inicial nesse momento. É o que Ruy Moreira (2013) trata como espaço molecular: O espaço molecular é a forma de ordenação territorial da fase póstransição na qual o capital fabril deixa de ser mera componente orgânica da acumulação agromercantil para ganhar vida própria e tornar-se o centro do sistema econômico. Denomina-se “molecular” porque o que se tem de arranjo de espaço é ainda a atomização territorial do período da acumulação primitiva, o todo do espaço exprimindo-se como um conjunto de economias regionais de origem agromercantil. É, assim, o espaço no qual o capital fabril nasce, desenvolve-se e se autonomiza...

É o espaço, portanto da primeira fase de industrialização marcado pela subordinação ao complexo cafeeiro, cujo excedente de renda possibilitava, segundo Wilson Cano (1983), a capacidade de importar alimentos, matérias-primas, bens de capital para a indústria, além de que a expansão da agricultura viabilizava o suprimento alimentar para os operários e de matérias-primas (açúcar, fibras, couro, etc.). Além disso, o problema da oferta de mão de obra – para a qual a vila operária vai empregar especial atenção – passa a ser solucionado pelo êxodo rural daqueles imigrantes europeus que haviam sido estabelecidos na lavoura do café, mas que na passagem de século (de 1898 a 1907) por conta de uma crise que demanda o declínio da expansão da lavoura, são liberados, assim, para vender suas forças de trabalho para a indústria. A molecularidade desse espaço industrial é projetada no arranjo das vilas operárias que acompanham a distribuição das economias regionais, de modo que

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três núcleos se destacam: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. A indústria têxtil é o carro-chefe desse processo de industrialização que é organizado de modo molecular segundo essa “urbanização em arquipélago”. Contudo, em outra escala, o espaço molecular se articula a um espaço disciplinar, de modo que a vila operária seja o ambiente de extensão da disciplina fabril como forma de resolver ou conter as tensões relativas à força de trabalho. Esse espaço disciplinar, fundamental para o processo de acumulação molecularizado, utilizava como recurso a doutrina social da Igreja Católica, lançada pela Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII de 15 de Maio de 1891, que tratava “Sobre a Condição dos Operários”. Tal doutrina era a base ideológica que legitimava a relação hierárquica entre patrão-empregado ao tempo que servia como reação aos movimentos operários, caracterizando esse momento da ação social empresarial com um forte viés paternalista. 2.2 – O Espaço Monopolista O arranjo espacial que se concretiza no Brasil a partir da década de 1930 estabelece, tal como todo processo de reestruturação socioespacial, transformações e permanências em relação ao arranjo anterior. Caracteriza-se, sobretudo, pelo modo em que é realizada a política das tensões espaciais, pois herda do período anterior as tensões entre capital e trabalho acirradas pelas greves do fim da década de 1910 e aquelas tensões inseridas nas próprias classes dominantes – a oligarquia agrária e a burguesia em ascensão. Há também uma alteração na relação dentro/fora do território nacional. Se anteriormente a economia se voltava para a exportação de produtos agrícolas, especialmente o café, a crise de 1929 que levou à quebra da bolsa de Nova Iorque criou um sério problema de demanda para o setor agroexportador. Tal cenário levou às condições da Revolução de 1930, que ao levar Getúlio Vargas ao poder põe fim à república do “café com leite”, comandada pelas oligarquias agrárias de São Paulo e Minas Gerais. Inaugura-se uma nova fase da história brasileira fundada sobre o aumento do papel do Estado na economia e no desenvolvimento do capitalismo, centrando-se

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nas indústrias paulistas. Apesar de a economia se voltar para dentro, esse período do país é a reprodução periférica do que passa a ocorrer nos Estados Unidos e na Europa com a instalação do fordismo como modo de acumulação, o que significa no âmbito da política econômica práticas keynesianas baseadas no investimento público. A ampliação decisiva da participação estatal na economia leva ao que Ruy Moreira (2013) chama de ordem corporativa, que é o mecanismo de controle sobre o trabalhador por meio do Estado. Ainda que as vilas operárias permaneçam até meados da década de 70, elas perdem sua eficiência disciplinar, e a solução encontrada para conter os reclames trabalhistas que levavam às greves foi o da regulamentação do trabalho e da subordinação de sua organização ao Estado. Desse modo, foi assinada no 1º de Maio de 1943 a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) sob a ditadura varguista, estabelecendo o conjunto de direitos do trabalhador, tal como férias, descanso semanal, jornada de trabalho, dentro outros, além da determinação da organização sindical sob a tutela do Ministério do Trabalho. Essa ordem corporativa foi fundamental para atacar os problemas do capital com o disciplinamento do processo de trabalho, realizando por meio do Estado o diálogo negociado que forjou o jogo de conquistas/concessões para a amenização dos conflitos de classe. Dessa forma, as condições para a continuidade do desenvolvimento industrial no país foram garantidas. A industrialização do espaço molecular era restrita à produção de bens de consumo, em particular à indústria têxtil, o que muda depois de 1930 em decorrência da crise internacional e da forte desvalorização cambial, o que inibiu a importação de bens de capital, demandando o investimento nacional numa indústria de base. Associado a isto está a política de substituição de importações, da qual, em geral, o capital privado nacional era responsável pelos bens de consumo nãoduráveis, o capital privado internacional pelos bens de consumo duráveis, sobretudo o setor automotivo estimulado por Juscelino Kubitschek nos anos 50, e o Estado com o pesado investimento na indústria de base e na infraestrutura do país.

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Esse arranjo dos capitais na bidepartamentarização da economia (bens de consumo mais bens de capital) conforma o modo espacial desse período, o espaço monopolista (MOREIRA, 2013): O espaço monopolista é, assim, a forma de ordenação territorial da hegemonia industrial. Denomina-se “monopolista” porquanto o que se tem é a configuração estrutural de uma totalidade social organizada sobre a base da forte centralização nacional do capital. A base é a divisão bidepartamentarizada do trabalho, que expressa o todo forjado na fusão dos monopólios fundiário, industrial e bancário no capital financeiro (p. 95) (grifos meus).

Constrói-se, assim, a partir desse espaço uma hegemonia que reside na força burguesa organizada a partir da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), polarizando o território a partir do centro financeiro que passa a ser São Paulo. Como centro da gestão do território, a capital paulista comanda a integração nacional, rarefeita no espaço molecular, a partir do comando da técnica – fundamental à instauração no país nesse momento de implantação do meio técnicocientífico, que é a expressão da modernização do território, apoiada na técnica e na ciência. Ainda que com os esforços do Estado e da burguesia em amenizar as tensões por meio das legislações trabalhistas gestadas por toda a década de 1930, os conflitos permaneciam latentes com a presença das ideias anarquistas e comunistas nas cidades, em especial com a criação do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), o que levou a burguesia industrial a pensar uma forma de resolver a “questão proletária” (SESI, 2008). Para tanto, reuniram-se em 1945, ainda sob o governo de Getúlio Vargas, na cidade de Teresópolis para a I Conferência Nacional das Classes Produtoras do Brasil. De lá saíram com o documento “Carta Econômica

de

Teresópolis”,

na

qual

defendiam

uma

política

econômica

desenvolvimentista, estabilidade democrática e econômica, e políticas voltadas para a justiça social. No ano seguinte, a partir das discussões da conferência foi formulada a “Carta da Paz Social”, a qual se tinha como retórica a harmonização das relações de classe, afirmando a necessidade e as virtudes da cooperação entre capital e trabalho. Abaixo o segundo item da carta:

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O capital não deve ser considerado apenas instrumento produtor de lucro, mas, principalmente, meio de expansão econômica e bemestar coletivo. O trabalho é um direito de cada um a participar na vida social e um dever de para ela contribuir com o melhor de suas aptidões, assegurando aos trabalhadores um salário que lhes garanta uma existência digna, sã e eficiente (SESC, 2012).

Tomando o conceito da “paz social” como referência são criados os Serviço Social da Indústria (SESI), o Serviço Social do Comércio (SESC) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio (SENAC), de forma que a responsabilidade social nesse momento se estruture no eixo da formação profissional, por meio do SENAI e do SENAC, e no eixo do apaziguamento de conflitos via os SESI e o SESC. Tais instituições, apesar de não convocarem os sindicatos de trabalhadores nos seus processos de formulação, oscilavam entre a simpatia (especialmente no caso da formação profissional) e a crítica sindical. Neste jogo de concessão/conquista, ao passo que o acesso a direitos sociais, tal como educação e saúde, ampliavam o espectro da cidadania num país bastante desigual, o projeto burguês exercia seu poder de doutrinação por meio da educação social empregada em suas instituições de assistência social. Os trabalhadores eram formados para o comprometimento para com a “paz social” em suas vidas sindicais, já que o projeto educacional burguês se voltava para a luta anticomunista. Essa atuação empresarial por meio de instituições patronais é significativa nesse momento para ilustrar a migração da responsabilidade social do capital individual para sua organização de classe. Ou seja, a responsabilidade social nesse momento não estava relacionada à competição dos capitais nacionais, mas era a expressão classista do bloco de poder que havia assumido sob o desígnio do comando industrial em aliança com as elites agrárias e a burguesia comercial urbana. 2.3 – O Espaço Neoliberal As décadas de 1980 e de 1990 são de profundas modificações na sociedade brasileira em decorrência das graves crises políticas, econômicas e sociais. Os elementos da ordem corporativista, que aliavam a coerção estatal aos anseios da

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burguesia, deixaram de herança tais crises. O forte investimento estatal para o fomento da indústria e para a criação da infraestrutura nacional, necessária à integração nacional, foi feito às custas do endividamento do Estado, o que culminou nos anos oitenta com a “crise da dívida”. Já o aparato repressivo composto pela ditadura civil-militar, cuja coesão se dava pelo suporte da burguesia nacional – via FIESP e a infraestrutura do SESI – submetida aos interesses estadunidenses, conduziu à crise política na transição para o regime democrático. Por fim, o arrocho salarial, o êxodo rural e a hiperinflação formataram a crise social evidente no rápido processo de favelização dos grandes centros urbanos e das expropriações ocorridas no campo. Podemos falar, portanto, de uma reestruturação socioespacial radical, pois a ordem de tensões que lhe caracteriza está ajustada no vínculo escalar da globalização. A solução para a crise é imposta pelos organismos multilaterais, sobretudo o FMI e o Banco Mundial, a partir da retórica austera do Consenso de Washington por meio da imposição de ajustes que favoreciam o investimento direto estrangeiro como condição para a tomada de novos empréstimos que permitissem a rolagem da dívida. A forma de lidar com as tensões de classe se alteram. Tanto do lado da burguesia, quanto no lado das lutas sociais. O mercado impera e, feito o processo de racionalização descrito por Habermas (2009), promove uma racionalização por “baixo”, modificando a infraestrutura ao implantar o meio técnico-científicoinformacional (SANTOS, 1996), e uma racionalização por “cima”, ao submeter “os marcos institucionais da interação social” à racionalidade do mercado global. É neste sentido que aqui se fala de uma conversão mercantil-filantrópica, da qual Virgínia Fontes (2010) destaca a das lutas sociais, mas que também ocorreu com as políticas públicas. Tal processo de conversão é contextualizado pela retórica de flexibilidade que se sugere como novo modelo de acumulação do capital. É um caminho traçado não somente na esfera produtiva – da qual ganhou evidência o toyotismo – mas em especial na esfera do consumo, transformando, inclusive, o engajamento político num mecanismo afeito à lógica de mercado. Cria-se o chamado terceiro setor, que 748

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se arroga nem governo (primeiro setor) nem mercado (segundo setor) – conformando uma nova esfera pública não-estatal designada pelas entidades privadas sem fins lucrativos. Essa é a forma do capital, via terceiro setor, efetivar o que Milton Santos (2000) chamou de “política das empresas”, a qual seria, segundo o mesmo autor, decretar a morte da política. Isto, pois, decorrente do processo de supressão do dissenso – que segundo Erik Swyngedouw (2011) é o fundamento da política – representado na negação da luta de classes. O dissenso da luta de classes é substituído pelo consenso do alívio da pobreza e da miséria, e a política é reduzida a uma gestão nos moldes da governança empresarial. Tratava-se de limitar estritamente o sentido do termo democracia, apagando os componentes socializantes de que se revestira e convertendo-a para um significado único: capacidade gerencial de conflitos. Toda e qualquer formulação antissistêmica ou tentativa de organização dos trabalhadores enquanto classe social deveria ser desmembrada e abordada de maneira segmentada: admitia-se o conflito, mas este deveria limitar-se ao razoável e gerenciável, devendo seus protagonistas admitir a fragmentação de suas pautas em parcelas administráveis (FONTES, 2010 – p. 263).

A organização empresarial em torno dessa questão ganhou corpo com a criação em 1987 do Pensamento Nacional de Bases Empresariais (PNBE), grupo destoante do sistema FIESP/CNI formado por pequenos e médios empresários que se intitulavam “empresários pela cidadania”. Um dos líderes do PNBE, Odej Grajew, fundou em 1998 o Instituto Ethos, principal promotor da responsabilidade social no país em conjunto com o GIFE (Grupo de Institutos e Fundações Empresariais). Tais organizações são importantes na promoção não apenas das práticas de responsabilidade social, mas no processo de criação e monitoramento do instrumental de certificações, premiações, modelos de balanços sociais e estratégias de implementação de programas sociais – articulando ONG's, movimentos sociais e governos. A gestão social segundo tais princípios ganha a conotação de “investimentos sociais”, os quais passam a integrar as estratégias de negócios das empresas – de forma que sejam para além de mera ação de marketing social,

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atuando com perspectivas de ampliar mercado, formar mão de obra adequada e produzir inovação. Esse processo pode ser lido como uma “privatização da governança”, sendo a característica neoliberal de uma política que produz e organiza o espaço a partir da lógica de alocação eficiente dos recursos com vistas à produção de lucros. A conversão mercantil-filantrópica e a responsabilidade social empresarial, desse modo, como a forma neoliberal de gerir as tensões espaciais.

3 – Considerações Finais A eficiência da responsabilidade social empresarial está em de fato fazer o “bem”. Ou seja, mais do que as estratégias de marketing e a retórica responsável e sustentável o que vale para a eficiência do projeto político capitalista é a capacidade de estancar os tencionamentos que lhe restringem seu pleno funcionamento, ainda que para isto seja necessário um alto dispêndio financeiro. Para tanto, mais do que fotos de crianças estudando e de trabalhadores sorrindo como ilustração de balanços sociais, é necessário que a vida cotidiana de pessoas e comunidades, mesmo que agraciadas por um critério seletivo, seja impactada positivamente. A eficiência da ideologia está na sua capacidade de permeabilidade prática. Se no espaço molecular a responsabilidade social teve de criar um espaço para chamar de seu – as vilas operárias – no espaço neoliberal ela vai agir sobre aqueles espaços marginais que visam ser integrados à dinâmica da acumulação para resolver tensões outras que não aquelas de um século atrás. No fim das contas, apreender o papel da responsabilidade social na formação recente do Brasil é compreender como essa ferramenta política, possivelmente tratável nos termos de Paulo Freire como uma falsa generosidade, serve aos propósitos de domínio sempre presentes nas estruturas de poder, que nascidas das tensões espaciais de espaço e contra-espaço conformam os territórios a que estão vinculados os distintos grupos humanos. Por fim, a responsabilidade social aprofunda no Brasil a precarização da cidadania ao substituir a lógica do direito por

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uma lógica do favor, a qual caracteriza-se por uma seletividade que situa o espaço neoliberal como aquele de uma cidadania fragmentada

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