A Hipótese da Pintura Roubada: intersecções especulativas entre Warburg e Kamper

July 3, 2017 | Autor: Francisco Trento | Categoria: Cinema, Image Studies, Raul Ruiz, Dietmar Kamper
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A Hipótese da Pintura Roubada: intersecções especulativas entre Warburg e Kamper12 Francisco Beltrame TRENTO3 Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP RESUMO Este ensaio propõe discutir uma visão inter-referencial do estatuto das imagens (em movimento ou estáticas) a partir da experiência feita por Aby Warburg nos anos 1920, ao montar seu mnemosyne, seu “atlas imagético”, que seguia uma lógica de alocamento físico de figuras, no qual as imagens eram colocadas em proximidade com aquelas que estabeleciam relações pré-discursivas umas com as outras. Para isso evocaremos, além dos trabalhos recentemente traduzidos de Warburg, os estudos feitos sobre ele por Norval Baitello Junior, Georges Didi-Huberman e Philip-Alain Michaud, bem como trabalhos de Dietmar Kamper. Para isso, seguimos e analisamos a narrativa do filme francês L'Hypothèse du tableau volé (1979), de Raúl Ruiz, escrito conjuntamente com Pierre Klossowski. Sua trama mostra um jogo dialógico entre dois narradores, um mostrado nas imagens do filme, e outro somente presente por sua voz em off. Eles discutem as possíveis conexões entre uma série de pinturas, muitas vezes caminhando e entrando nessas imagens e conhecendo seus personagens moventes humanos e não-humanos, que lhes levam a outras imagens, seguindo continuamente em um processo de passeio fractal pelas relações imagéticas. Em um terceiro momento discutiremos a respeito da relação entre imagem representativa como tentativa antropocêntrica de domínio sobre o Ser e de sua codificação, que contraria uma visão topológica, imanente e especulativa das imagens, como o caminhar do personagem no filme de Raul Ruíz. Dietmar Kamper é o nosso guia nessa parte. Palavras-chave: mnemosyne, Aby Warburg, cinema, imagem, Dietmar Kamper Ninguém pode pensar livremente se seus olhos estão presos no olhar de outro. Assim que olhar fixo nos tranca, não há mais exatamente dois de nós. Ficar sozinho se torna difícil. (Aforismos, de Paul Valéry, citado com modificações em Adieu au Language, de Jean-Luc Godard; tradução nossa)

A HIPÓTESE DA PINTURA ROUBADA A narrativa de A Hipótese da Pintura Roubada se desvela no diálogo entre dois narradores: um personagem misterioso com o áudio em off e o outro, um colecionador inicialmente vagando por uma galeria de arte. Discutem um “escândalo conspiratório escondido” que havia acontecido devido ao conteúdo de um conjunto de pinturas: sete 1

Trabalho apresentado no GP Cinema do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Uma versão desse trabalho foi desenvolvida como trabalho final para a disciplina Ambientes midiáticos e processos culturais: Dietmar Kamper, por uma sociologia do corpo e da imaginação, ministrada pelo Prof. Dr. Norval Baitello Junior, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, no primeiro semestre de 2015. 3 Doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) na Linha de Pesquisa Cultura e Ambientes Midiáticos. Bolsista do CNPQ, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Mestre pelo programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com projeto desenvolvido com bolsa FAPESP. Possui graduação em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Bauru).

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quadros, que “não possuem nenhum vínculo, nem uma unidade estilística específica”. Mais algumas informações são disponibilizadas ao flanêur da galeria e ele inicia um passeio guiado pelas relações estabelecidas entre os distintos quadros, sabendo que “as sete pinturas têm de fato um fator comum”, “duas delas foram consideradas chocantes”, e que o “escândalo foi centrado na exibição como um todo”. O primeiro quadro mostra dois cruzados jogando xadrez e um dos narradores observa que os personagens pictóricos compõem uma “mise-èn-scene teatral”, devido à possibilidade de observação de duas fontes distintas de luz iluminando o cenário, uma vinda da janela à esquerda e outra, de origem indeterminada, à direita. “Um mundo com dois sóis” seria inverossímil. Fala-se que “as pinturas não mostram, aludem à cerimônia”, e discutiremos essa alusão e a implicação do invisível sobre o visível e vice-versa. Seguindo a narrativa fílmica, posteriormente a discussão entre os personagem narradores os leva a chegar à conclusão de que “elas não aludem, mas mostram, e elas mesmas são a cerimônia”. O plano dos corredores das paredes nas quais estão dispostas as obras passa a se confundir com a própria sala, como se os narradores passassem a ter uma imagem onisciente e de múltiplos pontos de vista, inclusive interiores às paisagens tridimensionais das pinturas, ou seja, sobre e dentro das imagens dos quadros. O narrador que é visível ao espectador passeia fisicamente por dentro das obras e especula sobre as possíveis relações semióticas que podem ser estabelecidas para desvendar o mistério. Abrindo a porta, deparase com a reprodução de um jardim mitológico, pelo qual ele passa a caminhar. “Os olhos de Acteon divagam entre sua visão de Diana4 e um vislumbre de sua caça”. Ele ressalta que Diana está parada, o caçador também, mas há uma terceira personagem observando-os, segurando um espelho; e que o vento e a fumaça se movem. A terceira figura seria responsável por “observar o observador”. Outra hipótese: “a presa seria o próprio Acteon, por olhar nos olhos de Diana?”. A busca segue, flanando por possíveis índices que “indicam que o quadro é primeiro de uma série” dialógica. O primeiro índice, concluem, é o espelho do observador, que refletiria o sol e mandaria o raio de luz de maneira transversal à janela escondida da primeira pintura – por isso dois sois, duas fontes de luz, o que faz com que ele retorne à primeira imagem dos indivíduos jogando o xadrez, no qual ele observa uma outra 4 A respeito da personagem da deusa perigosa Diana, descrita por Ovídio em Metamorfoses, (…) “pode ser interessante nos determos um instante diante dessa fábula da deusa caçadora, surpreendida em seu banho. Um célebre episódio, o de Acteão, contado pelo poeta latino Ovídio em suas Metamorfoses, mostra que é muito perigoso avistar Diana, quando ocupada em suas abluções. Acteão, ele mesmo caçador por ofício, que a descobriu sem querer, será, graças a isso, transformado em cervo e, consequentemente, devorado por sua própria matilha.” (GALARD, 2011, p. 18-19)

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formação triádica composta por dois personagens e um observador, um cruzeiro invasor direcionando o olhar à jogatina.

Figuras 01 e 02: Um feixe de raios de luz é refletido do cenário de tensão entre Diana e o Caçador, direcionado para a sala onde dois cruzados jogam xadrez,.

O colecionador atenta para que prestem atenção na forma do espelho e não em seu conteúdo, “só a forma e como ela será reproduzida em outro quadro”. O reflexo que penetra em formato de meia-lua pela parede que cerca os enxadristas deveria ser encontrado em outra pintura. Ele a percebe em outro quadro, no qual um conjunto de homens estão reunidos aparentemente em um círculo misterioso. Movendo-se, ele observa que o conjunto de silhuetas no ambiente escuro forma uma outra meia-lua na parede com a ajuda do reflexo do espelho anterior. As luzes se iluminam, e pode-se ver um jovem sendo enforcado em algo como um ritual religioso indefinido no centro da sala. Invertendo a luz novamente, vê que no teto há uma máscara teatral tridimensional, é o índice que deve ser buscado em outra pintura. Trata-se entanto da pintura roubada, a parede onde ela deveria estar pendurada está vazia. Ele olha e imagina a imagem ausente, a máscara é materializada na parede e ele têm acesso físico ao quadro roubado: uma reunião, uma festa, quase uma dezena de indivíduos. O autor francês Georges Didi-Huberman, dialogando com dois textos - um relato do artista minimalista Tony Smith a respeito de uma viagem à noite por uma estrada em construção, e a descrição da dissolução dos objetos quando percebidos em meio à noite penetrante, feita por Maurice Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção –, nos faz refletir sobre o papel das imagens que faltam e da própria dialeticidade das imagens: dessa situação, que mereceria por si só um comentário extenso, podemos já reter que ela fornece algo como uma experiência em que a privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura

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de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela, e que a implica.” (DIDIHUBERMAN, 2010, p. 99)

A imagem5 que falta, portanto, não é o puro vazio, pelo menos não o vazio considerado por boa parte da Filosofia Ocidental, espaço do nada onde nada acontece, também distinto do jogo entre o Ser e o vazio feito por Martin Heidegger na filosofia de sua segunda fase. O vazio das imagens que falta aqui preenchido através de relações com outros símbolos, índices, que por sua vez, em um processo semiótico, levam-nos a outras imagens. A imagem que falta está em algum outro lugar. Se continuarmos nessa linha de pensamento, veremos que é impossível admitir a existência de imagens isoladas quando em contato com a linguagem, mas de uma entrada em um jogo dialético quando olhamos em direção à uma imagem, ela nos olha, e somos levados por essa cadeia de referências imagéticas – pensar se as imagens existem, elas mesmas em relações sem que haja o pensamento humano seria outra tarefa especulativa a ser desenvolvida, não aqui. Esse jogo de relações se trata de um tipo de semiótica.

Figuras 03 e 04: A imagem que falta e a materialização da máscara

Continuando no jogo triádico, discutem e concluem que cada um dos personagens está em relação com outro, e observado por um terceiro excluído – em uma concatenação mútua de momentos que precedem duelos. Há uma contiguidade nos gestos, semelhanças nos desenhos circulares que ameaçam se desenhar das ações em potencial dos terceiros excluídos de cada mini-conjunto interconectado de três personagens. Os gestos, todos curvos e contínuos, levam à formação de uma esfera, o último quadro. Uma imagem de

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É preciso deixar claro que “uma imagem não se esgota apenas no sentido da visão: há mensagens olfativas, auditivas, táteis, gustativas, proprioceptivas” (BAITELLO JR., 2014, p. 22).

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Baphomet6, um “corpo imaculado sem alma”, ente andrógeno e venerado ou evitado em rituais da época. Por aqui já desaceleramos e é hora de parar com as referências descritivas do filme, passemos a retomá-las para poder especular possíveis semelhanças com o modo de catalogamento de imagens por Aby Warburg, painéis com várias imagens que se relacionavam, mesmo que de distintas épocas e com distintas funcionalidades ou pertencentes a diferentes estilos. “A Mnemosyne, com seu alicerce de imagens (...) a princípio pretende ser um apenas um inventário das pré-formações de inspiração antiga que verificadamente influenciaram a representação da vida em movimento da época do Renascimento” (WARBURG, 2015, p. 366). Trata-se de um atlas não reduzido à uma sistematização da linguagem escrita, mas fazendo jus à circulação espectral e transcultural delas. Didi-Huberman (2010) fala sobre a ideia de imagem dialética, que poderia ser aplicada às seleções e conjuntos de Warburg. O conceito, que já havia sido discutido por Walter Benjamin e retomado quando Didi-Huberman fala a respeito de em uma polêmica a respeito de obras de movimentos minimalistas de escultores e artistas que buscavam a criação de imagens ou objetos que poderiam ser considerados isolados, percebidos sem relação à qualquer externalidade. Ele cita uma correspondência entre o crítico de arte Bruce Glaser e Frank Stella na qual ele supõe a existência ou a possibilidade de criação de uma pintura que seria o que vemos sem suas relações sígnicas e imagéticas inconscientes ou históricas, que não fosse necessário que algo a completasse; a imagem solitária absoluta, a imagem impossível: “GLASER – Você sugere que não há mais soluções a encontrar, ou problemas a resolver em pintura? [...] STELLA – Minha pintura se baseia no fato de que nela se encontra apenas o que nela pode ser visto. É realmente um objeto. Toda pintura é um objeto, e todo aquele que nela se envolve suficientemente acaba por se confrontar à natureza do objeto do que ele faz, não importa o que faça. Ele faz uma coisa. Tudo isto deveria ser óbvio. Se a pintura fosse suficientemente incisiva, precisa, exata, bastaria simplesmente você olhá-la. A única coisa que desejo que obtenham de minhas pinturas e que de minha parte obtenho é que se possa ver o todo sem confusão. Tudo que é dado a ver é o que você vê (what you se eis what you see).” (RUBIN apud DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 55)

6 “Em Le Baphomet, Klossowski opunha a Deus, como senhor das exclusões e limitações na realidade que deriva, um antecristo, príncipe das modificações, determinado pelo contrário, a passagem de um sujeito por todos os predicados possíveis. Eu sou Deus, eu não sou Deus, eu sou Deus eu sou Homem (…)” (DELEUZE; GUATTARI, 1976, p. 104)

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Figuras 05 e 06: O ritual de Baphomet

O fato de todas imagens serem dialéticas (os elementos dos quadros sempre se remetem a outros elementos de outros casos, no filme analisado, e o fato de que ao nos depararmos com o vazio, ao olhar para a parede vazia, a preenchamos com a máscara, um nodo da rede significante de imagens, não faz com que a ideia desses objetos absolutos do Minimalismo comentados por Didi-Huberman (2010) seja inútil. Pelo contrário, é esse estranhamento causado pelo contato com eles que o autor valoriza. Passaremos agora a discutir mais minuciosamente o método de organização de imagens de Warburg e seus outros tipos de relação. Como em The Hypothesis of The Stolen Painting, as relações imagéticas aparentemente deslocadas umas das outras, mas que na verdade nos fazem pensar em um distinto tipo de historicidade, sem apelar para as concepções arquetípicas (e aqui não utilizamos apelar com uma função de denegrir o campo de estudos sobre os arquétipos, mas apenas para demarcar posicionamentos distintos, e, vale a pena lembrar, não isolados, entre os distintos teóricos citados neste artigo). PARTE II – Imagens e espectralidade A impressão de que ao olhar um conjunto de imagens, como quadros antigos de familiares mortos (geralmente pinturas ou colorações sobre fotografias em preto e branco), sentimo-nos olhados por esses personagens, é muito discutida por Didi-Huberman em O que Vemos, o que nos olha. Não nos atentaremos tanto nesse ponto, mas aqui trazemos uma situação que remete a isso. No seriado norte-americano True Detective, o ex-detetive Rust Cohle, ao ser interrogado por possível envolvimento com uma série de crimes, fita a fotografia de uma menina morta em um ritual e afirma que sentiu-se olhado por aquela pessoa. Essa nova iteração desses crimes ressurgem como potencialmente relacionados a outro caso até então dado como resolvido anos antes por ele e seu ex colega, que envolvia

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uma seita que venerava Carcosa, uma espécie de demônio metafísico atemporal e levava ao sacrifício de mulheres juntamente à partes de animais, como galhos de cervos mortos. Rust, além de ressaltar essa relação de olhares, é fascinado com o caso, e intui desde a década anterior que não tinham resolvido o caso; tornou-se obcecado pelas imagens de símbolos e artefatos envolvidos no culto à Carcosa: esculturas que lembram pequenas cabanas piramidais feitas por quatro ou cinco gravetos secos, desenhos de um suposto Rei Amarelo, e outras imagens ditas satanistas, encontradas em lugares distantes uns dos outros. A busca de Rust é arqueológica, ele circula em suas pesquisas por imagens que remetem umas às outras transitando por várias épocas e tipos de manifestações: pinturas em paredes, reproduções de livros proibidos, tatuagens em pessoas, etc. Obviamente essas imagens existem em sua historicidade, mas suas redes de relações dialéticas e simbólicas transitam por distintos tempos e “culturas”, com ressalvas para o uso desse termo. Não é tarefa penosa voltar a Warburg e seu mnemosyne a partir deste exemplo e do filme de Ruiz. Aby Warburg observou como algumas imagens transitavam de um quadro a outro, de diferentes pintores de distintos lugares a desenhos técnicos e científicos; como se elas, as imagens, possuíssem uma existência viva em um mundo paralelo, no qual os corpos deixaram de ser corpos para se tornarem imagens com vida própria, circulando nas obras artísticas. A esse respeito, após citar uma análise feita por Warburg de uma personagem, Maria, que circulava por diversos quadros do século XV, Philip-Alain Michaud (2013, p. 135) diz: “não parece que os pintores, uns após os outros, tenham tratado o mesmo modelo, e sim que o próprio modelo transita de quadro para quadro e colhe em seu ser de imagem as modificações de seu ser de carne e osso”. Ainda: Os painéis cobertos de tecido preto sobre os quais Warburg montava seus conjuntos de imagens (...) não eram feitos para ser expostos como tais, e sim para ser fotografados, a fim de formarem uma nova entidade complexa. Portanto, não devem ser apenas apreendidos em seu conteúdo como uma coleção de Pathosformeln, das fórmulas patéticas que Warburg não se cansava de perscrutar nas obras dos artistas do Renascimento, desde o final da década de 1880, de maneira cada vez mais aforísticas. (MICHAUD, 2013, p. 240)

Norval Baitello Jr (2010, p. 60) fala um pouco desse caráter espectral das imagens, vagantes e viajantes do tempo de maneira incorporal, destacando as pesquisas e proposições de Warburg ao organizar fisicamente seu mnemosyne: “deduz o pesquisador que existe uma pós-vida (Nachleben) das imagens quando seus elementos se transportam de uma cultura e de uma época à outra”. Ainda diz Baitello Jr (2014a, p. 211), “tal qual diagnosticou Aby

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Warburg, imagens carregam uma pós-vida (Nachleben) de camadas profundas da história e atuam como um dínamo que gera energia ao amplificar sentidos e sentimentos soterrados”. Foi nos anos 1920 que Warburg passou a guardar e dispor os elementos de seu atlas em uma grande sala. As imagens não estavam também separadas em relação ao suporte onde moravam, ou estavam de passagem, podendo ser pinturas, fotografias, gravuras, etc. “Nessa grande montagem de reproduções fotográficas, substituindo a questão da transmissão do saber pela de sua exposição, Warburg organizou uma rede de tensões e anacronismos entre as imagens, marcou a função do outro e do longínquo no conhecimento do passado” (MICHAUD, 2013, p. 39). Diz Warburg: A humanidade inteira é esquizofrênica, eternamente e desde sempre. No entanto, há um comportamento concernente às imagens mnêmicas que talvez possamos definir, em termos ontogenéticos, como anterior e primitivo, mas que permanece secundário. Na etapa posterior, a imagem mnêmica não desencadeia um movimento reflexo imediato e prático – seja de natureza guerreira ou religiosa -, mas as imagens da memória são conscientemente acumuladas sob a forma de imagens ou de sinais. Entre essas duas etapas, há o tratamento sofrido pela experiência, e que podemos designar como uma forma de pensamento simbólico. (WARBURG, 1923, p. 270; sublinhado do autor)

Essas imagens, organizadas através de “uma iconologia que se referiria não à significação das figuras – foi esse o sentido que lhe deu Panofsky -, mas às relações mantidas por essas figuras entre si numa disposição visual autônoma, irredutível à ordem do discurso” (MICHAUD, 2013, p. 293) também não estavam organizadas em um sistema que excluía a estética do movimento, já que historicamente foram organizadas também no início do século XX, momento em que o cinema já estava consolidado no mundo ocidental, e que esse “modo de ver” havia dado grandes passos para se tornar hegemônico, em detrimento de outros olhares que podiam ser pensados a partir de dispositivos “silenciados” pelo discurso cinematográfico, como diz Jonathan Crary em Técnicas do Observador. No caso do atlas de Warburg, “o sistema de montagem generalizada do Mnemosyne (...) era inteiramente sustentado pela estética do movimento que, a partir do final do século XIX, exprimia-se no cinema nascente” (MICHAUD, 2013, p. 40). Previamente falamos do ato do personagem colecionador de arte, ao dizer para não prestar atenção no conteúdo, mas no formato das imagens. Nesse caso, ele se referia à uma meia-lua, que podia ser observada nos quadros tanto como o formato de um espelho, um buraco na parede por onde entrava a luz solar, ou mesmo as formas produzidas pelo conjunto de sombras de personagens que participavam de um ritual em outra pintura. O

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colecionador de arte também parece já estar dentro do próprio regime de movimento cinematográfico, pois estabelece essas relações muitas vezes “andando” dentro de um espaço inferido dos quadros, já que esses formatos de sombras só poderiam ser obtidos a partir de determinado ponto de vista interior à obra em uma versão tridimensional. Ou pode-se ver essa inferência, mostrada nas telas de maneira tridimensional, como a própria dialeticidade das imagens, um experimento de pensamento fractal e especulativo no qual o personagem-narrador inconscientemente busca naquilo que falta elementos que já existem em seu imaginário para construir essas paisagens tridimensionais, passeios por imagens de dentro e de fora de sua mente, como as imagens que se relacionavam no atlas de Warburg e que povoam nossos inconscientes. Dessa maneira, “cada prancha de Mnemosyne é o relevo cartográfico de uma região da história da arte, simultaneamente vista como concatenação de pensamentos e como sequência objetiva, na qual a rede dos intervalos desenha as linhas de fratura históricas e psíquicas que distribuem ou organizam as representações” (MICHAUD, 2013, p. 296). No filme de Ruiz, cada pintura também não está presa à mesma idade dos homens, mas ligadas historicamente, ainda que de maneira distinta daquela pensada pela história tradicional. A cena de Diana, as Cruzadas, a cerimônia dos Templários, todas ligadas através de uma rede de imagens e modos de ver de distintos momentos da história ocidental. Vale lembrar que, apesar de termos tratado de obras artísticas, quadros, sua expressão mais categorizada e catalogada, essas imagens não podem ser restritas ao que é convencionado chamar de arte, e o próprio Warburg, em seu mnemosyne, construía uma acervo que de longe era tão restritivo, que buscava ser um acervo mutante de tensões de força, pois é disso que se trataria, por exemplo, a permanência da astrologia antiga e oriental na Renascença e na reforma, sua Pós-Vida (Nachleben), relações de força entre imagens e seus momentos históricos que fazem com que suas formas sejam deformadas, reproduzidas ou que se tornassem espectros em imagens de outro tempo. Se não se pensasse assim, a tarefa do mnemosyne “não passaria de uma teoria da evolução descritiva e insuficiente, caso ao mesmo tempo não se ousasse tentar descer às profundezas do emaranhado de pulsões do espírito humano com a matéria sedimentada” (WARBURG, 2015, p. 368).

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Figura 07: um dos painéis do mnemosyne, no site da Cornell University Library

Uma genealogia das imagens, já que é histórica, não pode ser feita sem levar em consideração os atuais regimes de visibilidade criados por dispositivos de captura, reprodução e construção de imagens, desde smartphones, telas de todos os tipos em superfícies, arquiteturas desenvolvidas para o encaixe e exibição de imagens de propaganda, outdoors, as imagens de si e dos outros desenvolvidas como ilusão de alteridade nas redes sociais, enfim, toda uma gama incontável de imagens que cerceiam a sociedade dos ditos modernos. Em outras palavras, é impossível falar de imagem somente como arte sem falar das imagens midiáticas. Entretanto, para Warburg o artista, ou o homem da arte seria um ente fronteiriço, que oscila entre as perspectivas de mundo positivistas ou metafísico-religiosas, ele “oscila entre a visão de mundo da matemática e a religiosa” (WARBURG, 2015, 363), “entre a fantasia imersiva e a razão emersiva” (WARBURG, 2015, p. 368), entre a “apreensão imaginária e visada conceitual” (ibid.). O estudo das imagens da arte, em conjunto com as imagens científicas que “classificam” o mundo seria um dos modos de desenvolver uma verdadeira ciência antropológica do homem moderno, que também se caracteriza pela ideia de que o humano transcende o mundo desde o primeiro ato civilizatório, a “criação consciente da distância entre si e o mundo exterior” (WARBURG, 2015, p. 363), nada mais do que uma versão da bifurcação natureza/cultura, sujeito/objeto que insiste em permanecer no Ocidente. Uma das tarefas da arte – não nos atrevemos a entrar no debate do que é ou o que não é arte, muitas vezes calcado em um falido juízo de valor - seria a de também colocar em choque imagens que aparentemente não possuem relação, seja como feito pelos objetos de

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Scott analisados por Didi-Huberman, e no cinema, guardadas as grandes diferenças, é o que fazem Sergei Eisenstein ou Jean-Luc Godard, criar várias possibilidades de atlas imagéticos. Michaud nos lembra que “Jean-Luc Godard, em suas História (s) do cinema, procurando “aproximar as coisas que não dispõem a sê-lo”, trabalhou o material fílmico tal como fez Warburg com o da história da arte” (MICHAUD, 2013, p. 303). Talvez o título da última obra de Godard, Adeus à Linguagem, nos faça pensar um pouco nisso, nos acontecimentos que não podem ser codificados pela linguagem, em modos de pensar ou de perceber ligados às confrontações imagéticas, sem apelar, ou criticando a produção incessante de imagens de si e dos outros na contemporaneidade, que refletem um direcionamento do desejo produtivo de composição dos entes humanos para um desejo de controle absoluto e falso da humanidade, dos outros, e de tudo que é. PARTE III – (...) ou, uma outra história que Kamper (talvez) contasse Dietmar Kamper é um teórico cuja filosofia reflete muito sobre a relação corpo/imagens, mais especificamente um de seus pontos é a questão da perda do corpo, ou a reformatação do corpo como aquilo que resta, aquilo que é rejeitado em favor de um ecossistema midiático que valoriza cada vez mais o achatamento das superfícies planas das imagens - das pinturas em perspectiva que dilaceram os corpos quando a imagem se coloca entre o observador do quadro e o ponto de fuga às imagens da fotografia, televisão, cinema, e tantos outros aparatos de captura óptica. Esse achatamento reflete momentos históricos em que a imagem transformou o corpo em objeto de estudo das ciências e dos dispositivos ligados à uma lógica positivista de domínio do Homem, dos saltos altos de seu Antropocentrismo, sobre aquilo que passou a classificar como Natureza, para além de sua Cultura, inclusive de seu próprio corpo e dos espaços nos quais esses corpos interagiam com outros corpos e entes. Trata-se de um domínio da representação, a “imaginação reprodutiva”, em detrimento da “imaginação produtiva” (KAMPER, 2002, p. 02), que seria relacionada à plasticidade de nossa imaginação de atuar como máquina produtiva de imagens que não buscam reproduzir as paisagens do mundo, imagens monstruosas, composições abstratas, tridimensionais. Um desejo imputado em nós pela máquina antropotécnica de “organizar a relação de mundo de modo eminentemente visual através do domínio do espaço” (KAMPER, 2002, p. 02), de separar o homem e o “resto”, ou como diz Tetsuro Watsuji (2006, p. 73-74, traduzido por Norval Baitello Jr, 2014a, p. 26) a respeito

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das influências das sociedades monoteístas do deserto na construção de um pensamento racionalista: “a relação entre homem e mundo físico é aqui uma relação de oposição, o modo como o homem se vê na natureza. Vendo-a, o homem toma consciência da vida”. O homem sai da imanência da vida junto aos outros entes e busca esquadrinhar, dominar, colocar em imagens técnicas e científicas os outros entes, pensa-se como transcendente com a ajuda das imagens representativas, infelizmente o “deus tribal que lutava do lado dos homens e recebia ao fim dos sacrifícios que dividia com a tribo toda, ao longo de tantas lutas tribais, impõe-se como supratribal e unificador de tribos, legislador de conflitos” (WATSUJI, 2006, p. 73-74 apud BAITELLO JR, 2014a, p. 26)7. A representação, a busca pelo “Real” planifica as entidades imanentes nas imagens reprodutivas. Tratam-se das formas tradicionais dos quadros que foram analisados pelos narradores de nosso filme, achatadas, planificadas, sujeitos à ordem da perspectiva, prontas a serem estudadas, ou, como diria Flusser (2014, p. 39-40), em outra perspectiva, que aqui citamos já pedindo desculpas por ampliar tanto o alcance da tentacularidade da mixórdia de autores aqui referenciamos: Quando uma imagem representa uma paisagem, ela também veda a paisagem. A imagem fica na frente da paisagem. É dessa dialética – conforme a qual, justamente porque se fez uma imagem, é impossível alcançar aquilo do que se fez uma imagem – que tratam, como vocês devem saber, a religião judaica e Platão. Os profetas acreditam que fazer imagens levaria à adoração das imagens, à idolatria. Platão quer proibir aos autores de imagens a entrada na república.

Entretanto, essas entidades incorporais que repousam e vivem nas superfícies das telas do palácio por onde caminha o nosso narrador visível têm de alguma maneira mágica suas corporeidades restituídas quando ele caminhava dentro delas, inclusive a própria imagem que não está mais disponível para acesso, a pintura roubada, interditada, censurada a qual relacionamos com a “proibição das imagens relativamente moderada ou rigorosa que se fez valer em todas as sociedades religiosamente determinadas [que promoveu] o desencadeamento da imaginação, que após diversos retrocessos, hoje alcança seu ápice” (KAMPER, 2002, p. 03). Tratam-se das imagens de culto proibidas no Cristianismo, Judaísmo e Islamismo, as três principais religiões monoteístas que, através de complexos dispositivos, ajudaram a moldar de certa maneira, e evidentemente com uma modulação imensa de nuances, sociedades ocidentalizadas. A imagem roubada, mesmo não estando de corpo presente (a superfície na qual estava inscrita não está lá na galeria), é deduzida a 7

Cf. a abordagem de sociedades tribais de organização anárquica de Clastres, 2012.

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partir de elementos que estão no imaginário dos narradores. Resta a dúvida, o fato de o imaginário desses personagens permitir com que eles caminhassem e entrassem em contato corpóreo com o espaço onde estavam os corpos tridimensionais que haviam sido planificados nos quadros, faz com que eles tenham de alguma maneira tenham restituído uma imanência topológica das imagens ou apenas reproduziram padrões e informações históricas enciclopédicas na busca do desvelamento do mistério através de técnicas detetivescas, profissão que não é necessariamente deste século, mas que parece estar diluída em nossos inconscientes com as possibilidades trazidas pela pilhagem de informações e imagens distribuídas pelos dispositivos técnicos das sociedades de controle, nas quais a observação e a vigilância do outro e de si mesmo torna-se ubíqua? Talvez a resposta não seja tão dual e simplista. Kamper (1996) em seu texto Re-Signação em São Paulo, traz como citação de início “O espírito mata, e letra vivifica”, deixando claro que trata-se de “Paulo de Tarso, invertido), uma inversão da frase de São Paulo, “a letra mata, o espírito vivifica”, que como um dos pontos de origem da mitologia cristã, prega a importância do espírito incorpóreo e de nossos cuidados com ele em contraponto ao mundo material, carnal e pecaminoso do corpo material. A letra portanto estaria relacionada às manifestações da corporeidade, e podemos especular a respeito de uma corporeidade das pedras onde eram gravadas ou talhadas as letras e algarismos. A ascensão de Jesus Cristo, sua subida aos céus como entidade incorpórea está relacionado à ordem do espírito, do que não pode ser tocado, sentido, não precisa ser alimentado, não produz excrementos, não participa de relações sexuais, etc. Entretanto, toda essa metafísica teria nos ajudado a esquecer a importância do corpo e de seus sentidos, em especial o toque. Em contrapartida houve o desenvolvimento de sociedades majoritariamente controlada pelas imagens, entidades incorpóreas que buscam alguns corpos ou superfícies planas para se manifestarem. Para Kamper, São Paulo teria uma paisagem imagética que dialoga muito bem isso. E a inversão por ele proposta é um retorno ao corpo, por isso, “o espírito mata, a letra vivifica”, estamos obcecados com as imagens que são de alguma maneira mortas, dominando os corpos, eles mesmos se tornaram redutos de obsessão pelas imagens, a imagem de um corpo magro, branco, nos padrões majoritariamente enunciados pelos dispositivos midiáticos – ainda assim, o corpo é sempre resistência. A atuação que resta sobre o corpo é torná-lo superfície total das imagens padronizadas, ou mesmo ver que o corpo é vítima de uma escalada signíca de abstrações: “a primeira abstração do corpo é a da linguagem sem corpo; a segunda, da imagem sem

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linguagem; a terceira, do signo sem imagem” (KAMPER, 2009, p. 04; grifo nosso). A escalada da abstração é característica do projeto moderno, já que “a civilização (ocidental, ocidentalizante e ocidentalizada) investe [no ambiente] (...) da abstração, com a retirada progressiva de todas as dimensões de proximidade e da corporeidade” (BAITELLO JR, 2014a, p.25). Contra isso, Dietmar Kamper propõe uma “revolta contra o canibalismo da Civilização”, um retorno ao corpo8, pensar com o corpo e que nos rendamos novamente à sua mortalidade, já que viver em corpo pressupõe uma finitude/transformação biológica, enquanto as imagens sobrevivem, são da ordem da imortalidade (Cf. Kamper, 2009) e vão se reproduzindo através de padrões, citações e relações históricas, como bem deu conta de mostrar o projeto do mnemosyne de Warburg. Não se trata, entretanto, de adotar uma posição de repulsa às imagens como antiiconoclastas. Kamper mesmo cita que é necessário buscar possibilidades nessas conjunturas: “E quantos novos ideais no futuro ainda são possíveis” é a frase de Friedrich Nietzsche com a qual o autor inicia A Estrutura Temporal das Imagens. De certa maneira sim, o narrador caminhou e tocou os corpos que haviam sido achatados pelas imagens. Os momentos em que ele toca algum elemento físico da mise-en-scène são raríssimos, talvez ausentes, mas seu corpo caminhou e tocou o chão, sentiu de alguma maneira o ar e os perfumes do pântano e do jardim onde estavam Diana e o Caçador, molhou-se quando a neblina espessa tocou o seu rosto e se aglutinou em gotas que escorreram por sua face. Não cabe aqui especular se isso foi realmente uma pura imaginação ou se de fato os personagens entraram nos ambientes internos dos seres retratados, devolvendo-lhes sua imanência. Cabe ressaltar que essa questão não faz sentido se pensarmos que: I) não há manifestação da mente que não tenha qualquer influência sobre o corpo, corpo e mente não são entidades isoladas como buscava provar o cartesianismo que, em seu enunciado mais difundido, cogito ergo sum, traz a comprovação da existência humana como sendo a chancela de sua vida intelectual, do pensar, da mente, não provando que há corpo; filosofia que de alguma maneira seria contestada por Spinoza em sua planificação ontológica – tudo é Deus e tudo é Natureza, Deus é a própria natureza, infinita, produtiva e absoluta, dos quais o pensamento e a extensão são apenas dois de seus infinitos modos, aqueles a que temos acesso. Insistir nessa separação é insistir na dilaceração dos corpos em órgãos a serem estudados e 8

Dietmar Kamper comenta a respeito daquilo que são elementos pré-significantes, o Real do corpo, aquilo que não pode ser simbolizado pela linguagem, ou do que falava Merleau-Ponty (Cf. a obra Fenomenologia da Percepção) ao se referir à uma carne do mundo, um corpo compartilhado, matéria: “que abaixo da limitação local das culturas, da limitação cultural das imagens e da limitação significante da linguagem, existe um real múltiplo, “carne do mundo” (Merleau-Ponty) que, pagando o custo da não-identificação, da não-objetivação e da não-apropriação, mantém coeso todo viver.” (KAMPER, 1999, p. 04).

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dominados pelas imagens, prática que Kamper tanto criticava, e esse autor merece ser lembrado e estudado – ainda pouco citado na América Latina – como um forte contraponto à ideia de que imagem, corpos, imaginário, são entidades separadas. A resposta é que o narrador caminhou e não caminhou de fato pelas paisagens re-tridimensionalizadas e recorporificadas. A abstração linguística e imagética ultrapassaram o “point of no return”. No ouvir externo e no olhar interno está o ruído branco ou negro, está o turbilhão dos signos abandonados como resto amontoado de uma boa ação, mas como tendência, absolutamente destrutivos.” (...) Contra a proliferação da abstração e seus recursos, da palavra, das imagens, dos esquemas, só ajudam as invenções da imaginação. Apenas ficções virtuosísticas resistirão à supremacia do virtual, jamais os esquemas, as imagens, as palavras. Isto cria uma nova situação para a arte. (Re-Signação em São Paulo, de Dietmar Kamper, traduzido por Norval Baitello Junior)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2011. BAITELLO JR, Norval. A serpente, a maçã e o holograma. Esboços para uma Teoria da Mídia. São Paulo: Paulus, 2010. BAITELLO JR, Norval. A Era da Iconofagia. São Paulo: Paulus, 2014. BAITELLO JR, Norval. “Imagem e Emoção: movimentos interiores e exteriores”. In: BAITELLO JR, Norval; WULF, Christoph. Emoção e Imaginação: Sentidos e as Imagens em Movimento. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014a. CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo, Cosac Naify, 2012. CRARY, Jonathan. Técnicas do observador. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. DIDI-HUBERMAN, Georges. A Imagem Sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. FLUSSER, Vilém. Comunicologia:reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes, 2014. GALARD, Jean. “Como o nu apareceu na pintura”. Trad. Cristina e Raquel Prado. In: Discurso (USP), no. 39. São Paulo: USP, 2011. GODDARD, Michael. “The Hypothesis of the Stolen Aesthetics”. In: Contretemps. Sidney, Austrália, 2002. KAMPER, Dietmar. Re-Signação Em São Paulo. Trad. Norval Baitello Junior. 1996. [texto fornecido pelo tradutor]. KAMPER, Dietmar. Estrutura Temporal das Imagens. 2002. Trad. Juan A. Bonaccini [Texto disponível no CISC – Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia] s/d. Disponível

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em Acesso: 12/03/2015. KAMPER, Dietmar. Imagem. Texto extraído de: WULF, Christoph. (org.). Cosmo, corpo, cultura. Enciclopedia antropologica. Milão: Mondadori, 2002b. KAMPER, Dietmar. "Motin contra o canibalismo da civilização." Revista Ghrebh. Centro Interdisciplinar de semiótica da cultura e da mídia. PUC-SP: São Paulo, 2009. KAMPER, Dietmar; WULF, Christoph. (eds.). Looking Back on the End of the World. New York: Columbia University Press, 1989. KLOSSOWSKI, Pierre. O Baphomet. São Paulo: Max Limonad, 1986. MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. WARBURG, Aby. “Recordações de uma viagem à terra dos pueblos” (1923). In: MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. WARBURG, Aby. A Renovação da Antiguidade Pagã: Contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande. Escritos, Esboços e Conferências; tradução Lenin Bicudo Bárbara. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS Adieu au Langage. GODARD, Jean-Luc. França: 2014. 70 min. True Detective. PIZZOLATTO, Nic. HBO: Estados Unidos, 2014-. 8 x 55 min. L'Hypothèse du tableau volé. RUIZ, Raúl. França: 1979, 66 min.

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