A história como tentativa de se desvendar o encadeamento lógico dos fatos do passado.

September 30, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Teoria e metodologia da história
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A HISTÓRIA COMO TENTATIVA DE SE DESVENDAR O ENCADEAMENTO LÓGICO DOS
FATOS DO PASSADO








IRACI DEL NERO DA COSTA
São Paulo, janeiro de 2001









Minha opinião sobre um tema clássico

A história, enquanto atividade de recuperação, recriação ou, mais
propriamente, apropriação ou "criação" do passado, pode ser entendida
como uma tentativa de se desvelar o encadeamento lógico dos fatos do
passado. Da mesma sorte, pode ser ela vista como um movimento do
pensamento mediante o qual rearranjamos – de modo inteligível e
racional – os fatos, coisas, ações e pensamentos que,
irrecorrivelmente, perderam-se no tempo ido.

Não que o passado seja, enquanto um algo, ininteligível ou
irracional; o problema está em que – da mesma maneira que nossa
"interpretação" do fato, em sua gênese e enquanto ainda está a se dar,
pode alterar o curso de seu desenvolvimento – o fato de estarmos pondo
o passado como objeto de nossa observação propicia – já desvanecidos os
elementos materiais e, em larga medida, muito dos elementos subjetivos
que lhe deram sustentação e o condicionaram – oportunidade para a
emergência de uma interpretação, de uma "inteligibilidade" e de uma
"racionalidade" que dormitam, como meras potencialidades, tanto no fato
quanto em nós mesmos.

Por outro lado, é preciso ter presente que o peso a ser assumido
por um fato, (por qualquer fato ocorrido em qualquer momento) – cuja
gênese pode ter sido aleatória e/ou acessória – depende, crucialmente,
do desenvolvimento futuro que projetamos para ele. Ao interpretá-lo,
racionalizá-lo e torná-lo inteligível – no momento mesmo em que surge
-- emprestamos-lhe uma dimensão nova (do campo do material – "natural"
– transportamo-lo ao campo do real – cultural),(1) comprometemos seu
"futuro" e fazemo-lo assumir o "peso" (relevância, importância) acima
aludido.

Como gostariam os físicos, pode-se dizer que o princípio da
incerteza de Heisenberg está na base mesma da vida cultural – da
existência humana enquanto tal. Assim, a observação (a colocação do
"fato" como objeto do pensamento) transforma-o em algo real e,
portanto, supramaterial; seu desenrolamento futuro, condiciona-se,
destarte, a uma ordem legal que não tem de estar presente,
necessariamente, em seu nascedouro. Ademais, mesmo se o estivesse, o
plano do real apresenta dinâmica tal que, a cada momento, e sempre,
tudo é passível de reordenamento, de redefinição.

Não estou dizendo que é impossível conhecer ou "recompor" o
passado, o que estou afirmando é que é impossível conhecer o que quer
que seja se se concebe o conhecimento da maneira errônea e ingênua como
o fazem os positivistas. Assim, a questão não está em se saber se o
passado, ou o presente, são inatingíveis, mas, sim, saber-se "o que é
atingido". Destarte, e falando figuradamente, se, com respeito à
denunciada postura ingênua, o que se alcança no presente é um
exponencial do pretenso "fato em si", na história estamos em face de um
exponencial de um exponencial.




Duas questões paralelas

As questões acima postas dizem respeito, especificamente, à
maneira de ser da cultura, à existência do humano, ao que chamo de
"plano ou campo do real".(2) A elas somam-se duas outras, às quais
também se deve dar atenção, pois também operam no sentido de qualificar
a ciência da história, minando ainda mais seu hipostático habitat.
Penso agora nos problemas afetos à ideologia e ao hiato que separa o
que o sujeito pensa de suas ações ou de suas intenções e os móveis
efetivos que as determinam (não esqueço aqui que o pensado pelo agente
influencia decisivamente suas ações e intenções e seus respectivos
desdobramentos). Ambos temas têm recebido largo tratamento por parte de
estudiosos e, embora nunca se possa considerar um tópico como estes
exaurido, não pretendo aqui tecer comentários adicionais aos que já
constam de uma longa bibliografia; restrinjo-me, tão-só, a uma
observação que visa a conturbar ainda mais este movediço terreno,
vejamo-la.

Sem fugir das recorrentes recomendações a que explicitemos
posições no que tange ao campo das ideologias e sem descurar da
pesquisa referente ao levantamento dos possíveis móveis das ações e
intenções dos protagonistas pessoais e coletivos de nosso passado, não
se deve perder de vista a impossibilidade de se chegar – no âmbito da
Ciência Social – a um "produto final pronto e acabado". Como bem
sabemos, o final de uma pesquisa é, de fato, um reinício, nossos
achados dão ensejo a um diálogo com cada um de nossos leitores, o
resultado dessa interação – como nas artes em geral –, este sim, pode
ser tomado como produto de nossos estudos. Serão eles, pois,
reciclados, re-postos por estes nossos interlocutores que também os
avaliarão sob a ótica das ideologias e das perspectivas analíticas
porventura neles propostas de modo implícito ou explícito. As
recomendações aludidas no início deste parágrafo não podem ser tomadas,
assim, como fórmulas destinadas a "garantir" aquele "produto final",
mas, sim, como normas cuja finalidade é proporcionar a abertura de um
processo interativo isento de vícios maiores. Isto implica dizer que o
processo de crítica das bases ideológicas e dos móveis últimos dos
agentes tem continuidade depois de a obra haver sido dada a público;
mais ainda, tal processo vê-se alargado, pois agora o próprio autor vê-
se submetido àquele crivo, vale dizer, também a visão de mundo e os
móveis do historiador passam a incorporar o todo a ser avaliado
criticamente.




Uma conseqüência a considerar

Outra conseqüência da visão acima reportada está em que, em
história, sempre nos deparamos com resultados, "fósseis" dados ex post.
Ocorre que o "humano" que os embasa não está nesses "fósseis", mas no
processo que os constituiu e do qual eles resultaram. Assim, captar
humanamente o passado pressupõe um largo exercício de imaginação
mediante o qual injetamos vida em tais "fósseis". É preciso, pois, vê-
los de uma perspectiva processual. Ao operarmos dessa forma devemos
deixar de lado a vã tentativa de recompor o passado "como ele realmente
foi"; devemos fazê-lo visando a apreendê-lo – não como uma coisa –
mas como testemunho de seres que viveram humanamente, apaixonadamente.
Percorrer este campo minado é, certamente, o grande desafio que se
coloca ao historiador.






NOTAS



(1) Sobre esta e outras questões concernentes à visão de mundo que
esposo veja-se: COSTA, Iraci. Notas não orgânicas sobre formas de
existência. São Paulo, FEA-USP/NEHD, 1998, 7 p., mimeografado.

(2) Cf. COSTA, 1998, op. cit., passim.
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