A história (in)finita da democracia direta, in «Política Democrática. Revista de Política e Cultura», n. 39, 2014, pp. 124-129

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NOVA AFRONTA À DEMOCRACIA

Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504 Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected] www.fundacaoastrojildo.org.br Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Caetano Pereira de Araújo

Política Democrática

Revista de Política e Cultura www.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. Araújo Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida

George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos

Conselho Editorial Ailton Benedito Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico César Benjamin Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite Ferreira Neto Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra

Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pierre Lucena Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Filho Rudá Ricci Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Telma Lobo Ulrich Hoffmann Washington Bonfim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro

Copyright © 2014 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446 Obra da capa: Corda bamba, Guido Boletti

Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. No 39, jul./2014. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

NOVA AFRONTA À DEMOCRACIA

Julho /2014

Sobre a capa Para satisfação nossa e para alegria dos leitores, a capa e contracapa desta edição são belamente ilustradas pelo artista plástico milanês Guido Boletti (nascido em 1961), que vive, há alguns anos, no Brasil, atualmente na bela e histórica cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, onde montou seu atelier de trabalho. Artista autodidata, desde o final dos anos 1980, procura na música a primeira fonte de inspiração para dedicar-se à pintura. No início de sua carreira, teve a oportunidade de conviver com mestres italianos de renome internacional como Renzo Margonari, de quem é amigo até hoje, e Emilio Tadini, falecido em 2002. O contato com a cultura brasileira, por intermédio das viagens na década de 90 e da posterior residência no país, trouxeram novas ener-gias e inspirações, influenciando definitivamente a sua obra, que inclui pintura, vitrais, cerâmica, serigrafia, joias, ilustrações para capas de CDs e livros infantis. Irrequieto, nos últimos anos desen-volveu um percurso de pintura ao vivo, sob a forma de happenings em espaços públicos, televisivos e teatrais. Tem participado de numerosas exposições individuais e coletivas em muitas cidades italianas (Turim, Albissola, Lodi, Milão, Chiavari, Padova, Piacenza, Bolonha, Moncalieri, Mantova, Ferrara, Reggio Emilia, Asti, dentre outras), no mundo (Genebra e Lugano, na Suiça; Cannes e Nice, na França; Miami, nos Estados Unidos; Joanesburgo, na África do Sul; Chaves, em Portugal) e no Brasil (Brasília, São Paulo; Belo Horizonte, Mariana, Ouro Preto e Tiradentes). Além do que possui obras expostas em galerias, museus públicos e privados como na cidade de Lodi, na Itália (no Teatro alle Vigne, no Museo di Arte Sacra Diocesana e na coleção de arte contemporânea da Provincia di Lodi), no M.i.M. – Museo in Motion, em San Pietro in Cerro, na Itália, e na Galeria de Minerva, do Museu de Juelich, na Alemanha. Seu talento e suas obras têm reconhecimento público, com destaque para um prêmio, logo no começo de sua carreira, do Ministério do Correio do Japão (que promoveu, em 1990, um concurso internacional para criar um novo selo comemorativo) e a medalha de ouro da Associação Cultural Monsignor Luciano Quartieri, de Lodi, em 2001. Tem recebido vários depoimentos na Itália e no Brasil como os dos professores Carlo Munari, Renzo Margonari e Pierre Santos; dos críticos Morgan da Motta, Giovanni Schialvino e Gabriele Turola; da jornalista Marina Arensi; da crítica e curadora Paola Trevisan; e da artista e gale-rista Esthergilda Menicucci.

Sumário APRESENTAÇÃO Os Editores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07 I. TEMA DE CAPA: NOVA AFRONTA À DEMOCRACIA Nova afronta à democracia representativa Roberto Freire. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 A farsa como método João Bosco Rabello. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 A âncora constitucional Luiz Sérgio Henriques. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 II. CONJUNTURA O futebol e a política Luiz Werneck Vianna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Sob o domínio do medo João Paulo Cunha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Eleições 2014: não basta ganhar Sergio Fausto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Os intelectuais e o poder petista Sérgio C.Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 III. DOSSIÊ 1964 Ditadura e democracia na práxis da esquerda José Antonio Segatto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Cinquenta anos de fingimento Cristovam Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 Organização sindical em tempos de ditadura José Carlos Arouca. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade Pedro Scuro Neto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 Cultura e artes no regime militar 50 anos do golpe Martin Cezar Feijó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 IV. QUESTÕES DA CIDADANIA E DO ESTADO DE DIREITO Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania Marilde Loiola de Menezes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo Leone Sousa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes Maria Francisca Pinheiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Cidadania e raça no Brasil Paulo César Nascimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 V. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Para onde caminha a Petrobras? Silvio Sinedino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 A política industrial deu certo? Manfredo Almeida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 VI. BATALHA DAS IDEAIS A história (in)finita da democracia direta Gian Luca Fruci. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 A recepção de Walter Benjamin da UFPE Michel Zaidan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 VII. MEMÓRIA O Idisher Cultur Farband (ICUF): uma história entre knishes, mates e caipirinhas Nerina Visacovsky. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 Nos 180 anos da Cabanagem Lúcio Flávio Pinto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 VIII. MUNDO Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados Renato Zerbini Ribeirão Leão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Espanha: adbicação e legitimidade monárquica Alberto Aggio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160 IX. ENSAIO Flexões e reflexões Flávio R.Kothe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 X. DOCUMENTOS HISTÓRICOS A luta certa Editorial da Voz Operária (1971). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 XI. RESENHA O nome da esquerda, segundo Safatle Adelson Vidal Alves. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Intervenção autocrática da ciência na sociedade? Sergio Augusto de Moraes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 Canclini e a cultura sob a lógica do mercado Tiago Eloy Zaidan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

Apresentação

É

inacreditável não haver limite para os principais dirigentes

máximos

do país, nos últimos 12 anos, em abusar dessa sua condição, no sentido de afrontar a democracia brasileira, a tanto custo sendo construída entre nós, nação que somos de lide-

ranças políticas historicamente despreocupadas em construir uma sociedade em que todos possam usufruir dos seus direitos e cumprir com suas obrigações na sua convivência coletiva. A nova e absurda ideia do Palácio do Planalto, via decreto presidencial, de criar “conselhos populares”, segundo apregoam como uma forma de incorporar a cidadania na gestão pública do país – que se diga, a bem da verdade, vai em declínio permanente – jamais poderia ser apresentada como um torpedo lançado contra um dos Poderes mais importantes de nossa estrutura institucional: o Parlamento. Trata-se, como diz o título do Tema de Capa, de uma Nova Afronta à Democracia. Se tivesse partido de verdadeiros democratas, uma ideia desse teor deveria ser apresentada pelo Executivo, sob a forma de um projeto de lei, para que o mais democrático dos Poderes, o Legislativo, pudesse examiná-lo, ouvindo, em audiências públicas, diferentes setores da sociedade brasileira, na busca de encontrar o melhor caminho para tornar real a participação cidadã na discussão, aprovação e implementação de ideias e propostas para que a máquina pública possa melhor cumprir seu dever. Os brasileiros, talvez em sua maioria, são defensores da participação popular nas decisões de governo, mas não admitem nem ser 7

individualmente manipulados e, muito menos, as organizações que os representam, tal como hoje ocorre, de uma forma descarada, por parte dos executivos federal, estaduais e municipais controlados, sobretudo pelo PT. Qualquer que tenha sido a razão maior que ditou ao lulopetismo criar, de cima para baixo, os tais “conselhos” – seja a necessidade de dar uma satisfação às rebeliões de ruas e redes sociais desencadeadas desde junho de 2013, e criar um mecanismo para dizer que o “povo está sendo consultado pelo governo federal” antes de realizar qualquer uma das suas atividades estatais, em qualquer dos seus ministérios; seja a crescente preocupação com o declínio da imagem do governo, e da sua líder maior, por conta de sua desastrada gestão na economia (pibinhos, obras atrasadas e soluções adiadas, inflação acima do desejável etc.); seja no social (redução das oportunidades de emprego, dificuldades com sintomas de crise nos sistemas públicos essenciais de educação, saúde e segurança pública) e em muitas outras áreas da vida brasileira – trata-se de uma decisão unilateral e voluntarista na crença de constituir-se novo e eficaz elemento para se manter no poder. Esta delicada questão é examinada, com muita argúcia e propriedade pelo advogado e deputado federal Roberto Freire, presidente nacional do PPS; pelo comentarista político João Bosco Rabello e pelo tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. Na seção Conjuntura, temos quatro instigantes artigos, a começar pelo do sociólogo político Luiz Werneck Vianna que desenvolve uma análise comparativa entre o futebol e a política e as tentativas de certos setores de fazê-los funcionar a contento, a fim de atender aos seus interesses; seguido pelo jornalista João Paulo Cunha, que faz um enfoque inovador sobre uma das questões centrais hoje do cidadão brasileiro – a insegurança que domina, a toda hora e prati-camente em todo lugar, e a ausência de políticas públicas sérias que permitam dar tranquilidade a homens e mulheres, jovens e idosos, neste imenso país urbano; o cientista político Sergio Fausto, que empreende um exercício de identificar como talvez se dará a disputa presidencial deste ano e as várias manobras que líderes governistas tentarão utilizar para fugir ao debate das reais e importantes ques-tões do país, ante o evidente receio de que possam perder as eleições; e, por fim, o economista mestre em Sociologia e consultor em desen-volvimento regional e local, Sergio C. Buarque, que faz uma provoca-tiva análise sobre as relações do PT com a intelectualidade, além de abordar outros curiosos aspectos da concepção e prática do lulope-tismo com a “elite” brasileira. Da melhor qualidade. 8

Já no Dossiê 1964, dando sequência a artigos e ensaios para relembrar os 50 anos do golpe militar-civil, apresentamos, neste número, uma série de artigos que relembram faces variadas desses anos de muito autoritarismo e repressão sobre a sociedade brasileira. O primeiro deles é do professor e historiador José Antonio Segatto, que nos remete a examinar, com lupa, um aspecto essencial e definidor na práxis da esquerda que é pugnar por uma frente democrática ou por organizar grupos guerrilheiros; por um governo em que vigorem as liberdades democráticas ou por uma ditadura do proletariado. Já o professor, economista e senador Cristovam Buarque nos conduz a pensar seriamente sobre o fingimento que vivíamos naquele período e ainda vivemos nos dias de hoje e sobre a necessidade de se exigir seriedade no trato da coisa pública. O desembargador aposentado e membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, José Carlos Arouca, desenvolve enriquecedora viagem pela organização sindical, na história brasileira, enfatizando a violenta carga ditatorial sobre os trabalhadores e seus órgãos representativos, enquanto o doutor pela Universidade de Leeds (Inglaterra), Pedro Scuro Neto, disseca a questão dos grupos armados na resistência democrática e identifica o imenso erro em que estes grupos se envolveram. E, por fim, o professor de

Comunicação, Martin Cezar Feijó, faz curiosa análise sobre como homens da cultura e das artes no Brasil enfrentaram o perigoso período do regime autoritário. Fraterna colaboração enfeixa a seção Questões da Cidadania e do Estado de Direito, por iniciativa do cientista político Paulo Cesar Nascimento, que nos enviou além deste seu trabalho (Cidadania e raça no Brasil), o das sociólogas Marilde Loiola de Menezes (Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação e subcidadania), Leone Sousa (As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo) e de Maria Francisca Pinheiro Coelho (A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes). Na seção Economia e Desenvolvimento, o leitor se enriquece com duas boas análises e informações a respeito da situação da Petrobras, como a nossa empresa símbolo, num artigo contundente de Silvio Sinedino, membro do Conselho de Administração e presidente da Associação dos Engenheiros da nossa maior empresa estatal, e a quantas anda a vida industrial brasileira, num estudo do economista Manfredo Almeida, técnico de pesquisa e planejamento do Ipea. Quanto à Batalha das Ideias, há dois estudos muito curiosos e oportunos, um dos quais do historiador italiano Gian Luca Fruci, sobre A história (in)finita da democracia direta, que nos revela outros ângulos interessantes da ideia petista dos chamados “conselhos Apresentação

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populares” surgidos com o Decreto n o 8.423 (ver o Tema de Capa), e o outro do historiador Michel Zaidan, a respeito do grande intelectual judeu alemão Walter Benjamin e sua extraordinária obra nos terrenos da Filosofia, da Sociologia e de outras áreas do pensamento. Nas demais seções, temos na Memória, um belo relato do jorna-lista e escritor paraense Lúcio Flávio Pinto sobre os 180 anos da rebelião da Cabanagem e a professora argentina Nerina Visacovsky relembra as atividades das instituições socioculturais e educativas agrupadas na Federação de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband (Icuf), organismo que atuou na América Latina, desde os anos 1920. Em Mundo, temos o artigo de Renato Zerbini Ribeirão Leão, membro do Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais da ONU, no qual destaca “Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados”, instrumento de proteção internacional aos perseguidos, em seus países de origem, por motivos de raça, reli-gião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, e o do professor Alberto Aggio sobre a abdicação do rei Juan Carlos e a crise na monarquia espanhola, tema muito bem aprofundado nesse inte-ressante estudo. Em Ensaio, temos o ensaísta e ficcionista Flávio R. Kothe se divertindo e divertindo os leitores com suas flexões e refle-xões a respeito das coisas da vida. Em Documentos Históricos, temos um editorial do mensário Voz Operária, porta-voz oficial do PCB, de

1971. Trata-se de um texto que se caracteriza pela lucidez com que analisa e propõe ações para enfrentar a ditadura. E, por fim, temos Resenha, com três boas análises sobre obras curiosas, como A esquerda que não teme dizer seu nome, de Vladimir Saffatle, examinada pelo historiador Adelson Vidal Alves; Inferno, de Dan Brown, submetida a uma sacudida no tocante à sua tese sobre a reprodução humana, feita pelo mestre em Econometria, Sergio Augusto de Moraes; e Leitores, espectadores e internautas, do filósofo argentino Néstor Garcia Canclini, muito bem esmiuçada pelo mestre em Comunicação Social, Tiago Eloy Zaidan. Boa leitura! Os Editores

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I. Tema de Capa: Nova afronta à democracia

Autores João Bosco Rabello Jornalista e comentarista político..

Luiz Sérgio Henriques Tradutor e ensaísta.. Um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil..

Roberto Freire Advogado, deputado federal (PPS-SP) e presidente nacional do Partido Popular Socialista..

Nova afronta à democracia representativa Roberto Freire

A

fetados pelo grande desgaste do PT e do governo Dilma junto

às

camadas médias e aos setores mais bem informados da população, a partir dos movimentos de ruas e redes sociais deflagrados desde junho de 2013, atordoados pela queda nos índices de popularidade, com uma tendência de queda crescente que vem sendo detectada pelas pesquisas, e diante da perspectiva concreta de ser derrotados na eleição de outubro próximo, é que os pragmáticos instalados no Palácio do Planalto talvez estejam sendo induzidos a optar por uma radicalização das suas campanhas públicas em torno do apelo “pobres contra ricos”, da denúncia de que uma vitória da oposição implicará o desmonte das políticas sociais, em particular do “bolsa família”, e da adoção das bandeiras ultraesquerdistas de

regulação da mídia e da “democracia direta”. Dentro dessa estratégia é que, no último dia 23 de maio, a presidente-candidata Dilma Rousseff editou o Decreto no 8.243/2014, instituindo uma Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) . Pretende -se, em seus 22 artigos, instituir um complexo sistema de consultas no qual a “sociedade civil” terá papel central. São criados conselhos, comissões, conferências, ouvidorias, mesas de debate e fóruns, além de audiências e consultas públicas. Essas instâncias ajudariam na elaboração de políticas públicas e atuariam como fiscais. Estranhamente não estão definidos ainda os critérios para escolha dos integrantes da “sociedade civil” que vão participar. Estão aptos “cidadãos”, ou seja, qualquer pessoa, “cole13

tivos”, grupos organizados nos quais se incluem “movimentos sociais”

– os sem-terra, sem teto, pelo passe livre etc. O Decreto presidencial determina que órgãos da administração direta e indireta a criar estruturas, como “conselho de políticas públicas” e “comissão de políticas públicas”, sendo estes órgãos obrigados a promover consultas populares sobre grandes temas, antes de definir a política a ser adotada e anunciada pela máquina governamental. Quer dizer, teoricamente pretende-se considerar tais colegiados durante “a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas”. Na prática, ministérios e demais órgãos serão obrigados a criar conselhos, realizar conferências ou mesmo promover mesas de diálogo, e apresentar relatórios anuais para mostrar que estão cumprindo a determinação superior e prestar contas.

Segundo está escrito, o objetivo do Decreto é “consolidar a participação social como método de governo”. Porém, na verdade, por trás deste pretexto de promover uma maior participação da “sociedade civil” na atividade estatal, além de golpear a democracia representativa ao obrigar órgãos federais a criar os tais “conselhos populares”, a decisão presidencial, na verdade, afronta o fundamento básico da igualdade perante a lei e cria uma casta de cidadãos de primeira classe – os membros dos movimentos sociais – que estariam acima dos demais. Desta forma, cinde-se a sociedade em duas categorias de cidadãos, conferindo uma cidadania de segunda classe aos que não militam nos tais movimentos. O Decreto não cria uma nova forma de participação, mas um sistema de tutela sobre os cidadãos ou movimentos organizados que poderão atuar em conjunto com o governo federal na administração do Estado. É mais do que evidente de que esses conselhos não poderão ser populares, pois seus membros, além de serem indicados pelas máquinas das organizações sociais controladas pelo PT serão nomeados pelo governo petista. O mais grave é que o Sistema Nacional de Participação Social não pode ser comparado às audiências públicas, que se realizam no âmbito do Legislativo, convocadas pela

Câmara ou pelo Senado, já que, de acordo com o Decreto de Dilma, ele se configura como uma vasta estrutura burocrática, comandada por um “secretário-geral”, que é exatamente o secretário-geral da Presidência da República, o petista Gilberto Carvalho. Ao definir como sociedade civil “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”, diante de tamanha subjetividade e imprecisão, caberá exclusivamente ao governo federal estabelecer o que é institucional e, portanto, parte integrante dessa sociedade civil chapa

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Roberto Freire

branca, e o que não é. A dedução lógica é de que todos aqueles que porventura não pertençam a movimentos sociais (centrais sindicais, federações, sindicatos, associações de moradores, entidades estudantis etc.), em sua expressiva maioria controlados pelos petistas, não poderão participar da “democracia direta” defendida pelo PT. Essa decisão da presidente Dilma de tentar criar um modelo de participação social, via decreto, passa por cima da Constituição e enfraquece o Poder Legislativo como fórum de representação da sociedade e de discussão de grandes temas, além do engessamento das decisões do governo. Ressalte- se que o aspecto institucional mais absurdo e inaceitável é, uma vez mais, o fortalecimento do predomínio do Executivo sobre os demais poderes. Trata-se de um novo atropelo do Legislativo e das instâncias jurídicas apropriadas. Como é de todos sabido, na democracia representativa, o foro institucional de debate político é o Congresso, constituído por representantes eleitos pelos cidadãos. Na “democracia participativa” pretendida pelo PT, o povo passa a ser “representado” por líderes de “movimentos sociais” selecionados pelo governo. Os “conselhos” resultantes serão majoritariamente integrados por militantes que gravitam na órbita lulopetista. Detalhe a destacar: a nova “representação” da “sociedade civil” não está sujeita ao crivo das eleições. Por sua vez, a Constituição brasileira garante o direito à livre manifestação e consagra a democracia representativa com eleições livres nas quais a sociedade escolhe seus representantes no Parlamento. O grande mérito desse modelo, que foi aprimorado na Constituição Cidadã de 1988, é que todos os brasileiros têm exatamente a mesma importância no momento do voto, independentemente de suas condições econômicas ou sociais, de sua origem, da preferência partidária ou do grau de envolvimento com a política. Além do viés profundamente antidemocrático do Decreto, trata-se de uma clara tentativa de manipulação política. O texto constitucional de 1988 também incorporou o princípio da participação popular direta na administração pública graças a uma série de mecanismos – audiên-cias públicas, referendos, plebiscitos e iniciativas de leis em prol da cidadania, como a Lei da Ficha Limpa –, mas nenhum deles engessa o Poder Legislativo e subjuga os representantes eleitos pela sociedade.

Participação popular, sob a forma de audiências públicas obrigatórias e outros instrumentos, é algo bem diferente da tese, contida no Decreto, segundo a qual mesmo movimentos “não institucionais” podem ter influência direta nas decisões de ordem pública. Nenhum possível membro de um dos tais conselhos assumirá responsabilidade oficial pelos erros e possíveis acertos das decisões nem face à Nova afronta à democracia representativa

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necessidade de dar explicações aos cidadãos, características da democracia representativa. Alguns defensores do Decreto no 8.243 parecem alimentar uma ilusão pseudorrevolucionária da dualidade de poder, mas tal entendimento não se ampara na realidade atual. O intuito do PT é estabelecer um hegemonismo político no país, de forma a ampliar o controle que já exerce, há mais de uma década, sobre os movimentos sociais e subalternizando o Congresso, o que fere de morte a democracia representativa. Infelizmente, essa nova e absurda iniciativa nada traz que surpreenda aos brasileiros minimamente informados, pois é originária de um partido que se especializou em afrontar o Poder Judiciário, atacar a imprensa independente e dilapidar as instituições republicanas. Não se deve esquecer que, desde 1990, já existem alguns conse-lhos, como o Conselho Nacional de Saúde, que não foram nem são respeitados pelo lulopetismo, que os cooptou e encurralou via governo.

Não vêm cumprindo seu papel de fiscalizar e propor alternativas, sendo hoje espaços onde o governo exerce muita influência ou lhes tornou subservientes à agenda governamental e formados por corporações e pessoas majoritariamente alinhadas ao esquema governista. Nunca é demais lembrar que, há vários anos, o PT vem tentando estabelecer uma regulação, por meio de mecanismos institucionais, para a imprensa e a mídia em geral, considerados pelo próprio Lula os profissionais e empresas de comunicação como “partido de oposição”. Tais iniciativas – da que alveja a liberdade de imprensa às que ameaçam a institucionalidade democrática – têm em vista, imediatamente, favorecer a campanha reeleitoral de Dilma e a preser-vação ou aumento do peso do PT nos estados e no Congresso Nacional.

É bom lembrar que, no governo Lula, tentaram criar um tal de Conselho Federal de Jornalismo, e a reação da sociedade foi tão grande e desgastante que o PT foi obrigado a recuar da antidemocrática iniciativa. Como no Estado Novo getulista, a meta lulopetista continua sendo degradar a democracia representativa, subordinando os cidadãos ao império das corporações estatizadas. Daí porque as forças democráticas do país não podem permitir mais este arroubo totalitário do governo. Dado importante a considerar é que a Câmara de Deputados, unindo democratas da oposição e da própria base governista, aprovou regime de urgência para extinguir a medida e o mérito pode ser votado na primeira semana de agosto, impedindo assim este novo descalabro institucional. 16

Roberto Freire

A farsa como método

João Bosco Rabello

M

enos pela ameaça que poderia representar, se chance tives-se de sobreviver ao Congresso, o Decreto Presidencial que cria os conselhos populares merece o alarde e a resistência

que provocou por representar mais uma tentativa do PT de governar à revelia da sociedade organizada.

Com os movimentos sociais fugindo ao controle em meio a uma campanha eleitoral que devolve o partido ao patamar histórico de 30% das intenções de voto – insuficiente para a reeleição de sua candidata –, e com uma base parlamentar cada dia mais hostil, o PT investe na chamada democracia direta. A defesa do Decreto pelos ministros Aloizio Mercadante e Gilberto Carvalho, a quem ficariam subordinados os tais conselhos, não resiste a uma simples constatação: se boa fé política os movesse, o Congresso seria incluído na iniciativa com uma proposta em forma de projeto de lei, ainda que isso não corrigisse a inconsistência da iniciativa.

Mas como a ideia é exatamente substituir o Poder Legislativo por conselhos de composição ideológica afinada com o PT, a opção pelo Decreto é autoexplicativa. O assembleísmo, do qual são retrato fiel as chamadas conferências nacionais do PT, representaria a “socie-dade civil”, no ideal petista de governo, onde o Congresso seria melhor se decorativo. Se votado hoje o projeto de Decreto Legislativo da oposição, que revoga o Presidencial, o Congresso imporia nova derrota à presidente Dilma, agora na véspera da eleição, razão pela qual o presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), preferiu adiá-la, a pedido do vice-presidente Michel Temer. Mas a conta continuará a mesma após a eleição: para aprovar o Decreto Legislativo que revoga o Presidencial são necessários 257 votos – 19 a menos que os 238 dos dez partidos que o apresentaram. Como o PMDB já se manifestou contrário e o espírito de autodefesa do Congresso o rejeita, não há futuro para os conselhos do PT. 17

O que resta do episódio é a indigência de conteúdos do governo petista, incapaz de produzir propostas que respondam aos anseios reais da população. O partido insiste na opção da farsa como método, como demonstrou mais uma vez ao assumir a desfiliação do deputado André Vargas (PR), flagrado em corrupção. Na vida real, o PT fez um acordo com Vargas, a quem interessava a desfiliação, como forma de evitar sua cassação e viabilizar seu retorno na próxima eleição, escapando à consequente perda dos direitos políticos por oito anos. Não falta razão, por isso, ao ex- presidente Lula, quando manifesta preocupação com a imagem de corrupção que passou a selo do partido, líder hoje nesse quesito.

18

João Bosco Rabello

A âncora constitucional

Luiz Sérgio Henriques

D

ifícil subestimar o alcance das transformações em nossa vida

institucional

a partir da vigência da Constituição de 1988, sob cuja égide se anuncia com invejável regularidade, depois

das já distantes turbulências do impeachment do primeiro presidente escolhido por via direta, a sétima eleição política geral, com a livre participação de todas as forças partidárias.

Tal sequência não é fato de menor importância, considerando a frequência com que antes se interrompiam as experiências democráticas, ainda mais se acrescentarmos que a perspectiva de efetiva competição, sem anular o favoritismo da presidente Dilma, também estimula a construção de cenários de alternância. Esta última, longe de significar aterrorizadora volta ao passado, constitui requisito mínimo de funcionamento dos regimes democráticos, que supõem a existência de oposições organizadas e capazes de chegar legitimamente ao poder. Reafirmar estes princípios genéricos, a partir dos quais se pode reunir amplo consenso em torno de um “projeto de Estado” acima de partes e facções, delineia um roteiro modesto, mas seguro, para enfrentar situações que, de outro modo, seriam motivo de alarme sobre a saúde institucional do país. É certo que há, nas publicações, nas redes e nas ruas, um sistema de “ódios organizados” e polarização exasperada, que a rigor não corresponde aos movimentos profundos da sociedade, os quais, especialmente depois de junho de 2013, deveriam ser canalizados para a consolidação e o aprofundamento da democracia. Ou, como se tem dito à exaustão, postos a serviço da aproximação entre ruas e palácios, participação e representação, demandas sociais e instituições políticas. O fim da contraposição simples entre tucanos e petistas, representado pela aliança entre o PSB, sigla de nobres antecedentes históricos, e a Rede, sigla portadora de novidades que vieram para ficar, é algo a ser visto com otimismo, independentemente de dificuldades objetivas decorrentes do maior poder de fogo eleitoral de candidaturas mais competitivas. Como de antemão se sabia, não seria fácil 19

combinar a política mais tradicional dos socialistas e a nova política proclamada pela Rede, mas o fato de se tratar de forças minimamente dotadas de conteúdo valoriza sua desassociação do bloco no poder, cujo pragmatismo – simbolizado por aliados como Maluf, Collor ou Newton Cardoso – põe à prova o poder de explicação de quem acompanhou a trajetória pretérita do petismo. O principal desafiador do bloco governamental surge com um discurso econômico afiado, concorde-se ou não com ele. Em boa parte, o núcleo de economistas que gestou o Plano Real e, posteriormente, as metas de inflação foi quem nos acostumou a expressões como “âncora cambial” ou “âncora fiscal”, lastros no combate ao descontrole de preços e à perda de valor da moeda. O ponto forte da postulação oposicionista atual deriva dos índices cronicamente baixos de crescimento, o que mais cedo ou mais tarde terá implicações sociais negativas. Na política, embora inimaginável a hipótese de se contraporem à alternância – haja vista a transição exemplar entre Fernando Henrique Cardoso e seu sucessor –, há entre os tucanos formulações aventurosas, demonstrando uma menor preocupação com o que, por analogia, chamaríamos de “âncora constitucional”. É o caso da proposição de coincidência geral de mandatos estabelecidos em 5 anos: tempo demais para manter afastados das urnas os eleitores, a requerer ainda por cima emenda constitucional para a implementação. Objetivos razoáveis de reforma podem perfeitamente ser alcançados por medidas infraconstitucionais, menos traumáticas por definição. Por que não testar este caminho, afastando-nos da tentação da grande reforma salvadora? O petismo – produto de variadas tradições da esquerda (inclusive autoritárias) e protagonista de curiosa “dualidade de poderes” entre dois presidentes, o criador e a criatura – tem dado curso a uma pré-campanha com traços de enigma, como quando, ao contrário do lance ensaiado pela “Carta aos brasileiros” de 2002, radicaliza o discurso e sugere iniciativas – a tal Constituinte exclusiva para a reforma política é uma delas – que supõem perigoso salto no escuro, além da letra e do espírito da Constituição de 1988. De novo aqui, e ainda mais confusa, a ideia de reforma redentora dos costumes políticos, com seu cortejo de listas fechadas e aumento do poder das burocracias partidárias, como consta do repertório petista. Repertórios análogos, em diferentes latitudes, têm afastado representantes e representados, gerando ondas recorrentes de “indig-

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Luiz Sérgio Henriques

nação” e estranhamento da política. Forneceriam, entre nós, resposta crível ao mal-estar que explodiu em junho de 2013? Na mesma ordem de ideias, o recente regulamento que amplia a participação da “sociedade civil” nas instâncias do Executivo, a despeito do saudável histórico de conselhos e comissões reforçado a partir de 1988, parece flertar com a “democracia direta”, especialmente pelo fato de que, passando ao largo do Congresso, surge como “produto de decisões unilaterais do governo”, além de ter sido implementado “por decreto, de modo voluntarista” – termos retirados da “Carta aos brasileiros” de 2002 e que, naquela altura, se referiam a procedimentos, reais ou supostos, dos mandatos de FHC. Além desta crítica procedimental ao Decreto da presidente da República, por contornar o imprescindível crivo do Parlamento, deve -se observar que medidas deste tipo surgem num contexto que está longe de ser univocamente progressista ou de esquerda. Também a partir da direita clássica, desde os teóricos do elitismo, como Gaetano Mosca, se veem críticas contundentes à “classe política” e ao sistema de representação, considerados como algo intrinsecamente negativo diante de uma “sociedade civil” tida como detentora de todas as virtudes e não atravessada por conflitos e contradições de toda ordem. Esta narrativa consoladora, como a chama Gian Luca Fruci, que opõe o povo virtuoso à política partidária e, hoje, aposta unilateralmente nos poderes miraculosos da rede, acaba por perder de vista “a originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da democracia representativa”, sem contar que abdica “de uma ideia mais articulada da representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se configura como um processo político complexo, capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre representados e representantes” (cf. G.L. Fruci, “A história (in)finita da democracia direta”, em interessante artigo que pode ser lido na p. 125 desta edição) disponível em: ). De volta à situação brasileira, ainda está cedo para esquecer que, no interior da cultura política do partido hegemônico, foi possível nascer um ataque frontal ao sistema de partidos e ao Legislativo, tal como configurado nos autos da Ação Penal 470. Um esquecimento ainda mais difícil de acontecer porque nenhuma séria autocrítica nasceu do grupo dirigente petista a este propósito. Pelo contrário: estivemos, e talvez ainda estejamos, muito perto de uma situação em A âncora constitucional

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que um partido pretendeu decidir quem era culpado e quem era inocente, ou em que juízes correram o risco de ser “julgados” por uma das partes em questão. Assim, o Decreto sobre a participação social, que insiste na “atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, quais garantias reais nos dá sobre a apregoada “diversidade dos sujeitos participantes” das diferentes instâncias – conselhos, comissões, “mesas de diálogo” – que confirma, redefine ou institui? Como acreditar na autonomia de uma sociedade civil que não só participaria “de forma direta (...) nos debates e decisões do governo”, como também, ao mesmo tempo, poderia celebrar “parcerias” com a administração pública? Onde terminaria a participação real e começariam processos de cooptação e partidarização, a partir de cima, de “cidadão(s), coletivos, movimentos sociais institucionali zados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”? A cena eleitoral, deste modo, se complica com este novo movimento voluntarista que, no mínimo, ao não se apresentar sob a forma de lei, tenta ultrapassar o mecanismo central de representação e se apre-sentar como um fato consumado, que poria, de um lado, os campeões da participação popular e, de outro, os representantes carcomidos da velha política, sem, no entanto, apontar nenhum esforço reflexivo sobre os problemas da representação na democracia brasileira. Inútil esperar que a luta eleitoral se trave com invariável elegância, excluindo-se golpes sob a linha da cintura. Ao contrário, costuma -se fazer o diabo para ganhar e manter o poder. Isso, com certeza, só aumenta a responsabilidade de todos os democratas: seja em que partido estiverem, em qualquer circunstância eles são chamados a defender e a difundir o “patriotismo constitucional” como a única

âncora possível da convivência cívica.

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Luiz Sérgio Henriques

II. Conjuntura

Autores João Paulo Cunha Jornalista, editor do caderno Pensar, de O Estado de Minas.

Luiz Werneck Vianna Sociólogo político, é professor pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)..

Sérgio C. Buarque Economista, mestre em Sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em Planejamento Estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, fundador e membro do Conselho Editorial da revista Será?

Sergio Fausto Cientista político, superintendente do Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC), membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo, e colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy, da Rice University, em Houston, no Texas/EUA..

O futebol e a política1

Luiz Werneck Vianna

N

ão se pode mais não sentir, os ventos de mudança sopram de todas as direções. As jornadas de junho de 2013 no Brasil, que se alongaram nestes primeiros meses de 2014, com novos

temas e outros personagens, especialmente em torno da questão da habitação popular, ameaçam pegar um forte vento de cauda com o surpreendente desastre da seleção nacional na Copa do Mundo.

Do mundo do futebol, que só os ingênuos e as análises malinten-cionadas podem afetar indiferença quanto a seus efeitos sobre o humor dos brasileiros, já toma corpo o diagnóstico de que ele requer uma radical mudança na sua cultura e nas suas estruturas. A linguagem do futebol, notoriamente, é um instrumento relevante da nossa cognição e presença forte na construção das metáforas com que estabelecemos a nossa comunicação de uso cotidiano, na política inclusive, popularizadas nas falas públicas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De fato – e nisso há consenso geral – não é verificável empiricamente a relação entre êxitos e fracassos da nossa seleção de futebol com resultados eleitorais nas sucessões presidenciais. Mas, de outra parte, é inegável que a massiva exposição pública dos critérios adotados na convocação dos jogadores, na sua escalação para os jogos, nos métodos de treinamento e na avaliação do desempenho de cada qual, escrutinados com interesse apaixonado pela população, não só favorece um amplo processo dialógico, como também se faz 1 Publicado em O Estado de S.. Paulo, 19/07/2014.

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presente na formação do senso comum com que os brasileiros se percebem nas suas circunstâncias. O resultado acachapante da disputa das semifinais com a Alemanha (7 a 1), parcialmente confirmado, dias depois, na derrota para a

Holanda (3 a 0), não pode ser atribuído tão somente ao fortuito e aos azares sempre presentes nas disputas esportivas. Ele depõe contra a concepção estratégica da nossa preparação para os jogos e denuncia o anacronismo do nosso repertório e do nosso sistema de jogo, de resto visível nas competições em que se envolveram, em tempos recentes, os nossos principais clubes nos torneios internacionais. Exemplar, no caso, a derrota por 4 a 0 imposta pelo Barcelona ao Santos do sempre brilhante Neymar, em 2011, na final do campeonato mundial interclubes. E, sobretudo, põe a nu as estruturas do nosso futebol – arcaicas, autocráticas –, que, com esse resultados apavorantes na Copa do Mundo, abriu uma janela para a oportunidade da sua remoção. A qual, todavia, não virá sem o clamor público e a ação de uma crítica contundente que a tornem imperativa. Mais do que exercer um papel pedagógico para a vida moderna, com sua intrínseca valorização da cooperação – a coordenação de movimentos dos jogadores para defender e atacar – e do mérito individual, o futebol, entre nós, conforma um laboratório silencioso onde se processam experiências que transcendem o seu território. A questão racial foi uma delas, tão bem percebida por Mario Filho no clássico da nossa literatura social O negro no futebol brasileiro, quando argumentou que a valorização do negro – seu modelo foi Leônidas da Silva, notável atacante dos anos 1930 – nos estádios de futebol teria contribuído para a sua valorização na sociedade. Não há Muralha da China a interditar o aprendizado que daí deriva para outras dimensões da vida social, como, entre outros estudiosos, tem destacado o antropólogo Roberto DaMatta. O sentimento em favor de mudanças que varre o País certa-mente não nasceu nesse “laboratório”, mas há algumas coincidên-cias com o que já agita o mundo do futebol. Entre tantas, a polí-tica do presidencialismo de coalizão na forma bastarda como o adotamos, cujas afinidades eletivas com as práticas vigentes entre nossos próceres esportivos chamam a atenção ao submeterem o futebol, tal como os da política, aos interesses de autorreprodução de suas elites dirigentes. O anacronismo e a resistência à inovação são outras marcas comuns. Fechada em panos de luto a Copa do Mundo de 2014, vamos, agora, para a sucessão presidencial e as eleições para governador e 26

Luiz Werneck Vianna

das Casas parlamentares, que já se iniciam sob maus auspícios com a movimentação dos nossos paredros da política em torno de alianças erráticas, sopas de letrinhas a combinarem alhos com bugalhos, sem programa e sem alma diante de uma população que reclama por mudanças, tanto nas ruas como fora delas. O script apresentado, até então, por candidatos e partidos políticos para a disputa eleitoral não está à altura da excepcionalidade do momento que vivemos, com as nossas ruas varridas por movimentos de protestos contra a natureza da política imperante entre nós. Se antes, com todos os seus males conhecidos, tal política tinha assegurado condições razoáveis de governabilidade, agora jaz exaurida diante de uma sociedade que recusa ser representada por ela. Inverteu-se, faz tempo, uma relação tradicional na nossa vida política: a sociedade é, hoje, mais moderna do que o seu Estado, como se pode verificar com a emergência dos movimentos sociais que brotam de toda parte e se mantêm estrangeiros à política institucionalizada.

Pode-se sustentar que, na Copa do Mundo, nos faltaram sinais que advertissem sobre a catástrofe a vir – a vitória na Copa das Confederações, em 2013, teria mascarado nossos erros –, mas, no campo da política, já soaram todos os alarmes, embora não faltem os que alardeiam que em time que está ganhando não se deve mexer. O mais grave, contudo, é que a esta altura do campeonato não se saiba ao certo que times são esses.

O futebol e a política

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Sob o domínio do medo

João Paulo Cunha

A

s pessoas estão com medo. A segurança, mais uma vez, está entre as principais preocupações do cidadão. Todos têm uma história para contar, conhecem alguém que passou por uma situação de violência. O que ameaçava de longe, hoje se avizinha.

Somos a próxima vítima.

As notícias de crimes, antes consideradas de menor importância na economia informativa, se tornaram estrelas em todos os veículos. Há um exibicionismo da violência. A sensação de insegurança se torna um agente mobilizador da emoção e os meios de comuni-cação mudam seus protocolos do que é ou não notícia para atrair mais público. Os governos também se apressam em anunciar medidas para conter os crimes. Mais polícia nas ruas, mais armamentos, novas delegacias, tecnologia. Ou seja, o cardápio convencional de enfrentar força com força, de tentar desequilibrar o jogo em favor da lei e da ordem. Num acordo tácito, não dito, parece haver um silenciamento sobre causas e direitos humanos em nome da eficiência urgente das medidas que amenizem o pavor do cidadão. De uns tempos para cá, foram se estabelecendo duas lógicas paralelas sobre a questão da violência. A primeira é baseada em dados estatísticos, que dão o número cru, o índice real dos danos sociais causados pelo crime. A outra é a chamada sensação de segurança, uma medida imponderável, sujeita mais aos aspectos emocionais que aos fatos. As políticas de segurança mais recentes buscam se guiar por uma combinação das duas, como se fossem a mão esquerda e a direita. Não são. Por muitos anos, o Brasil ficou refém de dados sem consistência, apurados com amadorismo e quase sempre pouco confiáveis. Com o aprimoramento da coleta de informações, ficou mais explícito o ambiente e, com isso, a base para implantação de políticas mais consequentes.

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A entrada em cena da categoria de sensação de segurança pode borrar um pouco a objetividade necessária e, em alguns momentos, direcionar ações que são mais visíveis, mas nem sempre efetivas. Atividades culturais voltadas para populações de risco, por exemplo, não afetam a sensação de medo dos moradores de áreas nobres da cidade. Além dos mitos Há alguns mitos em torno da segurança que precisam ser enfrentados. O primeiro deles identifica violência com falta de democracia. Durante o período de exceção, parte dos cientistas sociais acreditava que, feita a transição para a democracia plena, a questão da violência estaria resolvida. A ligação entre polícia e repressão afastava ainda mais a busca de uma política de segurança, como se isso evocasse os piores pesadelos do período repressivo. Os argumentos em favor dessa tese quase sempre apontavam a desigualdade social produzida pelo sistema e o clima de autoritarismo como causas de todos os males. O que se viu foi exatamente o contrário, em função, é claro, da complexidade crescente da sociedade brasileira. Com o crescimento de todos os tipos de crime, contra a vida e contra o patrimônio, aumentou a pressão sobre as agendas governamentais. O mais grave estava por vir. Se o fim da ditadura não acabou com os crimes, esperava-se que pelo menos a questão dos direitos humanos fosse mais bem equacionada. Este é o segundo mito: o fim do regime militar não devolveu ao Brasil o respeito republicano às leis universais, mas coincidiu com o recrudescimento de ação de justiceiros e esquadrões da morte. Descrente da ação policial, a população passou a apoiar a aplicação direta da justiça (como se vê, a apresentadora Rachel Sheherazade não é nenhuma novidade nesse cenário). A separação entre segurança e direitos humanos se tornou uma profecia autorrealizada. Além dessas situações, contribuiu para tornar ainda mais grave a situação brasileira a grande ocorrência de crimes motivados por relações interpessoais. Nesse campo, avoluma -se a violência contra a mulher, contra as crianças e contra minorias de todo tipo. Um capí-tulo especial se localiza entre os jovens, principalmente os mais pobres e negros, que concentram os maiores índices de morte por causas externas no Brasil. Por fim, o mito dos mitos é o que identifica pobreza com crime. O que todas as estatísticas provam é que a violência não vai atrás da Sob o domínio do medo

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miséria, mas da riqueza. O que se percebeu é que os modelos de crime, sobretudo os de maior impacto social, se tornaram cada vez menos polarizados em termos de classe social. O crime mostrou sua capacidade de deslocamento horizontal e vertical na sociedade brasileira.

Subiu na escala social e se profissionalizou em todos os quadrantes. Valores Tudo isso parece apontar o dedo, como uma arma, para a consciência do cidadão comum: o que fazer? A primeira tendência, como se observa, é responder à violência com mais repressão. São as estratégias de tolerância zero, de grande impacto, mas presas ao modelo tradicional de segurança em que, para cada crime, há uma punição. Reduzir o crime a situações individuais, a serem combatidas também de forma isolada, só será eficaz se o país se tornar um imenso presídio. A polícia e a Justiça precisam ser repensadas. E há alternativas viáveis, inclusive já experimentadas no Brasil e em Minas, que apontam para uma transformação cultural do setor de segurança. No entanto, até pela consideração antropológica e cultural das medidas, na busca de compreensão da dinâmica social e do diálogo com todos os estratos sociais, são ações consideradas menos efetivas e lenientes. Mesmo que sejam traduzidas em dados estatís-ticos exemplares. Mais uma vez, a fantasia da sensação subjetiva de parte da sociedade guia a política do setor. O que vale mais: dar oportunidades de crescimento pessoal e profissional para jovens em situação de risco social ou incentivar a ostensiva ocupação das ruas pelas forças policiais? A resposta vai variar de acordo com o interlocutor e com o grupo envolvido. O que se percebe é que os programas sociais estão perdendo terreno para a cobrança por mais polícia nas ruas. A chamada sensação de segurança pode ser a tradução de um Estado policial. Debater novos modelos de segurança significa também responsabilizar a sociedade pela preservação de valores universais. De nada vale cobrar mais força se o cidadão ensina valores antissociais para seus filhos, como a competição desmedida, o consumo como tradução de realização humana e a privatização do público como trampolim para a felicidade individual. Terá pouca eficácia social investir em segurança sem a contrapartida de políticas públicas de proteção da cidadania e de promoção dos direitos humanos. 30

João Paulo Cunha

A mais efetiva ação de segurança pública é o diálogo. A grande conquista civilizatória no campo da violência é fazer o sentimento de pertencimento superar o medo do outro. Estar na cidade como quem chega em casa. Vivemos uma sociedade cega, surda e muda em relação à diferença. Precisamos nos aproximar das raízes da violência sem a paúra da classe média ou a histeria da repressão sobre todas as coisas. Uma canção dos Racionais pode ser a senha. Mas precisamos, ainda, fazer por merecer.

Sob o domínio do medo

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Eleições 2014: não basta ganhar1

Sergio Fausto

A

mais recente safra de pesquisas de intenção de voto indica que o eleitorado brasileiro vai encontrando forma mais elegante do que a ofensa pessoal e mais eficaz do que a vaia para demons-

trar o seu descontentamento com o governo Dilma Rousseff.

Ainda faltam quase três meses para a eleição, mas impressiona o virtual desaparecimento da diferença entre as intenções de voto na atual presidente e no principal candidato da oposição, Aécio Neves, num cada vez mais provável segundo turno. Essa diferença, que era de 27 pontos percentuais, no Datafolha de fevereiro, é, hoje, segundo a última pesquisa do mesmo instituto, de apenas quatro pontos percentuais. A tendência é consistente com a piora na avaliação do governo e com o aumento da rejeição à presidente-candidata. Quando a comparação se faz com o outro candidato da oposição, Eduardo Campos, a tendência é a mesma, embora a redução da diferença seja menor.

O quadro eleitoral em formação põe por terra a ideia ventilada pelo ex-presidente Lula de que a insatisfação com o governo Dilma se concentra em um grupo social restrito, a chamada “elite branca”. Não é ódio o sentimento que move o crescente descontentamento político -eleitoral. Fosse ódio, as oposições já apareceriam nos calcanhares de Dilma nas intenções de voto para o primeiro turno, pois o eleitor que odeia quem está no poder logo cristaliza o seu voto em quem possa derrotá-lo. Trata- se de um sentimento mais brando: um desejo de mudança que ainda não sabe quem quer, mas dá sinais de começar saber quem não quer. As pesquisas tampouco refletem um suposto cerco da “mídia conservadora” ao governo. Não tem faltado oportunidade para a presidente se comunicar com a população através dos meios de comunicação de massa. Se alguém pode se queixar do tempo de exposição na TV, na fase de pré-campanha, são os candidatos da oposição, que travam a disputa sem a vantagem de estar na Presidência, foco natural de atenção da mídia. Que culpa tem a imprensa 1

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Versão modificada de artigo publicado em O Estado de S..Paulo, em 27/07/2014.

se a economia está parando, a inflação segue alta e o mercado de trabalho esfria? A imagem de um governo popular submetido ao cerco de uma “elite odienta” e de uma “mídia conservadora” é uma figura recorrente na retórica utilizada pelo ex-presidente Lula. Ele a empregou pela primeira vez em resposta à crise do mensalão. Voltou a usá-la, recentemente, na convenção que oficializou a candidatura de Dilma Rousseff. Em momentos de dificuldade política, para efeitos dramáticos, recorre ao paralelo histórico com o segundo governo de Getúlio Vargas, cujo trágico desfecho completa sessenta anos no próximo dia 24 de agosto. No imaginário lulista, o golpismo udenista ressurge encarnado no PSDB, que, como a velha UDN, por não conseguir ganhar no voto, pretenderia chegar ao poder por vias tortas, ao arrepio da vontade popular. Essa narrativa faz lembrar a famosa frase de Marx segundo a qual a história ocorre duas vezes: uma como tragédia e outra como farsa. É inegável a inclinação não democrática da ala ferozmente antigetulista da UDN. Basta lembrar o que escreveu Carlos Lacerda ainda antes de Vargas anunciar sua candidatura às eleições de 1950:

“O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidente da república. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Para interromper o mandato de Vargas, a UDN conspirou com setores das Forças Armadas e da imprensa. O partido não reconhecia a legitimidade do “velho ditador”, a despeito de sua volta ao poder pelo voto, e apontava a suposta ameaça de imposição, por Vargas, em aliança com Perón, de uma “República Sindicalista”, que subverteria a ordem liberal da Constituição de 1946 e elevaria o risco de o país pender em direção ao bloco soviético. O paralelo histórico com o presente é uma farsa. A legitimidade dos mandatos recebidos por Lula e Dilma nunca foi questionada. Os militares estão nos quartéis e atuam rigorosamente dentro dos limites que a Constituição estabelece. O PSDB, como partido de oposição, moveu-se sempre dentro da legalidade e com moderação, sendo não raro criticado por isso. A imprensa é hoje mais plural e politicamente independente do que jamais foi na história brasileira. As elites se diversificaram e se abriram a novos grupos, acostumando-se a lidar com governos de distintas cores políticas. As densas paranoias da Guerra Fria se dissiparam.

Eleições 2014: não basta ganhar

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Com todos os seus defeitos, temos hoje uma democracia melhor do que no passado. A queda da presidente nas pesquisas não resulta de uma orquestração de pequenos grupos poderosos contra o governo, da mesma maneira que a piora de todos os indicadores da economia brasileira não é produto de uma “conspiração dos mercados”. Ambos os fenômenos respondem a um processo típico em regimes democráticos e economias de mercado, duas criações humanas que costumam andar juntas: um ciclo vicioso de deterioração das expectativas por perda de confiança no governo. Para o eleitor, eleições são tanto um julgamento sobre o passado (estou melhor do que estava?) quanto sobre o futuro (tenho uma expectativa realista de que estarei melhor do que estou?). A estratégia petista para outubro é convencer o eleitor a julgar o governo Dilma como base em todo o período de 2003 a 2014, para obscurecer o fato de que os últimos quatro anos não sustentam a retórica triunfalista dos anos Lula. Será isso suficiente para recuperar a esperança em “mais futuro, mais mudança”? Ou o PT deixará o futuro e a esperança de lado e martelará a tecla do passado e do medo, pintando o PSDB como a reencarnação da UDN e o governo de Dilma como a cidadela a defender em nome dos interesses do “povo”? Acontece que, numa democracia, sem restrições ao direito de votar, o eleitorado é expressão do povo. E se uma nova maioria eleitoral começa a se formar, como dizer que ela é contra os interesses do povo? Se vier a se consolidar, a nova maioria eleitoral não se traduzirá de imediato em nova maioria parlamentar, já que dificilmente a coalizão de partidos que apoia a candidatura de Aécio Neves ou de Eduardo Campos conquistará número suficiente de cadeiras no Congresso. Como é frequente na história do presidencialismo no Brasil, a maioria parlamentar deverá se constituir depois da eleição, na montagem do futuro governo. Não será diferente desta vez. A diferença poderá estar na qualidade do processo. Esta será tanto melhor quanto mais claramente estiver definida a agenda de políticas e ações prioritárias do próximo presidente. A nova maioria parlamentar não pode ser puramente aritmética. É preciso responder à pergunta crucial, que os governos do PT não souberam responder: maioria para fazer o quê? A disputa eleitoral ajudará a definir o sentido geral do novo governo. Para governar efetivamente, porém, será necessário traduzir o sentido geral da mudança em políticas e ações a serem realizadas desde o primeiro dia do futuro mandato. É em torno delas e não da 34

Sergio Fausto

pura distribuição de cargos que a nova maioria política deve se organizar. Ela deve ser apenas o suficientemente grande para viabilizar o componente legislativo da agenda de governo. Tão importante quanto definir a agenda é apresentar ao país um diagnóstico realista da situação encontrada, não para desvalorizar o atual governo, mas para explicar as razões de medidas que terão de ser tomadas para corrigir problemas acumulados nos últimos anos. E escolher nomes à altura dos desafios que o país terá de enfrentar. Para começar a recuperar a confiança perdida no governo em particular e na política em geral, não basta ganhar a eleição. É preciso inovar desde logo na constituição do novo governo.

Eleições 2014: não basta ganhar

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Os intelectuais e o poder petista

Sérgio C.. Buarque

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empre que se aproximam as eleições, o Partido dos Trabalha-dores (PT), liderado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Sil-va, retoma o discurso da luta de classes se apresentando como o representante do povo contra a elite (que aparece como uma incita-ção racista quando falam da “elite branca”). A elite é tratada, então, de forma pejorativa como o vilão, símbolo do mal e do atraso, reagin-do aos propalados avanços dos governos petistas, tão mistificados e imprecisos quanto o próprio conceito de elite. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira ensina que elite é “o que há de melhor em uma sociedade ou num grupo” ou a “minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos”. Neste sentido, a elite não é o grupo de ricaços insensíveis e cruéis de uma nação, como tende a espalhar o discurso petista. Por esta definição, a elite pode ter dois recortes diferentes, nem sempre arti-culados: a elite intelectual, formada pelos mais cultos e preparados cidadãos, o que não é nenhum demérito; e a elite política, constituída pelas pessoas ou grupos sociais com posições significativas de poder na sociedade, lideranças de partidos, de organizações e de governos.

Se for acrescentada a categoria de “elite econômica” como os simplesmente ricos, mesmo com o medíocre desempenho da economia, estes não têm o que reclamar do governo do PT. Os ricos continuam muito ricos, o número de brasileiros bilionários aumenta a cada ano, e mesmo os novos ricos e a classe média alta estão muito bem num consumismo desenfreado e ostentatório, incluindo a farra das viagens e compras no exterior que geram enormes déficits na balança do turismo. Os banqueiros continuam com lucros crescentes e as empreiteiras ganhando projetos milionários no Brasil e no exterior em obras financiadas pelo BNDES. Desde a década de 90, o PT divide com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) a elite intelectual e a elite política do Brasil, alternando o controle das instâncias de poder e compartilhando o apoio e a simpatia dos principais pensadores brasileiros. Desde que assumiu o governo em 2003, contudo, o PT foi ampliando posições 36

na estrutura de poder, predominando claramente na elite política brasileira. Embora o poder não se restrinja ao controle das instâncias do Estado, parece indiscutível que o Partido dos Trabalhadores é hoje o mais poderoso do Brasil com posição destacada no Estado e irradiação em movimentos sindicais e sociais, formando uma forte elite política. No entanto, este movimento de fortalecimento político foi acompanhado de um contínuo e rápido afastamento da intelectualidade brasileira, desta parcela da elite que, mesmo sem poder, pensa, formula, analisa e, o que é pior para o governo, critica e o faz com fundamento e argumentos. E foi precisamente por esta capacidade de pensar e analisar que os intelectuais, muitos dos quais fundadores do partido, foram se afastando e questionando a prática política do PT e da sua elite política no governo em busca permanente de ampliação e consolidação do poder. É isso que, seguramente, incomoda os petistas, gerando esta aversão e desprezo pelos intelectuais e pela elite intelectual brasileira. Embora possam se regozijar de ser o partido do povo e dos pobres contra a elite (no caso, a elite intelectual), deve ser duro para o PT perceber a demandada geral de intelectuais de peso. O intelectual costuma pensar para além das emergências, formular e analisar a complexidade da realidade e das decisões, antecipar os impactos e os desdobramentos das escolhas. Os intelectuais discutem ideias e propostas e procuram fundamentá- las em dados, em informações ou em conceitos, fugindo dos slogans e frases de efeito do competente comunicador de massas. Parece que Lula está conseguindo difundir a ideia de que a elite brasileira odeia o PT. Mas a verdade é que o PT, Lula e Dilma demons-tram um ressentimento profundo com os intelectuais, aliados e admiradores do passado que agora não escondem sua decepção com a elite política no poder, e ousam criticar os “iluminados” represen-tantes do povo. Este ressentimento do PT com os intelectuais se manifesta também nas acusações à imprensa que, segundo Gilberto Carvalho, estaria dando uma “pancadaria diária” no governo e no partido, o que teria levado às vaias à presidente Dilma de amplos segmentos da sociedade e não apenas da “elite branca”, na abertura da Copa do Mundo. Como eles se julgam bons e perfeitos, a rejeição de tantos brasileiros não resulta dos seus erros e desvios políticos e administrativos mas da campanha da imprensa que, suprema agressão, divulga a má gestão petista e os seus resultados na economia, na política e na sociedade. Os intelectuais e o poder petista

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Na verdade, o que se percebe é uma pancadaria diária do PT e dos seus líderes contra a imprensa que, segundo eles, estaria envolvida numa grande conspiração golpista contra o governo dos justos e puros.

A velha teoria da conspiração utilizada à exaustão para desqualificar a informação e a opinião não apenas dos órgãos de imprensa, mas de vários colunistas, jornalistas e intelectuais, contra os desmandos deste governo. Como uma espécie de repressão moral, tentam denegrir a imprensa que critica chamando-a de golpista, o político que discorda classificando-o como direitista, e o intelectual que contesta como um desprezível elitista. Vários órgãos de imprensa têm exercido, de fato, uma postura crítica ao governo e ao PT, o que se manifesta de forma aberta e trans-parente nos editoriais. Mas, guardadas as exceções, esta oposição não se traduz no conjunto das informações, reportagens e matérias. A imprensa, nos seus diversos meios, está longe de ser uma máquina de publicidade dos seus proprietários e é formada por um corpo de jornalistas que têm ideias próprias e, na sua esmagadora maioria, seguem princípios éticos profissionais de cuidado com a confirmação das informações, com o contraditório e com o direito de resposta de pessoas ou instituições citadas. Os jornalistas não são simples escribas da linha editorial do órgão em que trabalham e costumam ter uma postura de isenção política e ideológica, embora sejam homens de ideias e atitudes políticas; pensar o corpo de jornalistas de uma empresa como reprodutores das ideias dos seus proprietá-rios é uma simplificação ridícula e injusta e mostra um total desco-nhecimento da dinâmica diária de uma redação. Na verdade, como parte da intelectualidade, em sua esmagadora maioria, os jornalistas brasileiros foram, durante muito tempo, simpatizantes e admira-dores do PT e dos seus governos, muitas vezes até excessivamente tolerantes e generosos com os equívocos e desmandos petistas.

Por outro lado, o governo e as diversas lideranças do PT – como elite política dominante – têm um grande poder de comunicação e de sensibilização da opinião pública a começar pela enorme expo - sição diária que têm nos órgãos da imprensa, esta mesma que estaria conspirando. Nesta presença cotidiana nos meios de comu-nicação, governo e PT apresentam e divulgam suas iniciativas, defendendo suas posições e mesmo fazendo clara e aberta propa-ganda e proselitismo político, além do uso e abuso das inserções da presidente e dos ministros na TV por qualquer motivo e com discurso quase sempre publicitário. Para não falar nos bilhões de reais gastos com a publicidade institucional que veicula informações discutíveis e questionáveis (a pretexto de informar a opinião pública) 38

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para glorificar o governo; em 2013, o governo federal gastou com publicidade 2,3 bilhões de reais. Querem mais? O governo financia com dinheiro público vários blogs que formam uma ampla malha de propaganda, difusão de informação e debate ideológico nas redes sociais. De 2003 a 2012, o percentual de recursos da Secretaria de Comunicação da Presidência da República para a publicidade digital no total da publicidade mais do que triplicou: passou de 1,4% para 5,3% o que representaria cerca de R$ 139 milhões, em 2013 (crescimento apenas em parte compreensível por conta da mudança tecnológica da comunicação) . Existe, contudo, uma dife-rença profunda na credibilidade de um órgão de imprensa estabele-cido e submetido a regras e controles, com espaço para o contradi-tório em todas as informações, e os blogs privados, muitos deles individuais, financiados com dinheiro público e sem controles do que é veiculado. Os blogs podem ser importantes veículos para o debate e exposição de opinião, mas como difusor de informação não tem a credibilidade que é exigida dos órgãos estruturados de imprensa cuja veiculação decorre da produção intelectual de múlti - plos jornalistas com prováveis diferenças políticas. Vale lembrar que a pesquisa do Ibope de Confiança nas Instituições mostrou, em 2013, que os meios de comunicação eram o quarto mais confiável pela sociedade (depois do Corpo de Bombeiros, igrejas e Forças Armadas) enquanto o governo federal aparecia em 12º lugar. A relação política entre a intelectualidade (elite intelectual) e o poder (elite política) vem apresentando um movimento pendular na história recente do Brasil: quando não contam com o apoio e a simpatia dos intelectuais, a elite no poder procura construir uma base política na grande massa da população pouco informada e facilmente manipulada. Nas eleições parlamentares realizadas durante a ditadura militar havia uma nítida divisão social do voto, na qual os pobres costumavam votar na Aliança Renovadora Nacional (Arena) e nos candidatos do governo militar enquanto a oposição recebia os votos da intelectualidade, da classe média informada e de parte dos trabalhadores urbanos. De um modo geral, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido de oposição autorizado, era o partido da intelectualidade e a Arena era o partido do povão, a serviço da ditadura. Em termos regionais, é importante lembrar, os governos militares se beneficiavam do voto de cabresto do Nordeste, precisamente onde se concentra a maior parcela dos eleitores de baixa renda, mais facilmente manipulados pelo fisiologismo. No período do chamado “milagre econômico”, com crescimento econômico de 7% ao ano, a Os intelectuais e o poder petista

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classe média deu sustentação política à ditadura que a consolidava eleitoralmente com o voto dos pobres. Polarização eleitoral semelhante vem se reproduzindo ao longo das últimas décadas entre os partidos legalizados após a redemocrati-zação. O pêndulo inverteu o papel do PMDB (continuação do MDB de oposição), que passou a representar o maior segmento conservador do espectro político brasileiro, tornando-se, aos poucos, o partido que se beneficiava das práticas eleitorais tradicionais. O PMDB foi assim e ainda é hoje, em grande medida, o partido dos pobres e do Nordeste, com uma imensa rede de políticos e cabos eleitorais espalhados nos chamados grotões. Desde então, fica patente que o partido dos pobres é, na verdade, o partido do fisiologismo e do conservadorismo, para não falar em outros “ismos” pouco recomendáveis. Entretanto, na primeira eleição direta para presidente depois da redemocratização, o candidato eleito Fernando Collor, em 1989, mudou o pêndulo eleitoral referido com suas bandeiras e seu carisma, atraindo grande parte do povão e da classe média de todas as faixas de renda, diante do olhar desconfiado da intelectualidade e dos trabalha-dores urbanos. A partir da década de 90, como já foi referido antes, surgem o PT e o PSDB disputando e dividindo o outro lado do pêndulo eleitoral: a intelectualidade, a classe média informada e os trabalha-dores urbanos organizados que tinham abandonado o PMDB. Nas eleições de 2002, quando se defrontaram o PT e o PSDB, a polarização eleitoral foi menos evidente porque os dois partidos tinham raízes sociais e regionais semelhantes. A votação de Lula, em 2002, contou com uma participação significativa da população de menor renda, mas atraiu também a maior parte da intelectualidade e do chamado “voto de opinião” dos brasileiros, apesar de o PSDB ter sido sempre um partido de intelectuais. Esta eleição foi também marcada por um confronto ideológico que dividia os candidatos em relação ao papel e às características do Estado. No entanto, na sua reeleição em 2006, o presidente Lula já tinha uma clara conotação de candidato dos pobres tendo subido a participação do voto da população de baixa renda de 52,9% (em 2002) para 77%, enquanto o voto da população de renda média-alta caia de 46,9% para 38,1%, em 2006. Se até 2002, o PT era um partido da intelectualidade, da classe média e dos trabalhadores urbanos, com apoio em segmentos pobres, ao longo do primeiro mandato de Lula houve um novo movimento do pêndulo eleitoral do Brasil: ao mesmo tempo em que o debate ideoló-gico perdia importância, esmagado pelo pragmatismo e o persona-lismo, o PT sofria um lento, mas, continuado afastamento dos inte-

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lectuais, frustrados com a prática do PT e com o trato pouco sério da coisa pública. Desde o segundo governo Lula, e mais recentemente com a presidente Dilma Rousseff, o PT vem se firmando como o partido dos pobres e do Nordeste, enquanto a intelectualidade, a classe média informada e mesmo parte relevante dos trabalhadores urbanos orga-nizados se afastam ou migram para a oposição. As recentes pesquisas eleitorais mostram com clareza que as eleições de 2014 devem repro-duzir a velha divisão que, no passado, favoreceu, em diferentes momentos, a Arena e o PMDB: os pobres e o Nordeste voltam majori-tariamente no PT enquanto os outros partidos tentam consolidar a adesão dos intelectuais, da classe média informada, dos formadores de opinião e dos trabalhadores urbanos. O Ibope mostra que, na próxima eleição, a candidata presidente Dilma Roussef teria sua mais expressiva votação na população com até 4ª série de estudo (51%), no Nordeste (52%) e na faixa de renda de até um salário mínimo (56%).

Esta configuração político- eleitoral pode confirmar a divisão feita pelo PT entre a elite e o povo que vota em Dilma e, por serem mais numerosos, podem reeleger a atual presidente. Ocorre que o voto dos pobres e miseráveis é também majoritariamente o voto fisiológico e manipulado pelos favores e distribuição de benesses e pela imensa propaganda política que inibe o pensamento e a análise. Trata-se de uma afirmação elitista, preconceituosa e reacionária, dirão os petistas, mas não podem negar que são os pobres, analfabetos ou pouco escolarizados, desinformados e com tantas carências que preferem os benefícios diretos, que são os eleitores mais sensíveis e vulneráveis aos mecanismos fisiológicos, populistas e personalistas de obtenção do voto.

Os intelectuais e o poder petista

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III. Dossiê 1964

Autores Cristovam Buarque Professor da UnB e senador pelo PDT-DF..

José Antonio Segatto Professor Titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr), da Universidade Estadual Paulista (Unesp)..

José Carlos Arouca Advogado, desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho..

Martin Cezar Feijó Formado em História pela FFLCH-USP e doutor em ciências da comunicação pela ECA-USP. . Professor na Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Álvares Penteado (Facom-Faap). . Foi editor de cultura do semanário Voz da Unidade (1985-1989)..

Pedro Scuro Neto Ph..D.. (The University of Leeds); Programa de Segurança e Defesa (Transparência Internacional, Londres)..

Ditadura e democracia na práxis da esquerda José Antonio Segatto

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os anos imediatamente posteriores ao golpe de Estado – des-fechado em abril de 1964 por um movimento político-militar, que depôs o governo constitucional e instaurou um regime de

exceção sob a forma de ditadura civil-militar – desencadeou-se no seio da esquerda e do PCB, em particular, uma acirrada luta político-ideológica. Seria polarizada, principalmente, em torno das avaliações das causas da derrocada de 1º de abril, do papel desempenhado por determinados atores e protagonistas no processo político que antecedeu o golpe. Das análises e julgamentos decorreriam as elaborações das diretrizes e das ações da esquerda na resistência e na luta contra a ditadura: frente democrática ou luta armada, democracia ou ditadura do proletariado (ou ainda governo de libertação nacional). Seriam tam-bém a matriz básica na reorganização da esquerda e na reordenação do movimento sindical no final dos anos 70 e início da década de 1980.

Situado nesses termos, o exame das concepções e intervenções sociopolíticas das forças de esquerda (comunistas e socialistas, trabalhistas e cristãos de esquerda e outras de menor relevância) naquele período não se resume a apenas reinterpretar a conjuntura pregressa – o passado constitui-se, neste caso, num elemento modelador de projetos e práticas presentes; ou seja, persiste como “história viva” e não simplesmente como um “pretérito morto”. É manifesta a tese segundo a qual toda a interpretação do passado incide, direta ou indi-retamente, em maior ou menor grau, na práxis dos autores e atores na construção da história. Não é fortuito que os embates políticos-ideoló-gicos envolvendo a resistência democrática e os projetos que engen-draram e conduziram à superação do estado de exceção e a conquista

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do estado de direito democrático, ou como agiram e se portaram na condução da transição democrática continuam ativados. Nesse sentido é que a derrota de 1964 e seus desdobramentos devem ser pensados como um problema histórico-político. Não por acaso, meio século passado, aquela experiência histórica continua assombrando e condi-cionando a intervenção dos agentes e protagonistas no tempo presente.

Democracia negligenciada Não se pode entender as avaliações sobre o golpe e seus desdobra-mentos, produzidas pela esquerda e os projetos políticos que delas derivaram sem um exame do comportamento de seus protagonistas naquele quadro histórico. O breve governo de João Goulart, em que pese todos os problemas e atribulações, representou um dos poucos momentos realmente democráticos da história republicana brasileira, particularizada pelo autoritarismo que lhe é particular – nele houve, sem dúvida, a ampliação das liberdades, a expansão dos direitos de cidadania e um robustecimento da sociedade civil e política. Nesses anos, o processo político brasileiro foi extremamente rico e ganhou contornos extraordinários. Os problemas e contradições explicitaram-se e agudizaram--se. As tensões políticas, as alterações e crises da economia, a reno-vação e ascenso do movimento sindical urbano, a organização (sindical) e a entrada na cena sociopolítica dos trabalhadores rurais, o cresci-mento mobilizador do movimento estudantil e associativo das camadas médias, o desenvolvimento das lutas e reivindicações nacionalistas e por reformas estruturais (reformas de base), o impulso politizador e criativo da vida artística e intelectual, a movimentação de forças e instituições das classes dominantes para impedir os movimentos reformistas ou para impor seus projetos, além de muitos outros fatos, acontecimentos e fenômenos, dariam um caráter singular e notável a esse período histórico do país. Evidentemente, o avanço organizativo, politizante e mobilizador foi favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela forma como se compôs o poder estatal. Todos esses elementos, no conjunto, criaram condições excepcionais para a inserção e o florescimento de partidos e grupos de esquerda, anticapitalistas ou reformadores, de extração marxista, nacionalistas, cristãos, trabalhistas etc. Dessas, a mais antiga agremiação e uma das mais expressivas forças da esquerda, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – que havia recémpassado por um traumático processo de renovação política, nos

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anos 1958/60 – não obstante continuar juridicamente ilegalizado, ou sem registro eleitoral, reemergiu à luz do dia, passou a atuar abertamente e conquistou uma “legalidade de fato”. Transformou-se em importante protagonista no processo histórico em curso naqueles anos (1958-64), ou seja, tornou-se uma organização com capacidade decisória reconhecida. Sua influência na vida política nacional extrapolou em muito sua força orgânica e seu tamanho numérico. Movimentando-se com desenvoltura na articulação da sociedade civil e política, ganhou forte inserção no movimento sindical urbano e rural e no estudantil, influência na intelectualidade e nas campanhas por reformas e de caráter nacionalista e anti-imperialista. Isso implicou em que o PCB passasse a ter responsabilidade e papel destacado e marcante nos principais episódios e acontecimentos do período em questão. Todavia, na medida em que se inseriu cada vez mais na vida política, o PCB passou a se defrontar com diversos problemas conjun-turais e estruturais postos pelo desenvolvimento e desdobramento do quadro sociopolítico, num momento de polarização de forças, envol-vendo alternativas diferenciadas e antagônicas.

O PCB, que já vinha fazendo pressões contra a “política de conciliação” de Goulart, intensifica sua oposição ao governo a partir de fins de 1962, quando da realização de uma Conferência Nacional – em sua Resolução Política, há um nítido deslocamento à esquerda, radicalizando o combate à conciliação e a “substituição do governo atual” por um “nacionalista e democrático”. A radicalização de seu discurso e de sua prática – superestimando suas forças e a dos aliados – vai num crescendo (sobretudo depois de 1963) na proporção ao aumento das tensões e contradições políticas. E nesse sentido passa mesmo, em determinados momentos, a secundarizar as insti-tuições e a desprezar a legalidade democrática vigente. As manchetes e editoriais, os artigos e repostagens do semanário Novos Rumos tornaram-se cada vez mais drásticos e ameaçadores, afirmando insistentemente que a “paciência estava se esgotando”, “basta de conciliação e vacilação” e assim por diante. Nesse quadro, o caldo de cultura golpista – que parecia ter sido superado ou pelo menos se debilitado – volta a manifestar-se com grande força e floresce em terreno fértil. O regime da Constituição de 1946 passou a ser encarado como tendo se esgotado. As mudanças deveriam ser realizadas por formas ou meios extralegais, pois o Congresso (“reacionário”, “eleito em sua maioria pelo Ibad”) seria um elemento intransponível a impedi-las. Mesmo quando houve aproximações com o presidente e se discutiu a necessidade de acordos, não afastava “(...) a possibilidade de „ultrapassagem pela esquerda‟ do Ditadura e democracia na práxis da esquerda

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regime vigente: golpe com Jango, fechamento do Congresso, realização de reformas de base por decreto etc.” (REIS FILHO, 1986, p. 21). Ilustrativo dessa posição são as intervenções de alguns dirigentes com responsabilidades e autoridade no partido. Mario Alves propug-nava (1967, p. 30-31): “Fazer já as reformas, apoiando-se nas massas e no dispositivo militar.” Geraldo Rodrigues dos Santos (1967, p. 20) afirmava ser necessário acompanhar a velocidade do processo, já que:

“As massas se radicalizam e nós precisamos dar a perspectiva de poder político para a classe operária”. E Carlos Marighella (1962, p. 100) alertava para o contagiante fascínio que a vitória da revolução cubana exercia “(...) no estado de espírito das massas e contribuía para radicalizar ainda mais o processo democrático brasileiro”. Uma outra corrente da esquerda estava representando no denominado Grupo Compacto do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – a esquerda trabalhista teve um crescimento eleitoral expressivo nas eleições de 1962, quando o PTB alcançou quase 30% da Câmara dos Deputados. Seu principal líder, Leonel Brizola, constituiu uma corrente nacionalista e reformista de grande visibilidade e, muitas vezes, com gritos de guerra retumbantes. Com grande influência na Frente de Mobilização Popular, na baixa oficialidade militar (cabos e sargentos), começa, no início de 1964, a organizar os Grupos dos Onze, acusados pela imprensa de serem, de fato, milícias paramilitares. Oficialmente situacionista e com influência – não desprezível – no governo, comportava-se como oposição, exigindo, constantemente e sem tréguas, a recomposição do ministério, o abandono da política de conciliação e a tomada de medidas nacionalistas e estatizantes. As reformas de base, diante dos entraves legais e/ou institucionais, deveriam ser realizadas à revelia do Congresso e por um Executivo dotado de poderes excepcionais. Brizola (1964, p. 8), discursando no comício de 13 de março, na Central do Brasil, propôs, sem meias palavras, a dissolução do

Congresso e a convocação de um plebiscito, a fim de instalar uma Assembleia Constituinte e “(...) permitir a formação de um Congresso popular, onde se encontrem trabalhadores, camponeses, sargentos e oficiais nacionalistas”. Outros agrupamentos da esquerda, menos importantes como o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Ação Popular (AP), tinham uma postura dúbia, ao mesmo tempo de apoio com restrições ao governo; o primeiro com um reformismo moderado e o segundo – um híbrido de marxismo humanista e cristianismo – mais incisivo nas cobranças pela realização das reformas e aliado ao PCB no movimento estu-dantil e em sindicatos rurais. Os demais, minúsculos e pouco expres-sivos, mas com uma retórica esquerdista, doutrinária e estridente,

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faziam oposição intransigente ao governo. O Movimento Revolucio-nário Tiradentes (MRT), de Francisco Julião e de um grupo de correligionários, junto com a palavra de ordem, “reforma agrária na lei ou na marra”, resolveu preparar-se para a luta armada – realizando treinamento de guerrilha –, inspirado no foquismo e instado pelo Partido Comunista Cubano, além de entusiasmado pela “experiência revolucionária” da Mongólia, que teria promovido uma revolução campo-nesa, saltando direto do feudalismo para o socialismo. Outro grupo nanico, a Política Operária (Polop), de matriz trotskista, considerava--se a vanguarda revolucionária com a missão de preparar as massas para o assalto ao poder pela força das armas. Além desses, surgiu em 1962 o Partido Comunista do Brasil – defecção stalinista do PCB –, animado pelo maoismo, concentrava seu parco poder de “fogo sobre o governo Goulart” e propugnava “sua derrubada pela violência”

(GORENDER, 1987, p. 50). Pelo exposto, é óbvio que se a direita apostou no golpe e venceu, a esquerda não deixou por menos: seduzida pelo uso de recursos extralegais e pelo resgate da tradição golpista, menosprezou solenemente os procedimentos democráticos e perdeu. Aliás, se a direita não tinha compromissos com a democracia, a esquerda igualmente desprezou-a. A diferença é que a direita, ardilosamente, capturou a bandeira da legalidade democrática, enquanto a esquerda, enfeitiçada pelas fantasias e presunções revolucionárias, foi simplesmente imobilizada.

Avaliações, julgamentos e ações Consumada a deposição do governo Jango e a derrota das forças sociopolíticas que lhe davam sustentação, ou não, tem início, entre os vencidos, a discussão e as tentativas de entender o que havia aconte-cido. Quais eram as causas da debacle? Por que foi tão rápida, avas-saladora e ultrajante? As avaliações e/ou julgamentos tenderam a polarizar-se, apesar da heterogeneidade de pontos de vista, principal-mente, em dois extremos. De um lado, colocar-se-iam vários grupos de dirigentes e militantes do PCB e de outras forças de esquerda (Polop, AP, PCdoB, brizolistas etc.). Suas avaliações da derrota, não obstante as diferenças, tinham vários pontos em comum e baseavam-se na constatação de que a derrocada teria sido fruto: a) da tibieza e da política de conciliação do governo Jango com a reação conservadora, especialmente, com o latifúndio e o imperialismo; b) da inexistência de um dispositivo militar eficaz que pudesse barrar os militares golpistas e realizar um contra golpe preventivo; c) dos erros de direita do PCB, do seu reboquismo em Ditadura e democracia na práxis da esquerda

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relação à burguesia nacional, da sua política de conciliação de classes, de sua passividade e imobilismo, de seu eleitoralismo e do “cretinismo parlamentar”, do reformismo de seu projeto, do seu pacifismo ou da absolutização do caminho pacífico e da não pregação da resistência militar para o enfrentamento armado ao golpe. Uma ilustração sintética dessas avaliações está nas análises de dois intelectuais protagonistas da época – um, dirigente do PCB na época, afirma que “(...) nos primeiros meses de 1964 esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter revolucionário preventivo (...)”, atribuindo seu sucesso “(...) ao pacifismo e ao reboquismo pró-burguesia do PCB” (GORENDER, 1987, p. 67 e 87); outro, da Polop, quase no mesmo diapasão, julga que o “(...) comportamento da maioria da esquerda, sobretudo do PCB, com sua teoria da revolução pacífica e seu „cretinismo‟ parlamentar, tiveram o mesmo efeito: desarmamento das massas” (MARINI, 1968, p. 47). Observe-se que ambos, apesar das concepções teórico-políticas diversas, aproximavam-se em seus entendimentos e conjecturas: consideram que, na conjuntura que precedeu o golpe, havia sido criada uma situação pré-revolucionária, mas o “pacifismo e o reformismo” do PCB haviam desarmado e imobilizado a ação das massas. O PCB teria sido, assim, o grande vilão ou, no mínimo, culpado, pois teria responsabilidades não só por não ter resistido ao golpe de Estado, mas também, e fundamentalmente, por não ter desencadeado a revolução. Outra análise crítica da política e da prática do PCB e que teria repercussão na luta político-ideológica da esquerda nestes anos seria feita por Caio Prado Jr. (1966), que contesta tanto as interpretações pecebistas sobre a realidade histórica brasileira como o dogmatismo de seu projeto e suas concepções políticas e teóricas: a compreensão do Brasil a partir de um modelo pré-determinado (do VI Congresso da

Internacional Comunista de 1928) e do projeto político dele derivado – predominância de relações sociais pré-capitalistas (feudais ou semis-servis) no campo, o papel progressista da burguesia nacional na etapa da revolução anti-imperialista e antifeudal. Além dessas, outras explicações corroborariam aqueles juízos críticos já expostos, elaborados nos meios universitários. Delas, a que mais incidiu na luta político-ideológica foi a que ficou conhecida como “teoria do populismo” (WEFFORT, 1978; IANNI, 1968). Segundo seus autores, o regime ou Estado populista (1930-1964), tendo como base a colaboração de classes, buscava sua legitimidade nas massas urbanas como ponto de apoio para seu projeto. Para isso, era obrigado a se abrir à participação popular. Mas, ao mesmo tempo em que abria

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espaços à participação das massas e satisfazia algumas das suas aspirações, procurava controlá-las e manipulá-las, impedindo, assim, sua organização e intervenção autônoma e independente. As esquerdas e o PCB, em particular, com seu projeto nacionalreformista, ao aliarem-se ao populismo contaminaram-se pela “política de massas” (abandonando ou secundarizando o projeto classista), contribuindo, sobremaneira, para obscurecer a consciência social dos trabalhadores e para neutralizar seu potencial revolucionário. A teoria do populismo tornou-se moeda corrente nos anos 70, influenciando grande parte das análises (acadêmicas e políticas) e projetos das mais variadas forças de esquerda no Brasil. Pelo exposto, é plausível asseverar que tanto as análises histórico--teóricas, como as político-ideológicas sobre as causas do golpe tiveram enfoque acentuadamente crítico ou mesmo acusatório aos supostos agentes e/ou protagonistas responsáveis pela derrota política: governo Goulart, PTB, PCB, CGT, UNE, FMP etc. – foram mesmo colocados no banco dos réus, julgados e condenados à revelia por não terem reali-zado as tarefas sociopolíticas e a missão revolucionária ou reformista a elas imputadas. No campo da esquerda, em posição oposta, as avaliações que contestavam aquelas ficaram quase que restritas a dirigentes e intelectuais pecebistas. Esses constataram que, em realidade, tanto o PCB como os demais aliados do governo havia cometido desvios de esquerda. Os equívocos perpetrados e que levaram à derrota derivaram: a) da má apreciação da correlação de forças e à subestimação da capacidade de reação das classes dominantes e de instituições estatais e civis; b) da precipitação do confronto, do desprezo pela lega-lidade democrática, da pressa pequeno-burguesa que via a vitória como fácil e imediata; c) do golpismo, do baluartismo e do subjeti-vismo – fatos que, em seu conjunto, levaram ao abandono da linha política e contribuíram para a derrota. Numa primeira avaliação realizada pelo Comitê Central do PCB, em maio de 1965, reconheceu -se que eram falsos os créditos no “dispositivo militar” do governo Goulart. “Também falsa era a perspectiva que então apresentávamos ao Partido e às massas de uma vitória fácil e imediata”. Constatou que a “(...) oposição ao governo adquiria o sentido de luta contra o governo entreguista, com o objetivo principal de desmascará-lo perante as massas” (PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO, 1965). Admitiu ter “(...) contribuído para a radicalização do processo e enveredado por um caminho sectário e golpista” (VINHAS, 1982, p. 237). Um dirigente, a seguir, concluiu: “Toda a tática das correntes progressistas e do próprio governo Ditadura e democracia na práxis da esquerda

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Goulart encontrava-se apoiada numa base falsa: não havia uma justa análise da correlação de forças e do desenrolar do processo” (TAVARES, 1966, p. 33, grifo do autor). As divergências iriam se acirrar e atingir seu ponto de maior tensão na Tribuna de Debates ao serem discutidas as Teses do VI Congresso do PCB – publicadas no periódico de circulação clandestina Voz Operária – nos últimos meses de 1966 e início de 1967. Dela deriva-riam duas posições e projetos políticos distintos: a) os que constatavam que os “erros” haviam sido de esquerda, ou seja, a maioria do Comitê Central do PCB, os quais vencem o VI Congresso e aprovam uma proposta de luta contra a ditadura baseada numa política de frente democrática, que visava unir num amplo arco de alianças todos os que se opunham ao regime ditatorial e que tinham interesses na (re)conquista das liberdades democráticas. Sua plata-forma centrava-se na luta por eleições diretas em todos os níveis; pela anistia aos cassados, condenados e presos políticos; pela convocação de uma Assembleia Constituinte; pela liberdade de expressão e orga-nização; pela mudança do modelo econômico etc. A frente democrática deveria ter como instrumento aglutinador o partido de oposição legal, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). No movimento sindical, mantém-se sua antiga prática de unidade sindical, agindo dentro da estrutura oficial, apesar de todas as suas limitações; visando renovar suas direções – sob intervenção – ou mesmo fazer com que direções resignadas ou mesmo “pelegas” assumissem postura de defesa dos interesses dos trabalhadores e contra a política salarial e econômica da ditadura; b) já os que pensavam a política pecebista como tendo sido de direita abandonam ou são excluídos das fileiras do PCB e irão organizar diversos partidos, movimentos ou grupos: Ação Libertadora Nacional (ALN), Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), além de outros. Não obstante terem projetos políticos e práticas diversas, tinham em comum a convicção de que a ditadura só seria derrotada pela violência: “focos guerrilheiros”, “guerra popular”, “guerra de libertação nacional” ou outras formas de ação insurrecional. Absolutizando a luta armada, desprezava totalmente as eleições (pregando o voto nulo) e a participação nas instituições, como o parlamento. Não só se opõem, em sua maioria, mas negam-se a participar da estrutura sindical oficial (considerada atrelada, autoritária, burocrática, manipuladora, instrumento da ditadura), optando pelo paralelismo e pelas chamadas “oposições sindicais” – quando participam, iriam atuar nos que reconheciam como “sindicatos combativos” (FREDERICO, 1987, p. 58 et seq.). 52

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Concomitante às dissidências do PCB, reproduzem-se dezenas de siglas revolucionárias e/ou extremistas (marxistas-leninistas, maoístas, guevaristas, trotskistas etc.), a maioria delas minúsculas e muitas com espírito de seita, contendo, inclusive, certa dose de messianismo ou fanatismo. Além de fortemente influenciadas pela cultura política terceiro-internacionalista, pelas formulações do Partido Comunista Cubano e pelo Partido Comunista Chinês, pelos movimentos de libertação nacional (Vietnã, África, America Latina), pela teologia da libertação, incorporaram também elementos de teorias em voga na época, elaboradas por intelectuais europeus, norte-americanos e de outras regiões, como H. Marcuse, L. Althusser, F. Fanon, R. Debray, A. Gunder Frank, J. P. Sartre, P. Baray etc. Muitas delas seriam impelidas ou animadas pela Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), fundada e controlada pelo governo cubano, em 1967. Enquanto o PCB procurava caminhar – apesar de todos os tropeços – no sentido de elaborar e praticar uma política para a democracia, que pressupunha a construção da hegemonia, seus dissidentes e outros grupos esquerdistas seguiram o caminho inverso, negligen-ciando-a ou mesmo negando-a. Muitos estavam convictos que no Brasil e na América Latina capitalismo e democracia eram incompatí-veis. Consideravam que havia uma catástrofe iminente e a estratégia insurrecional – seja por meio de focos guerrilheiros, guerra popular prolongada ou por outras ações armadas – levaria, inevitavelmente, à instalação do governo de libertação nacional e/ou à ditadura do prole-tariado. O voluntarismo militarista envolveu ações como “expro-priação” de bancos, justiçamentos, atentados, sequestros de embaixa-dores, entre outras operações e façanhas belicosas. O foco guerrilheiro seria, para os grupos mais importantes, como ALN, a adaptação do partido leninista à realidade da América Latina: “(...) um pequeno grupo de elite, compacto e disciplinado, devotado de corpo e alma à revolução, como queria Debray, um partido verde-oliva” (REIS FILHO, 1989, p. 115). Para a ALN (apud RIDENTI, 1993, p. 32), por exemplo, por meio de ações armadas (no caso, focos guerrilheiros), cabia à vanguarda revolucionária expulsar do poder “(...) os grandes capitalistas e latifundiários e substituí-los pelo povo armado, instaurando o governo popular-revolucionário”. E para o PCBR (apud RIDENTI, 1993, p. 46) a estratégia não seria muito diversa: a tarefa imediata e básica consistiria “(...) em organizar, iniciar, desenvolver e culminar a luta armada, a partir da guerra de guerrilhas”.

Opondo-se a essas concepções e práticas, o PCB, na Resolução Política de seu VI Congresso, em 1967, fez duras críticas ao esquerdismo, ao golpismo e ao vanguardismo desses grupos. L. C. Prestes Ditadura e democracia na práxis da esquerda

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(apud KONDER, 1980, p. 121), no início de 1969, advertiu: “Não será somente com atos de repercussão, sem a participação das massas, que se vencerá a ditadura.” Ou seja, não seria com ações espetaculosas e heroicas de pequenas vanguardas que se fariam as transformações sociopolíticas. E vai além: “Para tanto, não bastam nem o dinheiro dos bancos, nem as armas arrancadas dos quartéis ou tomadas dos soldados e policiais, nem a libertação de presos e conde-nados políticos” (PRESTES apud KONDER, 1980, p. 121). Dessa forma, em contraposição aos apelos, chamamentos e tentações à absolutização da luta armada, ao aventureirismo, ao golpismo e ao esquerdismo, o PCB elaborará uma política de frente democrá-tica, visando unir todos os setores sociais interessados na derrota da ditadura e na conquista das liberdades democráticas, objetivando a reorganização institucional e política do país, bem como a renovação democrática, a ampliação dos direitos de cidadania, o revigoramento da sociedade civil e política e a superação das múltiplas desigual-dades, da iniquidade e das relações de opressão.

Apesar de todos os percalços e problemas que enfrentou, a linha política definida pelo PCB da luta democrática começou a vingar e foi incorporada por amplos setores da oposição e suas palavras de ordem e bandeiras – anistia, eleições livres e diretas, liberdade de organi-zação e expressão, Constituinte etc. – foram absorvidas, aos poucos, por amplos setores da sociedade civil e política. Mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que sua política tornava-se vitoriosa, o PCB entraria num processo de crise aguda, que se tornou terminal – enre-dado à tragédia do socialismo real derivado da revolução de outubro de 1917 – que o levaria ao perecimento. Por ironia da história, no momento mesmo em que o PCB extin-guiase, aqueles que se constituíram combatendo-o e que o derro-taram na luta político-ideológica – muitos deles remanescentes e/ou herdeiros do esquerdismo militarista – iriam reencarnar vários aspectos do seu projeto e de sua cultura política. Absorveram noções e categorias, definições e análises, práticas e concepções, palavras de ordem e gritos de guerra, antigos do PCB, principalmente aqueles que orientaram os pecebistas nos anos que precederam o golpe de 1964, com a resalva de manterem-se, porém, desconfiados e um certo desa-preço em sua práxis pelos procedimentos e valores democráticos.

O que é preocupante, pois, parte significativa deles metamorfosearam-se e tornaram-se os novos donos do poder do país, dirigentes e mandatários da República.

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José Antonio Segatto

Referências ALVES, M. Intervenção de Mário Alves na reunião da Comissão Executiva do Comitê Central de 17/07/1962. In: BRASIL. Superior Tribunal Militar. Cadernetas de Luiz Carlos Prestes – Inquérito PolicialMilitar n.. 709. Brasília, 1967, Caderneta n. 15, p. 30-31.

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TAVARES, A. As causas da derrocada de 1º de abril de 1964. Revista Civilização Brasileira, n. 8, p. 11-33, jun./1966. VINHAS, M. O partidão: a luta por um partido de massas: 1922-1974.. São Paulo: Hucitec, 1982. WEFFORT, F. C. O populismo na política brasileira.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Ditadura e democracia na práxis da esquerda

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Cinquenta anos de fingimento

Cristovam Buarque

H

á cinquenta anos, o Brasil tem uma grande preferência pelo fingimento. Em abril de 1964, os militares deram um golpe militar, expulsaram o presidente eleito, prenderam políticos, estudantes, trabalhadores, fingindo defender a democracia; em nome da democracia, institucionalizaram a tortura, prendiam fingindo ser em nome de distribuir liberdades individuais; por meio de um gol-pe militar impediram as reformas que o país ansiava, fingindo fazer

uma revolução.

Ao longo de 21 anos, os governos militares se sucederam fingindo. Implantaram rigoroso sistema de censura à imprensa, fingindo que isso era para defender a liberdade de imprensa; conseguiram criar uma infraestrutura econômica e fazer o PIB crescer, graças à concen-tração de renda, fingindo que o povo era o beneficiário. Fingiram fazer do Brasil uma grande potência, sem educar a população, sem implantar um sistema de saúde, sem distribuir os benefícios do progresso; apoiaram e ampliaram consideravelmente a indústria automobilística, fingindo melhorar o transporte urbano; implantaram um programa radical de ocupação da Amazônia destruindo nosso imenso patrimônio verde, fingindo que estavam construindo o Brasil do futuro. E tiveram o desplante de chamar de Milagre Brasileiro a construção de um país que ampliasse, sem sua produção, o PIB mas deformado socialmente e depredador ecologicamente.

Manipulando os dados da economia e das finanças públicas, fingiram não haver inflação. Provocaram migração às cidades que viraram “monstrópoles”, fingindo que a urbanização era o progresso. Quando o fingimento da ditadura ficou desmentido, o regime começou a cair e, no seu lugar, surgiu uma democracia. Que continuou fingindo. A democracia comemora ter levado o Brasil à posição de sétimo maior PIB do mundo, mas a riqueza por pessoa, o PIB per capita, rebaixa o país para a 54ª posição no cenário mundial; no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) ficamos em 85º lugar. Mesmo assim, 56

fingimos ser ricos; apesar da pobreza. Usando a riqueza total do país de 200 milhões de pessoas, mas para esconder a pobreza de cada uma delas e a tragédia social onde sobrevivem ameaçadas pelo desastre ao redor. Ignorando inclusive a brutal concentração de renda total entre poucos brasileiros, 10% dos quais se apropriam de 50% e deixam que os 50% mais pobres recebam apenas 10% do total.

Como temos uma indústria aeronáutica de elevado nível cientí fico e tecnológico, fingimos que nosso PIB é moderno apesar de termos uma economia exportadora de bens primários e importa-dora de conhecimento. Nos últimos 20 anos, passamos de 1,66 milhão para 7,04 milhões de matrículas nos cursos superiores, mas quase 40% de nossos universitários não sabem ler e escrever satisfatoriamente, poucos sabem a matemática necessária para um bom curso nas áreas de ciências ou engenharias; raros são capazes de ler e falar outro idioma além do português. Fingimos ser possível dar um salto à universi-dade sem passar pela educação de base. Comemoramos ter passado de 36 milhões, em 1994, para 50 milhões de matriculados na educação básica, em 2014, sem dar atenção ao fato de termos 13 milhões de adultos prisioneiros do anal-fabetismo; 54,5 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não terem terminado o Ensino Fundamental e 70 milhões não terminaram o Ensino Médio. Fingimos que os matriculados estão estudando, quando sabemos que passam meses sem aulas por causa de paralisações ou falta de professores. Educamos diferentemente os ricos e os pobres, e como os negros, por serem pobres, ficam sem escolas de qualidade e em consequência fora de boa universidade, e fingimos resolver a falta de democracia racial por meio de cotas. Reservamos cotas para alunos que conclu-íram Ensino Médio, oferecemos bolsas para os que estudam e ingressam em faculdades, esquecendo os que ficam para trás ao longo da educação de base. E chamamos o programa de Universi-dade para Todos – mesmo que esse “todos” só inclua poucos que terminaram o Ensino Médio e conseguiram passar no vestibular. Um bom programa como o Pronatec, finge que vai resolver o apagão de mão de obra, quando 30% dos alunos abandonam os cursos porque não tiveram o Ensino Fundamental com a necessária qualidade.

Temos quase 200.000 prédios que fingimos ser escolas, apesar da péssima qualidade deles, da falta de equipamentos, até de giz, água, luz; apesar dos professores sem salários, sem motivação, sem Cinquenta anos de fingimento

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formação; fingimos ter quase todas as crianças na escola, sem dizer que elas estão matriculadas mas não frequentam regularmente, não assistem aula, não permanecem, não aprendem quando, raramente, concluem os estudos. A partir de 1995, no DF e em Campinas, iniciamos um programa que serve de exemplo ao mundo inteiro, atualmente chamado de Bolsa Família, que transfere, em média, R$ 167,00 por mês por pessoa para 12 milhões de famílias pobres, o que assegura R$ 5,67 por pessoa e por dia, valor insuficiente para aliviar suas necessidades mais essenciais. E fingimos que, com esta transferência, estamos erradicando a pobreza que é caracterizada efetivamente pela falta de acesso aos bens e serviços essenciais que não estamos oferecendo. Fingimos ter 94,9 milhões de brasileiros na classe média, sabendo que a renda mensal per capita dessas pessoas está entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês, quantia insuficiente para uma vida cômoda, especialmente em um país que não oferece serviços públicos gratuitos de qualidade. Comemoramos o aumento da frota de automóveis de, aproximadamente, 18 milhões, em 1994, para 64,8 milhões, em 2014, fingindo que isto é progresso, mesmo que signifique engarrafamentos monumentais, a morte de 50 mil vítimas por ano e outras tantas com sequelas carregadas pelo resto de suas vidas; e o transporte público inferniza todos os dias dezenas de milhões de brasi leiros e brasileiras. Justificamos que a Copa do Mundo serviria para construir a infraestrutura urbana que sempre foi negada à população, e nem ao menos cumprimos as obras que justificavam o fingimento. Comemoramos, corretamente, termos desfeito uma ditadura, esquecendo que a democracia está sem partidos e a política se transformou em sinônimo de corrupção. Fingimos ter uma democracia com liberdade de imprensa escrita em um país onde poucos são capazes de ler um texto de jornal; fingimos ter rádios e televisões sem censura estatal, sabendo que gastamos R$ 3 bilhões com publici-dade pública definida arbitrariamente pelos governos federal e local. Assistimos 56 mil mortos pela violência ao ano, e fingimos ser um país pacífico, sem uma guerra civil em marcha. Nossas lideranças fingem ter visto uma passeata de 100.000 pessoas, mas não atendem as reivindicações de reforma política que foram feitas nas ruas.

E agora nem ao menos fingem, porque não veem as 1.000 manifestações de 100 pessoas que todo dia mostram o descontentamento geral da população. 58

Cristovam Buarque

Desde 1994 temos governos liderados por presidentes e partidos progressistas, com promessas transformadoras, mas fingimos transformar enquanto apenas damos jeitinhos. E para justificar a falta de vigor transformador escondemos os problemas e superpublicizamos os resultados bons, mas limitados programas sociais. Fingimos ser um país com ambição de grandeza, mas nos contentamos com tão pouco que os governantes se recusam a ouvir críticas sobre a ineficiência dos serviços públicos. Preferem um otimismo ufanista, comparando com o passado que já foi pior, e denunciam como antipatriotas e antidemocráticos aqueles que ambicionam mais e criticam as prioridades no uso da energia econômica do país e a incompetência como elas são executadas. Antipatriota e antidemocrático é achar que o Brasil não tem como ir além, é acreditar nos fingimentos e não lutar pelas reformas que há cinquenta anos fingimos fazer.

Cinquenta anos de fingimento

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Organização sindical em tempos de ditadura José Carlos Arouca

N

ossa primeira lei sindical, Decreto no 979, de junho de 1903, restrita ao meio rural, veio pela ação da Igreja Católica no gover-no Rodrigues Alves, que também assinou a segunda, Decreto

no 1.637, de 1907, de alcance geral. Nem uma nem outra teve aplicação, pois como assinalou Everardo Dias: “Os sindicatos tinham, dessa forma, vida muito precária, expostos constantemente ao fechamento arbitrário, às visitas policiais, à prisão de seus membros mais destacados, à remoção de seus móveis e livros para serem destruídos como planta perigosa e amaldiçoada. (...) As greves declaradas – e houve muitas nesse atormentado período – se foram bem organizadas e conseguiram as diversas corporações proletárias sair vencedoras, deve-se isso à tática dos líderes de então e ao trabalho subterrâneo e gigantes-co de um grupo de abnegados e temerários operários conscientes. Os cárceres policiais sempre estiveram cheios de trabalhadores, passan-do por terríveis padecimentos, martirizados sem qualquer espírito de respeito pelo ser humano, expulsos do país ou então mandados para lugares onde a morte os esperava irremissivelmente, deixando a famí-lia ao desamparo. No governo Epitácio Pessoa, as principais lideran-ças estavam foragidas ou haviam sido deportadas, a maior parte dos sindicatos fechados e as chaves em poder da polícia” (...) Pode-se dizer sem receio de desmentido que, de 1902 a 1930, não houve sindicato que tivesse vida regular e livre sem intervenções policiais.1 Para se ter uma ideia desses tempos, bastante lembrar os apelidos que tiveram duas leis: “infame”, Decreto no 4.260 de 1921, e “celerada”, Decreto no 5.221, de 1927, dos governos Delfim Moreira e Washington Luiz, respectivamente. Mesmo assim, em 1906, foi realizado o I Congresso Operário Brasileiro, que criou nossa primeira central sindical, a Con-federação Operária Brasileira (COB) que rejeitou o assistencialismo, defendendo o sindicato de resistência. 1917 foi marcado pela greve dos “companheiros de São Paulo”, conforme a denominação carinhosa que lhe deu Paula Belguelman.2 1 2

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História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit, 1962, p. 20 e 119. São Paulo: Cortez, 2002.

Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal, derrotado nas urnas pelos coronéis e donos das terras do eixo São Paulo-Minas Gerais, assume o poder pelas armas e abre o ciclo das ditaduras. De imediato, assinou nossa terceira lei sindical, escrita por dois socialistas, o carioca Evaristo de Morais, pai, advogado de presos políticos, pioneiro na abordagem de um novo direito que chamou Direito Operário, e o pernambucano Joaquim Pimenta, misto de professor e agitador social. Mesmo assim deram- lhe natureza de órgão de colaboração3 e para controlá-lo foi criado o Ministério do Trabalho, que era também da Indústria e Comércio. No primeiro tempo da Era Vargas foram três anos e oito meses de ditadura. Vargas inicia o segundo tempo convocando a Assembleia Nacional Constituinte, exclusiva e democrática, elegendo-se presidente por votação indireta. A Constituição, aprovada em 1934, substituiu a unicidade pela pluralidade. Só que outra lei sindical mitigou -a exigindo o apoio de 1/3 da categoria para seu reconhecimento, de modo que só era possível a criação de, no máximo, três organizações. O historiador Hélio Silva anota que o pluralismo empolgou os “pelegos” interessados em eleger- se representantes classistas no Congresso Nacional, compondo “uma bancada obediente à batuta do líder da maioria (...) formada por um único eleitor, compreendendo- se como tal o que elege, no caso o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães”. 4 Outro golpe e outro tempo de ditadura se inicia em 1937 com a criação do Estado Novo fascista, estruturado por uma “carta” (assim mesmo em letras minúsculas), escrita por Francisco Campos que, mais tarde, escreveria também o AI-1 da ditadura militar de 1964. O que fez? Copiou, no art. 138, a Declaração III da Carta del Lavoro do regime implantado por Mussolini: A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público.5

3

Decreto no 19.770 de mar./1931.

4

SILVA, Hélio. 1934, A Constituinte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 65.

5

SAYÃO ROMITA, Arion. O fascismo no Direito do Trabalho brasileiro. São Paulo: LTr, 2001, p. 52.

Organização sindical em tempos de ditadura

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A quinta lei sindical, escrita por Oliveira Viana, só permitia sindicatos “oficialistas”, sendo os demais contidos pela polícia de Felinto Muller.6 Foi reforçada com os Decretos nos 2.377 e 2.381, ambos de 1940, instituindo, respectivamente o imposto sindical e o enquadramento sindical. Com esta roupagem, em 1943 foi transportada para a Consolidação das Leis do Trabalho, como seu Título V, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou de AI-5 dos trabalhadores e prometeu jogar no lixo. Foram mais oito anos e dois meses de ditadura cruel e sangrenta. A democracia renasceu em 1946, com a aprovação de uma Constituição que assegurou a liberdade sindical e o direito de greve. Todavia, começou como “meia democracia” comandada pelo marechal Eurico Gaspar Dutra que fora ministro da Guerra do Estado Novo varguista e que não se elegeria nem vereador em sua terra não fosse o apoio do ex-ditador. Enquanto a Assembleia Constituinte seguia, Dutra legislava soberanamente e assim colocou o Partido Comunista na ilegalidade, cassou os mandatos de seus parlamentares e passou por cima do Tratado de Chapultepec para fechar a central Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB), intervindo em todos os seus filiados, 221, e não satisfeito editou o Decreto-Lei nº 9.070, para criminalizar a greve, com o aval do Supremo Tribunal Federal. Partiu de Dutra a iniciativa da Mensagem nº 256, de maio de 1.949, objetivando a aprovação da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O sindicalismo autêntico criou forças e pouco a pouco tomou o lugar do arremedo “oficialista”, fruto da ditadura fascista e suas ramificações, “pelego” e “corrupto”. Vargas não saiu de cena e elegeu-se democraticamente em 1951 e procurou penitenciar-se, afastando o ranço ditatorial com um governo nacionalista. Logo a aliança do PCB com a ala nacionalista do PTB abrese como uma das duas vertentes da organização sindical: esquerda e direita. Enquanto a aliança comuno-petebista representa o sindicalismo de resistência, o outro lado é constituído pelos pelegos, oficialistas e imobilistas. A aliança avança quando João Goulart assume o Ministério do Trabalho e alcança seu ponto mais alto quando chega à Presidência da República. Primeiro, em dezembro de

1961, a conquista da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias (CNTI), então a maior organização sindical de cúpula, depois a formação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), em

6

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Decreto-lei no 1.402, de 1939. José Carlos Arouca

1962. Sua direção ficou com Clodsmidt Rianni, presidente da CNTI, filiado ao PTB; Dante Pelacani, da Federação Nacional dos Gráficos, então do PCB; Benedito Cerqueira, metalúrgico carioca, do PTB; e mais Paulo de Melo Bastos, presidente da Federação Nacional dos Aeroviários (PCB); Humberto Meneses Pinheiro, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito (PTB); Oswaldo Pacheco, presidente do PUA e da Federação Nacional dos Estivadores (PCB); Luiz Tenório de Lima, presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação do Estado de São

Paulo (PCB); Rafael Martinelli, presidente da Federação Nacional dos Ferroviários (PCB); Hércules Corrêa, presidente da CPOS (PCB); Roberto Morena, do Sindicato dos Marceneiros do Rio de Janeiro (PCB); Lindolfo Silva, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (PCB); Armando Ziller, da Confederação dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito – Contec (PCB). No governo João Goulart, o ministro do Trabalho, Almino Afonso, reconheceu o CGT como autêntica central sindical. Nem por outra razão, Azis Simão, membro do Partido Socialista, admite: “Com a redemocratização do país, após a última guerra, os comunistas passaram a ser os maiores dinamizadores da organização sindical”. 7 A famosa expressão golpista lançada pelo deputado Bilac Pinto, da UDN, República Sindicalista, fora moldada pelo deputado petebista Wilson de Barros Leal, também presidente do Sindicato dos Têxteis do Recife, que, ao elogiar a atuação de João Goulart no Ministério do Trabalho, concluiu dizendo que “nas próximas eleições, os trabalhadores, votando no PTB, poderiam eleger um parlamento que representasse seus interesses de classe, constituindo, assim, uma República Sindicalista”.8 O PCB teve importância destacada na formação dos movimentos sindicais unitários, contribuindo para a fundação do Pacto de Unidade Intersindical (PUI), em 1953, na cidade de São Paulo, numa assembleia que reuniu cerca de 8 mil trabalhadores, nascido em função de uma greve, primeiro um comando intersindical, mais tarde substituído pelo Conselho Sindical dos Trabalhadores do Estado de São Paulo; outro, em 1961, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), atuante até 1964, resultante da greve dos setores de transporte ferroviário e marítimo, que ficou conhecida como “a greve pela paridade”; a Comissão Permanente das Organizações Sindicais (CPOS), criada em

7 8

O sindicato na vida política do Brasil. Revista de Estudos Socioeconômicos, Dieese, n. 9, p. 6, jul.-ago./1962. FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista, Getulismo, PTB e Cultura Política Popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 128.

Organização sindical em tempos de ditadura

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1958, na Guanabara, absorvida em 1961 pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Da mesma forma, participa da criação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), em 1961 que se tornaria ainda sob sua influência, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag). O CGT foi responsável pela politização do movimento sindical, levantando a bandeira das reformas, defendendo um nacionalismo traçado sob a vertente socialista. Bom lembrar que no comício do dia 13 de março, no palanque montado nas imediações da Central do Brasil, estavam João Goulart, sua esposa e Oswaldo Pacheco, presidente do Sindicato dos Estivadores de Santos, filiado ao PCB. A reação golpista contou com o apoio das organizações sindicais situadas à direita, especialmente o Movimento Sindical Democrático, de Antonio Pereira Magaldi, juiz classista do Tribunal do Trabalho e presidente da Federação dos Comerciários do Estado de São Paulo. Como expressão do sindicalismo direitista, seu papel ficou marcado pela oposição ao CGT e apoio ao golpe militar de 1964 com os favores do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e do Ipes (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), também das forças armadas e do capital externo, norte-americano. O Movimento Renovador Sindical (MRS) tinha como bandeira a extinção da contribuição sindical. Seu mentor intelectual era Geraldo Meyer, ex-comunista, jornalista de O Estado de S.. Paulo. Mesmo sem filiados, tinha sede, funcionários, advogados, editava um jornal, o Redetral ou Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres, restrito ao Rio de Janeiro, que teve importância menor. “A influência anticomunista era exercida também pelo Instituto Cultural do Trabalho, braço do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre”. No mesmo sentido, eram implicados os sindicatos convidados pelo Point IV-Program. O golpe de 1964, militar ou civil -militar, diante do apoio de figuras como Adhemar de Barros, Auro Moura Andrade que fraudou a contagem do tempo para declarar o afastamento do presidente eleito democraticamente pelo povo, começou com intervenção em 409 sindicatos, 43 federações e três confederações. No levantamento de Kenneth Paul Erickson “as intervenções concentraram-se nos grandes sindicatos, atingindo 70% dos que tinham mais de 5 mil membros, 38% dos que contavam de mil a 5 mil afiliados e 19% dos sindicatos com menos de mil membros. Diante deste quadro, arrematou: “O governo militar simplesmente decapitou o movimento trabalhista sindical”.9 Até o final do regime foram 1.565 interven9

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ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo no processo político no Brasil.. São Paulo: José Carlos Arouca

ções.10 E mais, a ditadura fechou o CGT, fora de qualquer dúvida, a maior central sindical que já tivemos, e fez aprovar, por um Congresso mutilado e assustado, a Lei nº 4.330 conhecida como Lei Antigreve. O Dops invadiu os sindicatos mais destacados e destruiu seus livros e assentamentos ou os levou para seus porões. Com isso, grande parte da história de nossa organização sindical não poderá ser reconstruída. A maior parte dos dirigentes do “velho sindicalismo”, combativo e autêntico, de resistência, já se foi e poucos restam para depor. Muitos dirigentes tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos, inclusive todos do CGT. Advogados que contribuíram para a construção do direito do trabalho como Cristóvão Pinto Ferraz, Altivo Ovande, Enio Sandoval Peixoto, Rio Branco Paranhos, Walter Mendonça Sampaio, Agenor Barreto Parente, Pedro Dada, Celso

Soares, Benedito Calheiros Bonfim, Haddock Lobo, Costa Neto, Edésio Passos, foram demitidos pelos interventores, muitos deles membros das oposições derrotadas, outros “pelegos” vencidos pelas lideranças afastadas. Passados 20 anos e 11 meses foi restabelecida a democracia. Depois que voltou o sol, sem apagar totalmente os tempos de chumbo da ditadura militar, não bastou a anistia que perdoou os golpistas e os torturadores, entendendo que a reciprocidade extraída da Lei nº 6.683, de agosto de 1979, assinada pelo último agente do regime de exceção era suficiente para enterrar os tempos de dita dura que somavam 29 anos.11 Em 2.011, a Comissão Nacional da Verdade, criada com a Lei nº 12.528, revela os crimes hediondos praticados, a rotina da tortura nos porões dos DOI-Codis e dos Dops. Os depoimentos dos tristes major Curió, do general Paulo Malhães e do coronel Riscala Corbaje põem às claras mortes covardes como a que abateu Rubens Paiva. Poucos ainda admitem que a ditadura trouxe benefícios econômicos e que não apenas os torturadores deveriam ser punidos, mas também aqueles que, certos ou romanticamente, até de forma equivocada, combateram Brasiliense, 1979, p. 67 10 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil de 1964 a 1979, 1984, Rio de Janeiro: Vozes, p. 244. 11 Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos diri-gentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natu-reza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Organização sindical em tempos de ditadura

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os golpistas de 1964. Mas supostos avanços econômicos justificariam pôr fim à democracia? E os maquis e partisans da resistência ao nazifascismo também deveriam ser punidos? A Comissão Nacional da Verdade constituiu o GT Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical para apurar o dano causado aos sindicatos, determinando a abordagem de 11 temas: 1. Levantamento dos sindicatos que sofreram invasão e inter-venção no golpe e após o golpe; 2. Investigação de quantos e quais dirigentes sindicais foram cassados pela ditadura militar; 3. Quais e quantos dirigentes sindicais sofreram prisão imediata ao golpe; 4. Levantamento da destruição do patrimônio documental e físico das entidades sindicais; 5. Investigação sobre prisões, tortura e assassi-natos de dirigentes e militantes sindicais urbanos e rurais; 6. Vincu-lação das empresas com a repressão; 7. Relação do serviço de segu-rança das empresas estatais e privadas com a repressão e atuação das forças armadas; 8. Legislação antissocial e antitrabalhadores (lei de greve, lei do arrocho salarial, lei do fim da estabilidade no emprego, entre outras); 9. Levantamento da repressão às greves; 10. Trata-mento dado à mulher trabalhadora durante a repressão; 11. Levan-tamento dos prejuízos causados aos trabalhadores e suas entidades pelo regime militar para reparação moral, política e material.

Como assinalei para os membros da Comissão, não deverá limitar-se à ditadura militar de 1964. De fato, a Constituição, no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concedeu anistia aos atingidos por atos de exceção em decorrência de motivação política no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, de modo que não se pode esquecer as arbitrariedades come-tidas no governo do marechal Dutra. Apesar de ter sido restaurada a democracia após as ditaduras fascista de 1937, que alguns acadêmicos, jornalistas e donos de jornais chamavam de democracia autoritária, e a militar de 1964, celebrada por tanta gente, o movimento sindical combativo não pode ficar calado. Assim, no levantamento da Comissão, não se deverá desprezar a ação dos sindicalistas e entidades ligadas ao golpe, como o Movimento Sindical Democrático, o Movimento Renovador Sindical, a União Sindical Independente, o Iadesil e o ICT, figuras como Ary Campista e Deocleciano Cavalcanti que dirigiram a CNTI. Se a ditadura Vargas criou o sindicalismo “oficialista”, a ditadura militar procurou transformá-lo em “assistencialista”. Suficiente ler as palavras do general Garrastazu Médici: “É nosso objetivo enco-rajar e revitalizar a vida sindical. (...) Não vemos o sindicato apenas 66

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como o consultório médico, o laboratório e a clínica, mas também buscamos a escola sindical, o centro cívico para recreação, esportes e cultura, bem como a cooperativa de consumo, para a qual daremos meios de estocar alimentos, roupas, medicamentos e ferramentas”. 12 Os sindicatos autênticos enfrentaram a ditadura e lutaram para reconquistar a democracia. Em 1978, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva (metalúrgico de São Bernardo do Campo, até então do grupo independente progressista), João Paulo Pires Vasconcelos (metalúrgico de João Monlevade, católico), Hugo Perez (eletricitário paulista, também independente) e Arnaldo Gonçalves (metalúrgico de Santos, do PCB) realizaram o Congresso paralelo ao da poderosa Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias (CNTI), calando os “pelegos” comandados por seu presidente Ari Campista, quando foi aprovada a Carta de Princípios que norteou os sindicatos de resistência. No Pavilhão São Cristóvão, os autênticos desafiaram ostensivamente o agente da ditadura general Ernesto Geisel, o convidado mais importante do evento. No ano seguinte, no Congresso Nacional dos Metalúrgicos, em Poços de Caldas, derrotaram mais uma vez os “pelegos”, aprovando resolução em que se pedia a anistia ampla, geral e irrestrita; em seguida, no ano 1979, no Encontro Nacional de Dirigentes Sindicais, realizado em Gragoatá, Rio de Janeiro, unanime-mente pediu-se a convocação de uma Assembleia Nacional Consti-tuinte e, finalmente, em 1981, com as mesmas lideranças, a Confe-rência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat) abriu caminho para o surgimento das centrais CUT e CGT. 13 Pouco a pouco, os sindicatos libertaram-se das intervenções e elegeram seus representantes legí-timos, assumindo o compromisso de defesa intransigente da demo-cracia. Ditadura, nunca mais!

12 Apelo feito no Dia 1° de Maio de 1970, reproduzido por Kenneth Paul Erickson, op. cit., p. 239. 13 Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico de São Paulo, e João Paulo Pires Vasconcelos, metalúrgico de João Monlevade (MG), fundariam a CUT e depois o PT. Arnaldo Gonçalves, metalúrgico de Santos, então filiado ao PCB, e Hugo Perez, eletricitário de São Paulo, do grupo independente, ainda atuam na organização sindical. Organização sindical em tempos de ditadura

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A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade Pedro Scuro Neto É preciso discutir com franqueza os erros, saber porque foram cometidos, analisar as circunstâncias que lhes deram origem, discutir a fundo os modos de corrigi-los. Lênin

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epois de muito hesitar, em 1904, Freud decidiu fazer uma viagem a Atenas, com o irmão e um sentimento misto de de-sejo, conquista e culpa. Desejo porque sempre quisera reali-

zar esse sonho, até para esquecer a atmosfera familiar e de alguma forma compensar a pobreza da sua meninice. No entanto, para o neurologista e criador da psicanálise, um dos maiores gênios da humanidade, subir a Acrópole representava muito mais: sobrepujar o pai, algo interdito a um filho na época. Nas suas palavras, galgar a rochosa colina da capital da Grécia “tinha alguma coisa de errado, de proibido no passado, de crítica de criança aos pais, de recusa a valorizar a infância mais que o devido. Algo que dava a impressão que superar o próprio pai seria a essência do sucesso, e que superá-lo seria como suplantar os limites do proibido”. 1 Muitíssimos brasileiros sentem o mesmo hoje em dia quando viajam, fazem faculdade e adquirem bens que até recentemente lhes eram interditos. Sentem e acham, como Freud, que a razão da vida melhorar não é a família nem o governo, mas o próprio esforço individual.2 Razão pela qual confiam que “no ano que vem” as coisas vão continuar melhorando, malgrado as dificuldades criadas por circunstâncias como governo, família, sorte, patrão, partidos políticos. Por outro lado, que diriam os brasileiros acerca do tenebroso período dominado por feudatários fardados, autoridades vendidas e uma burguesia de fancaria que, ao terminar, deixou a sociedade de joelhos, o país humilhado no exterior, uma inflação “incontrolável” 1 2

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Sigmund Freud (1936). A disturbance of memory on the Acropolis.. Disponível em: . Instituto Data Popular, 11/03/2014.

de 2500% ao ano (detida somente quando os perseguidos pela ditadura chegaram ao poder), uma dívida externa “impagável”, e um legado ainda não superado de violência, corrupção e impunidade? Opção pelo martírio Nesse período, os muitíssimos brasileiros que, como Freud, um dia sonharam escalar a Acrópole e conseguiram, suplantando assim os pais e o proibido, podiam apenas subir o morro. Seus pais, fossem negros ou brancos, eram considerados portadores dos “mesmos traços de caráter: preguiçosos, sonsos e ladrões, que vivem de nada e reconhecem apenas a força”.3 Constituíam uma massa que (segundo um banqueiro e ministro da Fazenda da ditadura) “no dia que descer o morro, faminta e desnorteada, tomará conta da cidade”, como se fosse “um exército de olhos arregalados, famélicos, entorpecidos e desesperados, tentando a última conquista antes da morte”. 4 Favela que para um oficial de cavalaria nomeado presidente da República tinha só uma “única solução”: “jogar uma bomba atômica”; morro, de gente que “não sabia sequer escovar os dentes” e estava ainda menos “preparada para votar”.5 No campo da resistência armada à ditadura, as ideias sobre povo não eram muito diferentes: “perplexo diante do golpe”, apesar de espezinhado e explorado, o povo brasileiro resignou-se, acreditando que “o Brasil estava numa boa”: “ninguém reagia, aceitava, eram uns carneirinhos”.6 Não admira, portanto, muitos indignados terem optado pela luta armada, nas cidades e em “regiões inóspitas, tentando dizer, num gesto de rebeldia: somos poucos, mas o Brasil não está morto, é possível resistir, por mais fortes que sejam os inimigos” da Pátria. Jovens, na sua grande maioria, sentiam que precisavam “mostrar ao mundo que aqui não estávamos arriados”, e aos compatriotas que era “muito achincalhante pertencer a uma sociedade que diga ser contra a ditadura, mas não faça porra nenhuma”. Razão pela qual “melhor morrer que viver humilhado”. Nessa época, a opção pelo martírio era preconizada também na República Socialista da Tchecoslováquia, urdida pela Igreja Católica e tendo como vítimas espontâneas os jovens Jan Palach, Jan Zajíc, 3 4 5 6

Jean-Paul Sartre (1961). Prefácio de Os condenados da terra, de Franz Fanon (Civilização Brasileira, 1979). Cf. Mario Henrique Simonsen (1986). Entrevista à revista Veja. Cf. João Batista Figueiredo, citado por Ken Serbin (2001). Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. Companhia das Letras, p. 97. Frederico Flávio (2007). Documentário Caparaó (depoimentos de guerrilheiros).

A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade

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Michal Leučik, e, vinte anos mais velho, Evžen Plocek. Os quatro queimaram-se vivos em protesto contra a “desmoralização” causada pela invasão do país pelas forças do Pacto de Varsóvia. 7 Mataram-se, porém não exatamente contra a ocupação militar, mas porque acharam que seus compatriotas haviam “desistido de lutar”. Daí o sacrifício de sua integridade física, mas “pensando no povo nas ruas, nas multidões silenciosas, de olhos tristes e caras amarradas mostrando o que não dava mais para esconder: que a gente decente estava pronta para assumir o compromisso” de superar a perda da força moral da nação.8 Os povos não demorariam (primeiramente o brasileiro e depois o tchecoslovaco) a comprometer -se com a derrubada dos regimes opressores, porém não do modo recomendado, por exemplo, pelos “malucos armados”9: romper com a “perplexidade geral” através da guerrilha urbana e da guerra popular revolucionária. Projetos irrealizáveis a não ser que os executores fossem “porra-loucas”,10 radicais que “não têm dúvidas”, que agem como bem entendem e tomam decisões sem se preocupar com a opinião de ninguém – em particular com a opinião dos dirigentes do velho Partido Comu-nista: “burocratas e oportunistas escondidos na estrutura organi-zacional”, escrevinhadores de “resoluções que permanecem no papel”. 11

Rebeldes de negócios Para os radicais, “fazer a revolução” era como subir à Acrópole, triunfar sobre o próprio destino engajando-se no movimento histó-rico e na construção de um mundo novo, feito de perdas e desen-cantos, porém jamais de desespero.12 Seria como ascender junto com o castigo, consciente da onipotência e capacidade do revolucionário de minimizar questões de estratégia ou de organização.13 Atributos 7

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Aliança militar que, em 1968, reprimiu a Primavera de Praga, processo de reformas que pretendia “construir uma sociedade socialista avançada sobre sólidas fundações econômicas” (...) um socialismo que corresponda às históricas tradições democráticas de nosso país e às experiências de outros partidos comunistas”. Alexander Dubček, secretário-geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia. Jaroslava Moserová (2003). Lembrando Jan Palach, Rádio Praga (www.radio.cz). Luiz Carlos Maciel. “Os black blocs ... são um pouco como os guerrilheiros contra a ditadura: os malucos armados”. Entrevista à revista Caros Amigos, 02/03/2014). Frederico Flávio. Depoimento de Amarantho Jorge Rodrigues, marinheiro e guerrilheiro, 2007. Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, 1969. André Malraux. La condition humaine. Gallimard, 1933. Lucia Maciel. Comunicação pessoal, 20/03/2014. Pedro Scuro Neto

incorporados no movimento estudantil, a “forma mais adiantada e organizada que a rebelião da juventude assume no Brasil”, pois os estudantes “sabiam o que estava acontecendo no contexto político nacional e internacional” e, por isso, “cabia-lhes tomar a frente dessa luta”.14 Assumindo sua histórica missão e superando outras formas de oposição política, o movimento estudantil impôs-se não pela rebeldia ou mera contestação, mas pela “potência de se opor”, por sua qualidade de “oposição incontrolável ao sistema de poder” e pelo fato que a “condição estudantil” lhe outorgava “perspectivas de luta não compar-tilhadas por outros movimentos de oposição”. Passaria a ser a “força que desvela o sistema em crise”, uma “resposta social” que perpassa todas as tendências, materializa-se na “contestação política dos jovens”15 e estabelece “uma forma possível de pronunciar-se diante do processo histórico e de constituí-lo”.16 A forma pela qual o movimento deveria se impor e constituir a realidade presente e na direção do futuro seria a própria jornada diária de seus integrantes, que não se ocupavam apenas de política, mas também de estudar e trabalhar, rompendo em definitivo com a antiga fórmula comunista de “organização de revolucionários”. 17 Otimistas, os observadores concluíam que o trabalho seria para esses estudantes emancipador e ainda “mais absorvente que o curso”, permitindo que deixassem para trás a exclusiva “perspectiva do estudante para pensar como homem de negócios”. Política permanecia “tarefa decisiva”, porém sem transformar o curso e o trabalho em “atividades secundárias”: os jovens radicais batiam o ponto todas as manhãs, cumprindo suas obrigações até mesmo na perspectiva de uma vida clandestina. Os próprios revolucionários encaravam essa dura jornada com bastante desalento. Um diplomata – que na época fez parte de “pelo menos três organizações”, criadas para opor-se ao regime militar e ao Partido Comunista – conta que jamais participou de ações armadas. Foi apenas “candidato a futuro guerrilheiro”, tinha muitas dúvidas e sempre as quis “discutir politicamente”, mas nunca pode, de vez que 14 Artur J. Poerner. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. Civilização Brasileira, 1968, p. 47. 15 Marialice M. Foracchi. A juventude na sociedade moderna. Pioneira, 1972, p. 28, 99 e 109. 16 Marialice M. Foracchi. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. Com-panhia Editora Nacional, 1965, p. 303. 17 Lênin (1902). Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento. Hucitec, 1988. A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade

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a preocupação permanente era “a própria sobrevivência”. Tanto quanto a repressão policial, a “emancipadora” jornada dos estudantes brasileiros acabaria na verdade determinando a descontinuidade dos planos de “criação de um sistema totalmente novo”, que o futuro servidor público abandonou assim que “percebeu que tudo aquilo era loucura”. A partir daí preferiu opor-se à ditadura, tomando todo cuidado para não prejudicar seus projetos particulares, que hoje incluem denunciar “as falcatruas cometidas por guerrilheiros reciclados e seus simpatizantes”. As massas e os comunistas: protagonistas No passado, “falcatruas” supostamente não existiram no campo revolucionário por conta do controle „positivo‟ da rebeldia por nobres ideais e de uma relação direta entre juventude e a luta a favor do que era bom e contra o que era ruim. Sem isso, a delinquência por certo sobressairia. Na realidade, o que separava a “energia rebelde”, presumidamente benfazeja dos estudantes, e a “delinquência juvenil” dos marginais, era somente questão de ponto de vista. Como o do „Neguinho do Jaçanã‟, dezoito anos e cumprindo pena no Carandiru, que em trânsito pela carceragem da delegacia de polícia que abrigava o DOI-Codi, observou: “o negócio de vocês (revolucionários) é contra os homens lá em cima, enquanto o meu é roubar”. O ponto de vista político, concreto e objetivo, no entanto, seria expresso pelos comunistas brasileiros, logo no início da guerrilha urbana, e outra vez em 1971, quando o caminho e a orientação esquerdistas ainda não tinham completado seu círculo vicioso. O PCB condenou, desde o princípio, o caminho e a orientação dos grupos esquerdistas. E aí estão os resultados da chamada guerrilha urbana, dos assaltos a bancos, dos atos de repercussão, do sequestro de diplomatas etc. O que era anunciado como medidas iniciais, desti-nadas a preparar o surgimento da luta armada no campo, transformou-se num fim em si mesmo. As ações desses grupos, ao invés de provocar a mobilização das massas, estimulam sua passividade e não contri-buem para a aproximação, coordenação e unidade das forças que se opõem ao regime ditatorial. Muito pelo contrário, tratando-se de ações desligadas das condições concretas da luta das massas e da situação política do país, constituem, objetivamente, contra as intenções de seus autores, uma colaboração com a ditadura. Isso porque o grupo militar dominante delas se utiliza para atenuar as divergências existentes nas Forças Armadas e manter unidas suas bases de sustentação, para

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“justificar” o regime e fortalecer seu caráter policial, para incrementar as medidas repressivas contra o povo.18 O fundamento dessa colaboração foi a rejeição compartilhada por revolucionários de esquerda e de direita à concepção comunista do mundo dividido na época em dois sistemas antagônicos, porém forçados a coexistir. Rejeição justificada pelo papel de vanguarda do “Partidão” em relação aos segmentos politicamente mais conscientes e avançados da sociedade, descartando ao mesmo tempo noções como verdades múltiplas (na linguagem reacionária atualizada: “verdades relativas”) e vanguardas alternativas (atualmente, “interesses fracionados”).19 Razões pelas quais censuravam a opção por luta armada e “ditadura do proletariado”, não por serem “pragmáticos”, mas por constituírem um partido que – segundo Lênin – “longe de pretender ensinar às massas formas de luta inventadas por „siste-matizadores de gabinete‟, aprende com a prática das massas”. O Partido Comunista não inventa nada, parte da própria vida, da luta que as massas travam por suas reivindicações econômicas imediatas e por seus interesses políticos. Somente partindo dessa realidade e sem dela se desligar é que o Partido pode como vanguarda avançar à frente do movimento espontâneo, indicar-lhe o caminho, propondo a tempo a solução dos problemas que preocupam o povo. Por tudo isso compreende-se que as formas de luta não podem ser inventadas. A luta das próprias massas – à medida que cresce a consciência das mesmas – e à medida que as crises econômicas e políticas se acentuam, gera processos sempre novos e sempre mais diversos de defesa e de ataque. As massas iriam passar, com efeito, à ofensiva e de forma cabal responder às implicâncias esquerdistas (sobre elas serem apenas um “bando de carneirinhos”) e militaristas (o brasileiro só reconhece a força e por isso mesmo carece de policiais e militares “regeneradores” e “disciplinadores”).20 Concretamente, em 1974, o eleitor repudiaria o “milagre econômico” dependente de arrocho salarial e da concentração de renda, o clima de segurança e estabilidade subordinado ao Estado policial e aos meios de propaganda, e surpre-

18 Cf. Partido Comunista Brasileiro (1971). A luta certa. Voz Operária (grifado pelo autor, da provável redação de Orlando Bonfim, membro do Comitê Central, assassinado em 1975).

19 Maria C. Tavares. A era das distopias. Inteligência, 2014. 20 A Defesa Nacional. Revista de Assuntos Militares.. Editorial (out./1913); Olavo Bilac (1965). A defesa nacional. Biblioteca do Exército. Na cultura organizacional militar, latina, o tipo ideal de oficial “regenerador” e “disciplinador” é sem dúvida o “Capitão Vidal”, personagem do filme O labirinto do fauno, de Guillermo Del Toro. A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade

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enderia a opinião pública e a própria oposição. 21 Desde as eleições de 1970 e 1972, a “via pacífica” (como a denominavam os esquer distas) vinha se ressentindo dos efeitos do AI -5, do expurgo de lideranças, da falta de candidatos para disputar todos os cargos, e das incertezas acerca da viabilidade de oposição democrática à ditadura. Em 1974, contudo, na disputa pelas 22 vagas do Senado, os candidatos do MDB saíram vitoriosos em 16 estados; na Câmara, a representação do partido saltou de 87 para 160 cadeiras, e nas assem bleias do Acre, Amazonas, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara, alcançou maioria.22 Para o comando militar, no entanto, a derrota não foi surpresa. Os resultados das urnas mostravam que o inimigo ainda era o mesmo e voltado “exclusiva, mas ativamente para o trabalho de massa, segundo a tática sempre advogada e empregada pelo PCB”.23 Razão pela qual o ditador Médici reuniu-se com Orlando Geisel, ministro do Exército, e Ernesto Geisel, seu futuro sucessor, para decidir a orga-nização de grupos e operações para exterminar, de forma extrema-mente perversa, dirigentes comunistas e mesmo simples militantes, como Neide Alves dos Santos, queimada viva por distribuir o jornal do partido. Ao mesmo tempo, os mandantes desses mesmos crimes providenciavam o desmonte da farsa eleitoral e partidária da dita-dura, o retorno ao pluripartidarismo e a progressiva formatação de um sistema oligárquico de “dominação dos eleitores pelos eleitos”.24 Um sistema de partidos e eleições organizados para impedir os eleitos de governarem sozinhos com seu partido, e obrigá-los a fazer coali-zões que “destroem a estrutura, os programas e as metas partidá-rias, levando a uma perda de identidade”.25 Crises de identidade „Crise – ou perda – de identidade‟ nada seria além de uma “graciosa expressão descritiva”26 se não considerássemos os eventos históricos 21 À exceção dos comunistas e do comando militar, todos supunham que o partido que respaldava os militares continuaria logrando ampla maioria de votos nas eleições. Carlos Matheus (2010). A eleição de 1974. No exílio, as lideranças esquerdistas prognosticavam “meio século de ditadura”, tal como Salazar em Portugal.

22 Alessandra Carvalho (2013). Partidos e abertura nos anos 1970: o MDB nas eleições de 1974 e 1978. XXVII Simpósio Nacional de História. 23 Cf. Informe 047 (1975), Centro de Informações da Aeronáutica; Amaury Ribeiro Jr. A ordem é matar. IstoÉ, 24/03/2004. 24 Robert Michels. Political parties: a sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy. Batoche Books, 2001, p. 241. 25 Marilena Chauí. Entrevista à revista Cult, n. 182, 2013. 26 Robert A. Nisbet. A sense of personal sameness. New York Times, 31/03/1968.

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e as mudanças do efetivo contexto social, especificamente da estru-tura de papéis que indivíduos e grupos desempenham e através dos quais exercem influência.27 Só assim justifica-se a ênfase em „identi-dade‟ (eu, caráter, personalidade) na condição de membro de um grupo, concretamente a consciência de si condicionada à probabili-dade ou possibilidade de “subir na vida”, cujo melhor indicador público é o salário, o fruto do trabalho e da autoestima. Nesse sentido, chega--se a argumentar, como um chefe de estado-maior, que o „sagrado holerite‟ é o gradiente das crises de sociabilidade e de existência dos militares brasileiros: sem ele “os oficiais não têm como socializar-se com pessoas do mesmo nível intelectual” (medida de variação de inte-ligência) nem “como atualizar-se na perspectiva da guerra, algo que jamais acontece” (medida de variação de belicosidade).

Atualmente, no Brasil, as oligarquias são vistas como contextos privilegiados para „subir a Acrópole‟; inclusive o campo da política, em que hoje “todo mundo quer muito dinheiro para se eleger alguma coisa, todo mundo quer facilidade daqui, facilidade dali”. 28 A democracia representativa tornou-se – como há cem anos previra Michels para o caso dos partidos políticos29 – uma fachada para legitimar o domínio, o bem-estar e os privilégios das “elites” do serviço público, cujas bases foram dadas pela “reforma do Estado” e seus “rígidos critérios de mérito”, “sistema estruturado e universal de remuneração”, “carreiras”, “avaliação constante de desempenho” e “treinamento sistemático”. Reforma a que os oficiais militares contrapuseram – do mesmo modo que nos golpes e durante a ditadura – suas “crises de identidade”, culpando em especial as elites por sua “desinformação sobre as Forças Armadas”, e deles exigindo ser oligarquia em separado, após o que passaram a viver, segundo um ministro da Marinha, “quase no paraíso”.30 Até então, os comandantes militares esgoelavam-se criticando a própria corporação, que definiam como “a classe de vagabundos mais bem remunerada que existe no país”,31 termos soezes que refletem “a contribuição cada vez menos relevante para a sociedade” de uma gigantesca repartição pública “incapaz de atuar com pres teza e eficácia em situações que constituem o motivo de ser de uma força militar”. As crises de identidade deram lugar à consciência de 27 Pedro Scuro Neto. Sociologia ativa e didática. Saraiva (cap. VIII, ação social: fundamentos normativos), 2004. 28 Luiz Inácio Lula da Silva. Entrevista à CartaCapital, 30/05/2014. 29

Political

parties..

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Batoche, 2001 (1915).

30 Folha de S.. Paulo, 09/09/1995. 31 Leônidas Pires Gonçalves (citado por Jair Bolsonaro). Entrevista à Veja, 27/10/1987.

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“perda do sentido de serventia perante a sociedade”, expresso no fato dos oficiais militares – cujos salários estão entre os mais elevados do mundo (e mais desiguais em relação aos praças) – trabalharem boa parte do ano em regime de meio expediente, impe-dindo o pleno exercício da profissão e passando “atestado de irrele - vância e precária imprescindibilidade”.32 o0o Sociologia é uma ciência conservadora quanto a suas consequências para a ordem institucional, imperativo primário da vida social, porém subversiva em relação aos discursos e padrões de pensamento estabelecidos.33 Em ambos os sentidos ela se parece muito com o que foi o Partido Comunista, e como ele ela não inventa nada, parte da própria vida, no caso o trágico período em que a sociedade brasileira foi exposta a terríveis incertezas e graves conflitos dos quais somente nas últimas décadas lentamente vem se recuperando. O mesmo com respeito aos grupos, em particular oficiais militares, cujas „crises de identidade‟ e „subidas na vida‟ tanto custaram à nação e a seus melhores filhos. Isso é, contudo, uma outra história.

32 Estado maior do Exército. O processo de transformação do Exército, 2010, p. 19-20. 33 Peter L. Berger. Sociology and freedom. The American Sociologist, 6(1), 1971.

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Cultura e artes no regime militar – 50 anos do golpe –

Martin Cezar Feijó

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ntre 22 e 25 de abril de 2014, foi realizado no campus de Ma-rília, SP, na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade do Estado de São Paulo (FFC-Unesp), um colóquio que reuniu

pesquisadores de várias instituições de ensino e de pesquisa, com o tema “A cultura e as artes no regime militar – 50 anos do golpe”. Como o foco era a indústria cultural, o mercado e a resistência – principalmente a cultural – à ditadura, minha comunicação versou sobre um evento comercial que adquiriu uma condição de emblemático na resistência ao regime, em sua fase mais dura, também conhecida como “anos de chumbo”. Um período marcado por profundas contradições: de um lado, um governo que reprimia como nunca em nossa história, de outro lado uma música popular em sua fase de imensa criatividade e diversidade. Da crítica á utilização de guitarras na música popular à censura imposta pela ditadura militar, a MPB viveu, entre os anos 60 e os 80 do século passado, um período áureo, de criatividade intensa para fazer frente à perseguição do regime, em que a parte mais visível foi a censura, já bastante estudada. Os festivais de música se tornaram um momento de manifestações públicas toleradas, e canções que marcaram época, tornando celebridades vários compositores que surgiram no período pós-Bossa Nova, em que o tropicalismo foi relacionado ao contexto internacional da cultura pop, nos dois sentidos, do artístico ao comercial. Um evento “espetacular”, organizado por uma grande gravadora internacional – então Phillips, atual Universal Music –, que tinha entre seus músicos os maiores nomes de então, resolveu promover em São Paulo um grande evento musical, sem concorrência entre os participantes, diverso dos festivais anteriores, que ocorreu no Palácio de Convenções do Anhembi, então inaugurado como um espaço para grandes eventos, nos dias 11, 12 e 13 de maio de 1973: “Phono 73 – O Canto de um Povo”.

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Imagem emblemática da resistência cultural Uma imagem emblemática do evento pode ser destacada pela apresentação de uma dupla de compositores tentando dar o seu recado: Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil. A música era “Cálice”, composta pelos dois exatamente para o evento. O motivo original da composição era de que parcerias não muito comuns, a não ser por serem de artistas contratados pela então Phillips, deveriam compor uma obra original exclusivamente para o evento. Os organi-zadores artísticos do evento – entre eles, André Midani e Roberto Menescal – convidaram Gilberto Gil para se apresentar conjunta-mente com Chico Buarque de Holanda, duas feras da MPB, mas que atuavam em faixas consideradas diversas; um tropicalista voltando do exílio, outro, o compositor mais censurado pela ditadura. A base da música a ser apresentada foi criada por Gilberto Gil, em uma sexta-feira santa, 20 de abril de 1973, quando Gil teve a ideia que ele levaria ao Chico, no dia seguinte. Eles tinham marcado uma reunião para o sábado de aleluia (21/4) na casa de Chico Buarque, para discutirem a música inédita que deveriam apresentar no Phono- 73. Gil teve a ideia com um refrão bíblico: “Pai, afasta de mim este cálice”, que apresentou na reunião. Do substantivo – “Cálice”, Chico observou o verbo – “Cale-se”. Da Semana Santa á censura foi um passo inevitável: o tema principal da música. A canção foi apresentada, como era obrigatório, aos censores, que a vetaram, por entenderem uma crítica ao regime. A censura vetou a música para ser apresentada no evento do Anhembi. Mesmo assim, sem a letra, os dois apresentaram a melodia, o que a princípio foi entendido pelo público. A apresentação da dupla se deu na sexta-feira, 11 de maio. Tão logo ficou claro aos censores a manobra dos cantores, o som foi cortado. As luzes foram apagadas. Mas o recado havia sido dado. E a ditadura perdeu mais uma vez. A música censurada Mas o que incomodava tanto na letra de “Cálice”? Um refrão de origem bíblica em um país que se diz religioso, principalmente cristão, um canto de dor de uma fala de Jesus no Monte das Oliveiras antes de ser preso, antes torturado e depois crucificado pelos que detinham poder em sua época. Vestiram a carapuça, claro.

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Pai, afasta de mim este cálice. Afasta de mim este cálice, Afasta de mim este cálice De vinho, tinto de sangue. Como beber desta bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta. De que vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta. Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Deixa eu lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Este silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra qualquer momento Ver emergir o monstro da Lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico do mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer de meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça.

As primeiras estrofes são de Gil, a sexta e a sétima também. As estrofes de Chico começam na quarta e a quinta, assim como a oitava e nona. De qualquer forma, uma obra-prima dos dois como uma das mais importantes canções da história da música popular brasileira, por várias implicações, da motivação à força simbólica que carrega no contexto da ditadura militar. A metáfora de Deus como pai “A metáfora do Deus por trás, de um poder que tudo pode Cultura e artes no regime militar – 50 anos do golpe –

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fazer através do homem, está implícita na insistência de Jesus quanto ao tratamento de Deus como um „pai‟, a fonte oculta de sua própria energia” (FRYE, 2004, p. 167). A relação entre o vinho e o sangue: a imagem central do Evangelho é da transformação, seja a da água em vinho ou a do vinho em sangue. Uma coisa pode vir a ser a outra, essa é a grande lição bíblica nesse sentido, ou ainda, uma coisa pode revelar-se outra (Ibidem, p. 275). O símbolo criado sugere exatamente o que os censores perceberam: a resistência. Como afirmou o marxista Walter Benjamin, ao analisar o conceito de história: “a existência inteira de um indivíduo cabe numa de suas obras, num de seus fatos, (e) como existência, insere-se uma época inteira” (DOSSE, 2009, p. 11). Daí o caráter emblemático do momento em que dois artistas extraordinários denunciam e revelam a fragilidade de um regime fadado ao fracasso. A fim da era dos festivais e o fim de um período O fim da era dos festivais pode ser marcado pelo VII Festival Internacional da Canção, da Rede Globo de Televisão, em 1972, último festival, em que ocorreram vários incidentes: problemas de censura, violência de seguranças com um dos jurados, demissão de Nara Leão por imposição do governo etc. Não era só um modelo de lançamento de músicas que terminava, era também um formato que se alterava do ponto de vista do mercado. Para o músico Magro, do MPB4, “a diferença entre os festi vais da Record e os que fizeram depois é que, naqueles, a música mandava. Quando o processo se inverteu, acabou” (HOMEM DE MELLO, 2003, p. 434). Passados 50 anos do golpe militar, pouco mais de quarenta anos da resistência política e cultural de dois bravos músicos brasileiros, ainda atuantes na cultura brasileira de várias formas, qual o contexto cultural em que vivemos? Sem grandes obras culturais, mas como uma equivocada defesa de censura!... Em 2013, os mais importantes compositores musicais do país, entre os que resistiram e os que nada fizeram contra a ditadura, uma aliança espantosa se operou naquilo que ficou conhecido como a “polêmica das biografias”, em que artistas que tiveram um papel extraordinário na resistência a uma ditadura, resolvem assumir um papel de censores causando perplexidade entre seus múltiplos fãs.

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E tudo começou com um processo jurídico, de proporções kafkianas do cantor Roberto Carlos contra um historiador que havia realizado sua mais completa biografia, Paulo César de Araújo, que a conta em detalhes em seu livro O réu e o rei (2014). Os artistas, como que esquecendo seus importantes papéis em um momento sombrio da história brasileira, resolveram, sob comando de uma produtora cultural, que havia sido casada com Caetano Veloso, defender a “privacidade” (na verdade, defender uma nova censura) e combater uma mudança na legislação que tornasse o Brasil mais compatível com o mundo democrático: a livre expressão das ideias.

Um equívoco total, e mostra cabal da confusão ideológica que o país dos últimos anos se atolou, cujo diagnóstico ainda é cedo para com clareza se compreender, mas também é decisivo para se entender o que nos aguarda neste século XXI que se inicia. É claro que a erosão do público/privado, uma marca desses tempos de revolução tecnológica e mídias sociais, é algo importante e merece ser debatido, mas que não seja por meio de medidas burocráticas ou autoritárias (e censura é uma delas), que o quadro vai se esclarecer, antes ele se turva ainda mais. Mas uma coisa é certa, a música “Cálice” continua atual, e sua mensagem, fundamental, como há mais de quarenta anos atrás, é preciso afastar sempre os fantasmas da ditadura que ainda nos espreitam em cada esquina, mesmo quando partem de artistas brilhantes que, em algum momento de suas vidas, desempenharam um papel do qual não têm nenhum motivo para se envergonhar; pelo contrário, para se orgulhar e orgulhar a todos os que lutaram contra a ditadura; e, principalmente, aos que nasceram depois, e que hoje se beneficiam de uma democracia, ainda que imperfeita, duramente conquistada. Referências ALBUQUERQUE, Célio (Org.) 1973 – O ano que reinventou a MPB.. A história por trás dos discos que transformaram a nossa cultura.. Rio de Janeiro: Sonora, 2013. ARAÚJO, Paulo Cesar de. O réu e o rei.. Minha história com Roberto Carlos, em detalhes.. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

COSTA, Caio Túlio. Cale-se.. A saga de Vannuchi Leme.. A USP como aldeia gaulesa.. O show proibido de Gilberto Gil.. São Paulo: Giraffa, 2003. Cultura e artes no regime militar – 50 anos do golpe –

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DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Almeida. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. FRYE, Northrop. Código dos códigos.. A Bíblia e a literatura.. Tradução e notas de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. (As ilusões armadas, v. 2) MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais.. Uma parábola.. São Paulo: 34, 2003.

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IV. Questões da Cidadania e do Estado de Direito

Autores Leone Sousa Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)..

Maria Francisca Pinheiro Coelho Doutora em Sociologia, professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília..

Marilde Loiola de Menezes Doutora em Sociologia, professora do Instituto de Ciência Politica da Universidade de Brasília..

Paulo César Nascimento Professor adjunto do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília..

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania Marilde Loiola de Menezes

N

o estudo sobre a cidadania no Brasil, podemos destacar três

importantes

abordagens. A primeira referência obrigatória da produção nacional sobre cidadania, Wanderley Guilherme dos Santos (1979) revela ser a experiência republicana brasileira de-

senvolvida sob a égide do que o autor denomina de cidadania regulada. Na esteira dessa reflexão, José Murilo Carvalho (2001) considera a cidadania brasileira como parcial, passiva, inacabada. Uma segunda abordagem realça a participação política inaugurando um novo modelo de cidadania participativa no Brasil (DAGNINO, 1994; GOHN, 2013). A terceira abordagem, iniciada pela análise de Marcelo Neves (1994) e Jessé Souza (2003), afirma ser a subcidadania a principal característica do processo de modernização no Brasil. Através da análise dessas três abordagens emblemáticas no estudo da cidadania brasileira, este artigo procura demonstrar que, a despeito dos novos espaços de exercício da cidadania que surgem no Brasil, sobretudo após a Constituição promulgada em 1988, persistem os aspectos históricos estruturais que dificultam o rompimento entre a cidadania regulada, participativa e desigual. Vale ainda ressaltar que os autores destacados ao longo desse artigo não esgotam o debate sobre a cidadania no Brasil. Mesmo assim, a escolha não se deu de forma arbitrária: além da relevância teórica, os textos foram escolhidos levando em conta a especificidade da análise que pretendo desenvolver no artigo. 85

Cidadania regulada Wanderley Guilherme dos Santos é considerado um clássico no estudo da cidadania no Brasil. Em Cidadania e Justiça , o autor analisa a política social brasileira, fazendo um percurso histórico desde a República Velha (Revolução de 30) até o período pós 1964, denominado pelo autor de Acumulação e Equidade na Ordem Social Brasileira. Para ele, a tentativa mal sucedida da República Velha de organizar a vida econômica e social do país, segundo princípios laissez-fairianos ortodoxos, leva ao então chefe de governo revolucionário, Getúlio Vargas, a pôr em prática uma politica de intervenção do Estado na vida econômica, com o propósito de estimular a industrialização e a diferenciação econômica nacional. Um dos gargalos a ser enfrentado pela nova política era o descom-passo entre a penetração das leis de mercado e o ritmo de implan-tação da ordem capitalista na área urbana. Assim, apesar do fracasso na implementação de um ordenamento no caótico processo de acumulação, após 1923, podia-se observar um avanço efetivo no que concerne à criação de uma política cujos benefícios iriam redefinir a condição de cidadão no Brasil: o surgimento das Caixas de Aposen-tadorias e Pensões (CAPs) subsidiadas pelo Estado. Para Santos, tais benefícios se constituíam numa espécie de “dádiva” do sistema que se perfilava em sentido oposto ao aumento progressivo da repressão do poder público às demandas dos trabalhadores referentes ao processo produtivo. Assim, a extensão da cidadania no Brasil ocorre via regulamentação de novas profissões e/ou ocupações cujo reconhecimento é definido pelos direitos associados à profissão e não exatamente por meio de uma expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. São considerados, assim, “pré -cidadãos” todos aqueles cuja profissão não é reconhecida na forma da lei”. 1 A regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato moldam os parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a cidadania. Tais barreiras definidoras da entrada na arena politica, via regulamentação das profissões, permitiam que todas as demandas relativas a emprego, salário, renda e benefícios sociais ficassem na dependência de um reconhecimento prévio por parte do Estado. E era esse mesmo Estado, conclui o autor, que definia quem era e 1

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SANTOS, Wanderlei Guilherme. Cidadania e justiça – a política social na ordem brasileira.. Rio de Janeiro: Campos, 1987, p. 75. Marilde Loiola de Menezes

quem não era cidadão, via profissão. Estava assim definido o escopo da cidadania regulada. Em Caminhos da Cidadania, José Murilo de Carvalho caracteriza o regime do Estado Novo como um misto de repressão e paternalismo. De 1937 a 1945, o país viveu sob um regime ditatorial civil com o apoio das forças armadas. O governo legislava por decreto e a imprensa era continuamente censurada. Tratava-se de um governo autoritário tendo, entretanto, vastas diferenças, assinala o autor, entre o fascismo e o nazismo ou mesmo do comunismo. 2 Destaca, como uma das particularidades do autoritarismo estado--novista, o esforço em organizar patrões e operários por meio de uma versão local do cooperativismo. Nesse contexto, empregados e patrões eram obrigados a filiar-se a sindicatos colocados sob o controle do governo. A ideologia predominante rejeitava a ideia do povo nas ruas, ao mesmo tempo em que insistia na cooperação entre trabalhadores e patrões, sob a égide do controle do Estado. Por outro lado, a política era literalmente eliminada e os direitos políticos sofreram um retrocesso expressivo, não acontecendo o mesmo com os direitos sociais. Registra-se, nesse período, a existência de uma vasta legislação, culminando com a promulgação na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1943. Esse período foi marcado por um grande avanço da legislação social, desenvolvido em um ambiente de baixíssima participação política e de precária vigência dos direitos civis. Influenciado pelo positivismo ortodoxo, promotor da busca de soluções pacíficas para os conflitos sociais via cooperação entre trabalhadores e patrões, as relações entre capital e trabalho deveriam ser harmônicas, cabendo ao Estado o papel de regulação e arbitramento. A organização sindical deveria ser o principal vetor dessa harmonia transformando-se no signo de cooperação entre as duas classes e o Estado. Uma das consequências naturais desse processo foi a excessiva valorização do Poder Executivo. Para o autor, como os direitos sociais foram implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas decorativo, consolidou-se o fascínio por um “Executivo forte”. Tal orientação reforçaria a longa tradição, portuguesa ou ibérica, do patrimonialismo.

2

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania

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Carvalho conclui assim que essa cultura, orientada mais para o Estado do que para a representação, conduz a visão do Estado como todo poderoso e distribuidor paternalista de emprego e favores a que o autor denomina de estadania, em contraste com o projeto construtivo de uma cidadania ativa. Cidadania e movimentos sociais Nas últimas décadas, uma importante vertente no estudo da cidadania brasileira tem se voltado para a ação dos movimentos sociais em sua luta para ampliar a cidadania. Evelina Dagnino e Maria da Glória Gohn, são representantes expressivas dessa abordagem.

Em pesquisa publicada em 1994, Dagnino propõe a redefinição de novos parâmetros do campo teórico e político no qual a noção de cidadania emerge, especialmente a partir da década de 80. Para a autora, a abordagem contemporânea de cidadania se organiza em torno de novas estratégias de construção democrática, “firmando um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política”. Tais dimensões estariam intrinsecamente ligadas à experiência concreta dos movimentos sociais, tanto os do tipo urbano quanto os de mulheres, negros, homossexuais, ecológicos etc. Subjacentes à organização desses movimentos sociais estaria a luta por direitos à igualdade como o direito à diferença, base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania. Em função das desigualdades econômicas, a questão da cultura democrática no Brasil assume um caráter crucial cujos aspectos mais visíveis se expressam no que a autora denomina de autoritarismo social: Profundamente enraizado na cultura brasileira e baseado predominantemente em critérios de classe, raça e gênero, esse autoritarismo social se expressa num sistema de classificação que estabelece diferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade.3

Esse autoritarismo social engendra formas de sociabilidade por meio das quais se desenvolve uma cultura autoritária de exclusão, ao mesmo tempo em que reproduz a desigualdade nas relações sociais em todos os seus níveis.

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DAGNINO, Evelina. Anos 90 – Política e sociedade no Brasil.. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 104. Marilde Loiola de Menezes

Por outro lado, a consideração dessa dimensão politico cultural significaria igualmente uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto de práticas sociais e culturais, em oposição à exclusão política, no sentido estrito. 4

Nessa linha de reflexão, Maria da Glória Gohn recupera a trajetória dos movimentos sociais, nas últimas três décadas, assinalando os “fragmentos do processo de construção da cidadania no Brasil”. 5 Para a autora, a cidadania plena não pode ser passiva nem se limitar ao voto. Este seria apenas uma das dimensões do cidadão, a dimensão civil. A cidadania relaciona- se diretamente com a participação dos indivíduos na esfera pública e com o exercício dos direitos. Sendo a cidadania portadora da universalidade dos direitos, não existe o cidadão de segunda categoria, pois este seria o não cidadão ou um cidadão menor: “O conceito republicano de cidadão não é aquele que usa a liberdade só para desempenho de pessoa privada, mas é aquele que tem na participação uma prática comum”. 6 Gohn desenvolve sua tese ancorada na importância da sociedade civil como impulsionadora de mudanças e inovações. A cidadania requer, assim, uma ativa formação de cidadãos, conscientes de seus direitos e deveres e protagonistas da sua história. Recuperando a trajetória histórica da saída dos militares do poder, a autora aponta uma sensível alteração na sociedade civil com ampliação do leque de atores sociais que culmina nos anos 90. A progressiva construção de canais de participação e representação exigia assim novas posturas e novas agendas por parte dos movimentos sociais. Esse novo cenário seria o responsável pela ampliação da sociedade civil, desenvolvendo o espaço público não estatal expresso nos conselhos, fóruns, redes de articulação etc. Nesse contexto, coube à sociedade civil um papel essencial nesse reequacionamento e ampliação da cidadania no Brasil: São as ONGS, os movimentos sociais, as comissões, grupos e entidades de Direitos Humanos, grupos de defesa dos direitos excluídos, por diferentes causas como: gênero, raça, etnia, religião, portadores de necessidades físicas especiais, inúmeras associa4

5 6

A reflexão tem como base teórica-metodológica uma pesquisa coordenada pela autora sobre cultura democrática e cidadania, realizada em junho de 1993, em Campi-nas: São Paulo. GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15, n. 33, dez./2013, p. 261. Op. cit., p. 262.

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ções com perfis variados, entidades do chamado Terceiro Setor, fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais. Entidades ambientalistas, de defesa do patrimônio histórico, redes comunitárias nos bairros, conselhos populares, conselhos setorizados, conselhos gestores institucionalizados.7

Mesmo considerando o “caráter educativo” das ações coletivas no Brasil, organizados sob a forma de movimentos sociais, Gohn chama atenção para seu caráter contraditório: entidades que buscam a mera integração dos excluídos por meio da participação comunitária em políticas sociais exclusivamente compensatórias, convivem com entidades, redes e fóruns sociais que buscam a trans-formação social “inspirados em um novo modelo civilizatório onde a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis”.8 A subcidadania Ao tratar do tema da cidadania no Brasil, Marcelo Neves parece ir muito além da abordagem dos autores até agora apresentados. Para Neves, não se trata de uma subtração ou passividade em relação à cidadania e sim de sua total ausência. Definindo a cidadania como integração jurídica igualitária na sociedade, Neves afirma que, em especial no Brasil e nos demais países periféricos, ela estaria ausente quando se generalizam as relações de subintegração e sobreintegração no sistema constitucional. Assim, do lado dos subintegrados estariam os subcidadãos, isto é, aqueles que são excluídos no exercício dos direitos funda-mentais constitucionalmente declarados, mas que, por outro lado não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente às suas estruturas punitivas. Essa “regra” valeria para o sistema jurídico como um todo: Os membros das camadas populares “marginalizadas” (a maioria da população) são integrados ao sistema, em regra, como devedores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc., não como detentores de direitos, credores ou autores.9 7 8 9

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GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15, n. 33, dez./2013, p. 265. Op. cit., p. 383. NEVES, Marcelo. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente. Dados, v. 37, n. 2, 1994, p. 260-261. Marilde Loiola de Menezes

Por outro lado, a subintegração das massas seria inseparável da sobreintegração dos grupos privilegiados, que, principalmente com o apoio da burocracia estatal, “desenvolvem suas ações bloqueantes da reprodução do Direito”.10 No caso específico do Brasil, mesmo que a cidadania esteja definida como integração jurídica igualitária na sociedade, para o autor, ela estaria ausente quando se generalizam relações de subintegração e sobreintegração no sistema constitucional. Essas relações assimétricas que se estabelecem entre os grupos, Neves as interpreta como ausência de cidadania. Jessé Souza problematiza a questão da subcidadania, substituindo as relações subintegraçao e sobreintegração relativas ao sistema constitucional, proposto por Neves, pela relação centro-periferia relativas ao sistema mundial do chamado “mundo livre” do pós-guerra. Tendo como referências analíticas as teorias sobre a modernização, cujos fundamentos estão ancorados na ideia de uma oposição antinômica entre um núcleo tradicional e pré-moderno e outro núcleo moderno norteador das relações entre o centro e a periferia, Souza inverte essa relação: para ele o processo de naturalização da desigual-dade social de países periféricos de modernização recente, como o Brasil, pode ser mais adequadamente percebida como consequência, não a partir de uma suposta herança pré- moderna. Ao contrário ela seria resultante de um efetivo processo de modernização de grandes proporções cujo início se daria no século XIX. A partir dessa perspectiva, Souza insurge -se contra os defensores da tese do personalismo e do culturalismo essencialista de que o Brasil seria uma continuação cultural de Portugal: tanto no “patri-monialismo transplantado” de Raimundo Faoro, como no homem cordial e “familísticamente emotivo” de Sérgio Buarque. No caso específico de Gilberto Freyre, a tese da continuidade essencial entre

Brasil e Portugal serviria como fundamento maior para a proposição de uma “fantasia compensatória”, transformada em “ideologia de Estado a partir de 1930”.11 Em contrapartida, o autor constrói a sua tese da singularidade da formação social brasileira no sentido oposto à tese de continuidade orgânica vis à vis à metrópole europeia. Entretanto, sua principal

10 Ibidem. 11 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia politica da modernidade perférica.. Minas Gerais/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2003, p. 102.

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fonte de inspiração, Gilberto Freyre, é sentenciado pelo autor como “ideólogo da singularidade universal do legado luso-brasileiro”: Nesse sentido, o meu uso de sua extensa obra será guiado pela tentativa de usar Freyre contra Freyre, ou seja, pretendo usar aspectos da sua obra na dimensão descritiva sem necessariamente compartilhar com as generalizações e avaliações que o próprio Freyre retira deste mesmo material empírico.

Em oposição aos já considerados clássicos do pensamento social brasileiro, para Jessé Souza os princípios estruturantes da sociedade brasileira não seriam o personalismo nem o patrimonialismo: A meus olhos, é a circunstancia da “naturalização” da desigualdade periférica que não chega à consciência de suas vítimas, precisa-mente porque construída segundo as formas impessoais e peculiar-mente opacas e intransparentes, devido à ação, também no capita-lismo periférico, de uma “ideologia espontânea do capitalismo” que transverte de universal e neutro o que é contingente e particular.12

Essa “ideologia espontânea”, articulada com as práticas institucionais importadas e operantes na modernidade periférica, constrói, nas palavras do autor, “um extraordinário contexto de obscurecimento das causas da desigualdade, seja para os privilegiados, seja também, e muito especialmente, para as vítimas desse processo”. Para Jessé Souza, este constitui o ponto central da questão da naturalização da desigualdade no Brasil. Regulação, participação, subcidadania A análise feita nesse artigo permite ilustrar, de forma bastante sintética, três abordagens sobre a cidadania no Brasil. A primeira delas, representada por Wanderley Guilherme dos Santos, nos oferece não somente uma análise significativa sobre a cidadania regulada, mas um excelente panorama dos fundamentos da política social brasileira. José Murilo de Carvalho nos permite vislumbrar o percurso histórico de 178 anos de uma cidadania amistosa, conciliadora, inacabada, ao mesmo tempo em que aponta a incapacidade do sistema representativo brasileiro no combate à redução das desigualdades sociais.

12 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia politica da modernidade perférica.. Minas Gerais/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2003, p. 179.

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Evelina Dagnino discute o conceito de cidadania indicando sua inevitável conexão com a democracia e os movimentos sociais. Demonstra como a cidadania está intrinsecamente ligada à experiência concreta dos movimentos sociais. Maria da Glória Gohn recupera o processo de construção da cidadania no Brasil, nas últimas três décadas, destacando a participação da sociedade civil organizada.

Na última abordagem, Marcelo Neves denuncia a ausência de cidadania especialmente no sistema jurídico constitucional. Em Jessé de Souza, a subcidadania se converte em marco teórico para o estudo do processo de modernização periférica a partir de um sinuoso processo de naturalização da desigualdade social, sobretudo em países periféricos de modernização recente. Se analisarmos a linha do tempo nessas três abordagens podemos identificar certa continuidade no que diz respeito à questão que, no meu ponto vista, alicerça as três abordagens: a desigualdade social (Neves e Souza). No que concerne à cidadania regulada ou parcial (Santos e Carvalho), poderíamos “reciclar” esse estudo com dados atuais: mesmo que as análises estatísticas demonstrem a diminuição da pobreza no Brasil nos últimos anos, a desigualdade continua sendo abissal em termos do estabelecimento dos pilares básicos da tão propalada isonomia entre os cidadãos. Quanto à capacidade dos movimentos sociais em potencializar mudanças de ordem estrutural de construção democrática e de transformação social (Dagnino e Gohn), as demandas variadas das “manifestações de junho” demonstram as dificuldades na construção de uma pauta política promotora de transformação social. A partir das argumentações aqui analisadas, podemos concluir que a exigência de uma cidadania ativa está intrinsecamente vincu-lada à condição sine qua non do quesito básico fundador da demo-cracia moderna: a igualdade entre os cidadãos. Os diagnósticos parecem claros e procedentes embora persistam os aspectos histó-ricos estruturais que dificultam o rompimento entre a cidadania regu-lada ou subcidadania na direção de uma cidadania participativa.

No momento, nos falta uma resposta viável, capaz de superar tais dificuldades. A nossa hipótese é que uma expressiva maioria dos brasileiros convive com o sentimento de presenciar uma sociedade injusta, desigual, sem que esse julgamento possa conduzir a escolhas e ações políticas suscetíveis à promoção da igualdade social.

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania

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As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo Leone Sousa

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m junho do ano passado, cerca de um milhão e meio de pes-soas

saíram às ruas, em mais de cem cidades brasileiras, protestando contra a má qualidade dos serviços públicos de saúde, transporte e educação e contra a corrupção na administração pública e a impunidade dos políticos. A surpreendente onda de ma-nifestações populares – que teve como estopim o aumento das tarifas dos transportes urbanos em São Paulo e a violência policial contra esses primeiros manifestantes – revelou-se também uma explosão de descontentamento com os gastos excessivos para a realização da Copa do Mundo e a posição submissa dos governantes brasileiros em

relação às exigências da Fifa. O inusitado fenômeno surpreendeu políticos, acadêmicos e jornalistas, desencadeando diversas análises que, em geral, ressaltavam o repúdio dos manifestantes, na sua maioria jovens, aos partidos políticos, à ausência de um programa e de uma ideologia, assim como à falta de lideranças explícitas. De fato, como apontou o sociólogo espanhol Manuel Castells,1 as chamadas Jornadas de Junho seriam a versão brasileira de um novo tipo de movimento social, aos moldes dos Indignados, na Espanha, e do Occupy Wall Street, em Nova York. Nesses três casos, manifestantes eram convocados às ruas por “anônimos”, pelas redes sociais virtuais (Facebook, Twitter etc.), e todos demonstravam a mesma obstinada rejeição às instituições políticas partidárias. No entanto, os protestos no Brasil ofereceram uma novidade em relação aos casos estudados por Castells. Refiro-me ao forte sentimento nacionalista, exibido pelos jovens manifestantes brasileiros, que iam às ruas pintados e/ou vestidos de verde e amarelo e que carregavam, orgulhosos, a bandeira nacional, cantando repetidamente o hino pátrio. 1

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Manuel Castells, entrevista no site Fronteiras do Pensamento sobre manifesta-ções no Brasil e o lançamento do seu livro: Indignação e esperança – movimentos sociais na era da internet (Zahar, 2013) .

Por que, em uma época de globalização e intensa comunicação via redes internacionais, o nacionalismo continuaria inspirando manifestações conduzidas, em sua maioria, por uma classe média já inserida em um contexto cultural global? É justamente essa faceta das manifestações, pouco estudada pelos analistas, que busco examinar neste artigo. Sem dúvida, toda essa exibição contundente de nacionalismo, nas passeatas de junho de 2013, não passou desapercebida, especialmente por setores da esquerda. Surpreendidos pelo movimento em geral, muitos autores interpretaram o fenômeno como prova da sua ligação com “a direita” ou com “a ditadura militar,” que “manipulam a consciência dos jovens”.2 Houve quem acusasse “grupos direitistas” de “preparar um golpe”, e de “querer anular a esquerda… dando ao protesto o caráter de um não protesto, uma manifestação de „todos os brasileiros‟”.3 É o que parece sugerir também a filósofa petista Marilena Chauí: “parte dos manifestantes está adotando a posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira nacional, de que „meu partido é meu país‟, ignorando, talvez, que essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os partidos políticos…”.4 (grifo meu) Um ano depois, podemos constatar que a tal “direita” não era tão influente no movimento e que o nacionalismo dos manifestantes nada tinha de perigoso. O problema é que muitos autores ainda acreditam ser o nacionalismo um fenômeno ultrapassado em tempos de globalização e intensa comunicação via redes internacionais e que, portanto, qualquer tentativa de revivê-lo seria, por essência, um movimento reacionário, senão fascista. Este tipo de lógica, no entanto, revela o desconhecimento do pensamento contemporâneo a respeito tanto do nacionalismo quanto da globalização. Por exemplo, a socióloga americana Liah Greenfeld, especializada no estudo do nacionalismo, nos ensina que o fenômeno surgiu originariamente na Inglaterra do século XVI, quando o termo 2 3

4

Ver, por exemplo, . Ver: . Marilena Chauí: As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Disponível em: .

As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo

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nação passou a significar pela primeira vez a ideia de “povo soberano”, fato intrinsecamente associado ao surgimento da democracia representativa naquele país. O conceito moderno de nação foi, então, transportado para as colônias americanas, adotado pelos revolucionários franceses de 1798 e copiado pelo mundo inteiro, incluindo os líderes de todas as guerras anticoloniais. Surgem, desta forma, os Estados -nações, que se fundamentam nos conceitos de soberania popular e de cidadania. O fato de a ditadura militar ter se apoderado do simbolismo nacionalista não significa, portanto, que o sentido original, positivo, do sentimento não possa ser resgatado justamente no momento em que a sociedade brasileira clama por esses mesmos direitos universais de cidadania, como saúde, educação e transportes. É possível, também, que esse apelo ao nacionalismo venha expressar um descontentamento com o tipo de política setorizada que se tornou hegemônica nos governos de Lula e Dilma. Como defende o sociólogo Demétrio Magnoli: “o lulopetismo propõe que cada setor da sociedade se organize em torno de uma identidade fragmentada – mulheres, negros, índios, estudantes, sem-terra etc. –, em movimentos sociais ou ONGs, cuja direção seja engajada em negociações com o governo”.5 Desta forma, as administrações petistas teriam negligen-ciado com relação aos já mencionados direitos básicos universais.

Para melhor compreender porque o nacionalismo continua inspirando manifestações é preciso entender que a globalização também reforça, ao mesmo tempo em que debilita ou ameaça, as aspirações nacionais. A arrogância dos dirigentes da Fifa e a subserviência dos governantes brasileiros mexeram com o orgulho nacional. Especialmente porque, como vários autores já apontaram, a identidade nacional brasileira envolve uma constante busca por uma elevação do status internacional do país, para a qual teriam de ser superadas barreiras socioeconômicas e políticas, como a corrupção crônica na política, as profundas desigualdades sociais e a débil estrutura institucional do país, que foram os temas presentes no ideário nacionalista das manifestações. Ou seja, o quadro do ideário das manifestações revela a luta por um país mais justo e desenvolvido, do qual os brasileiros pudessem se orgulhar.

5

Demétrio Magnoli. Manifestações sem Direção? Palestra no programa Café Filosófico, 2013. Disponível em: .

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Leone Sousa

A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes Maria Francisca Pinheiro

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ntre as orientações fundamentais que pautam o comporta-mento dos indivíduos que integram uma sociedade estão as leis e os costumes. Como prescrições normativas que regulam

esse comportamento, as leis configuram um modelo de sociedade. Por sua vez, os costumes, mais arraigados socialmente que as leis, constituem-se como valores histórico-culturais, que informam o conteúdo das leis, mas podem assumir diferentes relações com elas.

Essa complexa relação foi descrita por Montesquieu, em O Espírito das Leis, ao mencionar que as leis regem mais as ações dos cidadãos e os costumes mais as ações dos homens. Em outras palavras, as leis estabelecem o âmbito da vida pública política e os costumes, o âmbito da sociedade: “Os costumes e as maneiras são práticas que as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou não quiseram estabelecer” (1995, p. 233). As relações entre leis e costumes variam muito de uma sociedade para outra e, de certa forma, revelam o próprio processo da construção de sua identidade, da representação de si mesma, suas projeções e autorretrato. Na dinâmica da relação entre sociedade e Estado estão presentes os traços decorrentes de sua formação, que se amoldam em sua trajetória e resistem a mudanças. Em síntese, a história da formação particular de um Estado instrui sobre a natureza da relação entre suas leis e costumes. Algumas vezes, em um Estado, essas duas dimensões se confundem, como se houvesse uma coincidência entre as normas e as orientações culturais. Outras vezes, em um Estado, essas dimensões são assimétricas, até mesmo contraditórias. O presente artigo procura, de forma sintética, problematizar alguns aspectos da interface entre cidadania e o público- privado no Brasil, considerando a cidadania uma dimensão da lei e o público-privado uma dimensão dos costumes. Com isso, pretende se referir a algumas características das instituições e do comportamento político brasileiro. A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes

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1. Como o próprio nome sugere, a cidadania constitui um sistema de igualdade que confere direitos e obrigações aos indivíduos inte-grantes de um corpo social, na sociedade moderna, o Estadonação. Esse sistema resulta de uma construção social. T. Marshall, no clás-sico ensaio sobre o tema, destaca esse aspecto particular da cons-trução da cidadania moderna: Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida (1967, p. 76).

Quer-se reter aqui essa ideia da criação de uma imagem de cidadania ideal que orienta o comportamento dos indivíduos no sentido de se atingir esse modelo. Essa ideia da criação de uma imagem de cidadania corresponderia a uma projeção de autorreconhecimento ao qual o comportamento real aspira. Sugere- se nesse trabalho que essa relação de imbricação entre o que está na lei e o mundo real está ausente no Brasil, o que se configura como um problema porque cria uma profunda lacuna entre a dimensão das leis e dos costumes. Com esse propósito em mente e considerando a cidadania um processo de construção social, propõe-se como um exercício de comparação indagar sobre quais os contextos sociais as passagens citadas abaixo estão se referindo e quais as características dessas sociedades em relação ao tema aqui abordado da relação entre a cidadania e o público-privado: Primeira passagem. Quando o público governa, não há homem que não sinta o preço do bem-estar público e que não procure cativá-lo, atraindo para si a estima e a afeição daqueles em cujo meio devem viver. Várias das paixões que revestem os corações e os dividem são então obrigadas a se retirar para o fundo da alma e ali ocultar-se. O orgulho se dissimula; o desprezo não ousa vir à luz. O egoísmo tem medo de si mesmo. Segunda passagem. As associações civis facilitam as associações políticas; mas, por outro lado, a associação política desenvolve e aperfeiçoa singularmente a associação civil. Na vida civil, cada homem pode, a rigor, imaginar-se em condições de bastar-se a si mesmo. Em política, jamais lhe seria possível imaginá-lo. Quando, pois, um povo tem uma vida pública, a ideia da associação e a vontade de se associar apresentam-se, todos os dias, ao espírito de todos os cidadãos; (...) Assim, a política generaliza o gosto e o hábito da associação; faz desejar unir-se e ensina a arte de fazê-lo a uma multidão de homens que sempre teriam vivido sós.

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Terceira passagem. O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A identidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família. Quarta passagem. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável e absorvente do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados „contatos primários‟, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós.

As duas primeiras passagens são de Alex de Tocqüeville (1977, p. 389 e 397), em A democracia na América , e as duas seguintes, de Sérgio Buarque de Holanda (1991, p. 50 e 106), em Raízes do Brasil. Tomando esses dois ensaios como reconstruções do real, assumidos pelos próprios autores como construções ideais típicas (nos termos definidos por Tocqüeville, “Admito que, na América, vi mais do que a América; procurei ali uma imagem da própria democracia...”), 1 podese perceber quão distintas são as noções de construção da relação entre o público e o privado, entre a vida pública e a vida civil nesses dois contextos. Nas duas primeiras passagens, percebe -se que a construção da vida pública, como descrita por Tocqüeville ao se referir à formação dos Estados Unidos, resultou de um movimento da sociedade para o Estado, em ações do associativismo civil ao associativismo político que despertou o gosto pela política, simbolizada e representada pelos interesses comuns. A expressão quando o público governa significa a identidade da ação conjunta com o que é público. O Estado é a expressão constitucional do poder público, mas o sentido de público é o que pertence a todos e não identificado com o Estado. Nessas realidades, as noções de direito e de cidadania advêm do processo de formação e das opções e escolhas da sociedade na dinâ1 BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil.. 1991, p. 19. A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes

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mica de construção da vida pública. Evidentemente, o sistema de cidadania não elimina nem resolve os problemas provenientes de um outro sistema, o sistema de desigualdade de classes, mas impacta sobre ele ao reforçar o ideal da igualdade como virtude cardeal. O processo é mais ou menos o seguinte: o associativismo civil leva ao associativismo político, que, por sua vez, leva ao gosto pela vida pública e dessa pela política. O ideal de construção da cidadania ocorre na mesma direção do projeto de nação, com base em experiên - cias descentralizadas e localizadas em unidades cada vez menores. Nesse artefato social se concebe o conceito de público, como uma construção do que é comum à sociedade. Do mesmo modo, o associativismo surge como um meio de buscar em conjunto os próprios interesses particulares. Ou seja, a noção de público é povoada pelos sujeitos e seus interesses particulares reunidos. O público é comum a todos, mas não existe sem o sujeito particular. Os termos fortes nessa compreensão da cidadania e de vida pública são: o público governa, a vida pública, o associativismo, a virtude pública. Na terceira e na quarta passagens, de Raízes do Brasil, a descrição de Sergio Buarque na caracterização da relação entre a ordem pública e a privada mostra uma outra realidade. Uma formação social cons-tituída com base na esfera privada molda a esfera pública como se essa fosse uma extensão do núcleo familiar. Isso não impede que a modernidade aporte de navio no território brasileiro pela posição de destaque da metrópole portuguesa no capitalismo mercantil. Mas essa modernidade veio entranhada pelos valores de uma sociedade tradicional, haja vista o desinteresse de Portugal em investir na educação no Brasil, principal fator de impacto na diminuição da desigualdade social. Nesse contexto, interesse privado invade sempre a esfera pública e passa a conduzir a esfera política. Esse processo é comandado a partir de uma visão de cima para baixo, do poder político para a sociedade. Na análise de Raymundo Faoro (1975), em Os donos do poder, no Brasil primeiro há uma pessoa a ser nomeada, em função dela cria-se o cargo, em seguida a unidade territorial e depois a socie-dade. É um processo de construção do público em função e depen-dente do privado. O privado se constitui como núcleo político básico da sociedade brasileira. O mundo privado torna-se o modelo de construção da vida pública. Com isso, a noção de público, pelo menos aquela construída pelos costumes, é restrita a algo externo que não interage com o indivíduo, que não lhe representa. Esse mesmo processo informa a cons100

Maria Francisca Pinheiro

trução da cidadania, na qual as noções de direitos e deveres parecem mais concessão do que conquista e ter direito é mais introjetado do que ter dever. A separação entre essas duas dimensões – direitos e deveres – dificulta a ideia de construção de um espaço público comum a todos. Em Paulo Prado (1997), O retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, a melancolia como traço do caráter do brasileiro não provém de uma perda nem de um sentimento de frustração, como no romantismo, mas da ausência de um projeto de nação. Ou seja, o público é restrito ao que é representado pelo Estado e não pelo que pertence à sociedade. As relações sociais que se formam no interior da família passam a fazer parte de qualquer composição social. Os termos fortes nessas passagens de Sérgio Buarque são a identidade privada, autoridade familiar, respeitabilidade, obediência, comunidade doméstica, invasão do público pelo privado.

No Brasil, essa relação entre o público e o privado resulta em um jeito particular de construção da vida pública, criando algumas dificuldades, na medida em que os interesses particulares são predominantes na vida social e no jogo político. Na prática, criou-se um gap entre o que se projeta na lei e o seu cumprimento. O espírito da lei e seus avanços em relação à cidadania não correspondem ao que se aspira na vida concreta, obstruindo a relação entre o ideal e o real. 2. Sem nenhuma intenção de reduzir análises de situações e problemas da sociedade brasileira contemporânea a explicações gerais, a características de sua formação, porque muitas mudanças ocorreram, muitas outras poderiam ter ocorrido e provavelmente ocorrerão, o que se quer aqui ressaltar é que alguns problemas da esfera política brasileira, o Estado, não foram melhor equacionados por ausência no jogo político de espírito público e vontade política. Depois de tantas mudanças, como o fim de uma ditadura militar de 21 anos, a restauração da democracia e elaboração da Constituição Cidadã, sem dúvida a Constituição Brasileira que mais universalizou direitos individuais e coletivos, sociais e políticos, problemas se reproduzem sem solução, afastando a sociedade que saiu vitoriosa dessas lutas, do interesse pela política. Na medida do possível, podem-se estabelecer alguns elos com a análise comparativa preliminar entre Tocqueville e Holanda. Como menciona Max Weber, pode-se dizer que “O esquema construído serve apenas, é claro, ao objetivo de oferecer um meio ideal típico de orientação” (1982, p. 371).

Um dos dilemas institucionais brasileiros consiste no presidencialismo de coalizão, não no modelo, assumido por outros países na América Latina, mas nos arranjos realizados na prática. A funcionaA cidadania e o público-privado: entre leis e costumes

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lidade do modelo, uma combinação entre o presidencialismo, o multi-partidarismo e a representação proporcional, depende do conteúdo das alianças: “O nó górdio do sistema é a instabilidade, de alto risco. Sua sustentação baseia-se quase que exclusivamente no desem-penho do governo de diferenciar entre o que é ideológico e o que é negociável” (ABRANCHES, 1988, p. 27). O futuro das coalizões depende da capacidade de formular e implementar políticas substantivas. No entanto, como as coalizões são realizadas para garantir a governabilidade, a tendência é de retirar do programa mínimo as questões mais substantivas. Na prática, o presidencialismo de coalizão, por não diferenciar o ideológico do negociável, esvazia o discurso político partidário do partido no poder e o submete a partilhas na distribuição de cargos no Executivo entre os aliados. No Legislativo, em função das coalizões sem posições ideológicas mínimas e do compromisso específico dos políticos com sua base eleitoral, para garantir sua reeleição, não são realizadas reformas políticas necessárias para o aperfeiçoamento do sistema eleitoral e do sistema partidário. E não faltaram Comissões Especiais para a Reforma Política, no Senado e na Câmara dos Deputados, que elaboraram relatórios e projetos de lei nesse sentido, bem como a formação de uma Frente Parlamentar pela Reforma Política, com a participação civil (COELHO, 2010). Também no sistema de nomeação de cargos no Legislativo não há uma orientação nas escolhas, de acordo com os direitos individuais de cidadania, consagrados no texto da Constituição, como ocorreu, por exemplo, na nomeação de um parlamentar defensor da cura gay como presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Os ativistas de direitos humanos precisaram se mobilizar, ocupar sessões da Comissão, exigir a saída do parlamentar, para, meses depois, conseguir a substituição do deputado no cargo. Os exemplos dos descompassos entre as conquistas no campo das leis e a prática política concreta se multiplicam no cenário do exercício do poder no Brasil, no qual o cargo público é utilizado como uma propriedade particular, uma distinção pessoal, e não no sentido de uma função pública, de servir ao público. 3. O público e o privado são categorias de análise das mais antigas no pensamento político ocidental e bastante representativas de uma distinção entre o mundo da política e o mundo doméstico, entre a polis e a oikos. No entanto, a aplicação dessas categorias em um contexto determinado deve levar em conta o aspecto relacional do público e do privado, na medida em que essas esferas podem assumir dimensões distintas de seus significados semânticos originais.

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No caso do Brasil, alude-se criticamente à relação dessas devido à privatização do público e do uso do público para fins privados. Atualmente, têm- se chamado atenção para uma análise relacional dessas categorias para realçar o aspecto contrário, ou seja, da necessidade de se publicizar o mundo privado. Nos movimentos sociais, esse é o caso do movimento feminista. Para as questões do movimento feminista, a esfera privada é política e, nesse sentido, de interesse público, porque nesse espaço ocorre, com frequência, a violência contra a mulher e sua descriminação (FRASER, 1992). No Brasil, são altíssimas as taxas de violência contra a mulher ocorrida por um membro da família, na maior parte dos casos pelo parceiro, e no recinto doméstico. A Lei Maria da Penha pune os culpados por essa violência, mesmo que, por medo ou outros motivos, a vítima retire a queixa ao agressor. Em razão dessa lei e da compre-ensão pelo movimento feminista local de que o espaço privado é polí-tico, o Brasil tem tido papel de destaque nos fóruns e nos espaços internacionais da política para mulheres. Alguns autores têm trabalhado analiticamente com a flexibilização das fronteiras entre o público e o privado, com a abordagem dessas esferas como processo e não conceitos essencialistas, de modo a compreender as especificidades e transformações da esfera pública nas sociedades contemporâneas. Charles Taylor (2000) defende que a fronteira entre o sistema político e a esfera pública seja relaxada, e introduz o conceito de esferas públicas aninhadas. Define, como esferas públicas aninhadas, os movimentos sociais que atuam de forma aberta ao público, de modo a se conectar com uma pauta pública. Cita como exemplo dessas esferas o movimento feminista e as campanhas ecológicas. O debate interno nessas esferas ajuda a reorganizar a pauta pública. Para o autor, a fronteira entre o sistema político e a esfera pública é porosa. Contudo, a esfera pública se distingue pelo seu status extrapolítico: “Justo por não ser um exercício do poder, a opinião pública pode ser idealmente despren-dida do espírito partidário” (TAYLOR, 2000, p. 283). No debate contemporâneo sobre a esfera pública realça-se a compreensão de seu caráter relacional tanto em relação ao sistema político quanto ao espaço privado. Entende-se que os movimentos sociais integram a esfera pública desde que sua agenda seja aberta à pauta política e que não sejam movimentos corporativos. O relaxamento das fronteiras entre o público e o privado ocorre sempre em função do alargamento dos interesses públicos, da formação da opinião pública, ou seja, no sentido da ampliação da esfera pública. A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes

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No entanto, apesar das mudanças no contexto das grandes democracias, a tendência que se observa no Brasil é a da invasão do público pelo privado. Referências ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Revista de Ciências Sociais, v. 31, a. 1, 1988, p. 5-34. COELHO, Maria Francisca Pinheiro. Representação e participação: o problema da Reforma Política no Brasil. In: MESSENBERG, Débora;

PINTO, Júlio Roberto de Souza; SOUSA, Leone Campos de, et al. (Orgs.). Estudos legislativos: 20 anos da Constituição Brasileira. Brasília: Senado Federal: Câmara dos Deputados: Tribunal de Contas da União: Universidade de Brasília, 2010, p. 239-265. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 2. ed. Porto Alegre: Globo; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1975. FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. In: CALHOUN, Craig (Ed.). The MIT Press. Cambridge, Massachusetts, 1992. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1991. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O espírito das leis. Brasília: UnB, 1995. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1977. TAYLOR, Charles. A política liberal e a esfera pública. In. _____. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977. WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: _______. Ensaios de sociologia. GERTH, H.H.; MILLS, Wright Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

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Cidadania e raça no Brasil

Paulo César Nascimento

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fato de a cidadania no Brasil ser criticada por sua precarie-dade, incompletude e distância da realidade não é novidade. Além da tradicional crítica da esquerda sobre o formalismo

de uma cidadania com elementos civis, políticos e sociais insuficientemente desenvolvidos, estudiosos do conceito não deixaram igualmente de se manifestar a respeito. O historiador José Murilo de Carvalho, por exemplo, qualificou a cidadania no Brasil de “estadania”, por sua dependência a um Estado paternalista; e o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a definiu como “cidadania regulada”, ou seja, uma cidadania que não obedece a valores políticos, mas a um código hierárquico de estratificação ocupacional. 1 Nas duas últimas décadas, porém, outro elemento ausente nas discussões sobre cidadania fez sua aparição: a questão racial. Este não é um tema exatamente novo, já que desde a década de 30 do século passado ativistas e pensadores como Abdias do Nascimento tentavam colocar o racismo na pauta das preocupações sociais brasileiras. Contudo, foi somente a partir da década de 90 que a questão racial tomou vulto no Brasil, dividindo opiniões e colocando mais um déficit na cidadania brasileira: a discriminação, aberta ou velada, dos negros.

Destaque-se, porém, que, a visibilidade adquirida pela questão racial, os debates acadêmicos que acompanharam a discussão sobre raça, bem como sua repercussão na mídia, não vieram como consequência de pressão da sociedade brasileira ou de reivindicações de movimentos sociais. Mais importante foram as ações governamentais que, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, e prolongando-se nos governos de Lula e Dilma, incentivaram o debate sobre desigualdade racial e propuseram políticas para combatê-la, principalmente através de ações afirmativas.

1

Ver a esse respeito MURILO DE CARVALHO, José. A Formação das Almas. São Pau-lo: Companhia das Letras, 1990, p. 29, e SANTOS, Wanderley Guilherme. Décadas de espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 103.

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Esta é uma característica da questão racial no Brasil, pelo menos até agora: sua discussão nunca comoveu as classes populares, inclu-sive a camada mais pobre da população negra e mestiça brasileira, apesar da evidência palpável de preconceitos e discriminação racial no país. Esse tema continua confinado aos debates acadêmicos, às notí-cias veiculadas na mídia e às ações governamentais. E, nesse sentido, a distância em relação aos Estados Unidos é muito grande. Aquele país conheceu um amplo e influente movimento civil pelos direitos humanos, oriundo da sociedade civil, e que influenciou o curso das políticas antirraciais tanto na América como no resto do mundo.

A comparação com os Estados Unidos, aliás, é muito pertinente para a compreensão do contexto racial no Brasil, já que o modelo norte-americano de combate às desigualdades raciais tem influenciado enormemente o debate e as políticas públicas sobre raça no Brasil. Tanto as ações afirmativas quanto a própria identificação binária de raças, além da ênfase na autoconscientização racial, são partes integrantes da visão racial norte-americana. Nos Estados Unidos, o ethos puritano constituiu-se em grave empecilho para qualquer aproximação entre as raças. Mesmo após a abolição da escravidão, permaneceu no país um apartheid explícito no sul, implícito no norte, e cuja característica principal estava no cuidado com a preservação da pureza racial dos brancos e, portanto, no impedimento da miscigenação. Após a guerra civil, a necessidade de reintegrar a derrotada elite branca sulista na nação norte-americana fez com que o governo federal concordasse com a permanência da segregação racial no sul, situação que durou até a década de 60 do século passado.2 Além disso, em muitos Estados norte-americanos existiram leis expressas impedindo casamentos entre raças diferentes, e a classificação racial do país, baseado na “gota de sangue” – um mínimo de sangue negro já tornava a pessoa da raça negra –, confirmava a dicotomia branco/negro, negando status próprio ao miscigenado. A discriminação racial e a segregação, porém, geraram forte aspi-ração a uma consciência racial própria entre a comunidade afro-americana, fortalecendo dessa forma o desenvolvimento de uma identidade negra. O poderoso movimento pelos direitos civis, fortemente enraizado nas comunidades negras dos EUA, também forçou o governo federal, 2

Uma interessante interpretação da história da segregação racial nos EUA pode ser encontrada em Anthony Marx, Making Race and Nation: A comparison of South Africa, the United States and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

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a partir da presidência de Lyndon B. Johnson, a adotar ações afirma-tivas que permitissem à população negra acesso ao ensino superior e a empregos, como forma de mitigar a desigualdade social que a discriminação racial alimentava. A questão racial no Brasil evoluiu de forma muito diferente, a começar pelo próprio caráter da escravidão brasileira. Como mostrou Gilberto Freyre, a escravidão introduzida aqui pelos portugueses era do tipo maometano, ou familial, resultado da experiência anterior adquirida pelos portugueses em contato com os muçulmanos. Esse tipo de escravidão se caracterizava por uma relação mais próxima entre escravas e seus senhores, resultando em relações sexuais e uma proliferação de filhos ilegítimos, os quais, devido ao caráter familial desse tipo de escravidão, permaneciam na periferia da família patriarcal, podendo obter certas benesses ou até mesmo, no limite, entrar no círculo familiar, ainda que em posição subalterna. 3 Essa aproximação entre escravocratas e escravos, que resultou em uma numerosa população miscigenada, era ainda facilitada pelo caráter plástico do português, ou seja, por sua capacidade de adaptar- se ao novo contexto tropical e suas condições. 4 Embora em situação dominante, o colonizador português não possuía o sentimento de pureza racial que no caso norte-americano originou- se no ethos puritano, daí sua facilidade em interagir e ter filhos com pessoas de outras raças. A miscigenação e a gradual modernização do país, a partir da segunda metade do século XIX, possibilitou a paulatina ascensão do mulato na sociedade brasileira, quando este passou a ocupar ofícios e profissões técnicas muitas vezes desprezadas pelos brancos. E a ausência de segregação oficial e leis raciais acabou por configurar uma situação bastante diferente da norte-americana.5 Raça, no Brasil, adquiriu um caráter funcional, no sentido de que o contexto e os códigos sociais alteram sua percepção, tornando a definição racial ambígua e sujeita a múltiplas gradações.6 Não há necessidade, porém, de romantizar a questão racial no Brasil. O “embranquecimento” mantém a raça branca no polo posi3 4

5 6

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, cap. IV, 2005. Ver também Veja, 15/9/1999, p. 71. O caráter plástico do português é ressaltado não somente por Gilberto Freyre, mas também por Sérgio Buarque de Holanda. Ver a esse respeito sua obra Raízes do Brasil. São Paulo: Schwarcz Ltda., 2002, cap. 2. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos.. São Paulo: Record, 2002, cap. X. DA MATTA, Roberto. Notas sobre o racismo à brasileira, in: SOUZA, Jessé (org.). Multiculturalismo e Racismo. Brasília: Paralelo15, 1997, p. 69-74.

Cidadania e raça no Brasil

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tivo, desvalorizando dessa forma todos aqueles de outra cor ou etnia. Não dá para fugir do fato de que como toda escravidão, a brasileira se caracterizava pela opressão e exploração raciais. Apesar da ascensão social de parte da população mestiça, a grande maioria dos negros brasileiros tem sofrido inúmeras barreiras para se integrarem como plenos cidadãos na sociedade brasileira.7 Permanece o fato, contudo, de que a aproximação das raças no Brasil, ainda que em contexto de desigualdade e preconceito, não incentivou o desenvolvimento de uma consciência negra como nos Estados Unidos. Ao contrário, o ethos brasileiro seguiu o polêmico rumo do “mito da democracia racial”, que vem recebendo críticas pelo menos desde a década de 50 do século passado, mas que persiste não porque reflita uma realidade existente, mas sim uma aspiração nacional.8 A questão racial no Brasil, dessa forma, apresenta peculiaridades interessantes: apesar do legado da escravidão, das marcantes desigualdades e preconceitos raciais existentes, o país nunca conheceu um movimento popular contra o racismo, nem organizações baseadas em raça, nem muito menos uma forte identidade racial em sua popu-lação negra e miscigenada. Paradoxalmente, há um forte ethos de tolerância racial e até uma aspiração de integração racial que se expressa no mito da democracia racial. Como encaminhar, nesse contexto, políticas de combate às desigualdades raciais? O Estado brasileiro tem optado pela introdução de sistemas de cotas que permitam o acesso de um maior número de negros nas universidades e no funcionalismo público. Contudo, a aplicação do modelo norte- americano em uma realidade diferente como é a brasileira acarreta sérios problemas. A miscigenação impede uma identificação clara das raças no Brasil, e a política de cotas, principalmente nas universidades, só atinge a uma elite, deixando de fora a grande maioria da população negra. Além disso, há o perigo de forçar goela abaixo da sociedade 7

Ver a esse respeito FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

8

No início da década de 50, a Unesco enviou comissão para estudar as relações ra-ciais no Brasil, com o intuito de transformar a experiência brasileira em modelo de resolução de conflitos raciais. Mas após sua estada no país e constatar a existência de enormes desigualdades raciais no Brasil, a comissão teve que admitir que a tão alardeada democracia racial brasileira era uma visão simplificada da realidade, ain-da que admitindo a tolerância racial existente no país. Ver SOUSA, Leone. The myth of racial democracy and national identity in Brazil. Saarbrucken, Alemanha: Verlag,

2009, p. 89-90.

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Paulo César Nascimento

brasileira, a partir de políticas governamentais, uma identidade específica negra em um país com uma longa história de sincretismo racial, cultural e religioso. Talvez fosse melhor dar mais ênfase a políticas e cotas sociais, que aplicadas à população de baixa renda, já abarcaria a grande maioria da população negra e mestiça brasileira, sem a necessidade de racializar o tecido social brasileiro. É verdade que as políticas de ação afirmativa norte-americanas proporcionaram imensos benefícios para a população negra daquele país, mas ao reforçarem a identidade negra acabaram também por separar ainda mais as raças nos Estados Unidos, hoje um país hifenizado em “afro-americanos”, “ítalo-americanos”, “hispano- americanos” etc., e onde a ênfase do hífen desloca-se cada vez mais para a primeira parte. O antropólogo Roberto da Matta caracterizou a exclusão nos Estados Unidos através do princípio de “diferentes, mas iguais”, em contraposição, segundo ele, ao princípio brasileiro de “desigual, mas junto”, em que o sistema racial inclui, mas ao mesmo tempo hierarquiza.9 É preciso evoluirmos no Brasil para uma cidadania que seja regida pelo princípio de “iguais e juntos”.

9

DA MATTA, Roberto, op. cit., p. 71.

Cidadania e raça no Brasil

109

V. Economia e Desenvolvimento

Autores Manfredo Almeida Mestre em Economia pela USP, é técnico de pesquisa e planejamento do Ipea, atualmente de licença.. ..

Silvio Sinedino Membro do Conselho de Administração da Petrobras e presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet)..

Para onde caminha a Petrobras?

Silvio Sinedino

A

Petrobras não foi criada em gabinetes. Pelo contrário, foi a luta do povo nas ruas, na histórica campanha O Petróleo É Nosso, nas décadas de 1940 e 1950. Quem a criou tinha o objetivo de

servir à sociedade e ao desenvolvimento do país, meta que perseguiu durante o maior período da sua existência e merece ser resgatada. Defendemos sem pejo a Petrobras como empresa estatal. Assim ela foi criada e assim, também pelo esforço e competência dos trabalhadores, tornou-se esse gigante que é orgulho dos brasileiros. Agora falemos um pouco do hoje: o maior problema que a Petrobras enfrenta é o constrangimento financeiro que o governo lhe impõe. Em nome do combate à inflação, equivocado, já que em lugar nenhum do mundo o congelamento de preços domou o dragão, obriga -nos a vender por preços controlados o que estamos importando a preços internacionais. Nos dias correntes, não há mais o monopólio do petróleo, qualquer empresa pode importar derivados. Então por que obrigar a Petrobras a vender derivados a preços subsidiados às próprias distribuidoras concorrentes? É isso o que o capitalismo chama de livre mercado? Não bastando o prejuízo direto que nos causa, a política governamental traz malefícios marginais, pois, para mantermos o ambicioso programa de investimento de US$ 46 bilhões/ano, estamos execu-tando um plano agressivo de desinvestimentos movido muito mais pela necessidade financeira do que pela oportunidade de bom negócio

– forma de canibalização da companhia. 113

Ora, a presidente Dilma tem um mandato que lhe confere poder e legitimidade para implantar suas políticas econômicas, mas não à custa do enfraquecimento daquela que é a locomotiva do crescimento nacional. Vamos pensar um pouco: se a locomotiva fica mais fraca, o país cresce menos. A quem interessa? Com certeza não aos acionistas e muito menos ao povo brasileiro, que é o dono da empresa. Se o governo quer manter subsídios aos combustíveis, equivocado inclusive ambientalmente, deve fazê-lo à custa do Tesouro Nacional. Devemos lembrar que a Petrobras não é propriedade do mandatário de plantão. É da nação. Os governos passam e a Petrobras permanece. A se manter a política de preços, tem que ser restabelecida com urgência uma conta- petróleo ou algo similar, que estanque o prejuízo que se dá a cada venda. Outra grande preocupação é que o desespero pela produção a qualquer custo, comandado pela necessidade de fazer caixa, venha fragilizar ainda mais a situação das plataformas e do transporte aeronáutico. Os recentes acidentes tanto em plataformas quanto em refinarias mostram que há algo de errado em nossa política. Outro equívoco é dizer que o “conteúdo nacional” não é prioridade da companhia. Já defendíamos que a exploração do pré-sal deve se dar no ritmo do interesse nacional, o que inclui o estímulo à indústria nacional com bons empregos e salários. Não podemos nos esquecer do risco da chamada doença holandesa, que é a desindustrialização em países com grande receita em moeda forte pela exportação de produtos primários, como o petróleo. O nosso parque já chegou a ter 3 mil indústrias nacionais como fornecedoras. Ao mesmo tempo em que temos importado derivados por falta de capacidade de produção nacional, os projetos de refinarias se atrasam e têm os custos elevados ao limite da suspeição. A Renest, projeto binacional que não tinha contrato legal assinado, acabou (ainda não acabou!) sendo de um só país, o nosso, com custos realizados supe-riores a três vezes o orçamento original. A obra do Comperj, em área imensa de Itaboraí, tem hoje mais de 30 mil trabalhadores da construção civil, distribuídos em centenas de canteiros de obra, sob responsabilidade de dezenas e dezenas de terceirizadas e quarterizadas da Petrobras. Além dos acréscimos de custo e atrasos de prazos já ocorridos, no momento há um clima de greve selvagem sem possibilidade de intermediação pelo Sindicato da Construção, considerado pelego, que já teve um veículo queimado pelos trabalhadores revoltados. 114

Silvio Sinedino

A Refinaria de Pasadena é foco de toda a imprensa a ponto de ter motivado uma CPI no Senado e outra conjunta da Câmara Federal e do Senado. Desde junho de 2012, é público que foi escamoteada do Conselho de Administração (CA), pelo menos, a garantia dada pela Petrobras ao sócio de uma rentabilidade de 6,9% a.a. Por que não é cobrado do presidente do CA, o ministro Guido Mantega, posicionamento sobre o assunto? Por que Mantega não se interessou em pautar a apuração da responsabilidade quando enganaram o CA? E temos o caso da Petros, a Fundação de Seguridade que teve deficit técnico de mais de R$ 5 bilhões durante 2013. Como os Planos de Previdência da Petrobras a têm como fiadora de última instância,

é imperativo que a Diretoria Executiva se aproxime mais do seu dia a dia, visando melhorar a qualidade dos investimentos e evitar a continuação de transferências ilegais de patrimônio entre os planos administrados pela Petros, o que resultará em mais ações judiciais. Além do mais, a Petrobras divulgou a adesão de trabalhadores ao seu Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), apresentado em janeiro deste ano. Chegou ao número de 8.298 empregados inscritos. Isto significa 12,4% da força de trabalho da Companhia. A empresa, à época do lançamento do programa, dizia que o plano deveria ”atender às expectativas dos empregados interessados em se desligar da empresa e preservar o conhecimento técnico existente na Companhia”. Ora, com o fim do prazo para as inscrições no PIDV, parece que a conta apresentada pela Companhia não fecha. De fato, a empresa perderá, em um prazo de 36 meses, parcela significativa de sua mão de obra qualificada – em especial aqueles trabalhadores com mais experiência na empresa, aos quais o plano se destina: os maiores de 56 anos e aposentados pelo INSS. Deste lado do cálculo temos, portanto, uma perda considerável do conhecimento técnico acumulado na empresa ao longo dos anos. Do outro lado, contudo, a Petrobras informou que irá realizar concursos públicos para repor apenas 60% das demissões incentivadas. Faltam, portanto, pelas contas da própria Companhia, 40% dos cargos, que serão extintos ou terceirizados com a saída dos trabalhadores pelo PIDV. Há ainda dados importantes para se considerar. Essas perdas se concentrarão em um período de tempo muito curto, no máximo três anos. O Programa, além disso, é a expressão da falência da política de Recursos Humanos da Companhia. Os salários dos empregados na ativa – bonificados pela PLR e por abonos – é muito superior aos rendimentos dos recém-aposentados. Isto porque estes empregados Para onde caminha a Petrobras?

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não serão contemplados com a proposta original do nosso Fundo de Pensão, abandonada pela Companhia, que garantia 90% dos salários da ativa para os aposentados. O teto de contribuição adotado em 1982 e mantido até hoje, sem base legal, provoca uma perda muito grande aos aposentados. A opção da companhia é muito clara: prezar pela economia direta através da redução das folhas de pagamento em detrimento da qualidade e da capacidade de trabalho. A manutenção desta lógica administrativa gerará, inevitavelmente, outros planos similares num futuro próximo. Ou uma insatisfação crescente entre o corpo técnico, que não foi diminuída com a adoção do atual PIDV. Há de se ter em conta, é claro, qual será a opção da empresa caso a falta dos profissionais qualificados traga problemas. Certamente se aprofundará o processo de terceirização pelo qual a Companhia vem passando, há anos. Hoje, a Petrobras funciona baseada no trabalho de 360 mil trabalhadores terceirizados – entre os quais, 165 mil são trabalhadores da construção que, segundo a Companhia, não justificariam a realização de concurso público. De qualquer maneira, o número de terceirizados permanentes, cerca de 200 mil, excede em mais de 150% o número de trabalhadores concursados, cerca de 80 mil. Programas como o PIDV poderão tornar esses números ainda mais discrepantes, e quaisquer pretensões da Companhia de readquirir o conhecimento perdido estarão, é claro, sumariamente condenadas. Os terceirizados, em geral, passam por programas de treinamento inferiores aos programas oferecidos pela Companhia, reconhecidos internacionalmente por sua excelência. Sua situação de fragilidade contratual gera, obviamente, um compromisso muito menor para com a empresa, e o rebaixamento de seus postos de trabalho – mais perigosos e com menos treinamento – levam a um número maior de acidentes. A política da terceirização ainda implica em facilidades para contratações duvidosas. Hoje, trabalham na empresa, em regime de terceirização, vários parentes, amigos, parceiros de trabalhadores efetivos que requerem cargos terceirizados. A terceirização prejudica os trabalhadores contratados e prejudica a Petrobras. É preciso estar de olho para impedir que este panorama se torne ainda mais grave. Como se constata, a Petrobras está vivenciando um dos seus momentos mais difíceis e precisamos elevar nossa voz em sua defesa, para que o seu potencial se realize para o bem de seus trabalhadores, acionistas e principalmente para os brasileiros. 116

Silvio Sinedino

A política industrial deu certo?

Manfredo Almeida

H

á diversas formas de se avaliar o sucesso de uma política in-dustrial. Mas antes é preciso mostrar, de forma muito clara, o que está sendo avaliado e, neste caso, há diversos proble-

mas com a nossa.

Um dos principais problemas decorre da própria definição dos indicadores de política industrial. As metas do Plano Brasil Maior adotado, em 2011, com validade para 2014 são, entre outras: (i) elevar a taxa de investimento de 18,4% (2010) para 22,4% do PIB; (ii) elevar dispêndio empresarial em P&D em porcentagem do PIB (meta compartilhada com Estratégia Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação – ENCTI) de 0,59% do PIB, em 2010, para 0,90% do PIB, em 2014; (iii) diversificar as exportações brasileiras, ampliando a partici-pação do país no comércio internacional de 1,36% para 1,60%;

(iv) elevar percentual da indústria intensiva em conhecimento – VTI da indústria de alta e média-alta tecnologia/VTI total da indústria – 30,1% para 31,5%; (v) aumentar a qualificação de RH: porcentagem dos trabalhadores da indústria com pelo menos nível médio de 53,7%, em 2010, para 65%, em 2014 etc. Quando alguém for analisar se essas metas foram alcançadas, uma avaliação que assusta os meus conhecidos da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e do MDIC (Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior), será fácil concluir que a grande maioria dessas metas não foram alcançadas. De quem é a culpa? É sempre do setor externo e do Partido Comu-nista da China. Ou seja, alguém define como indicadores da política industrial indicadores macro, que são ruins para se avaliar o sucesso da polí117

tica industrial e, quando as metas não são alcançadas, a culpa é do resto do mundo. E se as metas tivessem sido alcançadas? Neste caso, o “sucesso” seria, integralmente, de quem formulou a política industrial. E quem acha que a política industrial foi um sucesso, sugiro passar na FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas-São Paulo) e conversar, por dez minutos, com o professor Luiz Carlos-Bresser Pereira. Perguntem a ele se a indústria brasileira hoje é mais competitiva do que era há quatro ou oito anos? Se quiserem, passem no IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), em São Paulo, e conversem com o presidente desta importante ONG, o economista Pedro Passos. Estou aqui citando apenas pessoas que simpatizam com política industrial. Mas, vamos aos números. Primeiro, em relação à taxa de investimento, esta taxa, em 2013, foi de 18,4% do PIB, valor semelhante ao de 2010. Este ano deve ficar muito próxima desse valor e, assim, será impossível cumprir a meta de 22,4% do PIB previsto no Plano Brasil Maior. Por que? Segundo o governo porque os empresários foram MUITO pessimistas. Ou seja, para os meus amigos governistas, o erro não foi do governo, mas sim dos empresários. Alguns ainda têm a coragem de dizer que o governo foi capturado como se este não tivesse, por meio de suas ações, se deixado capturar. Segundo, elevar o dispêndio empresarial em P&D (Pesquisa & Desenvolvimento) será outra das metas que não conseguiremos atingir. E quem diz isso é “ninguém menos” do que os próprios técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de Brasília, que acompanham o Plano Brasil Maior. De acordo com análise do ex-diretor adjunto do Ipea, Ricardo Cavalcante, e da atual diretora da Diset (Diretoria de Estudos e Politicas Setoriais de Inovação, Regulação e Infraestrutura), órgão vinculado ao Ipea, economista Fernanda DeNegri, publicada em fevereiro de 2014, o gasto empresarial em P&D na verdade se reduziu, de 2008 a 2011, de 0,53% do PIB para 0,50%. Os pesquisadores corrigiram a amostra e constataram que o crescimento que havia sido identificado decorria da mudança da amostra. Alguém acredita que esse número vai para 0,90% do PIB, em 2014, como está nas metas do Plano Brasil Maior? Impossível. De 2005 a 2011, praticamente esse indicador não aumentou, tendo 118

Manfredo Almeida

passado de 0,49% do PIB para 0,50%. Por que agora cresceria 80% em apenas três anos? Mais uma meta que ficará no papel e que, mais uma vez, alguém muito “inteligente” culpará os empresários pelo fato de desenvolverem aqui o princípio ativo do remédio para curar a Aids ou por não terem inventado o Ipad. Terceiro, outra meta da política industrial era a diversificação das exportações e aumento da participação do Brasil nas exportações mundiais. Isso está ocorrendo ou vai ocorrer? Infelizmente, não. No caso da nossa pauta de exportação, a participação dos manufaturados nela que, de 1981 até 2007, sempre foi acima de 50% das exportações, passou para menos de 40%, a partir de 2010. Naquele ano, 39,4% de nossas exportações eram de produtos manufaturados e, no ano passado, passou para 38,7%. Mas se a “diversificação” for as variedades de soja geneticamente modificadas que estamos vendendo para o exterior, é possível que a pauta esteja mais diversificada com tipos de soja diferentes que plantamos e exportamos.. No caso da nossa participação no comércio mundial, ela que constituía, em 2010, 1,35% da exportação planetária (o Brasil exportou US$ 201,9 bilhões de R $ 14,9 trilhões de exportação mundial), passou para 1,29%, em 2013: exportamos US$ 242,1 bilhões de US$ 18,78 trilhões. Ou seja, perdemos participação, o que deve se repetir neste ano de 2014. Desta forma, não conseguiremos cumprir a meta do Plano Brasil Maior de 1,60% de participação nas exportações mundiais. Quarto, ainda não consegui os dados sobre a participação dos setores mais intensivos em conhecimento mas acredito que não tenha crescido. No entanto, podemos utilizar uma proxy. Vamos olhar para o índice de produção física dos setores mais intensivos em tecnologia da indústria: (i) indústria farmacêutica, (ii) material eletrônico e equipamento de comunicação; (iii) equipamento de instrumentalização médico hospitalar. O que aconteceu? A tabela a seguir mostra o comportamento da produção física desde maio de 2008, quando foi lançada a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) que depois foi ampliada pelo Plano Brasil Maior, em 2011. Com exceção do médico hospitalar que é um setor pequeno na nossa indústria, os demais tiveram queda da produção física em relação a 2008. E mesmo o médico hospitalar mostra quase nenhum crescimento, desde 2011.

A política industrial deu certo?

119

Índice da Produção Física – Setores Selecionados da Indústria – 2008-2014

Fonte: PIM-IBGE. OBS: média do ano. Para 2014, utilizou-se a média de janeiro e fevereiro.

Por fim, para coroar o “sucesso” da nossa política industrial, acho que o gráfico abaixo é bastante ilustrativo. Se a quase contínua perda de participação da indústria no PIB, desde 2004, pode ser conside-rada um sucesso de política industrial, então vamos definir melhor que “sucesso” é este. Participação da Indústria de Transformação no PIB – %

Fonte: IBGE.

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Manfredo Almeida

Se o “sucesso” da política industrial for a primarização da nossa pauta de exportações, queda do dispêndio privado em P&D, queda ou estagnação da produção física da indústria e perda de participação da indústria de transformação no PIB, sem dúvida a política foi “bem sucedida”. Mas se isso não tem nada a ver com a política industrial e muito mais com questões macroeconômicas, o que, em parte, é verdadeiro, então, existem dois problemas. Primeiro, falhamos na administração da política macroeconômica – um quase consenso entre 100% dos economistas de fora e de alguns dentro do governo. Segundo, por que a turma da política industrial estabeleceu macro metas para a política industrial (tais como taxa de investimento e participação das exportações do Brasil nas exportações mundiais) se a culpa do não cumprimento das metas seria direcionada para taxa de câmbio e para a política macroeconômica? A coisa mais difícil hoje é encontrar alguém, dentro e fora do governo, que acredite que a indústria vai bem. A grande diferença, no entanto, é que algumas (não são todas) pessoas no governo acham que o culpado é o “pessimismo” dos empresários ou que a “estrutura industrial” do Brasil está errada – temos os setores errados e nos faltam os setores certos. É mesmo? Interessante! E os empresários, o que acham disso tudo? Conversem com eles e vocês saberão qual a opinião deles. O que me surpreende é o Brasil ter tantos empresários bons e de sucesso no meio de tanta confusão e instabilidade de regras.

A política industrial deu certo?

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VI. Batalha das Ideias

Autores Gian Luca Fruci Pesquisador de História Política da Universidade de Pisa..

Michel Zaidan Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco..

A história (in)finita da democracia direta Gian Luca Fruci

A

expressão “democracia direta” e o horizonte (imaginário) de

participação política historicamente vinculado a ela reingres-saram fortemente no discurso público italiano graças ao for-midável aspirador – e, ao mesmo tempo, anestesiador – de movi-mentos sociais representado pelo “Movimento 5 Estrelas” (M5S), que canalizou as mais diversas mobilizações da última década numa narrativa consoladora do “povo virtuoso” em luta irredutível contra a “casta política” e o seu principal articulador novecentista

– a forma-partido –, respondendo com um discurso abrangente, tradicionalmente nem de direita nem de esquerda, às demandas difusas de transformação social e política.1 A hibridização entre retórica antipolítica, ou mais precisamente contra a política, e direitismo procedimental é, por sua vez, um desdobramento fundamental da constelação discursiva que contesta, desde as origens, a democracia representativa, contrapondo a esta a simpli-cidade e a evidência “objetiva” de soluções alternativas baseadas na ausência de delegação e no envolvimento imediato (e contínuo) dos 1

Sobre esta análise provocadora e extravagante, ver MING, Wu, “Il Movimento 5 estel-le ha difeso il sistema”, Internazionale, 25 fev. 2013, disponível em: ; CICCARELLI, R., “Intervista a Wu Ming. Grillo cresce sulle macerie dei movimenti”, Il Manifesto, 1º mar. 2013. Para uma investigação ampla, mas interpretativamente mais asséptica, ver DIAMANTI, I., Natale, P. (orgs.), “Grillo e il Movimento 5 Stelle. Analisi di un „fenomeno‟ politico”, Comunicazione politica, 1/2013; BIORCIO, R., NATALI, P., Politica a 5 stelle. Idee, storia e strategie del movimento di Grillo, Milão, Feltrinelli, 2013; CORBETTA, P., GUALMINI, E. (orgs.), Il partito di Grillo, Bolonha, Il Mulino, 2013.

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cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após a desilusão com a primeira experiência europeia de sufrágio universal direto (masculino) – que levou, em abril de 1848, à escolha de uma Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao triunfo eleitoral dos conservadores –, o universo republicano derrotado mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portanto, bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napoleão Bonaparte), num amplo debate que identificou aquilo que, na linguagem da época, se chamava de “representomania” como principal responsável por um resultado considerado não apenas imprevisto, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral da soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du peuple intitulava-se significativamente um opúsculo, que reapresentava a velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele contexto, não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como “governo direto”, “legislação direta” e “democracia direta”, desconhecidas do vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira metade do século XIX.2 Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime político, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto conceitual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto universal: o “povo eleitor” reunido em assembleia não é capaz de se autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os mais sábios como governantes.3 De fato, a filosofia de governo direto prevê que o “povo eleitor”, considerado propenso a se enganar e a ser enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo “povo legislador”, que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente) para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hipersimplificação do político, que se recusa a pensar não só a representação, mas também (e sobretudo) o poder executivo, denunciado como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma harmonia destituída de conflito, que subentende a unanimidade em nome da obviedade objetiva das decisões.

2

ROSANVALLON, P., La démocratie inachevée.. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Gallimard, 2000, p. 157-79.

3

FRUCI, G. L., “La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elet-torali per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)”, in RO-MANELLI, R. (org.), “A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali fra

Otto e Novecento”, Dimensioni e problemi dela richerca storica, 1/2008, p. 17-46.

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Gian Luca Fruci

Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na forma sofisticada da “sociedade civil” ou na versão comum das “pessoas”) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte, emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da história pós-unitária.4 Isto é visível precisamente na trajetória editorial do principal texto teórico que, na Península, se encarregou de pleitear a causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual republicano- socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez em 1902, na Suíça, logo em seguida à crise de final do século, com o título Os antigos regimes e a democracia direta. Reeditado em 1926 com o título abreviado A democracia direta, após a tomada definitiva do poder pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira favorável por um breve momento, esta obra foi, por fim, republicada pela editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em 1995 quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas – e, em muitos aspectos, análogas – conjunturas de contestação do sistema político e, consequentemente, da legitimidade da democracia representativa republicana fundada entre 1946 e 1948.5 Não se sabe se o ex-cômico Beppe Grillo e o empresário Gianroberto Casaleggio alguma vez leram Rensi, que terminou sua carreira acadêmica como professor de Filosofia Moral na Universidade de Gênova, mas deve-se sublinhar que o discurso antipartido de ambos é perfeitamente simétrico à critica radical dirigida à classe política, que Rensi retomava, com o próprio conceito, de Gaetano Mosca, estudioso conservador e nostálgico da direita histórica e inquiridor polêmico “de uma política expressiva não mais da sociedade civil, mas de si mesma – ou seja, da classe que vive de política”.6 Nos seus textos programáticos, os dois co-líderes do Movimento 5 Estrelas profetizam o advento iminente da democracia direta, apresentando-o como um produto inevitável da revolução digital em curso, que 4

5

6

LUPO, S., “Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela demo-crazia italiana”, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale, 38-39/2000, p. 17-43; idem, Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978),

Roma, Donzelli, 2004; idem, Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela Republica (prima, seconda, terza), Roma, Donzelli, 2013. RENSI, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico, Bellin-zona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo del passato e dell‟avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo Governi d‟ieri e di domani). LUPO, S., “Il mito...”, cit., p. 21-2

A história (in)finita da democracia direta

127

tornaria possível a realização virtual de um horizonte utópico de expectativas que perpassa toda a história da democracia moderna: a simultânea e imediata participação de todo o corpo político nas deliberações numa unidade de tempo e lugar, segundo o modelo mítico (e mitificado) da democracia clássica.7 De fato, foi a partir da inviabilidade desta aspiração em espaços estatais de grandes dimensões que surgiu historicamente o discurso minimalista a favor da democracia representativa, apresentada como sucedâneo da desejada, mas irrealizável, democracia absoluta dos antigos. No imaginário “cinco estrelas”, a sacralização da “Rede” (grafada, com deferência, com “r” maiúsculo) se configura, assim, como a solução prática de uma aporia constitutiva da tradução procedimental da soberania popular, que parece tão mais eficiente quanto mais olha para o passado e se projeta no futuro, deixando indefinida e problemática sua concretização no presente. Isto ocorre em perfeita continuidade com a história da democracia direta, que é principalmente uma narrativa (in)finita, reapresentada pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si mesma e colocada constantemente em outro lugar, temporal ou espacial (a Atenas de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões helvéticos da Landsgemeinde, o Chiapas do subcomandante Marcos, o blog de Grillo). Em suma, o não lugar representado pela rede, com seus potenciais desenvolvimentos tecnológicos, assume hoje, para Grillo e Casaleggio, uma função mitopoética análoga à das Comunas medievais para Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (Histoire des républiques italiennes du Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de Pasquale Paoli para Jean-Jacques Rousseau (Projet de Constitution pour la Corse, 1765). Hoje, como ontem, o discurso da democracia direta se revela, portanto, eminentemente polêmico e antinômico, além de imaginário. Sua força não deriva da credibilidade dos modelos propostos ou mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclusivamente à realidade que denuncia e proclama querer mudar profundamente, e extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do desenvolvimento histórico, baseada, no século XIX, num racionalismo político de derivação revolucionária e, hoje, num superinvestimento nos poderes taumatúrgicos da “Rede”.

7

CASALEGGIO, G., Grillo, B., Siamo in guerra.. Per una nuova política, Milão, Chiarelettere, 2011, p. 7-15, 61-8; Fo, D., CASALEGGIO, G., GRILLO, B., Il grillo canta sempre al tramonto.. Dialogo sull’Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão, Chiarelettere, 2013, p. 84-96.

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Gian Luca Fruci

Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da democracia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta e contínua ressurjam – não apenas na Itália – precisamente quando a filosofia e a historiografia política contemporânea refletem sobre a originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da democracia representativa, a partir de autores liberais radicais como Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia significativamente que, “se tivesse tido a representação”, Atenas teria “superado sua própria democracia”.8 Faz tempo que, no plano teórico e também no histórico, a dicotomia entre a democracia dos antigos e a dos modernos pode -se dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais articulada da representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se configura como um processo político complexo, capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre representados e representantes.9 Nesse sentido, é necessário trabalhar e inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em conta que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma experiência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático do nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para responder às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os sistemas democráticos desde as próprias origens.10 (Tradução: Alberto Aggio)

Citado em URBINATI, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza nelle democrazie moderne, Roma, Donzelli, 2009, p.11. 9 ROSANVALLON, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, réflexivité, proximité, Pa-ris, Seuil, 2008; URBINATI, N., Democrazia rappresentativa.. Sovranità e controlo dei poteri, Roma, Donzelli, 2010. 10 ROSANVALLON, P., “L‟universalisme démocratique: histoire et problèmes”, Esprit, jan. 2008, p. 104-20. 8

A história (in)finita da democracia direta

129

A recepção de Walter Benjamin na UFPE Michel Zaidan

D

eve-se à filosofa suíça Jeanne-Marie Gagnebin a primeira apre-sentação da Filosofia da História, de Walter Benjamin (1983, 1985) entre nós, apesar de que sua tese de doutorado sobre

o pensamento deste autor nunca tenha sido traduzida e publicada no Brasil (1978). A introdução bibliográfica de Jeanne-Marie trata de temas e conceitos recorrentes na obra benjaminiana, como: memória, alegoria, salvação, crítica e narrativa, e possui uma forte conotação re-ligiosa (judaizante), muitos anos depois aprofundada num livro maior intitulado História e narrativa em Walter Benjamin (1994).

A recepção “talmúdica” da obra de Walter Benjamin recebeu de Jeanne -Marie Gagnebin um tratamento filológico e hermenêutico avesso a todo e qualquer esforço de aplicação, adaptação ou utilização metodológica por parte de outros estudiosos, a ponto de a autora afirmar não existir um método ou possibilidade de aproveitamento metodológico dos ensaios do filósofo judeu. Comentando o boom do interesse despertado no público brasileiro pela obra de Walter Benjamin, diria Jeanne-Marie: “Retomar este pensamento nos parece significar mais do que parafraseá-lo com entusiasmo ou seguir uma moda ditirâmbica: entusiasmo e ditirambos dos quais os países latinos são pródigos quando descobriram um pouco tardiamente este autor, judeu, teólogo e marxista aureolado pelo seu trágico e exemplar suicídio” (1994). Em mais de uma ocasião, a autora voltaria a insistir que não há como extrair qualquer indicação metodológica dos trabalhos de Benjamin, dado o caráter fragmentário e complexo de sua obra, que consistiria mais “na destruição crítica” do que na construção de novas verdades. A posição de Jeanne-Marie Gagnebin contrasta vivamente com a do historiador e crítico alemão Wille Bollie, que extraiu um “método fisionômico” – do “trabalho das passagens” – e o aplicou ao estudo comparado de três metrópoles – Berlim, Paris e São Paulo (2001). Bollie – em flagrante desacordo com a filósofa suíça – não só defende a possibilidade de uma apropriação metodológica da obra benjaminiana, a partir do conceito de “imagens dialéticas”, como aplica essa 130

metodologia ao estudo da metrópole moderna (1994). Mas, ao que parece, o professor alemão desconhece a recepção da obra de Walter Benjamin no Brasil, pois afirma abertamente que até hoje os historiadores não conhecem ou se apropriaram das sugestões teórico-metodológicas oferecidas pela obra desse autor, se limitando a comentá-la. A impudente afirmativa de W. Bollie ignora solenemente a monumental pesquisa de campo feita, aliás, por um orientando seu, Gunther Karl Pressler, que mapeou – como ninguém antes fizera – a recepção da obra de Benjamin entre nós, no período que vai de 1960 até 2005 (2006). Segundo Karl Presley, a história da recepção do pensamento de Walter Benjamin no Brasil pode ser dividida em quatro fases e uma das principais fases é justamente a da aplicação criativa da obra benjaminiana ao contexto da redemocratização brasileira, quando o país buscava redescobrir (ou “inventar”) a sua identidade. É nesta fase, marcada pelo início da publicação das obras escolhidas, pela editora Brasiliense, que As teses sobre o conceito de História, O Narrador, A Origem do Drama Barroco Alemão e tantos outros passaram a ser largamente utilizados para repensar o país e os problemas de seu povo. Período este que seria substituído por uma época de estudos filológicos e hermenêuticos. Estudos esses voltados para o espírito e a letra do texto benjaminiano (2006). A chamada fase da aplicação criativa da obra de Walter Benjamin no Brasil levaria Pressler a refazer a conhecida tríade hermenêutica, da seguinte forma: ao invés de compreender, interpretar e aplicar: ler, aplicar e entender (p. 347). o0o O que se segue abaixo é uma pequena amostra das possibilidades de aplicação criativa do “método benjaminiano”. A ideia de usar o “corpus” crítico-filosófico de Walter Benjamin, a partir de conceitos como alegoria, reconstrução, memória e crítica salvadora, nos cursos de graduação de História, começou a ser posta em prática na Universidade de Brasília (UnB), em 1988, durante um semestre sabático gozado no Departamento de História dessa universidade. No decorrer desse semestre, estudamos os textos filosóficos de W. Benjamin na perspectiva de utilizá- los metodologicamente no estudo e na interpretação do passado ou de obras literárias, pictóricas ou cinematográficas. Ensaios como O Narrador, As teses sobre o conceito de História, A Origem do Drama Barroco Alemão e outros, foram lidos e debatidos A recepção de Walter Benjamin na UFPE

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pelos alunos, para servirem de inspiração metodológica na análise das obras literárias ou filosóficas. Dessa experiência pioneira resultou uma pequena brochura: Razão e História (1988), depois ampliada e refundida no livro: A crise da razão histórica (1989), com o registro integral da rica experiência hermenêutica dos alunos. Este livro é, na verdade, uma coletânea de ensaios de teoria e metodologia da História, de franca inspiração frankfurtiana. Trata do Brasil e do mundo, de Marx, Foucault e da pós-modernidade. Contudo, o que interessava acima de tudo era o resgate das tentativas de apropriação crítico- reconstrutiva pelos alunos dos conceitos benjaminianos. Afora as tentativas de utilização de textos de autores consagrados como Proust, Baudelaire, Kafka, Homero etc. O mais importante foi o resultado – altamente estimulante – desse trabalho. Para esta atividade foi fundamental o conceito-chave de “interferência”, estudado mais sistematicamente pelo ensaísta e crítico André Luís Rezende nas aulas do curso de pós-graduação em História. O leitor como interferente – este era um aspecto essencial da estética da recepção, de Hans Robert Jauss. A ideia de que a verdade da obra ou do texto pertence ao leitor (ou ao crítico) foi a inspiração para os exercícios de leitura/interpretação de um texto, como réescritura, como co-autoria e a interferência na obra de um determinado autor. A técnica da interferência levou alguns alunos a relerem obras consagradas, ora modificando, ora alterando ou acrescentando sentidos ao texto. Os exercícios de interferência geraram vários produtos: livros (como o Palco da História), peças de teatro e de vídeo (como O despertar do sonho e a Serpente da Casca) . Todo esse esforço hermenêutico e criativo extrapolou os muros da universidade, sendo apresentado em outras instituições pelo grupo de alunos que compunha o Teatro Vivo. A ideia era seguir o conceito de “atualização” benjaminiano (de franca inspiração nietzschiana), em que o presente interage com o passado e o passado com o presente, numa espécie de “transtemporalidade”. Este método de leitura e interpretação da História se opunha à visão linear ou evolutiva do processo histórico, identifi cada com uma concepção vulgarizada do materialismo histórico. Assim, os alunos não se limitavam apenas a conhecer ou analisar a História: eles “atualizavam” o conhecimento histórico, a partir de suas experiências do presente. E o resultado era a transformação do passado. A reescritura do passado. 132

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Depois vieram as dissertações de mestrado inspiradas em vários aspectos do caleidoscópio benjaminiano: a alegoria, as imagens dialéticas, a história dos vencidos, a filosofia apócrifa etc.; pesquisas em Letras, Filosofia, História, Comunicação Social. Trabalhos estes que incorporavam sugestões e inspirações benjaminianas em suas análises e pressupostos. Entre estes, destacam-se as teses de Marcos André de Barros (História e utopia) em Filosofia, que analisa a filosofia da História de W. Benjamin, o de Alípio Carvalho Neto (A alegoria “no imaginário do Homem e sua hora, de Mário Faustino”), em Letras, a dissertação de Angélica de Araújo (As imagens dialéticas sob um olhar sociocrítico em Ignácio Loyola Brandão) e o trabalho de Telma Rego (A paixão segundo GH), discutindo estranhamento, alegoria e iluminação. Em História, apareceram as teses de Simone Garcia (Canudos reconstruída) e de Lucile Granjeiro (O drama barroco dos exilados nordestinos). O ponto alto dessa larga e fecunda influência foi a comemoração do Centenário de nascimento de Walter Benjamin (abril de 1992), no auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com a presença de vários estudiosos da obra benjaminiana: críticos literários, historiadores, filósofos debateram, durante toda uma manhã, os vários aspectos dessa obra, produzindo um suplemento literário para um periódico local (Jornal do Comércio) e um livro publicado pela Editora Universitária da UFPE, com a tradução de um texto inédito em português de Walter Benjamin sobre a história da literatura e a crítica literária, intitulado Walter Benjamin e a cultura brasileira (1994). Referências GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Os cacos da História. São Paulo: Brasiliense, 1983 e 1985. ______ . História e Narrativa em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. ______ . A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. Discurso. São Paulo. 1983. BOLLIE, Wille. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Edusp, 1994. PRESSLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil. São Paulo: Annalume. 2006. ZAIDAN FILHO, Michel. Razão e História. Recife/Brasília: UFPE/UnB.

1988. A recepção de Walter Benjamin na UFPE

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______ . A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989. ______ . Walter Benjamin e a cultura brasileira. Recife: UFPE, 1994.

_______. O palco da História.. Exercícios de interferência histórico-dramático-literária. Recife: UFPE. _______. O centenário de Walter Benjamin. Suplemento cultural do Jornal do Comércio. Recife, abril de 1992. GARCIA, Simone. História e literatura: Canudos. Curitiba: HDL, 2004. GRANJEIRO, Lucile. O drama barroco dos exilados nordestinos. Fortaleza: UFC, 2007. REGO, Telma. Alegoria, estranhamento e iluminação em A paixão segundo GH.. (Dissertação em Letras). Recife: UFPE, 1998.

BARROS, Marcos André. História e Utopia em Walter Benjamin.. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Recife: UFPE, 2003.

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Michel Zaidan

VII. Memória

Autores Lúcio Flávio Pinto Editor do Jornal Pessoal, de Belém/PA..

Nerina Visacovsky Professora da Universidade Nacional de San Martin, Buenos Aires, Argentina..

O Idisher Cultur Farband (ICUF): uma história entre knishes, mates e caipirinhas Nerina Visacovsky Introdução As instituições socioculturais e educativas agrupadas na Federação de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband (Icuf), construíram uma identidade particular nos seus sócios, a partir da conjunção de componentes da tradição laica europeia com o ideário comunista soviético e um compromisso indeclinável com o ser nacional (VISACOVSKY, 2009). As instituições judaicas-progressistas (em iídiche, progressive) da América Latina surgiram justo onde se conformaram núcleos mais ativos de imigração judaica na Argentina, no Brasil e no Uruguai. No período dos anos 1920 e 1930, escolas, bibliotecas, teatros e organizações de solidariedade constituíram a base sobre a qual, com o impulso do comunismo na sua etapa de frente popular, tomaram corpo as entidades que construíram essa rede durante os anos 1940 e 1950. 1

1

As adições ao Icuf e o andamento das instituições foi de caráter mutável ao longo do século XX. No entanto, no auge (durante as décadas de quarenta e cinquenta) podemos identificar na Argentina: Sociedad de Residentes de Varsovia (Once, Capital Federal); Asociación Cultural Israelita de Córdoba (Córdoba); Asociación Cultural Israelita de Tucumán (Tucumán); No Brasil, entre outras: Casa do Povo, Escola Israelita Brasileira Scholem Aleichem, kinder-club I.L.Peretz (São Paulo); Biblio-teca Israelita Scholem Aleichem (Bibsa) que depois transformou-se na “Associação Scholem Aleichem” de Cultura e Lazer do Rio de Janeiro, o Clube dos Cabiras e a Escola Scholem Aleichem (Rio de Janeiro); a União Israelita de Belo Horizonte; o Clube de Cultura de Porto Alegre; a Sociedade Cultural Israelita do Paraná; a So-ciedade Israelita da Bahía; o Clube Canaã de Santos; e, a Colônia de férias Kinder-land de caráter nacional.

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Tomando como referência o artigo de Dina Lida Kinoshita, “O Icuf como uma rede de intelectuais” (KINOSHITA, 2000), o presente trabalho tem a intenção de ser um primeiro exercício na tarefa de comparar esses grupos. Na nossa perspectiva, explicar a identidade icufista não supõe simplesmente o fato de comparar a história da coletividade judaica com a do Partido Comunista, mas também trata-se de uma tentativa de reconstruir uma identidade nova, de caráter mutável, surgida daquela conjunção, mas que se tornou mais complexa pela intervenção de outras variáveis, especialmente as nacionais, isto é, a dos novos lares. Prolegómenos de uma identidade (1917-1935) Em 1922, a partir da cisão do anarquismo, surgiu o Partido Comunista – seção brasileira da Internacional Comunista, sob a liderança de Astrojildo Pereira. Aquilo foi uma novidade na América Latina, pois, na Argentina e na Europa, os PCs foram produto de divisões no socialismo (Devoto e Fausto, 2008). Na Argentina, parte dos judeus que integraram o PCA vinham do Partido Operário Judaico mais conhecido como Bund (União),2 embora muitos reconhecessem nele um passado anarquista (VISACOVSKY, 2009). Os partidários do Bund apoiavam o Partido Socialista, de Juan B. Justo e Alfredo Palá-cios, mas rejeitavam a política “assimilacionista” que eles propu-nham para os imigrantes. Enquanto o Bund mantinha sua auto-nomia cultural e idiomática, boa parte dos seus seguidores passou ao comunismo quando, habilmente, a III Internacional organizou as Seções Idiomáticas. Assim, por meio da “Idsektzie”, mais conhecida como a Ievreiskasektsia,3 os judeus conseguiam militar numa orga-nização mais ampla na própria língua deles. A presença judaica no PCA, sob a liderança de José Penelón, Rodolfo Ghioldi e Victorio

Codovilla, estimava-se em 14%, no final dos anos vinte, enquanto o seu órgão de imprensa em iídiche, Roiter Shtern (Estrela Vermelha), conseguia duas mil assinaturas e a tiragem era de três mil e quinhentos exemplares só suplantada por La Internacional, em espanhol (CAMARERO, 2007). 2

3

Bund, em alemão, significa aliança ou união, e a forma abreviada para se referir à União Geral de Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia. Foi um movimento político judeu de corte socialista não sionista, surgido no Império Russo no final do século XIX, especificamente na cidade de Vilna, em 1897. Foi um dos principais partidos que deu impulso ao Partido Operário Socialdemocrata Russo desde 1898, embora depois seus seguidores se posicionaram contra e ainda se rebelaram contra tendências centralistas dos bolcheviques russos. Seção Judaica do Partido Comunista.

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Ao lado desses dois grupos é possível identificar uma terceira linha, conformada pelos “sionistas -marxistas”, partidários das ideias de Dov Ber Bórochow, chamados de “borochowistas” ou “poalesio-nistas” (do Partido Linke Poale Tzion, ou Partido da Esquerda dos Trabalhadores de Sion). No Brasil, não existiram organizações seme-lhantes pela pouca inserção operária da coletividade; embora seja possível encontrar algumas delas funcionando em escolas, biblio-tecas e centros operários idichistas vinculados ao PCB, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao longo desse período, os judeus comunistas brasileiros contribuíram com o Setor de Finanças do PCB (KUPERMAN, 2003). Já em meados da década de trinta, seguindo ordens de Moscou, os comunistas (judeus e não judeus) dedicaram especial atenção ao levante liderado por Luíz Carlos Prestes.

A evidência indica que enquanto os imigrantes judeus da Argentina e do Uruguai tentavam reproduzir o Ídichkeit ou a “atmosfera judaica” do Leste Europeu, os radicados no Brasil tinham tendência de participar mais ativamente na política local. Otávio Brandão, em pessoa, relata nas suas memórias quanto foi importante a reunião de organização do PCB, em fevereiro de 1925, realizada na sede de um centro cultural israelita (Bibsa) na Praça Onze (KUPERMAN, 2003). Na Argentina, as experiências da esquerda judaica foram mais nume-rosas, visto que os imigrantes judeus duplicavam – e no limiar da década de cinquenta quase triplicavam – na comparação com os radicados no Brasil (DELLA PÉRGOLA, 1987).4 O certo é que, ao longo dos anos vinte, os grupos marxistas se multiplicaram até à chegada da primeira grande crise que aconteceria com os golpes de Estado, nos dois países, durante os anos 1930. No Brasil, o PCB já era ilegal e Getúlio Vargas aprofundou a repressão enquanto José Félix Uriburu declarara a ilegalidade do PC argentino. Ambos ilegalizaram organizações vinculadas a esses partidos. Na Argentina, como no Brasil, a censura do iídiche, por parte dos governos, relacionava -se à ideia de proibir o “código” utilizado pelos suspeitos de uma “conspiração judaica-bolchevique”. Então, além das dificuldades idiomáticas e culturais, havia o risco de serem presos ou expulsos. Paralelamente ao desejo de integração à nova nacionalidade argentina ou brasileira, o que motivava os imigrantes judeus 5 a 4

�������������������������������������������������������������������������������Obviamente,considerandoaproporçãodejudeusemrelaçãoàtotalidadedapopu-lação

do

pais,

a coletividade

resulta mais minoritária ainda no caso brasileiro.

5

������������������������������������������������������������������������������������NaArgentina,aindatinhavigênciaaLeideResidêncianº4.144de1902,quepermi-tia

expulsar

os

estrangeiros considerados indesejáveis. Muitos judeus de esquerda sofreram as consequências dessa lei, que finalmente foi derrogada no governo de

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militar ou simpatizar com os comunistas, durante esses anos? Existem diversas explicações possíveis: no sentido prático, graças às seções idiomáticas criadas pelo PC, os judeus podiam militar na sua própria língua; além disso, desde o começo da conformação do Partido Operário Social-Democrata Russo, os bolcheviques tinham, dentre suas consignas, a luta contra o antissemitismo. Como não captar a adesão judaica depois da Revolução de 1917, e mais tarde, quando lideraram o movimento antifascista? Pela primeira vez no mundo e na Rússia, onde o czarismo tinha perseguido e assassinado judeus, a reivindicação da minoria judaica encontrava um espaço no Estado Soviético. A mídia da época mostrava que os judeus conseguiam acesso a direitos iguais aos demais cidadãos na URSS e crescia o projeto da República do Birobidján, onde parecia possível a fusão do Ídichkeit e a nova cidadania. Porém, os motivos não eram somente internacionais. No nível local, na Argentina de Yrigoyen, o movimento operário se fortalecia, cada vez mais, e, no Brasil, a Coluna Prestes anunciava tempos de mudança. Entre os líderes da Komintern, a própria compa-nheira do Cavaleiro da Esperança, Olga Benario – mulher, judia e comunista – encarnava as características mais vanguardistas dos revolucionários. Surgimento e transformação do icufuismo As primeiras tentativas de conformar uma Federação Internacional Cultural Judaica se originaram a partir de junho de 1936. Escritores judeus antifascistas se reuniram, em Paris, sob o lema “Em defesa da cultura judaica” e concordaram na organização ampla de um Congresso Internacional no qual não faltasse a presença judaica (GLIKSBERG , 2008). O clima vivido na Europa tinha seu reflexo no continente americano. A III Internacional, em 1935, tinha avaliado a urgência de constituir frentes populares para enfrentar o “inimigo fascista” e conclamava os Partidos Comunistas a mudar a estratégia de “classe contra classe”, buscando alianças com a “burguesia progressista”. Principalmente ligados ao PC francês, um grupo de escritores ídichistas decidiu fazer uma convocação muito ampla para esse Congresso, onde foi fundado o Yídisher Kultur Farband (Ykuf). Sob a liderança do escritor francês Haïm Slovès e o norte- americano Iosef Opatoshu, entre outros, precisamente entre 17 e 22 de setembro de Arturo Frondizi.

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1937, delegados provenientes de vinte e dois países proclamaram trabalhar pela “união dos povos na luta contra o fascismo, o antissemitismo e a defesa da cultura judaica”. Como é explicado por Dina Lida Kinoshita, o Ykuf seguia a mesma forma “hierárquica e vertical” que a Internacional Socialista e Comunista. Porém, a II Guerra Mundial modificou a forma organizacional e os grupos da América Latina adquiriram autonomia (Kinoshita, 2000). O Icuf latino-americano constituiu -se, no dia 11 de abril de 1941, num congresso, em Buenos Aires. Participaram 57 institui-

ções representando 8.900 ativistas e associados da Argentina, Uruguai, Brasil e Chile.6 Tanto na Argentina quanto no Brasil, várias instituições judaicas laicas pré-existentes aderiram à Federação, e outras foram constituídas posteriormente sob sua órbita.7 Na arena internacional, por volta de 1941, a resistência do Exército Vermelho na frente oriental ante o avanço do nazismo e a constituição dos Aliados ampliaram a simpatia pelo Partido Comunista. No final da guerra, os soviéticos tinham perdido “27 milhões de homens”,8 mas com a tomada de Berlim, em 1945, foram coroados como “salvadores da humanidade”, e assim seriam considerados pelos icufistas, desde então. Os dirigentes icufistas, homens e mulheres, eram em geral figuras multifacetadas. Eram trabalhadores da classe operária, alguns deles militavam nos seus âmbitos laborais e contavam com grande capacidade organizativa e autodidata. Vários deles destacavam-se como escritores, jornalistas ou professores de iídiche. Por sua herança europeia, alguns dominavam o russo, o francês ou o polonês. Relativamente ao público icufista, sua composição era mais heterogênea (situação que seria intensificada ao longo das décadas), embora majoritariamente fosse composta por esquerdistas e judeus não sionistas.

A chegada das democracias, nos anos oitenta, trouxe novos ares de liberdade, mas também outras possibilidades de militância, participação cultural, educação e lazer. Nos últimos tempos, as entidades e público icufista se reduziram notavelmente em toda a região, porém, após as fusões e reagrupamentos, várias instituições ainda 6 7

No Chile, os grupos foram minoritários e diluíram-se rapidamente. Reconstrução da autora baseada nos distintos artigos da Revista ICUF da década de quarenta.

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Eric Hobsbawm afirmava que as baixas nos territórios soviéticos, como todas as cifras exatas da II Guerra Mundial, são meras especulações. Em diversas oportuni-dades, fontes oficiais chegaram a calcular 7, 11, 20, ou 30 milhões (Historia del Siglo XX, Buenos Aires: Crítica, 2007, p. 51). A autora considerou a cifra de 27 milhões porque coincide com as registradas pelos icufistas nos seus discursos e publicações.

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estão ativas. As motivações provindas da conjuntura nacional são apenas uma parte da história. A outra, extensa e complexa, vincula-se com eventos internacionais ocorridos entre a II Guerra Mundial e a derrocada da URSS, nos anos noventa. A seguir, enumeramos brevemente os principais acontecimentos. Os anos das frentes populares (1935-1945) A etapa das frentes populares foi muito produtiva para atrair simpatizantes da esquerda judaica para o comunismo e as institui-ções do Icuf. A primazia da consigna “antifascista” permitiu incorporar profissionais e intelectuais, qualificados pelo PC como a “burguesia progressista”. Isto é, diferentemente do período de “classe contra classe”, a diretiva de formar alianças com os setores democráticos progressistas permitiu aos judeus comunistas conciliar seus inte-resses étnicos, culturais e econômicos, com os político-partidários. Na época do surgimento do Icuf, a polarização fascista-antifas-cista sensibilizava o Ocidente. Os setores que apoiavam os naciona-lismos europeus e desprezavam as democracias liberais eram bastante similares; um ato de “camisas verdes” da Ação Integralista Brasileira, em Petrópolis, em 1935, não estava muito longe do próprio ato pró-nazista no estádio Luna Park, em Buenos Aires, em 1938.

Tanto no Brasil quanto na Argentina, a esquerda combatia esses grupos em todas as formas possíveis; desde o “esclarecimento” através da imprensa, o boicote presencial aos atos fascistas, ou a organização de conferências em centros educacionais e culturais como os do Icuf. Um momento crítico, nessa etapa, originou -se em 1939, a partir da assinatura do pacto germano -soviético. Os judeus progressistas estavam desconcertados e vários desconfiaram das intenções estratégicas de Stalin. Contudo, em 1941, o cenário mudou novamente, a coletividade voltou a dar crédito à URSS e ao Exército Vermelho. Com o final da Guerra, vários comunistas judeus no Brasil chegaram à direção do PCB. Em São Paulo, Elisa Kaufman Abramovich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a mais votada numa bancada de 15 vereadores comunistas (Kinoshita, 2000). No Rio de Janeiro, David Lerner foi eleito vereador em 1947, quando depois de uma longa ilegalidade, o PCB apresentou uma lista de cinquenta candidatos a vereador.

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O Estado de Israel e os anos da Guerra Fria (1945-1967) No começo do pós-guerra, russos e americanos tinham começado a conformar alianças estratégicas com os novos Estados nacionais e os que estavam em processo de reconstrução após 1945. No ano seguinte à famosa declaração de Churchill e a Cortina de Ferro, nas Nações Unidas votava-se a divisão da Palestina. Os judeus do mundo manifes-taram-se a favor da criação do Estado de Israel. Jovens idealistas e militantes sionistas se apresentaram como voluntários para o exército e a construção da vida kibbutziana. A Guerra da Independência contra a resistência árabe foi apoiada pela maioria das nações e os soviéticos foram os primeiros a ajudar o Estado de Israel. Quatro anos depois, o vínculo entre a URSS e Israel tinha mudado radicalmente. As alianças russas com os países árabes, o alinhamento de Israel com os Estados Unidos e as campanhas stalinistas contra as minorias nacionais, especialmente o sionismo, determinaram uma polarização de caráter internacional. Foi assim como a Guerra Fria começou a se projetar sobre a coletividade judaica. Naqueles anos, e como no período anterior à guerra, os sionistas responsabilizaram o comunismo de fomentar o antissemitismo. O informe da American Jewish Committee para a América Latina, no início dos anos sessenta, expressava claramente: “jews could never be communists” (WIAZOVSKI, 2011).

A idealização dos judeus com o universo soviético sofreu o primeiro grande choque com a notícia sobre a morte do diretor do Teatro Iídiche de Moscou, Salomon Mikhoels, num acidente de carro, em Minsk, em 1948. O fato propiciou a aparição de todo tipo de suspeitas no meio judaico. Mikhoels, que fora presidente do Comitê Judaico Antifascista, tinha sido enterrado com honras em Moscou, porém isso não impediu que começassem a circular versões segundo as quais a morte do diretor tinha sido produto de ordens específicas de Stalin. O segundo impacto aconteceu com as notícias dos processos de Praga, primeiro sobre o secretário-geral do Partido, Rudolf Slánsky, e seus outros dez dirigentes judeu-tchecoslovacos; logo depois, sobre os 13 escritores judeus do mencionado Comitê que foram assassi-nados no dia 12 de agosto de 1952. Para os icufistas, ficava difícil acreditar naquilo: Peretz Markish, David Berguelson ou Itzik Fefer, entre outros, foram os grandes escritores do idichismo soviético. O impacto seguinte foi o suposto “complô contra os médicos judeus”, em 1953. Finalmente, o maior choque aconteceu em 1956, quando foi divulgado o relatório “secreto” de Nikita Kruschev, durante o XX Congresso do PCUS (KINOSHITA, 2013). Naquele ano, também, as tropas soviéticas reprimiram o levante da Hungria e, nele também, a O Idisher Cultur Farband (ICUF)

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URSS fez aliança com os países árabes, enviando armas para o Egito via Tchecoslováquia. Foi assim que 1956 constituiu o ano crítico e muitas pessoas se distanciaram das organizações comunistas, tanto na Argentina quanto no Brasil. No Brasil, os icufistas convidaram Jorge Amado, recém -chegado da URSS. Mais de cento e cinquenta pessoas escutaram-no dizer que tudo era mentira, que os escritores estavam muito bem (LERNER, 1990) . Argentinos e brasileiros faziam as mesmas perguntas: como podia ser que a URSS, que movimentou o mundo inteiro contra o nazismo e salvou a humanidade, cometesse aqueles crimes? Alguns militantes e simpatizantes se distanciaram do Icuf e outros se tornaram anticomunistas convictos. Porém, uma boa parte se acostumou rapidamente ao “degelo” e à “volta de Lênin”. Entre 1957 e 1958, com profundo pesar, a direção do Icuf emitiu comunicado lamentando os assassinatos cometidos pelos “traidores” da causa soviética – como Béria. Durante a década de sessenta, o movimento sionista consolidou-se e diversificou-se em partidos de esquerda ou direita, mas sempre sob a lógica de considerar o Estado de Israel como eixo central da vida judaica. Frente a esse posicionamento, os icufistas declararam a importância de os judeus darem preeminência à nacionalidade argen-tina ou brasileira sobre a “cidadania israelense”. Enquanto as escolas sionistas ensinavam hebraico a seus filhos, preparando-os para fazer o seu aliá,9 os icufistas defendiam seu ídichismo e apostavam na inte-gração de seus jovens na política nacional e latino-americana, em que ser judeu não deveria diferenciá-los dos demais cidadãos. Em 1967, a Guerra dos Seis Dias, no Oriente Médio, e, em 1968, o “Socialismo com face humana”, aniquilado em Praga, desconcertaram novamente o público icufista no tocante às ações da URSS. Não obstante, os dirigentes entenderam que se tratavam de “caminhos necessários” na luta dos povos oprimidos, como eram Argélia, Cuba ou Vietnam, no primeiro caso; e para proteger a URSS dos seus inimigos, no segundo. A guerra no Oriente Médio e o apoio dos icufistas

à Organização pela Libertação da Palestina (OLP), criada pela Liga Árabe, em 1964, dividiram instituições, redes sociais e familiares.

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Do hebraico, “ascenso”. É o termo utilizado pelos sionistas para referir-se à migração a Israel.

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Nerina Visacovsky

Pensamentos finais Desde a chegada dos imigrantes ao Brasil e à Argentina, os judeus de esquerda encontraram, na Internacional Comunista e nos PCs, a possibilidade de se expressarem em iídiche e assim proteger o seu acervo cultural europeu. As redes de socialização partidária e o pensa-mento judaico-progressista lograram um sincretismo que resultou na emergência do movimento icufista. Os dirigentes do Icuf conseguiram amalgamar o ídichkeit europeu com o marxismo e as causas da esquerda nacional. A luta contra o nazismo e o fascismo durante a II Guerra Mundial marcou a incondicional reverência dos judeus comu-nistas ao mundo soviético. A partir de 1956, devido aos crimes stali-nistas, com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a repressão em Praga, em 1968, a disciplina partidária distanciou muitos simpatizantes e militantes, tanto do Partido quanto do Icuf. Mas, por que era tão difícil aceitar o inexplicável, o que resultava ideologicamente contraditório? Por uma parte, pensar diferente ou dissentir, obrigava-os a cortar vínculos com amigos, instituições ou outros círculos de pertinência. Por outra parte, seja porque se sentissem mais “judeus” ou mais “comunistas” (tanto na Argentina quanto no Brasil) essa operação obrigava à reformulação de uma profunda desconstrução identitária. Porém, existe mais um elemento. A vinculação ideológica aos partidos comunistas era para os imigrantes judeus, como foi também para a geração dos seus filhos, uma opção que podiam compartilhar com uma sociedade mais ampla, uma sociedade majoritariamente não judaica. Como explicava Teresa

Porzecanski, no caso uruguaio, a filiação ideológica operou como um importante elemento integrador à sociedade receptora (Porzecanski, 1990). O escritor ídichista Moishe Olguín, delegado ao Congresso em Paris, tinha se manifestado de forma similar sobre como estipular as bases da Federação Ykuf (1937): “precisamos de uma cultura que não separe o povo judeu do não judeu”. Com esse espírito, foram gestadas as instituições icufistas argentinas, uruguaias e brasileiras. Referências BLOCH, Marc. Pour une histoire comparée des sociétes européennes, publicado originalmente em Mélanges historiques, París, S.E.V.P.E.N., 1963 CAMARERO, Hernán. A la conquista de la clase obrera.. Los comunistas y el mundo del trabajo en la Argentina 1920-1935,

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O Idisher Cultur Farband (ICUF)

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Nos 180 anos da Cabanagem

Lúcio Flávio Pinto 1. Não há dúvida que Filipe Patroni é, pelo menos, a mais curiosa e enigmática figura da era dos “motins políticos”, conforme a classificação que o historiador Domingos Antônio Raiol, a maior fonte da história desse período, deu aos acontecimentos no Pará entre 1821 e 1835. Ele é costumeiramente associado à Cabanagem. Mas quando a revolta popular irrompeu, em 7 de janeiro de 1835, já havia se transferido para o Rio de Janeiro – e se manifestou contra os cabanos. Começou a advogar na capital do império quando voltou de Lisboa, em 1823. Cinco anos depois, deixou o seu escritório e retornou para se casar com sua prima, Maria Ana. Ficou em Belém durante menos de um ano. Em 1829, assumiu o cargo de juiz de fora de Niterói, que era então a comarca de Praia Grande. Só em 1842 morou de novo em Belém. Depois de vender seus bens, inclusive escravos, em 1851 foi de vez para Lisboa, onde morreu em 1866, aos 68 anos de idade. Nessa trajetória, nada mais teve a ver com os movimentos populares.

Sugestivamente, seu controvertido primeiro livro, A Bíblia do Justo Meio da Política Moderada, com o subtítulo de Prolegômenos do Direito Constitucional da Natureza, foi publicado em 1835. A partir daí sua produção intelectual foi se distanciando dos acontecimentos históricos e da racionalidade, avançando para delírios filosóficos beirando a completa demência. Eram delírios numa mente poderosa, que deu a Patroni fluência em línguas vivas e mortas (francês, inglês, espanhol, grego, latim, sânscrito e a língua geral dos índios) e um conhecimento enciclopédico e erudito. Sua última produção intelectual com vínculos programáticos foi a Cartilha Imperial , com a qual pretendia influir na formação de Pedro II. Começou a escrevê-la no Rio, em 1838, e a concluiu em Belém, em 1840, ano da anistia do imperador aos últimos cabanos que ainda estavam com as armas nas mãos. Nada do que sobreviveu de Patroni indica qualquer interesse da parte dele por esses eventos. Mas, se há um ideólogo na origem das irrupções sociais e políticas do Grão Pará, ele é Patroni. Na apresentação das suas obras esco148

lhidas, publicadas pelo Conselho Estadual de Cultura em 1976, a historiadora Anunciada Chaves, presidente do órgão, diz que Patroni, “figura singular e fascinante de liberal apaixonado e revolucionário, dotada de extraordinária capacidade mental, dedicou a vida toda às grandes causas políticas – Independência, Abolição e República”. Há certo exagero nessa afirmativa, mas não muito. Patroni foi, de fato, um defensor da monarquia representativa, com a divisão de poderes entre o monarca e o parlamento, entre a nobreza e o povo. Foi o tribuno e o ideólogo dos direitos civis conquistados pela revolução francesa três décadas antes do momento mais intenso da sua participação. O que a detonou foi a revolução constitucionalista de 1821 em Portugal, que acabou com a monarquia absolutista. Patroni não foi, a rigor, um precursor – e menos ainda ativista – da independência brasileira. O que ele queria era conquistar certas liberdades públicas e certas vantagens junto à metrópole. O ofício que carregou consigo para chegar à corte ressaltava que o povo do Pará “portuguesamente” amava o rei e que, “por tantos títulos, deseja que se estreitem cada vez mais os laços, que sempre nos têm unido”. Patroni queria “ver já unido o Amazonas ao Tejo”. Ele parecia convencido da possibilidade de eliminar a espoliação colonial, mesmo sem acabar com a dominação portuguesa. No discurso que fez perante às cortes reunidas em Lisboa, se referiu ao “jugo” de dois séculos e disse que, com o movimento que eclodiu em 1º de janeiro de 1821, em Belém, esse jugo “foi sacudido”. O povo não se dispunha mais a “baixar de novo a cerviz”. Seu febril empenho foi mobilizado para transportar essas conquistas para o Pará, que vivia sob a tirania de sucessivos governa-dores gerais e comandantes militares mandados por Lisboa. Pode parecer que suas idas e vindas entre as duas capitais, a metropolitana e a colonial, possam ser interpretadas como prova do seu oportu-nismo. O que ele pretendia, ao estabelecer a ponte entre a vanguarda lisboeta e a retaguarda belenense, era se estabelecer como líder, repre-sentante e porta-voz na relação entre esses dois mundos. Mas essa é uma visão pobre e equivocada. Patroni tinha ambições de poder, um poder exercido pela elite, mas era sincero e fundamen-tado o seu desejo de abrir maior participação popular. Suas iniciativas e sua desenvoltura, que lhe permitiram arranjar o parque gráfico para a publicação de O Paraense, derivavam do poder do seu padrinho, de quem adotou o nome, o capitão de fragata Felipe (ou Filipe: ainda há controvérsia a respeito, como em quase tudo mais sobre o personagem) Alberto Patroni. Mas o risco havia e o dele foi sério. Nos 180 anos da Cabanagem

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O apadrinhamento foi fundamental para que ele se livrasse da prisão a que foi condenado em Belém, mas, mesmo assim, ele precisou de artimanhas para conseguir escapar para Lisboa. Em 25 de junho de 1822, a junta provisória do governo civil, que tanto lhe devia, determinou ao ouvidor geral que “imediatamente lhe declare e apresente ordem” pela qual mandou Patroni para Lisboa, quando ele devia ser mantido preso em Belém, como estava, por ordem do rei, expedida pelo juiz da correição do crime da corte e casa. Nesse mesmo dia, a junta comunicou ao comandante da fortaleza da Barra ter sabido que por ali Patroni foi deixado passar, “sem que fosse munido de passaporte algum” da própria junta “que lhe permitisse a saída desta Província”. O militar foi advertido sobre o “extraordinário acontecimento de que as suas funções de comandante o tornaram responsável”. São indicadores do perigo que Patroni passou a representar para as autoridades constituídas quando, ainda em Lisboa, descobriu serem “hostis ao Brasil as intenções da corte, convencendo-se logo de que nada havia que esperar da metrópole”, como assinala Raiol. Imediatamente, ele começou a “preparar os ânimos de seus conterrâneos para a grande obra de emancipação de sua pátria”. Redigiu uma circular “em que, anunciando a eleição de nova junta administrativa, provocava os seus concidadãos a seguir o exemplo de Pernam-buco”. Antes de retornar, mandou uma circular, apreendida e trans-formada em peça da denúncia contra ele. O que mais assustou o ouvidor José Ribeiro Guimarães foi o parágrafo 10 do Plano das Eleições concebido por Patroni, que estabelecia: “Um deputado deverá corresponder a cada trinta mil almas, entrando nesse número os escravos, os quais, mais que ninguém, devem ter quem se compadeça deles, procurando-lhes uma sorte mais feliz, até que um dia se lhes restituam seus direitos”. Segundo a denúncia do ouvidor, a leitura desse artigo “deu um grande choque nos escravos; conceberam ideias de liberdade e julgaram que as figuradas expressões, de que se serviram os autores da nossa regeneração política, quando disseram „quebraram-se os ferros, acabouse a escravidão, somos livres e outras semelhantes‟, se estendiam a eles, e passaram a encarar Patroni como seu libertador”. Contraditoriamente, o ouvidor garantia que a distribuição pela cidade desse “incendiário papel, a que se chama circular”, que circulou “nas mãos de todos”, não teria tido maiores consequências porque o autor não tinha credibilidade. Patroni não era perigoso porque sua agitação era ato de “um homem sem bens, emprego ou estabeleci-

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Lúcio Flávio Pinto

mento algum, sem arriscar nada, sem ter que perder”. O problema passava a existir porque, em tais condições, ele “pode lançar mão do único recurso que lhe resta: pode procurar partido no meio dessa classe que o olha como seu libertador, e então oh! desgraça...”. O Patroni que voltou a Lisboa depois de ter sido perseguido e preso em Belém já era outro. No novo discurso que fez, em novembro de 1821, ele começou num tom de violência raríssima para ocasião como essa, advertindo o monarca, de corpo presente, que essa era a quarta vez em que lhe dirigia o discurso: “É, porém, infelicidade, não sei se minha, se da Província em que nasci, se da nação a que pertenço, se de Vossa Excelência que a rege; todas as vezes que entro nesta casa, não entro eu para outro fim que não seja acusar o desleixo, e nenhuma energia dos agentes do poder, com quem vossa Majestade tem repar-tido a autoridade, que o povo português lhe há confiado”. A inércia na transformação em realidade das promessas feitas seriam motivos suficientes para “pôr os povos do Pará na última deses-peração e contribuir para que eles rompam todos os obstáculos, para se libertarem dos seus tiranos”. Garantia que todos “querem obedecer à lei, e não ao contrário; todos querem ser bem governados”.

Os maus governos prosseguiram e o povo perdeu a paciência. A Cabanagem explodiu. Outras podiam ter explodido depois. Como agora, aliás. Nisso, Patroni foi um verdadeiro profeta. 2. A maior obra sobre a Cabanagem, Motins Políticos ou História dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará desde o ano de 1821 até 1835, de Domingos Antonio Raiol, tem apenas duas edições. A primeira, em cinco volumes, foi publicada entre 1865 e 1890, em São Luiz, Belém e no Rio de Janeiro. A segunda, em três volumes, é de 1970. Nunca mais a obra foi reeditada. Quem consegue encontrar a edição da Universidade Federal do Pará, que caminha para seu cinquentenário, lê com grandes dificuldades. As numerosas notas de rodapé não estão harmonizadas ao corpo do texto. O leitor vai acompanhando a nota e tem que voltar uma ou mais páginas para retomar a narrativa principal. Além disso, a obra carece de uma edição mais bem cuidada, de novas notas elucidativas e outros cuidados que deveriam ser dados ao trabalho do Barão de Guajará, um vigiense de raro tirocínio entre os intelectuais paraenses. É esta a situação da obra que continua a ser a mais rica em documentação primária sobre o mais traumático dos acontecimentos na história da Amazônia em todos os tempos, além de ser uma preciosiNos 180 anos da Cabanagem

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dade da bibliografia histórica brasileira. Apesar do seu tamanho, com cerca de mil páginas na edição da UFPA, Motins Políticos podiam – e mereciam – ser lidos em todo o Brasil. O livro contribuiria bastante para fazer os brasileiros descobrirem um fato da sua história ignorado, maltratado ou deturpado pelos manuais correntes e as interpretações mais recentes sobre o acontecimento. A mais nova abordagem da Cabanagem também padeceu de alguns deslizes na sua edição. É o caso de Moedas para a revolução do povo (A solução cabana para o meio circulante), de Álvaro Martins, lançado pela Imprensa Oficial do Estado do Pará, em 2013. Há muitos erros de editoração, talvez devido à pressa de colocar a obra em circulação para aproveitar o melhor momento para a sua divulgação e comercialização. Felizmente, trata-se de pecado venial, a ser purgado numa próxima edição. A primeira se deve à escolha do trabalho para receber justamente o prêmio Barão de Guajará da Academia Paraense de Letras, com todo o louvor. A condição de jornalista contribuiu bastante para a fluência do texto, que se lê com prazer de uma só vez, como fiz. Álvaro acrescenta a esse dom (indispensável e frequentemente natural no jornalista, para horror da visão corporativa dos que defendem a imposição do diploma superior de comunicação social para o exercício profissional) sua meticulosa pesquisa e rigor acadêmico no tratamento da questão. Embora sua contribuição mais original se circunscreva ao tema da emissão de moeda pelos presidentes cabanos, ele circula com desenvoltura por toda a bibliografia disponível, atestado de que leu, meditou e concluiu, com toque pessoal, a respeito desse acervo desigual e, muitas vezes, insuficiente para saber realmente o que aconteceu entre 1921 e 1835, no enquadramento do barão (ele próprio continuaria a sua reconstituição se não tivesse perdido todo o material já escrito em um naufrágio). Álvaro põe em questão o próprio conceito de origem. Argumenta que, no tempo dos fatos, os cabanos não sabiam que eram cabanos: não se autodenominavam assim nem dessa forma eram tratados. No momento em que a história se fazia, também o episódio não era chamado por Cabanagem. Trata-se de conceito criado pela historiografia, não pelos personagens. Veio depois. É heurístico, tem validade conceitual? Álvaro não trata disso nem de outras perguntas que faz ao longo da citação bibliográfica que antecede à sua contribuição própria, vinculada à história econômica e à numismática. Ele abre algumas 152

Lúcio Flávio Pinto

portas enquanto passeia pela obra alheia dedicada à Cabanagem, realizando ensaios originais e provocativos. Um deles é a tentativa de dar cara aos atores da saga, enriquecendo a parca iconografia cabana. É um esforço apreciável, a ser posto em teste. Outro efeito é mais sonante, digamos assim: a reprodução das moedas remarcadas pelos líderes cabanos ao assumirem, pela primeira vez de forma sistemática e mais duradora, o poder na província. Os cofres quase vazios e as circunstâncias desfavoráveis da guerra civil os levaram a improvisar o meio circulante para manter a vida local, ainda que de forma precária e efêmera. Recolher as moedas ainda em circulação e relançá-las como moeda cabana, com valor inferior ao de face, mas com aceitação compulsória, foi um ato próprio de uma revolução. Outra das grandes lacunas historiográficas é justamente um exame mais aprofundado (menos perfunctório, diriam os velhos cronistas) das três administrações cabanas de Malcher, Vinagre e Angelim, trabalho que exige o que tem faltado à maioria dos livros recentes: acesso a novos documentos originais e fontes inéditas, que de fato existem. O que abunda é a interpretação e reinterpretação a partir da mesma base, a do barão de Guajará. O maior mérito do trabalho de Álvaro Martins é avançar sobre o ainda desconhecido, pouco conhecido ou carente de análises esclarecedoras. Se o barão, que deu origem ao Instituto Histórico e Geográfico sob a inspiração iluminista (ainda que vesga) do trono imperial, o que se há de esperar para os demais? No entanto, como o próprio Martins, esses abridores de veredas prosseguem. Já não há tanta escuridão quanto antes nesse caminho vital da história dos paraenses (ou acaraenses, como preferia Haroldo Maranhão).

Nos 180 anos da Cabanagem

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VIII. Mundo

Autores Alberto Aggio Professor titular da Unesp/Franca..

Renato Zerbini Ribeirão Leão Membro do Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais da ONU, Ph..D.. em Direito Internacional e Relações Internacionais, professor titular da Fais/UniCeub..

Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados Renato Zerbini Ribeirão Leão

E

m 2014, comemora-se o trigésimo aniversário da Declaração

de

Cartagena das Índias sobre os Refugiados. Trata- se de um instrumento internacional que estabelece princípios jurídicos indicativos de uma posição política comum de interesse coletivo em termos de proteção internacional regional àquelas pessoas que os-tentam um fundado temor de perseguição, por parte de seus países de origem, por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social

ou opiniões políticas. Esse documento é produto da presença volumosa de refugiados da América Central a partir de finais da década de 70 do século passado, período marcado pelo deslocamento de mais de dois milhões de pessoas em razão das sangrentas guerras civis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua. Ademais destes, países como Belice, Costa Rica, Honduras, México e Estados Unidos da América do Norte encontraram-se diretamente envolvidos no assunto ao acolherem um número significativo de solicitantes de refúgio e de emigrantes.

A Declaração foi adotada pelo Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários, realizado em Cartagena das Índias, Colômbia, entre 19 e 22 de novembro de 1984. Seu grande desafio jurídico foi o de proporcionar orientações em matéria de princípios e critérios de direito para enfrentar uma crise sem precedentes de deslocamento de pessoas nas Américas. A resposta dada e o consenso alcançado sustentaram-se a partir da convergência entre as três ramas de proteção internacional da 157

pessoa humana: direito internacional dos conflitos armados, direito internacional dos direitos humanos e direito internacional dos refugiados. Na Declaração, patenteou-se, por exemplo, a natureza pacífica, apolítica e exclusivamente humanitária da concessão de asilo ou do reconhecimento da condição de refugiado. Sublinhou-se, ademais, a importância do princípio internacionalmente aceito de que tal concessão ou reconhecimento não poderá jamais ser interpretado como um ato inamistoso contra o país de origem dos refugiados. Também sustentou-se que o reagrupamento familiar constitui um princípio fudamental no regime de proteção dos refugiados. Senão ainda, recomendou-se que o conceito de refugiado, além de conter os elementos da Convenção da ONU de 1951 e de seu Protocolo de 1967, considerasse também as pessoas que tenham fugido de seus países porque suas vidas, seguranças ou liberdades tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circuns-tâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

Na continuação, influenciados por Cartagena, os documentos oriundos da Conferência Internacional sobre Refugiados Centro-americanos (CIREFCA), intitulados Princípios e Critérios para a Proteção e Assistência aos Refugiados, Repatriados e Deslocados Centro-Americanos na América Latina (1989) e Avaliação e Aplicação dos Princípios e Critérios (1994), reconheceram a existência de uma estreita e múltipla relação entre a observação das normas relativas aos direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas de proteção, favorecendo e impulsionando, através da sustentação de seu enfoque integral, a convergência entre as três vertentes da proteção internacional da pessoa humana. Igualmente, a Declaração de San José da Costa Rica sobre os Refugiados e Pessoas Deslocadas (1994), ao inovar em matéria de proteção particular dos deslocados internos, afirmando ser a violação dos direitos humanos a principal causa de suas existências, reconheceu, expressamente, as convergências entre os sistemas de proteção internacional da pessoa humana, enfatizando os seus caracteres complementares. Destacou, ademais, que a proteção dos direitos humanos e o fortalecimento da democracia constituem as melhores medidas para a busca de soluções duráveis, para a prevenção dos conflitos, para os

êxodos dos refugiados e para as graves crises humanitárias. 158

Renato Zerbini Ribeirão Leão

Finalmente, menção especial para o fato de que durante o processo preparatório de consultas para a Conferência do México de 2004, em comemoração aos 20 anos de Cartagena, foram explicitamente reconhecidos três pontos de importância capital para a proteção do ser humano: a convergência entre as três vertentes da proteção internacional da pessoa humana; o papel central e a alta relevância dos princípios gerais de direito; e o caráter de jus cogens do princípio básico da não-devolução como um pilar central de todo o Direito Internacional dos Refugiados. Com relação ao Estado brasileiro, sua destacada trajetória na institucionalização dos princípios internacionais da proteção do refúgio, consubstanciada pela promulgação da Lei no 9.474/97, modelo regional de legislação, fez com que o Brasil figurasse como um dos palcos desse fundamental e histórico processo, ao receber em agosto de 2004 a etapa preparatória do Cone Sul com vistas à reunião final de novembro do mesmo ano no México, da qual resultou o documento continental Plano de Ação: Cartagena 20 anos depois ou Plano de Ação do México. Em 2010, na esteira da proclamação da Declaração de Brasília sobre a Proteção de Refugiados e Apátridas no Continente

Americano, o Brasil foi convidado para auspiciar as celebrações finais dos 30 anos da Declaração de Cartagena a ocorrer em 2014.

Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados

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Espanha: adbicação e legitimidade monárquica Alberto Aggio

A

renúncia do rei da Espanha, Juan Carlos de Bourbon, anun-ciada

na manhã de 2 de junho, impactou profundamente a opinião pública espanhola, europeia e mundial. Em função da extensa e persistente crise que vive a Europa, a renúncia de um

chefe de Estado não é fato de pouca valia, especialmente num país como a Espanha que não é monarquista por vocação – como lá se acostumou dizer desde que a Monarquia foi restaurada depois do franquismo. Apesar de ter sido um fato relativamente inesperado, a abdicação, como se viu, colocou em xeque a legitimidade da Monarquia espanhola. Parte da opinião pública já vinha apontando, há algum tempo, a necessidade de se repensar a manutenção do regime monárquico num país em forte e persistente crise econômico-social e em busca de alternativas a ela. A renúncia veio a alimentar e a recolocar os termos de um debate que marcou a história contemporânea espanhola: a disjuntiva Monarquia versus República. Mais do que isso: se seria justo e correto travar esse debate como ele foi travado no passado ou, alternativamente, se o melhor não seria repensar a questão a partir de outros e novos eixos e critérios. O rei Juan Carlos teve um papel fundamental de estabilização na transição da ditadura franquista para a democracia e seu protagonismo no andamento daquele processo acabou por transformá-lo em uma figura simbólica de garantia do acordo entre as forças polí ticas do país para que a democracia espanhola se consolidasse e a Espanha ingressasse definitivamente no concerto europeu e se estabelecesse como um player importante no processo de construção da União Europeia. Como se sabe, a longevidade da ditadura de Francisco Franco (19361975) se sustentou por sobre os escombros de uma guerra civil dilacerante que, entre 1936 e 1939, colocou por terra a chamada

II República. Além da violência continuada do regime – estima-se que o franquismo tenha sido mais violento e repressivo que o fascismo e o nazismo –, um dos resultados mais negativos do franquismo havia 160

sido o isolamento do país da dinâmica econômica, política e cultural de reconstrução da Europa no pós-guerra. A superação deste isolamento e da fratura instituída pelo franquismo entre as chamadas “duas Espanhas” – uma franquista e outra “comunista” – se deu no processo de transição pactuada à democracia, que se iniciou, em 1975, com a morte de Franco, de cujo núcleo dirigente participou o rei Juan Carlos. Sendo restaurada num contexto de transição democrática e num cenário em que se estabelece uma nova Constituição para o país, a Monarquia espanhola atual não se reestrutura mais como as antigas Monarquias liberais dos séculos XIX e XX nas quais alguns poderes constituintes do Estado eram atribuição da Coroa. A Monarquia espanhola atual é uma Monarquia respaldada em instituições plenamente democráticas na qual o rei exerce funções de arbitragem e moderação no interior das instituições de Estado, não respondendo por nenhum dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo ou Judiciário) e tampouco representando os espanhóis, dentro ou fora do país. Em síntese, juridicamente, a forma do Estado espanhol é monárquica, mas sua soberania, sua operacionalidade e sua finalidade são democráticas e de caráter social, na forma do Estado de Direito. Em outras palavras, trata- se de uma Monarquia de perfil republicano, correspondente ao que é hoje a República italiana ou a alemã, nas quais o presidente, além de não ser eleito diretamente, ocupa lugar semelhante ao rei espanhol no interior da estrutura do Estado. Pelo papel de liderança política que jogou o rei Juan Carlos nas conjunturas que sucederam a morte do Generalíssimo, sua figura pública ultrapassou suas funções formais no Estado de Direito espanhol. O juancarlismo acabou se tornando progressivamente uma expressão recorrente na opinião publica e no conjunto da sociedade e, por quase 40 anos, se constituiu um dos sustentáculos da transição e da fase ascendente de consolidação da democracia. Entretanto, nos últimos tempos, a Monarquia espanhola e mesmo a figura pública do rei Juan Carlos se fragilizaram em razão de condutas pouco recomendadas (mencione-se a caçada de elefantes na África empreendida em sigilo pelo rei) e do envolvimento de alguns membros da família real em casos de corrupção. Assim, a renúncia do rei não se configura como um raio em céu azul. Em meio à já longa crise econômica, que afeta em especial o emprego no interior das famí-lias, boa parte da Espanha atual, notadamente os jovens que não viveram os anos da transição democrática, passaram a se perguntar se ainda valeria a pena custear uma família real como a dos Bourbons. Espanha: adbicação e legitimidade monárquica

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Em seguida à renúncia, não foram poucos os espanhóis que saíram às ruas para pedir a mudança do regime, advogando o estabelecimento de uma III República. Este talvez tenha sido o ruído mais dissonante que se ouviu dentro dos palácios que trataram de ajustar a legislação para que o trono espanhol passasse, em poucos dias, para as mãos de Felipe VI, herdeiro do rei renunciante. Ainda que paire na sociedade espanhola um sentimento cada vez mais evidente de que a Monarquia, já há algum tempo, tornou-se uma instituição ultrapassada, a abdicação do rei não se instalou como uma crise de Estado que ensejasse uma alteração mais profunda. Em todo caso, a conquista de uma nova legitimação para a Monarquia, especialmente entre os jovens espanhóis, parece ser o principal desafio que terá pela frente o novo rei, Felipe VI. Por outro lado, a despeito das ruas, é muito pouco provável que a demanda por uma III República consiga se constituir num móvel político capaz de galvanizar o conjunto da sociedade e, em poucos anos, triunfar. O tempo em que a disjuntiva Monarquia/República correspondia ao antagonismo conservadorismo/democracia política e social parece ter terminado, e parece também não ser mais um critério plausível para que esse debate se realize com alguma produtividade.

De toda forma, o fato de que os espanhóis, cabreados, já não ergam a voz com tanto entusiasmo para dizer “vida longa ao novo Rei”, não significa que o conjunto da sociedade espanhola tenha conseguido compreender as razões e seus ativistas tenham conseguido produzir o consenso que possa dar um novo fundamento à implantação da III República.

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Alberto Aggio

IX. Ensaio

Autor Flávio R. Kothe Ensaísta e ficcionista, professor de estética da Universidade de Brasília (UnB).

Flexões e reflexões

Flávio R.. Kothe Da diferença do semelhante Os melhores atores não devem ser procurados nos palcos ou nas telas, mas nos palácios e palanques, já sabia Nietzsche antes de haver cinema e televisão. Mudam os tempos, não mudam os homens. Quando a esposa de Júlio César foi acusada de adultério, ele a defendeu nos tribunais; quando ela foi absolvida, ele se divorciou dela com o dito que se tornou famoso: “À esposa de César não basta ser honesta, ela precisa parecer honesta.” Quem ocupa o poder precisa manter postura digna do cargo que exerce. Ouve-se dizer que ao político basta parecer honesto, não importa ser. Na democracia, ele conta, porém, com tantos inimigos que, com o tempo, se há de descobrir se foi ou não foi. Em geral, tarde demais se descobre o mau caráter, quando já fez estragos insanáveis. Mesmo assim, isso é melhor que nos regimes autoritários, em que a corrupção se torna pior, porque o sistema funciona à base do rabo preso: cada um sabe das sujeiras do outro e todos assim se entendem: aliados no mal, com discursos de moralismo. Conta-se que, nos cortejos triunfais de César, os soldados, que haviam lhe dado as vitórias que o endeusavam, entoavam cantigas dizendo que ele era o marido de todas as mulheres e a mulher de todos os homens. A zombaria não bastou para que se soubesse que ele era apenas um homem, não um deus. Até hoje o celebramos no mês de julho. Um desembargador me disse que conhecia muito juiz que havia feito concurso como homem e havia tomado posse como se fosse um deus... 165

A primeira lei de Euclides, citada no filme Lincoln, diz que se duas coisas são iguais a uma terceira elas são iguais entre si. Se x = 10 e y = 10, então x=y. Por que então usar x e y? No segundo se conclui a igualação, o que não é o mesmo que propor a igualdade. Uma mulher que vai para a cama com vários homens é chamada de galinha ou piranha, enquanto se o homem fizer o mesmo será chamado de gavião ou garanhão. O igual não é o mesmo. Pode um político dizer tudo o que pensa ou deve calar e mentir conforme as necessidades do Estado? O que são essas necessidades se não algo que ele mesmo define? Esse tema foi recorrente na epopeia e na tragédia grega sob a figura de Odisseu ou Ulisses, o ladino que dizia o conveniente que lhe trouxesse mais vantagens. A política atiça os piores traços do homem. Todos os grandes homens da história foram maus. Estive, em outubro, num Congresso Internacional de Filosofia, em Salvador, Bahia, e a proposta de um filósofo dizia que é preciso nego-ciar o âmbito da norma com os políticos. Como negociar, no entanto, com quem tem por natureza não dizer o que pensa e não pensa nem faz o que diz? Os políticos formam uma casta que exerce o poder para manter e aumentar o próprio poder, fazendo de conta que está servindo o bem comum. Existe, por exemplo, a lei do abate- teto, que coloca um limite para qualquer um que receba do erário público.

Todos os ministros do Supremo Tribunal ganham mais que esse máximo constitucional. Deputados, senadores e ministros de Estado, com as vantagens de carro e moradia à disposição e outros privilégios, também devem ganhar mais. Uns são mais iguais que outros. Será que, na era da internet, a democracia representativa não está ultrapassada, já que é possível consultar o povo com facilidade para decisões básicas? Quando as ruas se manifestam, logo surgem os vândalos que fazem o jogo daqueles que querem manter seus privilégios. São vetores complementares. Uns aparecem, os piores desaparecem. Nas reformas mudam -se detalhes para, no fundo, não mudar nada: plus ça change, plus il est la même chose. Destino e destinação Natal tem a ver com natalício. Celebra-se ter-se nascido. Como os salmões e as tartarugas, os humanos costumam rever nessa época o lugar em que nasceram, reencontrar pedaços perdidos de si mesmos. Inventam um novo ano, para se separarem da roupa suja do ano que acaba e vestirem uma roupagem feita de bons propósitos. A cada ano 166

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repetem o ciclo, como se a Terra não completasse um ciclo a cada momento. A vida pode não ter sentido, mas sempre se inventam novos quando os velhos fracassam. Os atos que fazemos e deixamos de fazer, todos têm consequências. Eu não existiria se meu bisavô, aos 17 anos, em 1870, não tivesse emigrado da Silésia para o sul do Brasil. Morando em Glogau, onde havia cinco quartéis prussianos, ele sabia que viria uma guerra.

Sabia que a guerra entre a Prússia e a França não era deles, que haviam sido invadidos e tomados, em três grandes guerras, pela Prússia no século XVIII. Frederico, rei da Prússia, é chamado O Grande, mas é responsável pela morte de uma porcentagem maior de alemães que Hitler. O meu trisavô dizia: “Não criei meus filhos para ser bucha de canhão”. Eram pacifistas. Para não esquecer disso, deram-me um segundo nome, René, acentuado à maneira francesa. Há quase vinte anos, quando eu fazia um pós-doutorado na Universidade de Frankfurt, resolvi dar um giro, num fim de semana, pela beira do rio Mosel. Um amigo alemão, o dr. Schwamborn, havia me recomendado ir à Ida-Oberstein, uma cidade dupla, com fortes raízes brasileiras. Os nomes das famílias na lista telefônica pareciam os de Lajeado, Estrela, Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Muitos emigraram do Hunsrueck para lá. Essa região da Alemanha, além de produzir um maravilhoso vinho, nas encostas do Mosela, em geral branco, também fazia, com pedras semipreciosas, objetos decorativos. Na década de 1850, houve forte praga nas plantações de batata e as minas da região começaram a se esgotar. Para buscar novas fontes de pedras, as famílias mandavam filhos ao Sul do Brasil, para comprarem ágatas. No museu da cidade, essa história é lembrada. Nas lojas se encontravam, quando lá fui, muitas peças decorativas feitas com pedras da região de Cristalina, de Goiás. De tanto andar para lá e para cá pela cidade, bateu-me a fome. Era um domingo. Encontrei um restaurante, mas lotado. Conhecendo os costumes alemães, conversei com a chefe dos garçons. A palavra Gastprofessor (catedrático visitante) iluminou-lhe o rosto. Pediu que eu a acompanhasse. Explicou que estava havendo a confraternização anual entre representantes locais e os de uma cidade francesa, pouco além da fronteira. Havia uma parceria entre as cidades. Fui levado a uma mesa e, quando vi, estava sentado entre os prefeitos e as primeiras-damas das duas cidades. Explicaram-me que a parceria tinha por meta principal que nunca mais houvesse guerra entre Alemanha e França, como haviam tantas vezes ocorrido nos séculos XVIII, XIX e XX. Os dois lados tanto invadiram quanto foram invadidos. Flexões e reflexões

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Estranho é que os parceiros não conseguiam se entender bem, pois os alemães não falavam o francês e os franceses pouco falavam alemão. Tive de fazer o papel de intérprete. Estava sendo servido o prato típico da região, o Ida-Obersteinerspiess, um espeto com cubos de carne de porco e gado, intermediados por cebolas e tomates. Era uma versão em miniatura do xixo gaúcho, de onde havia sido trazido pelos que haviam ido ao Sul do Brasil comerciar pedras, na segunda metade do século XIX. Depois que, com alguns cálices de vinho, a conversa já corria mais solta, pedi licença para colocar uma questão delicada. Eu queria saber o que eles achavam daqueles que haviam emigrado no passado, pois, na época de Bismarck e das guerras, eles foram tratados como traidores da pátria, perdendo inclusive a cidadania após dez anos de ausência. Os dois prefeitos me asseguraram que certos estavam esses pacifistas do passado, e não todos aqueles que haviam dese-jado guerra. Não eram covardes, e sim pessoas de coragem, capazes do ato extremo de mostrarem à pátria os calcanhares. Mereciam respeito pela coragem moral e pela ousadia de começar a vida num lugar desconhecido, ainda não civilizado. O encontro foi chegando ao fim, os franceses se preparavam para voltar à sua cidade, eu tinha de tomar o trem para retornar a Frankfurt. Nós nos despedimos com a sensação de que, após tão franco e cordial encontro, nunca mais iríamos nos ver. Assim foi. Do bem e do mal Caçar uma gazela é bom para o leão e mau para ela. Pecado ou virtude parecem depender do lado em que se está. Em A origem da tragédia, Nietzsche mostrou como o conceito de bom provém de “bonus”, que eram, na Roma Antiga, as pessoas de tez e cabelos claros, e o de mal provém de “malus”, que eram as pessoas de tez e cabelos escuros, os escravos. Bom era ser patrício; mau, nascer escravo. Como hoje.

Kant propôs que a liberdade interior do homem permite que ele possa decidir sobre o modo correto de agir em determinada situação, segundo uma lei que poderia ser formulada racionalmente, devendo ser seguida por todas as pessoas na mesma situação. Chamou isso de imperativo categórico. O problema é que quando alguém decide sobre isso em nome da liberdade, ele está interferindo na liberdade do outro, pois talvez não se deva esperar que todos tenham o mesmo tipo de resposta sobre qual seria o modo correto de agir. Dependendo da época, nem concordamos conosco. 168

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Quando de repente uma cobra se atravessa no nosso caminho, o que primeiro fazemos é pular para longe. Não há tempo para formular um julgamento racional: “Eis uma cobra que pode ser venenosa e pode me picar, por isso devo pular para longe dela”. Há um saber acumulado no inconsciente, o instinto, transmitido talvez pelo DNA, que permitiu a milhares de gerações de antepassados sobreviverem.

Em geral, as pessoas consideram corretos os dez mandamentos trazidos por Moisés, de um senhor que só ele viu. Eles são seguidos porque seriam a vontade de Deus. Então há obediência a uma ordem, não há uma ética pessoal, uma norma a que o sujeito segue por sua livre convicção. Os juízes ao aplicarem as normas também estão obedecendo a uma vontade superior. Virtude vem da palavra “vir, viris”, algo que é próprio do homem, do varão, em sua virilidade. A ética pregada por Cristo, essa de oferecer a outra face e dar preferência aos deserdados da terra, foi a inversão da virtude como era entendida pelo patriciado grego e romano, que não levava desaforo para casa. Estranhamente, nesse sentido as mulheres não poderiam ter “virtude”, pois ela é coisa de homem. Se eu fizer algo bom para outra pessoa, aplaudem-me por ser altruísta; se eu fizer essa mesma coisa para mim, já observou Nietzsche, serei considerado egoísta, e ruim. O ato em si seria o mesmo, apenas o destinatário mudaria. Como é que o mesmo ato pode ser conside-rado uma vez bom e outra vez mau? Se todos cuidassem bem de si, sem incomodar aos outros, a sociedade seria melhor. Há os que acham que supõem ter o direito de explorar os outros, para que eles possam se mostrar bonzinhos e obriguem Deus a recebê-

-los na bemaventurança eterna. Coitadinho, deve estar com uma fila enorme na porta. Se eu der esmola a um desses profissionais da mendicância, que ficam batendo de porta em porta ou com a mão estendida na calçada, o que vou fazer é ajudar a mantê-lo naquela situação indigna. Ser bom é ruim, então. Melhor ensinar a pescar, dizem as ONGs, do que dar o peixe. Quem não concorda com isso é o próprio peixe, que acaba sendo comido de um jeito ou de outro. Os que se acham muito bonzinhos esquecem que vivem à custa da morte alheia. A vida é má por natureza. Supor que um deus morreu para salvar o homem ajuda o homem a crer que todos os que morrem entre seus dentes estão querendo salvá-lo. Na pior das hipóteses, acha que está dando a um ente inferior uma chance fazer um upgrade navegando em sua pança: deveria até ficar feliz por isso.

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Uma vez, um senhor idoso, quando por nós passava um caminhão carregado de cervejas, me disse com um suspiro: “Eu acho que bebi alguns caminhões destes”. A vida tinha sido bem aproveitada, pensava ele. Morreria feliz. Pareceu-me estranho que ele tivesse um paradigma tão baixo de felicidade, sem pensar sequer que talvez os seus filhos tivessem passado necessidade por lhes faltar o que era gasto nos engradados. Quando viu um leve sorriso em meu rosto, ele achou que eu estivesse concordando e aplaudindo. Não me dei ao serviço de explicar. De nada adiantaria, era tarde demais. Espiação e expiação Como muitos outros, em abril de 1964, fui submetido a interrogatório, no 8º Regimento de Infantaria, em Santa Cruz do Sul/RS, minha cidade natal. Eu tinha 17 anos. Como havia um guarda armado com fuzil na porta, ocorreu-me dizer ao capitão, que chefiava o inquérito, que eu era menor de idade. Ora, isso não tinha então a menor importância, nem minha família estava disposta a enfrentar o Exército para me proteger. Eu não estava sozinho: havia outros membros da diretoria da Uesc, a União de Estudantes Santa-Cruzenses. Há meses, eu não era mais o secretário de imprensa da entidade. Na minha memória ‒ é estranho como ela funciona ‒, aquele capitão era mais bigode que gente, ele todo se escondia atrás dos pelos. Ele disse que era o chefe do serviço de informações do Exército local. Eu respondi: ‒ Mas eu conheço o senhor. Foi meu professor de Biologia, em 1962, no curso de contabilidade, lá no Liceu São Luís, dos maristas. Falava muito sobre o ovo. O que eu não acrescentei, mas pensei, ao vê- lo meio perturbado, como se eu tivesse dito o que não devia, é que ele não conhecia muita Biologia. No curso ‒ que eu abandonei tão depressa quanto pude, estragando o sonho de meu pai, que queria fazer de mim um contador

(de números, não de histórias) ‒, os colegas estranhavam que se tivesse Biologia em um Curso Técnico em Contabilidade, mas, como a vida está em tudo, o que se faz... Passada a primeira reapresentação, o capitão, do bigode, ficou folheando uns papeis e eu fiquei esperando, do outro lado da mesa. Eu tinha escrito alguns artigos para o jornal dos estudantes e para a Gazeta Estudantil, tinha feito um programa de música clássica ligeira, aos sábados à tarde, na Rádio Santa Cruz, onde também tínhamos um programa informativo estudantil, e eu havia representado a enti170

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dade em encontros estudantis em Rio Grande, Passo Fundo, Canela. Como meu pai não permitira que eu fosse fazer o curso clássico em Porto Alegre, eu havia ficado fazendo o que me interessava enquanto estudava no científico. Em suma, eu havia pecado. Haviam me espiado, era hora de expiar. Eu queria ao menos respirar. O capitão quis saber de onde eram extraídas as citações que líamos entre as músicas tocadas na estação. Foi fácil responder. Eram trechos das encíclicas de João XXIII, palavras do Santo Padre, o Papa. Seria preciso ir prendê-lo em Roma. O bigode engoliu em seco.

Eu achava que só a minha avó, a Grossmutter, lia o que eu escrevia. Mas não! O capitão tinha lido também. Dois leitores! Não só havia lido com acurada hermenêutica, como havia sublinhado diversos trechos, com canetas de cores diversas: preta, azul, amarela, vermelha! Isso me impressionou, eu devia de estar na pior. O que o capitão queria mesmo saber era quem tinha escrito os artigos assinados com meu nome, quem se escondia atrás do meu nome. Eu fiquei espantado com a pergunta. Fiquei olhando para mim, como se houvesse outro atrás de mim, escondido, sem eu saber. Sócrates chamaria isso de daimon, que os romanos traduziram por genius e os cristãos por demônio. Mas eu não tinha nem uma coisa nem outra. Era só eu sozinho. Fiquei olhando para um artigo em que debatia a possibilidade de se criarem grandes empresas estatais, no modelo da Petrobras, da Fábrica Nacional de Motores e da Vale, para cuidar da produção de bens básicos: Farmacobras, Nuclebras e assim por diante. Eu não tinha noção de que os chineses iriam montar nessa linha o modo mais produtivo de produção, associando empresas estatais e empresários particulares até ter o partido comunista dominado por capitalistas. Respondi apenas: ‒ Fui eu mesmo que escrevi. A resposta decepcionou ao capitão, que esperava um agente de Moscou e encontrava um agente do Vaticano, em um coloninho do interior. Ficou folheando para lá e para cá, para ver se formulava a pergunta mais feroz e certeira, no alvo. E exigiu, em tom peremptório: ‒ O que é que você entende por democracia? Como meu avô e meu pai tinham me levado a muito faroeste no cinema, achei que era hora de a cavalaria americana vir me salvar. E tasquei na lata: ‒ Como disse Abraham Lincoln, é o governo do povo, para o povo e pelo povo. Essa resposta foi recitada, ipsis litteris puncte virgulisque, ao soldado datilógrafo, que a marretou numa pobre folha de papel com carbono. Flexões e reflexões

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Mais tarde, fomos liberados. Ouvi dizer que fomos considerados “inocentes úteis”. Talvez nem tão inocentes nem tão úteis, mas ainda vivos. Das mortes em vida Todos nós teremos, como nossa última vivência, o próprio morrer.

Isso é indelegável. Ninguém pode morrer a morte de outrem, cada um tem de morrer a sua, já dizia o filósofo caxiense Gerd Bornheim, que descobriu um dia que estava com um tumor no cérebro e teria poucas semanas de vida. Nosso amigo Enio Squeff foi visitá-lo no Rio, assaram uma picanha e Gerd reconheceu com lucidez: “no meu caso, não tem jeito”. Morreu como um estoico. Na última vez que me visitou, além de falar bastante do filho e de pintura, deu-me seu livro sobre Brecht A Estética do Teatro. Ele foi estoico ao longo da vida também, pois embora tenha sido perseguido pela ditadura militar, tendo perdido o posto de professor na UFRGS, tido de sobreviver na França como porteiro e passado por diversas mazelas, não ficava se queixando. Sua obra foi uma vitória sobre os carrascos. Como não mais seremos nós ao não mais estarmos aí, nós nada temos a temer. Nada mais vai acontecer conosco, pois não mais haverá o nosso eu para que lhe aconteça algo. Olvido ou fama, ódio ou bom lembranças, isso restará enquanto alguém se lembrar de nós, mas já não há de nos afetar. Todos aqueles que ocuparem os nossos espaços terão como sua reserva exclusiva também o próprio morrer. Ao longo da vida, várias vezes temos de chutar o balde e dar a volta por cima: morremos em uma situação, para ressuscitarmos diferentes em outra. Não somos mais os mesmos, nos transformamos, como tudo o que existe. Quem não renasce, regride, torna-se vegetativo. Como dizia Fernando Pessoa: um cadáver adiado que procria.

Depois de um ano fazendo a oitava revisão do que espero vá ser o livro Arte Comparada, na noite de 30 de dezembro, concluí as 550 laudas. A sensação era de enviar um longo e-mail sem destinatário e sem esperar resposta; a fantasia de estar concluindo algo como uma sinfonia, em que todos os instrumentos tinham de combinar até o fim. Poucas horas depois, comecei a me sentir muito mal. Passei o Ano Novo, na UTI, com septicemia aguda, com mais de 50% de chance de defuntar. Uma bactéria anônima queria me assas-sinar. Eu estava decidido a não dar, porém, tanta alegria aos inimigos. Os médicos não descobriram qual a bactéria que se apaixonou por mim nem por quê. Mas conseguiram tratar. O que refuta o pragma-

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tismo americano que achava que se soubermos o que funciona na prática já se sabe toda a verdade. Na UTI, com 39º de febre, eu não conseguia me mexer. Todas as forças do corpo estavam no campo de batalha que era eu mesmo. Entre eu e a doença, entre o eu e o mundo, a doença construiu um delírio que fazia parte dela. Era um barato estar entregue às baratas. Eu via um jogo de xadrez num computador, mas congelado, no empate técnico de dois exércitos. Eu não queria que fosse assim, mas assim era. Às vezes, alguma peça se movia, um bispo indo comer um cavalo (o xadrez é um jogo indecente e impiedoso, o peão é capaz de comer a rainha na frente do rei) e naquela casa se abria uma tela com uma bela pintura; noutra casa, outra tela se abria. Daí o jogo voltava a congelar e eu nada podia fazer. De repente, uma peça se movia ‒ clique/claque‒ e na casa ocupada se abria uma cápsula com notas musicais que saíam pelo ar e cuja melodia eu podia ouvir. Faziam sentido.

As luzes da UTI me feriam a vista. Eu fechava os olhos, sabia que devia ficar tudo escuro, mas não! Eu continuava vendo, só que ora uma parede de barro em que escorriam filetes de água, como se fossem o sangue a correr entre os músculos; ora uma paisagem verde, com um regato cheio de peixinhos coloridos ou um canal pantanoso em que moluscos dançavam enfileirados como se fossem um corpo de baile. Entre mim e a morte, havia abrigos provisórios cheios de imagens, como se fossem catedrais submersas. A mente humana é muito estranha. Eu sabia que estava tomado pela fantasia, mas nada podia fazer. Ela era mais forte que eu. Assim ela me livrava da doença, do perigo mortal que eu talvez corresse. Os médicos e enfermeiras me curaram e o barato acabou. A vida ficou mais cara. Ela é, afinal, a única coisa que temos para sustentar o que temos e não temos. Antes um burro vivo que um sabichão enterrado.

Amar e ser enganado No diálogo Simpósio, de Platão, Diotima propõe que se deva amar a beleza pura, o ideal, não alguém concretamente. Sendo proposto por Sócrates, que nunca diz o que pensa e sempre é irônico, sugere-se que isso seria a negação do amor. O “amor platônico” é negado por Platão. Quem ama supõe que ama alguém; quem se supõe amado, supõe que outra pessoa o ame. Supõe: põe por baixo. Quem ama não ama Flexões e reflexões

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o outro, mas a imagem que ele tem do outro; quem é amado não é propriamente amado, pois quem ama acaba amando a imagem que tem do outro, não o que ele realmente é. Amor é, portanto, um engano mútuo, com que se vai empurrando a vida com a barriga. Isso tanto pode ser trágico quanto muito engraçado. Depende de como se está na situação. Daquilo que um dia se chorou, depois se pode rir. Do que um dia se riu, pode-se descobrir que havia boas razões para chorar. O trágico é quando tentamos fazer o mais certo em questões decisivas e acabamos provocando o maior desacerto. A contradição entre o que se fez e o que se deveria ter feito pode se tornar tão intensa que ela acaba se tornando irremediável. E o que não tem remédio, remediado está. Como nunca sabemos tudo o que condiciona uma situação nem todas as consequências de nossos atos, nunca se pode ter certeza de estar agindo do modo mais correto. Se o que parecia ser o mais acertado poderá se mostrar como errado, o que um dia parece erro pode mais tarde se mostrar como correto. Temos de aprender, portanto, a sermos tolerantes com os nossos erros e a não nos orgulharmos demais dos nossos acertos. Só de quem fosse onisciente se poderia esperar, portanto, que poderia tomar sempre a decisão mais acertada. Deus mesmo, porém, se arrependeu de ter criado o homem: mandou o dilúvio e cometeu o erro de salvar uma família. Depois teve de se sacrificar fazendo um filho, para que ele fosse sacrificado para corrigir um erro feito pelo pai. Na mitologia grega, Zeus manda Prometeu criar o homem, mas depois, vendo no que deu, manda destruir essa raça, no que não é obedecido pelo irmão. Na versão do dilúvio que aparece no Gilgamesh, que é anterior à versão bíblica, os deuses decidem acabar com os homens porque eles são muito ruidosos. Uma deusa avisa a uma família sobre o dilúvio que viria. A família decide fazer uma embarcação quadrada, mas embarcam todos os que haviam ajudado a construí-la. O vinho já era bebido durante a construção. O formato da barca tem condicionado a forma dos templos. Noé inventa o vinho depois do dilúvio. Um filho acha engraçado ver o pai bêbado. Outros filhos o delatam. Noé salva a humanidade para inventar a escravidão. Não se contava, no entanto, aos pretos e aborígenes qual era a cor do filho amaldiçoado. Provavelmente a mesma do pai e dos irmãos. 174

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A arqueologia já comprovou que havia uma diferença de cerca de 100 metros entre o Mediterrâneo e o que era um lago interior em que rios despejavam suas águas. Na região havia terremotos e chuvas torrenciais. Por volta de 8500 a.C., rompeu-se o dique que havia entre o Mediterrâneo e o lago. Formou-se o Estreito de Bósforo, que despejou água no lago até formar o que hoje é o Mar Negro. Os russos descobriram com submarinos as aldeias onde antes os rios despejavam suas águas no lago. Pelos cálculos feitos, a água deve ter avançado cerca de 2 km por dia. Nessa velocidade não se precisa de barco, pode-se fugir a pé. Não foi um dilúvio universal, foi uma inundação localizada.

Entre o que se conta e o que aconteceu, a distância equivale à que há entre a imagem que se tem de outrem e o que este realmente é. Há muitos modos de equilibrar a diferença entre a imagem e o ser. O mais frequente é dizer: paciência, ninguém é perfeito. Se doloroso é se descobrir enganado, pior é descobrir que antes de ser já se esteve enganado. Dá vontade de se esganar. Se o que se ama é a imagem que se tem de outro, a outra pessoa já estava aí: a pessoa encoberta pela miragem da imagem. Como a recíproca também é verdadeira, já existe uma quarta figura envolvida no relacionamento que se supõe a dois. Todo relacionamento envolve uma relação de alienação, em que se projeta no outro o que se gostaria que ele fosse, mas que ele não pode ser por ser ele quem é. Juramento de Hipócrates ou de Hipócritas? Todos, a começar pelos médicos, gostaríamos de escrever apenas “juramento de Hipócrates”, mas seria negar o que temos visto e ouvido sobre a saúde nesse país. Cada um conhece casos calamitosos. O juramento antigo apelava para deuses em que não acreditamos mais, depois defendia, e ainda defende, a irmandade entre os médicos, algo que já foi interpretado como formação de uma casta de apoio mútuo para encobrir erros profissionais. O juramento exige consciência e dignidade no exercício da profissão, sem permitir que distinções de posição social, credo, raça, partido político ou nacionalidade se interponham entre o dever e o doente. Como fica, porém, a situação do pobre diante da doença, não seria isso parte de sua posição social? Nem sacerdotes nem relógios trabalham de graça. Missa tem preço. Se não se pode querer que médicos trabalhem de graça, como os poetas e escritores, como fica a situação de quem não pode pagar o que os médicos exigem por consultas e procedimentos? Flexões e reflexões

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Uma empregada que estava comigo há três meses descobriu, aos 28 anos, que tinha de fazer novo cateterismo. Na capital do país, um médico exigiu quinze mil para fazer o procedimento. Quando ela consultou outro médico, a R$ 450,00 a consulta, ele exigiu dezoito mil. Ambos disseram que era urgente, sabiam que ela corria perigo: foram infor-mados de que ela não tinha esse dinheiro. Na capital do país, eu não sabia o que fazer, nem pessoas que trabalham em hospitais públicos sabiam ao certo. Dois dias depois, ela teve um infarto. Foi levada pela mãe a um Pronto Socorro particular, que também se dispôs a fazer o procedimento, desde que pagassem um montante equivalente. A família apelou para uma tia, que é enfermeira no interior de São Paulo, onde se fez um cateterismo emergencial às 4 da manhã. Quando fiz um pós-doutorado na Universidade de Yale, USA, com bolsa da Fundação Fulbright, logo me avisaram que sempre andasse com uma centena de dólares no bolso, pois, embora tivesse seguro de saúde, não seria atendido se não pagasse na hora. Quando tive uma lombalgia aguda, só fui atendido por uma enfermeira: para marcar médico demorava mais de um mês. Obama quase caiu quando tentou prover lá o atendimento de saúde da população mais pobre.

Em agosto do ano passado, quando estávamos em Berlim numa viagem de estudos, uma colega teve uma crise de pressão alta. Embora todos tivéssemos feito um seguro-saúde, durante horas se apelou para os telefones indicados e não se conseguiu um hospital ou clínica. Até que alguém se lembrou que ela detinha a cidadania portuguesa: como membro da Comunidade Europeia, podia ser atendida em qualquer hospital. Quando se assume um emprego lá, precisa-se optar por um plano privado de saúde. No Brasil, professores, enfermeiros e auxiliares médicos não costumam ter plano de saúde. Seus empregadores não assumem a sobrevivência de sua mão de obra. Aqui pagamos várias vezes pela saúde: o que nos é descontado do salário para a saúde pública, que pouco funciona; o plano particular de saúde que temos de pagar, rezando para não ter de usar; médicos particulares, a que temos de recorrer nos casos mais agudos; dentistas, que não querem plano; farmácias, em que temos de comprar os remédios. Dá-se hoje priori-dade ao corpo; a alma virou cérebro. Em geral, os médicos ficam endinheirados em pouco tempo de profissão, parece que não querem concorrentes. Se eles fossem o princípio mesmo da saúde, não precisariam usar roupas especiais nem linguagem arrevesada, dizia Pascal.

Como os corvos no trigal de van Gogh, rondou- me a mente se médicos seriam como urubus dispostos a disputar a fraqueza alheia 176

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para encher o papo. A falta de saúde dos outros seria a saúde de sua conta bancária. Decidi, porém, não ser justa a comparação. Urubus não se aproveitam de seres vivos. Só descem em círculos sobre defuntos. Quando temos o atestado de óbito, médicos não se interessam mais por nós. Há, no entanto, médicos que estão preocupados primeiro em curar, não importando a hora e o lugar. Se ainda se cresse que, ao bater as botas, uma extrema-unção nos garantiria o céu, poderíamos aproveitar o embalo da doença para nos livrarmos do vale de lágrimas: daí não se precisaria tanto de médicos. Hoje, todos se aferram à vida como se fosse a única que terão. No velho convento de Bad Doberan, no Báltico, os monges viviam em média 23 anos: jejuavam muito, bebiam três a quatro litros de cerveja forte por dia. Assim, até eu seria capaz de ver com um sorriso os anjos e a Virgem Maria descendo dos céus para me levar. Capitalismo e igualdade O capitalismo precisa que todos tenham o direito de comprar o que puderem e oferecer a todos no mercado o que quiserem. Ele gera também condições semelhantes de trabalho num mesmo lugar para muita gente, o que leva a movimentos sindicais organizados. Achava-se que, com o aumento do produto interno bruto, ocorreria algo parecido com a maré alta: todos os barcos, grandes e pequenos, iriam subir, viver melhor. Não é isso, porém, o que se verifica nos últimos decênios em países de capitalismo avançado: a distância entre ricos e pobres vai aumentando, cada vez mais se concentra a renda numa minoria cada vez menor. A classe média deixa de se expandir, vai sendo despeda-çada. Não há mais igualdade na distribuição de oportunidades. Com exceções, o curso superior fica resguardado para jovens cujos pais também já fizeram curso superior. Mesmo quando o Estado fornece ensino gratuito, as camadas baixas muitas vezes não aproveitam a oportunidade que lhes é oferecida. No Brasil, se pensa que isso se deve à falta de tradição escolar da população de origem indígena e africana, mas houve escravos negros que eram mais alfabetizados que os seus senhores brancos. Talvez por ter o ensino ficado durante séculos em mãos de ordens religiosas ‒ que não pagavam os professores mas prometiam em compensação lotes no céu ‒ o professor não seja aqui respeitado como, por exemplo, no Japão ou na Alemanha. Ainda hoje ele espera construir um futuro Flexões e reflexões

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melhor, embora não seja visto como um dos poucos meios que os mais pobres dispõem no sentido de melhorar as condições de vida de seus filhos. Como o imposto sobre as grandes heranças é baixo, a riqueza é repassada de pais para filhos: ainda que muitas vezes os netos venham a dilapidar o que pais e avós construíram, a maioria da população herda apenas a pobreza material e espiritual dos pais. Pior é que em geral acreditam que assim deve ser. Quanto mais cresce o produto social bruto, mais embrutecem o poder e a propaganda para manter o compasso cada vez mais aberto entre riqueza e pobreza. A riqueza é feita do trabalho dos mais pobres. O que uma minoria desperdiça no luxo é o que falta para melhorar a vida da grande maioria, que é exatamente quem produz essa riqueza. Ainda que sustentado por um sistema legal, policial e judiciário, o capitalismo é injusto por natureza. Embora ele precise da igual-dade para funcionar, ele gera cada vez maior desigualdade. Nunca os ricos foram tão ricos quanto hoje, e são tanto mais ricos quanto mais desenvolvida for a produção; embora ele precise da liberdade para manter a oferta e a procura, ele precisa aumentar a coação e o constrangimento para que a revolta não se estenda cada vez mais. Essa revolta se apresenta de modo irracional em manifestações de rua e comportamentos bizarros, ela não sabe de onde vem nem para onde vai. Ela não tem força para mudar o sistema que a gera. Embora a riqueza seja produto do trabalho, o trabalho não enriquece a quem trabalha. Ou se nasce rico, ou então se consegue que os outros trabalhem para o enriquecimento de quem os emprega. Quem trabalha não tem tempo para ficar rico. O dono do capital é o primeiro servo dele: se não obedecer às suas exigências, logo terá de procurar trabalho. A publicidade alardeia bens que só mais ricos podem comprar, mas ela o faz como se todos pudessem comprá- los. Ela gera promessas de felicidade que o sistema não pode cumprir. Quanto mais produtos a sociedade tem, mais insatisfeita ela se torna. A vida frugal volta a ser virtude.

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Flávio R. Kothe

X. Documentos Históricos

A luta certa1

Editorial da Voz Operária (1971)

N

osso Partido condenou, desde o princípio, o caminho e a orien-tação dos grupos ultraesquerdistas. E aí estão os resultados da chamada guerrilha urbana, dos assaltos a bancos, dos atos

ditos de repercussão, do sequestro de diplomatas etc. O que era anunciado como medidas iniciais, destinadas a preparar o surgimento da luta armada no campo, transformou-se num fim em si mesmo. As ações desses grupos, ao invés de provocar a mobilização das massas, estimulam sua passividade. Também não contribuem para a aproximação, coordenação e unidade das forças que se opõem ao regime ditatorial. Por outro lado, tratando-se de ações desligadas das con-dições concretas da luta das massas e da situação política do país, constituem, objetivamente, contra as intenções de seus autores, uma colaboração com a ditadura. Isso porque o grupo militar dominante delas se utiliza para atenuar as divergências existentes nas Forças Armadas e manter unidas suas bases de sustentação, para “justificar” o regime e fortalecer seu caráter policial, para incrementar as medidas repressivas contra o povo. Esses são, em poucas palavras, os princi-pais resultados da atividade dos grupos ultraesquerdistas.

Mas, se a prática é importante como critério da verdade, isso não significa que sejamos pragmáticos. Nossa orientação quanto ao problema das formas de luta não decorre do êxito ou do fracasso imediato da escolha desta ou daquela forma. Adotamos, a respeito, uma posição baseada nos princípios do marxismo-leninismo. 1

Editorial da Voz Operária, órgão central do Partido Comunista Brasileiro, n. 71, jan./1971.

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É sabido que, na teoria marxista- leninista, ocupa importante lugar a tese sobre o papel decisivo das massas populares no desenvolvimento da sociedade. A elas corresponde o papel determinante nesse desenvolvimento, são elas que criam a história. A justa compreensão dessa tese guia a atividade prática dos comunistas e de seus partidos. Leva-os, com seu trabalho organizativo, ideológico e político, a dirigir sua atenção e suas energias principalmente para os operários e os trabalhadores em geral. Exige esforços contínuos e perseverantes em qualquer situação, para fortalecer e estreitar os vínculos do Partido com as massas. O Partido Comunista não inventa nada, parte da própria vida, da luta que as massas travam pelas suas reivindicações econômicas imediatas e pelos seus interesses políticos, levando necessariamente em conta a experiência e o nível de consciência das massas. Só partindo dessa realidade e sem dela se desligar é que o Partido pode, como vanguarda, avançar à frente do movimento espontâneo, indicar-lhe o caminho, propondo a tempo a solução dos problemas que preocupam o povo. Exatamente porque cabe às massas o papel determinante no desen-volvimento da sociedade, o êxito de um partido revolucionário depende de sua capacidade e de a elas estar estreitamente ligado, de receber seu apoio, de conseguir dirigi-las. Por tudo isso, compreende-se que as formas de luta não podem ser inventadas. Lênin ensinou que, a esse respeito, a primeira exigência é que se dê atenção à luta delas. A luta das próprias massas, à medida que cresce a consciência das massas, e à medida que as crises econômicas e políticas se acentuam, gera processos sempre novos e sempre mais diversos de defesa e de ataque. O papel da vanguarda se limita a generalizar, a organizar, a tornar conscientes as formas de luta que surgem por si mesmas no curso do movimento. E Lênin acrescentava: “O marxismo, neste sentido, aprende – se assim se pode dizer – com a prática das massas, longe de pretender ensinar às massas as formas de luta inventadas por “sistematizadores” de gabinete”. No ano que findou, a luta de nosso povo contra o processo de fascistização do país pela camarilha de generais que empolga o poder se deu em condições muito difíceis. A ditadura impôs sua política a ferro e fogo. Particularmente nos últimos meses de 1970, às vésperas das eleições e após o sequestro do embaixador da Suíça, desencadeou-se uma torrente de abusos, violências e crimes contra a população. Os direitos mais elementares, como o de locomoção, de andar nas ruas da cidade, e o da inviolabilidade do domicílio, são violados da maneira mais brutal. O trabalhador sente que não tem sequer a 182

Editorial da Voz Operária (1971)

garantia de voltar livremente para sua casa. Artistas, estudantes, professores, advogados, jornalistas e militares reformados são sequestrados e presos, submetidos a violências e humilhações. A liberdade de imprensa sofre novos atentados. A cultura é sufocada pela censura a livros, a filmes, ao teatro. Cai assim na rotina o emprego, pela ditadura, do arbítrio e do terror como método de governo. É o Estado policial. Mas, se a acentuação do caráter repressivo pode propiciar alguma vantagem imediata à ditadura, o certo é que a isola ainda mais do povo, amplia áreas de resistência, de oposição e de combate, fato que influi no sentido do seu enfraquecimento. Conforme salientou o Comitê Central do nosso Partido, fatores temporários têm favorecido, por enquanto, o avanço do processo de fascistização do país, mas é em sentido contrário que atuam os fatores permanentes que a médio e longo prazo terminarão por preponderar no processo político brasileiro.

Os resultados concretos da política econômico-financeira realizada pela ditadura mostram que essa política se subordina aos interesses dos monopólios estrangeiros e dos latifundiários, e contraria os interesses da maioria da nação. “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Isso foi dito com todo o cinismo pelo próprio ditador. A continuidade na aplicação dessa política faz com que o povo vá de mal a pior, gera cada vez mais o descontentamento de amplos setores da população. Aí está a base objetiva em que se apóia a ação das correntes democráticas e progressistas. Não foi por acaso que, no ano passado, os Congressos de trabalhadores unanimemente conde-naram a política salarial imposta pelo governo e exigiram a sua revo-gação. E líderes da burguesia insistem na denúncia de que os mono-pólios imperialistas são os grandes beneficiários da política econômico-financeira da ditadura. O industrial Marques Viana afirmou na Associação Comercial do Rio, em dezembro último: “Prevalece no país o debilitamento da atividade privada de capital nacional, verificando-se, apenas, o revigoramento da empresa estrangeira, que vai ganhando uma imensa importância nas decisões fundamentais da nação e no aproveitamento das poupanças internas de crédito dos incentivos fiscais”. O regime ditatorial-militar e sua política de opressão provocam um sentimento generalizado de repulsa que abrange as mais diversas classes e camadas sociais. Numerosas têm sido, com maior ou menor vigor e amplitude, as manifestações dessa repulsa. Os trabalhadores reivindicam, nos Encontros e Congressos, o direito de greve, liber-dade e autonomia para seus sindicatos. A Igreja Católica tem condeA luta certa

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nado, através de documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o terrorismo e as violências da policia, a falta de liberdade. A exigência de revogação do AI-5 e do restabelecimento dos direitos e garantias individuais é feita até por órgãos da imprensa e personalidades políticas que apóiam o governo. Ampliam-se no exterior o movimento de repúdio aos crimes praticados pela ditadura e de solidariedade às suas vítimas, chegando a provocar pronunciamentos do Papa. Na America Latina, o governo Médici se isola cada vez mais como expressão do atraso e do obscurantismo. Todos esses são fatos que tornam mais favoráveis as condições da luta do nosso povo pela conquista das liberdades democráticas, e a derrota da ditadura. São ainda grandes, entretanto, os obstáculos a vencer. A reativação do movimento de massas se faz, no momento, de maneira lenta. As correntes de oposição ao regime ainda estão dispersas. Mas, também é certo que se desenvolve, no campo contrário à dita-dura, um processo de acumulação de forças que tende a progredir porque brota da realidade da vida econômica, política e social do país e se fortalece sob a influência da situação internacional, que é favo-rável ao avanço das lutas dos povos pela independência, a demo-cracia e o progresso. Foi diante dessa realidade que o VI Congresso do nosso partido indicou, com acerto, que o processo de isolamento e derrota da ditadura é o do desenvolvimento da luta de massas, e da unidade de ação das forças democráticas. Daí porque os comunistas orientam sua atividade no sentido de impulsionar o movimento das massas em defesa dos seus interesses e direitos, contra a ditadura, e de unificar a ação de todas as forças e personalidades políticas que resistem ao regime e a ele se opõem. As formas que essa luta adquire e as que vierem a adquirir não podem ser inventadas, mas devem decorrer das exigências da situação concreta, em cada momento e em cada local, sendo sempre adequadas ao nível de consciência e à capaci-dade de luta das massas.

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Editorial da Voz Operária (1971)

XI. Resenha

Autores Adelson Vidal Alves Professor de História, pós-graduado em História Contemporânea..

Sergio Augusto de Moraes Engenheiro e mestre em Econometria pela Universidade de Genebra, Suiça..

Tiago Eloy Zaidan Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco e professor do curso de Comunicação Social na Escola Superior de Marketing (ESM-Fama/Recife)/PE e na Faculdade Joaquim Nabuco (Recife/PE)..

O nome da esquerda, segundo Safatle

Adelson Vidal Alves

O

presente livro é uma espécie de apelo para o resgate daquilo que o autor considera como elementos centrais que compõem a essência histórica da esquerda. Uma essência que deve ser

recuperada como forma de resposta às crises atuais, que estariam demonstrando o fracasso do capitalismo liberal e trazendo a exigência de uma esquerda renovada e pronta para assumir a tarefa da constru-ção de outra ordem social. Para isso, invoca dois princípios básicos: o igualitarismo e a soberania popular. O primeiro, entendido como o reconhecimento de um Estado intervencionista na redistribuição de renda, um Estado que combata as desigualdades. A segunda, como sugere o termo, seria a autoridade suprema da vontade popular, esta que poderia até mesmo suspender, em nome da justiça, o Direito que qualifica os atuais Estados modernos.

Safatle se mostra simpático às rebeliões populares quando estas miram governos e “Estados ilegais”. A rebelião não só seria um recurso, mas um direito que estaria presente na tradição política. De Locke e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, até Constituições modernas que vigoram em alguns países. Seu apoio a enfrentamentos, até mesmo com violência, como veremos, não se resume a governos ilegítimos, mas também abrange os que pertencem à forma do Estado democrático de Direito. A resistência popular justa estaria, assim, acima das leis.

No primeiro capítulo, o filósofo da USP defende que o igualitarismo exige, da esquerda, um comportamento “indiferente às diferenças”. Safatle percebe que o mundo atual apresenta novas formas de conflitos, distribuídos nas categorias de gênero, raça, cultura e nacionalidade. Tais diferenças deveriam ser tratadas com desinteresse pela esquerda.

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Esta deveria preocupar-se com o internacionalismo, que comporia seu DNA inicial. Os debates identitários precisariam ser ignorados em nome da recuperação da universalidade como eixo da construção das políticas de esquerda. O acerto do autor se dá na percepção de que o multiculturalismo chega para fragmentar, tirar do horizonte qualquer perspectiva de totalidade. Ao trazer a cultura, a política e a sociedade para campos cada vez mais fatiados da vida coletiva, o universal acaba por desaparecer, abrindo espaço para uma sociedade de corporativismos e segregação. Não se pode deixar de perceber que, de certo modo, Safatle parece acreditar que as disputas modernas ainda se concentrem nas classes sociais. Mostra-se, assim, certo economicismo em seu pensa-mento – quem sabe o dogmatismo que contamina grande parte da intelectualidade de esquerda, ainda com vícios esquemáticos do século XIX e início do XX? O autor não parece se preocupar com as profundas mudanças no interior do mundo do trabalho, na perda de relevância da luta de classes, na metamorfose da consciência do sujeito social moderno. Parece insistir na “indiferença com as diferenças” sem atentar para a necessidade de um diálogo atual com a realidade concreta. Não soa de bom senso desconsiderar que as identidades nacionais permaneçam fontes de conflitos que movem a história. Que ainda há a necessidade de uma esquerda nacional. Mesmo diante da globali-zação, que internacionaliza não só os mercados, mas também a cultura e a política, há de se ficar atento à vitalidade não só de nação e sua ideia de pertencimento, mas também à forma político-institucional em que se expressa esta identidade, isto é, o Estado nacional. O segundo capítulo, já por seu enunciado, é um convite à polê-mica. Sobretudo, porque vivemos numa época em que o Estado demo-crático de Direito representa forma superior de organização social, que progressivamente vem substituindo conflitos abertos e violentos por resoluções consensuais – consensos, aliás, sempre renováveis. Porém, para Safatle, o Estado de Direito poderia às vezes ser anulado, desde que a soberania popular e sua justiça entrem em confronto com o ordenamento jurídico vigente. A ocupação de prédios públicos, a invasão de propriedades ditas improdutivas, a violação da liberdade de ir e vir através de piquetes etc., seriam perfeitamente toleráveis, mesmo sendo ilegais, já que a causa pela qual falam seria justa. Há, em Safatle, a dissociação entre a justiça e o Direito. Obviamente, podemos discutir o quanto uma lei é justa, mas a grande questão, que o filósofo ignora, é o valor subjetivo que a palavra “justiça” pode trazer. Expropriar uma determinada extensão de terra 188

Adelson Vidal Alves

particular, para fins de reforma agrária, para uns soa como justo, para outros, seria um roubo. A forma moderna de resolver estes impasses tornou-se concreta nas instituições democráticas que surgiram nos séculos XIX e XX. As leis já não são o fruto de decisões de um só soberano, mas o resultado de um amplo e complexo conjunto de debates e lutas políticas que, em vários órgãos institucionais, ganham corpo na forma de ordenamento jurídico. Mas, para Safatle, todo este processo responde apenas pelo caráter parlamentar da democracia, que excluiria formas diretas de participação, e assim, cancelaria o verdadeiro espírito democrático. A democracia parlamentar, cuja superação Safatle vai exigir, é parte importante no combate a corporativismos e assembleísmos, que, nos casos mais graves, levam a riscos de totalitarismo plebiscitário. A tentação de trazer o povo diretamente para os debates faz com que o autor desconsidere o parlamento como mecanismo precioso para produção de sínteses democráticas no campo das divergências, que emergem na sociedade por meio dos atores coletivos. Faz, também, que desconsidere que, bem longe de ser um empobrecimento da democracia, a representatividade parlamentar é vitória civilizatória, para a qual a luta dos trabalhadores contribuiu muito. Apoiar a rebeldia contra as leis, suspendendo o Estado de Direito, pertence a uma esquerda a que Safatle deu este nome, bem longe de ter nela o que se exige de uma esquerda genuinamente democrática. O terceiro capítulo inicia questionando a relação de esquerda e passado. Mostra a forma superficial como foram tratadas as revolu-ções do século XX e corretamente propõe uma análise crítica que supere o simplismo de rotular como fracassos totais estes processos revolucionários (tidos, por muitos, como cruéis e sanguinários), assim como o de tratá-los como momentos gloriosos da humanidade. Há de se acolher acertos e repensar os erros, que não foram poucos, e entender que a revolução não vem com garantia para suas consequên-cias. O futuro de uma revolução quase sempre é incalculável. Neste aspecto, nosso autor introduz a discussão sobre a atualidade da dicotomia “revolução/reformas”. Os revolucionários, segundo a crítica de Vladimir, mantêm o hábito de desqualificar como morto todo tempo histórico em que transformações profundas encontram-se em falta. Só consideram momentos úteis aqueles nos quais as estru-turas sejam sacudidas pela força das mudanças. Da mesma forma, prossegue Safatle, deve-se criticar o medo de revoluções, como se essas viessem sempre banhadas de sangue. Ainda que não sendo claro em suas observações, o filósofo parece apontar para um novo olhar sobre a concepção estratégica do reformismo. O nome da esquerda, segundo Safatle

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Mesmo sempre demonstrando apreço por revoluções do tipo clássico, Safatle sinaliza para a opinião de que reformas têm força para promover mudanças importantes, ainda que não mostre com clareza a espera de transformações substanciais pela via reformista. Positivamente convencido das vantagens reformistas, Safatle não parece apostar nelas como via para a construção de novas realidades. Tem-se a impressão de que o autor ainda aguarda revoluções como assalto ao poder. Finalizando, o capítulo aborda o que tem se chamado de “teoria de governo”. Para o autor, a esquerda trabalhou bem, e de forma sofisticada, a teoria do poder, mas não a de governo. Isto é, não foi capaz de ir além da “vontade política” como instrumento para uma política de governo.

Safatle tem razão. Não se pode negar que parcela muito limitada das esquerdas conseguiu assumir vocação de governo, uma vocação que supere discursos e seja sustentada por um claro programa de governo. No entanto, mais uma vez, Safatle se furta de posições mais claras, pois parece oscilar entre visões modernas da esquerda e retornos estranhos ao vocabulário bolchevique. Uma teoria de governo que se proponha coerente com a esquerda e as reais possibilidades conjunturais exige discutir o tema das alianças, o que sequer foi citado por Safatle. Neste aspecto, há motivos fora da obra que nos permitem pensar que sua concepção de alianças não tem nada de renovadora. Dá-se a impressão que Safatle faz perguntas atuais, mas suas respostas estão fora do nosso tempo. A esquerda que não teme dizer seu nome traz questões importantes para o debate entre as esquerdas. Mostra a necessidade de reformular a atividade deste campo político, para que esteja à altura dos desafios modernos. Não constrói nenhuma grande contribuição conceitual, é verdade, e suas propostas são rasas. Porém, a provocação que faz é de se levar a sério, principalmente porque o autor se mostra insatisfeito com o atual ordenamento institucional, que tem no Estado de Direito sua maior expressão. Ao proclamar a superação do Direito em nome da justiça e da soberania popular, mantendo firme a convicção da necessidade de uma nova democracia, direta, popular e para além do Estado de Direito, Safatle distancia-se da esquerda democrática e constitucional, que a duras penas vem tentando se construir com a ambição de ingressar de vez em um tempo no qual não haja caminhos civilizató-rios seguros senão pela democracia e seu Estado de Direito. Vladimir Safatle, pelo jeito, continua com a visão instrumental da democracia. Sobre a obra: A esquerda que não teme dizer seu nome. Vladimir Safatle. São Paulo: Três Estrelas, 2012. 190

Adelson Vidal Alves

Intervenção autocrática da ciência na sociedade? Sergio Augusto de Moraes

M

esmo tendo em conta que o livro é uma obra de ficção e um projeto de best-seller não há como deixar passar em branco aquilo que constitui seu fio condutor, qual seja a questão da

reprodução humana. Mormente porque ele vem na esteira de sucessos como o Código Da Vinci e, provavelmente, vai ser lido por milhões de pessoas. Não que ele seja desinteressante. Ao contrário, é um livro que prende a atenção do leitor, do começo ao fim. Além disso, D. Brown nos proporciona um belo passeio por Florença, revela coisas que pouca gente sabe sobre a cidade dos Médicis e divulga a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Só que aqui tem mais coisa. O tema central do livro é o controle da reprodução da população mundial. No início e no meio do livro, o herói da história, R. Langdon (o mocinho), reage fortemente ao plano do cientista Zobrist (o bandido), que desenvolveu um produto genético capaz de controlar a reprodução humana e, consequentemente, a população da Terra. Langdon chega a dizer: “...a legalização dos aprimoramentos genéticos logo criaria um mundo de favorecidos e desfavorecidos. Nós já temos um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, mas a engenharia genética criaria uma raça de super-humanos e de... supostos sub-humanos” (p. 284). Mas, no final do livro, quando o vírus de Zobrist já foi liberado para o mundo, Sienna (a “mocinha”) diz para Langdon: “Se você é darwinista ... deve saber que a natureza sempre encontrou uma forma de manter a população humana sob controle: pestes, fome, enchentes. Mas me diga uma coisa: não seria possível a natureza ter agora inventado uma forma diferente?... criado um cientista que inventou um método diferente para reduzir nossa população, ao longo do tempo. Sem peste. Sem morte. Apenas uma espécie mais adaptada ao ambiente?” (p. 436). E depois, frente ao perigo de causar um mal maior desenvolvendo um antídoto, pois Zobrist era o melhor de todos em manipulação genética, Langdon se conforma com a solução do “bandido”. Intervenção autocrática da ciência na sociedade?

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Se fosse só isto não seria tão grave. O problema é que D. Brown envolve a Organização Mundial de Saúde (OMS), deixando entender que sua representante também se conforma com o resultado engendrado por Zobrist. O que dá foros de realismo e de consenso humanístico ao acontecimento. Assim, o autor opta por colocar como inelutável uma alternativa que se coaduna com uma das tendências mais negativas do mundo de hoje: a intervenção autocrática da ciência na sociedade. No campo da reprodução humana, são sobejamente conhecidos os programas de esterilização de mulheres dos países periféricos patrocinados por agências dos países desenvolvidos ou por corporações internacionais. Ao associar a OMS a tal solução de controle da população mundial, D. Brown a coloca como única saída pacífica, uma alternativa preferível às guerras ou epidemias e não aponta nem de leve para uma das tendências que ganha força a cada dia na sociedade, qual seja o controle consciente da reprodução por parcelas cada vez maiores da população.

Historicamente, o que se observa é que as leis da reprodução humana variam com o modo de produção de cada época. No capitalismo, essa lei determina a criação de um exército de reserva, de uma quantidade variável de trabalhadores desempregados, o que funciona como um contrapeso para tentar frear a tendência inexorável de queda da taxa de lucro. No seu início e até certo ponto de seu desenvolvimento, o capital estimula a taxa de crescimento anual da população. Mas depois ele causa o efeito contrário. Observa-se também que certas transições demográficas se dão em intervalos de tempo diferentes, dependendo da época em que o capitalismo se consolida. Junto com outros indicadores, como é o caso da redução da taxa de mortalidade (que antecede a queda da taxa de fertilidade), esta variação mostra a rapidez da mudança do tempo de estabelecimento do modo capitalista de produção depois de sua consolidação nos países pioneiros. Inúmeros outros dados apontam no mesmo sentido: não é a natu-reza, a fome ou as pestes, como diz a personagem Sienna (a mocinha) no trecho antes citado, que mudam, no longo prazo, a taxa de repro-dução da população. Desde a revolução neolítica a separação entre o homem e a natureza não cessa de aumentar, agrava-se com o surgi-mento da sociedade de classes, até atingir um máximo com o capita-lismo. Simultaneamente, o modo de produção da sociedade passa a jogar um papel maior até sua influência tornarse dominante na sua reprodução. 192

Sergio Augusto de Moraes

Mas que motor, dentro do capitalismo, leva a tal situação? Porque o natural seria que sua implantação favorecesse o crescimento permanente da população pois ele teria, numa ponta, mais braços e mentes a explorar e, na outra, mais consumidores. De fato isto ocorre nos primeiros anos de passagem ao modo capitalista de produção, mas depois a tendência se inverte: a taxa de reprodução sobe nos primeiros tempos de capitalismo e depois cai permanentemente até um ponto que a população do país se estabiliza e depois passa a cair (e a envelhecer). O motor a que nos referimos é a variação da composição orgânica do capital. Observa-se que, de maneira contínua, o capital emprega uma quantidade menor da força de trabalho (trabalho vivo) para movimentar a mesma quantidade de máquinas, equipamentos etc. (trabalho morto), ambos expressos em valor. Isto se acelera na década de 1960/70 com o surgimento daquilo que chamamos revolução técnico-científica e a substituição não só do trabalho braçal, mas também da visão, do tato, e até de operações cerebrais por máquinas controladas por computadores. Tal fato está na base da redução do emprego e do exército de reserva, fatores decisivos para a reprodução da população nesse modo de produção. Não só aí, mas também na tendência decrescente da taxa de lucro. Se tomarmos como referência as 500 maiores corpora-ções listadas na revista Fortune, observamos que a taxa de lucro média das mesmas varia de 7,15% entre 1960 e 1969; 5,30% entre 1980 e

1990; 2,29% entre 1990 e 1999; 1,32% entre 2000 e 2002. Aqui cumpre observar que a taxa de lucro diminui não porque o operário seja menos explorado, mas porque, em função da rapidez do avanço tecnológico, se emprega cada vez menor quantidade de trabalho vivo para o capital investido, isto é, aumenta a composição técnica e orgânica do capital, mesmo tendo em conta que os operários chineses e indianos ou os turcos e mexicanos ganham muito menos, pelo mesmo trabalho, que os europeus ou os norte-americanos. Mas é com o capitalismo de nossos tempos que a humanidade se depara com outros limites ao crescimento populacional: as dimensões e os recursos do planeta. Ele não suportaria, por exemplo, que seus 7 bilhões de seres humanos consumissem como os norte-americanos ou os europeus. Diante disso, o capitalismo reage com soluções autocráticas e antidemocráticas e projeta para o futuro alternativas desumanas como a engendrada por Zobrist (o bandido). Claro, D. Brown faz ficção e não passa pela nossa cabeça que ele devesse abordar a questão sob o ângulo histórico. Mas ele não poderia Intervenção autocrática da ciência na sociedade?

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deixar de lado esse controle consciente da reprodução humana, nem o fato de que ele tem se exercido no sentido de restringir o número de filhos. O que pode coincidir em certos momentos com os interesses da reprodução do capital. Mas também pode contrariá-los e apontar para uma alternativa pós-capitalista, muito mais democrática, na qual a reprodução humana não mais se subordine à obtenção do lucro máximo, mas sirva aos interesses da humanidade e a uma nova ética com a natureza. Sobre a obra: Inferno, de Dan Brown, São Paulo: Arqueiro, 2013.

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Sergio Augusto de Moraes

Canclini e a cultura sob a lógica do mercado Tiago Eloy Zaidan

I

magine um museu dedicado à globalização. Supondo-se que ela

esteja

acabando. A julgar pelos museus dedicados à documenta-ção de migrações e diásporas, à guarda e exposição de experiên-cias ou conceitos relacionadas ao “patrimônio” da globalização não

soa tão surreal. Ao ingressar no saguão principal, o visitante poderia deparar-se com “(...) um corpo vazio, representado um governo mundial que nunca chegou a existir” (CANCLINI, 2008, p. 71). Menções a experiên-cias anteriores à globalização propriamente dita, a formas pré-globali-zadas, como a expansão do catolicismo, seriam pertinentes. Numa das salas, em uma paráfrase à ativista Lora Jo Foo – autora do livro Asian American Women: issues, concerns, and responsive human and civil rights advocacy (2007) –, os visitantes seriam convidados a recortar as etiquetas de seus vestuários para, costurando-as numa espécie de colcha de retalhos, compor uma mostra de logos oriundas, enquanto signos, de países centrais. A efetiva fabricação das peças e os suores envolvidos, todavia, remetem a países “periféricos”. Inspirado no filósofo e teórico cultural francês Paul Virilio, o museu traria também uma seção de acidentes: uma miríade de catástrofes carreadas por “delírios bélicos”. Nesta seção residiria quiçá o maior desafio à curadoria. “(...) como evitar a excepcionalidade, insinuada pela noção de acidentes, dado que na grande maioria dos casos estes são (...) parte constitutiva do capitalismo globalizador?” (CANCLINI,

2008, p. 74). Tanto quanto os vírus não são acidentes fortuitos da informática, antes compondo parte da economia do setor, através da venda de antivírus, o recurso às guerras “(...) torna evidente o fracasso da política e da economia”, pois, se o prélio é declarado “(...) sem provas, contra qualquer um, em qualquer lugar, exibe-se o desespero daqueles que não encontram outro modo de nos distrair de suas arma-dilhas econômicas, de seus desfalques políticos ou do descalabro social de um país” (Ibidem).

Canclini e a cultura sob a lógica do mercado

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Acidentes podem ser dotados de fins prévios? Muitas das guerras podem e o são. Ocorrem embaladas com o fim de se angariar lucros. Este é um dos exercícios de criatividade e reflexão provocativa engendrados pelo filósofo argentino Néstor García Canclini (1939), em seu Leitores, espectadores e internautas. Trata-se de um opúsculo (possui menos de 100 páginas em sua edição brasileira) prodígio em questões como comunicação – incluindo as novas mídias –, cultura, consumo e as interfaces entre si, dentre outros temas, dispostos em ordem alfabética, como em um dicionário enciclopédico de questões pós-modernas, com uma atenção destacada a dados e cases da América Latina. As análises do autor perpassam até mesmo os formatos convencionais das campanhas de incentivo à leitura, que estariam pecando por centrarem-se somente nos livros e pelo fato de as bibliotecas contarem apenas com impressos em papel, quando os textos podem estar também em telas. A estrutura do livro, propositadamente ou não, desobriga o leitor a seguir uma ordem de leitura. Neste ponto, coaduna -se com a prática pós-moderna da não linearidade. Embora curtos, os ensaios que compõem a obra não prescindem de uma miríade de menções a outros autores e seus trabalhos, incluindo ficções, e conceitos, como se, de certa forma, o filósofo argentino pretendesse dotar as laudas das características de um hipertexto. Leitores, espectadores e internautas seria, assim, de certo modo, uma amostra per si de produto inserido em um contexto de hábitos inovadores em relação às práticas culturais. O mercado e as práticas culturais Canclini cita, por exemplo, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) ao mencionar o conceito de autonomia dos campos culturais. Trata-se de uma expressão que dava conta do quanto os artistas, as artes e a literatura eram regidas por leis específicas, as quais lhes garantiam uma certa independência perante o arcabouço global da sociedade. A legitimidade cultural seria o norte, e os agentes “lincados” à confecção e circulação das obras estabeleceriam o sistema de relações. A aplicabilidade de tal conceito, entretanto, tornou-se questionável. O próprio Bourdieu teria reconhecido isso, em um de seus últimos textos em vida, quando comentou o crescimento dos editores 196

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com visões eminentemente comerciais – preocupados com o lucro – em detrimento dos editores aos quais chamava de “heroicos”. Não é difícil questionar tal autonomia em um ambiente cultural tomado – ou seria engolido? – por grandes conglomerados integrados não apenas a outros meios de comunicação, nas mais diversas plataformas, como também a outros segmentos de mercado. Editoras importantes e tradicionais, por exemplo, passaram a ser um capítulo de grupos para os quais as artes devem sujeitar-se a critérios de proveitos comerciais; leia-se: taxas de lucro. Somente as tiragens altas interessam, ainda que isso conduza ao “populismo literário”, nas palavras de Bourdieu. A arte, a literatura, passou a ser apenas mais um dos negócios, os quais incluem lojas, emissoras de televisão e até mesmo comércio de armas. Se antes notavam-se agentes relacionados à confecção e circulação das obras, ou seja, críticos, museus, teatros etc., agora, citando o editor socialista franco-americano André Schiffrin (19352013), assiste-se a um crescimento da influência de organizações “alheias à cultura” que já não se mantêm apenas como “eventuais anunciantes” (CANCLINI, 2008, p. 32). Vide o caso do megalomaníaco conglomerado britânico Virgin. O autor argentino menciona, além de casos de incorporações ocorridas na Europa, a emblemática fusão das norte-americanas Time com a poderosa dos audiovisuais Warner, que redundou na Time -Warner. A Warner, bem lembra Néstor García, é considerada uma das quatro gigantes do comércio global de música, ao lado da Sony, Universal e EMI. A Sony, aliás, é um exemplo marcante de conglomerado quebrantador da mencionada autonomia dos campos culturais, ao abranger, sob sua logo, negócios que vão de emissora de televisão a indústria de eletroeletrônicos. Essas gigantes não dispensam a oportunidade de adquirir catálogos de outras gravadoras, “(...) a fim de converter as culturas locais em fornecedoras para negócios globais. Não lhes interessa editar músicos que não transcendam sua região ou país (...)”, ou que, segundo julgamento prévio, “são incapazes de transcendê-los” (Idem, p. 62). Para além dos conglomerados A lógica de mercado, vituperando as artes, não se restringe aos conglomerados. Chegou ao mecenato estatal e privado e é elencado Canclini e a cultura sob a lógica do mercado

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como uma das possíveis razões para o relativo marasmo observado nas artes visuais dos anos setenta aos anos noventa. Em que pese o reconhecimento da valorização da criatividade “(...) no design gráfico e industrial, na publicidade, na fotografia, na televisão, nos espetáculos multimídia e na moda (Idem, p. 36), a experimentação, a procura por formas inéditas, tão preconizada por artistas e movimentos ao longo da história, passou antes a ser encarada como um possível estorvo. O que, possivelmente, cause estranhamento às massas consumidoras não é bom para os negócios. Logo, a originalidade pode ser interpretada como algo quase indesejável, uma vez que vai de encontro a critérios empresariais, a busca pelo retorno do investimento e/ou ao autofinanciamento. “Cada vez pergunta-se menos o que traz de novo essa obra ou esse movimento artístico. Interessa saber se essa atividade se autofinancia, gera lucros e prestígio para a empresa que a patrocina” (CANCLINI, 2008, p. 36). Esta lógica, trazida à luz na obra Leitores, espectadores e internautas, não reside apenas no seio dos patrocinadores privados e no âmbito dos apoios estatais. Trata-se, a bem da verdade, de um conceito liberal passível de ser defendido em conteúdos editoriais de veículos jornalísticos importantes, como é o caso da revista Veja, semanário marcado por uma linha editorial bem definida e explícita. Um de seus colunistas mais prestigiados, Reinaldo Azevedo, escreve, por exemplo: Quem paga o cinema nacional, leitor amigo? Você. Por meio dos ingressos? Não! Isso traduziria a adesão dos nossos cineastas às leis de mercado, ao capitalismo, a uma sociedade livre. Coisa muito avançada para a taba. Nós sustentamos o cinema nacional por meio da renúncia fiscal e da plata das estatais, que financiam os nossos gênios. O espectador pode não comparecer, mas a verdade eterna está lá, estampada na tela, para quem quiser ver. No caso de a Petrobras ou Banco do Brasil financiarem um embuste, o que acontece? Nada! O departamento de marketing (ou sei lá quem) ganha um selo de “amigo das artes” (AZEVEDO, 2007).

Como subverter este modelo hegemônico de exploração da cultura inserida na lógica do mercado? Néstor García aborda alguns caminhos alternativos, que passam por selos independentes e modos alterna-tivos de comercialização através de sites na internet. Da mesma forma, cita com destaque o case do site colaborativo brasileiro Overmundo, concebido por Hermano Vianna e outros militantes da cultura livre, justamente viabilizado – segundo faz saber o autor argentino – por um

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financiamento do Ministério da Cultura e por um patrocínio da Petro-bras. Um dos trunfos do projeto está na permissibilidade de que “(...) qualquer pessoa baixe e avalie matérias, assim estabelecendo um exercício de participação” (CANCLINI, 2008, p. 62). Canclini (Idem) relata que Hermano Vianna e sua equipe ampliaram a visão do que é local viajando 80 mil quilômetros para mapear os diversos sons brasileiros, filmaram uma série de documentários para a MTV Brasil, organizaram um arquivo e um sistema de distribuição internacional para músicas que não são encontradas nas lojas de discos. A obra também reflete sobre o fenômeno da pirataria – reprodução, sem autorização e com finalidade comercial, de propriedades intelectuais protegidas por lei. Canclini deixa transparecer sua simpatia pelo copyleft e convida a refletir sobre a abolição do copyright como frente ao controle de umas poucas organizações a respeito do lemos, vemos e ouvimos. Chega a afirmar, inclusive, que “Várias pesquisas europeias sobre a economia da cultura demonstram que os benefícios do copyright vão para os investidores, mais do que para os criadores ou intérpretes” (Idem, p. 82). Menciona, além disso, o caso da apropriação de produtos culturais latino-americanos por empresas de países centrais, sem a percepção de remuneração, para depois, devidamente “manufaturados” serem devolvidos às suas paragens de origem por meio de filmes, marcas de bens de consumo etc., sem abrir mão, evidentemente, do copyright. O autor volta ao Brasil, para trazer o case da lambada, que teria saído do país para ser apropriada sem ônus algum, retornando, depois, em língua estrangeira, por meio dos mais diversos produtos culturais e bens de consumo, agora protegidos convenientemente pelo direito à propriedade intelectual. Néstor García, porém, não se ilude. Reconhece a força dos “direitos reservados” no seio das organizações mundiais do Comércio (OMC) e da Propriedade Intelectual (OMPI) – sim, existe uma Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Há ainda a repressão dos governos à pirataria, o que inclui, periodicamente, um “( ...) ritual de queima de vídeos piratas (...)” (Ibidem). Vídeos estes, em grande parte, produzidos por Hollywood, cujos cofres seriam um dos mais prejudicados pela pirataria. Curioso notar que esta mesma indústria, ao instalar-se na costa oeste dos Estados Unidos, no início do século XX, o fez para fugir do Canclini e a cultura sob a lógica do mercado

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monopólio de Thomas Edison (1847-1931) e suas patentes na costa leste. E os piratas do cinema, devidamente instalados na Califórnia, tornaram-se muito mais eficientes. Esta eficiência, talvez, também esteja embalando a escalada do copyleft nos dias de hoje. Néstor García é autor de outras obras que tratam de temas como globalização, cultura e consumo enquanto processo sociocultural. Merecem destaque os livros Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade e Consumidores e cidadãos. Sobre a obra: Leitores, espectadores e internautas, de Néstor García Canclini. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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