A HOMOAFETIVIDADE NUMA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS FACULDADE DE DIREITO

A HOMOAFETIVIDADE NUMA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

HUGO LEONARDO BATISTA

RIO DE JANEIRO 2013

HUGO LEONARDO BATISTA

A HOMOAFETIVIDADE NUMA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

RIO DE JANEIRO 2013

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

B333h Batista, Hugo Leonardo. A homoafetividade numa perspectiva civil-constitucional do direito de família / Hugo Leonardo Batista. - 2013. 83 f. Orientador: Prof. Dr. Guilherme Calmon Nogueira da Gama “Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.” 1. União homoafetiva. 2. Homossexualidade - História. 3. Direito de família.I. Gama, Guilherme Calmon Nogueira da. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título. CDU 347.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta monografia, desde que citada a fonte.

_______________________________________ Assinatura

_____________________ Data

HUGO LEONARDO BATISTA

A HOMOAFETIVIDADE NUMA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Data de aprovação: ____/ ____/ _____

Banca Examinadora:

________________________________________________ GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA – Presidente da Banca Examinadora Prof. Doutor da Faculdade de Direito da UERJ

________________________________________________ ROSÂNGELA MARIA DE AZEVEDO GOMES Prof.ª Doutora da Faculdade de Direito da UERJ

________________________________________________ HELOISA HELENA GOMES BARBOZA Prof.ª Doutora da Faculdade de Direito da UERJ

Dedico este trabalho à minha família, porque família é tudo.

AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, razão e fé, presença constante, que em Seu amor sempre irradia Sua luz, mesmo nos recônditos mais obscuros de nossas almas. Ao meu orientador, Prof. Dr. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, pela disponibilidade de sempre, pela compreensão, pela paciência, pelos conselhos sempre úteis e inspiradores com que, sabiamente, orientou este trabalho. A minha mãe e amiga, pelo amor incondicional, pelo apoio de sempre, pelas noites sem dormir, por abdicar de tantos sonhos e projetos por mim, por me amar do jeito que sou e sempre se orgulhar. A minha irmã amada, que sempre acreditou no meu melhor e tanto me fortaleceu com seu exemplo de disciplina e determinação. Ao meu pai, que mesmo em seu silêncio tanto me ensinou sobre força e garra por meio do exemplo. A todos os amigos da vida, que sempre enriqueceram este trabalho com suas contribuições sempre valiosas. As críticas, a pressão, às vezes apenas uma conversa, mas sempre úteis e inspiradoras. Agradeço, em especial, aos meus amigos Raphael Linhares, Flavia Higino, Anna Carolinne Licasalio, Bianca Héleny, Cristiane Santos, Giselle Meda, Nadja Cobra, Aline Novaes, Ana e Bernardo Margulies, que tiveram participação direta na conclusão deste trabalho.

“Nada é mais forte que uma ideia cujo tempo chegou.” (Victor Hugo)

RESUMO

BATISTA, Hugo Leonardo. A Homoafetividade numa perspectiva Civil-Constitucional do Direito de Família. 2013. 83 p. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

No presente trabalho realiza-se um levantamento histórico do modo como as sociedades tratavam o tema da homossexualidade desde o período clássico da Grécia Antiga até os dias de hoje nas principais civilizações do mundo. Em seguida é feita uma análise sociológica do conceito de família nas sociedades modernas a partir do princípio da afetividade que passou a orientar as relações familiares, alargando seu escopo conceitual de modo a incorporar as uniões homoafetivas em seu núcleo. Prossegue-se com o estudo dos princípios de base constitucional que garantem o respeito e a inserção da homoafetividade no mundo jurídico para, logo depois, verificar a aplicação dos mesmos princípios nas mais diversas decisões dos tribunais nacionais em casos envolvendo as uniões homoafetivas para a sedimentação necessária ao clímax da questão quando do julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela viabilidade das referidas uniões. Ressalta-se, ainda, a atuação do Conselho Nacional de Justiça para uniformizar a atuação dos cartórios do país no sentido de permitir a habilitação direta para o casamento entre pessoas do mesmo sexo a partir de decisão do Supremo Tribunal Federal. Finalmente, apresenta-se o atual tratamento dispensado às uniões homoafetivas ao redor do mundo utilizando-se do Direito Comparado para, enfim, concluir pela viabilidade das uniões homoafetivas formadas pelo casamento no ordenamento jurídico pátrio, inobstante a necessidade de atuação dos demais poderes republicanos para a superação do preconceito, da discriminação e da violência contra os homossexuais.

Palavras-Chave: Homossexualidade. História. Família. Afetividade. União Homoafetiva. Dignidade. Liberdade. Igualdade. Laicidade. Processo. Casamento entre pessoas do mesmo sexo. Direito Comparado.

ABSTRACT BATISTA, Hugo Leonardo. The Homo-Affective Relationships in a Civil and Constitutional perspective of Family Law. 2013. 83 p. Monograph (Law Degree) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. In this academic work, there is a historical research of how society dealt with the topic of homosexuality since the classical period of Ancient Greece until the present day in the main civilizations of the world. Then there is a sociological analysis of the concept of family in modern societies from the principle of affection that became a guide of the family relationships, widening its scope to incorporate the concept of same sex unions at its core. The work continues with the study of the constitutional principles that guarantee the insertion of homo-affective relationships in the legal world. After, the work shows the application of the same principles in various decisions of national courts in cases involving the same sex unions to justify the sedimentation needed to result in the historic case of the Supreme Court that decided the viability of such unions. It highlights, also, the role of the National Council of Justice to standardize the activities of the notary’s offices of the country in order to allow the direct qualification for the same sex marriage based in the decision of the Supreme Court. Finally, it presents the current treatment to same sex unions around the world using the comparative law to conclude the viability of same sex unions formed by marriage in the Brazilian legal system, regardless of the need for action from other Republican Powers on overcoming prejudice, discrimination and violence against homosexuals.

Keywords: Homosexuality. History. Family. Affectivity. Homo-affective union. Dignity. Freedom. Equality. Secularism. Process. Same-sex marriage. Comparative Law.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10 1 – UM NOVO CONCEITO DE FAMÍLIA: A AFETIVIDADE COMO NÚCLEO ............. 13 2 – HISTÓRIA DA HOMOSSEXUALIDADE E PRINCÍPIOS GARANTIDORES DE RECONHECIMENTO JURÍDICO ÀS FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS ............................... 17 2.1) Da Dignidade da Pessoa Humana.................................................................................. 27 2.2) Da Liberdade ................................................................................................................. 30 2.3) Da Igualdade, da Isonomia e da Vedação de Discriminações Odiosas ......................... 33 2.4) Da Laicidade Estatal e das Liberdades Religiosas ........................................................ 39 3 – UNIÃO HOMOAFETIVA E CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO: ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL, DA ATUAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ E DO DIREITO COMPARADO ..................................... 44 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 82

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INTRODUÇÃO Um fenômeno sociológico que tem sido observado já há algum tempo diz respeito às transformações operadas nas sociedades contemporâneas, reflexo de uma liberalização e ruptura de paradigmas morais que vêm sendo superados, não obstante a oposição fervorosa demonstrada pelos setores mais conservadores no apego ao passado. Desses avanços, o que se mostra relevante para este trabalho é a transformação ocorrida na instituição milenar denominada "família", cuja conceituação sofreu profundas mudanças ao longo da história da civilização. Uma assertiva que parece óbvia é a de que o Direito não encerra um fim em si mesmo, mas um meio de servir à sociedade na qual se insere. Ainda assim, mostra-se relevante a necessidade de deixar isso claro, de modo que o Direito possa acompanhar as transformações sociais que vêm se observando no mundo dos fatos, muitas vezes às margens do ordenamento jurídico, uma vez que, por mais criativo que seja o legislador e por maior que seja seu exercício intelectivo, a ele não é dado imaginar ou antever todas as possibilidades fáticas que podem ocorrer na vida, uma vez que cada ser humano representa um universo complexo de potencialidades. O fenômeno ao qual este trabalho pretende restringir-se é o da homoafetividade, neologismo dotado da mais alta sensibilidade, criado pela admirável autora Maria Berenice Dias1, quando do lançamento da primeira edição de sua obra: "União homossexual: o preconceito e a justiça".2 É possível dizer que a sociedade brasileira nunca evoluiu tanto na seara dos direitos sociais quanto no período que sucede a promulgação da que ficou conhecida como

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Maria Berenice Dias é desembargadora aposentada, tendo integrado o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul por 35 anos. Aposentou-se para abrir o primeiro escritório de advocacia especializado em Direito Homoafetivo no Brasil. Desde então, ela tem atuado nas mais diversas frentes de proteção homoafetiva no Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, nas Comissões de Diversidade Sexual junto a OAB e na presidência da Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. 2 A obra teve seu título devidamente atualizado em sua quarta edição e já houve o lançamento de uma quinta: DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

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Constituição Cidadã de 1988. De fato, os avanços obtidos nos últimos 25 anos são maiores e mais numerosos que os contabilizados em séculos. Nesse contexto é que se insere a publicização exponencial das relações homoafetivas. Após séculos de preconceito, discriminação, violência e marginalidade, enfim as relações homoafetivas têm revelado publicamente sua existência e obrigado à sociedade como um todo lidar com essa realidade. Já não é possível olhar para o outro lado e fingir que homoafetividade não existe, condenando à marginalidade e ao exílio seus partícipes. E por um simples motivo, já não existe “outro lado”, a homoafetividade já se permeou no tecido social e na evolução do pensamento sociológico contemporâneo de tal sorte que já não é mais motivo de vergonha e sim de autoafirmação daqueles que são diferentes. E o momento não poderia ser mais oportuno. Não que haja acabado o preconceito, a intolerância e a homofobia, mas houve uma mudança de postura como nunca dantes vista, de uma passividade submissa de quem estava condenado pelo pecado ao ativismo dos que encontraram na luz uma justificativa para sua existência. Não é mais permitido a essa sociedade retroceder ao obscurantismo que durante tanto tempo a guiou traiçoeiramente na cegueira medieval. Não depois do alargamento do conceito de família, que passou a ter como núcleo o afeto, rompendo com a tríade até então obrigatória: sexo-casamento-reprodução. No entanto, as constatações da Sociologia, a observação do mundo, não parecem suficientes para mover o ordenamento jurídico. É por essa razão que se mostra necessária uma análise mais profunda dos princípios jurídicos que protegem e legitimam as relações homoafetivas, de modo a permitir sua inserção no ordenamento jurídico no campo da existência, demandando uma posição no Direito de Família com o conjunto de normas precisas à sua regulação. A partir do conhecimento principiológico afeto à matéria é que se pode entender a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em meados de 2011, decisão essa que garantiu a equiparação entre uniões estáveis hetero e homoafetivas, uniformizando o tratamento jurídico sobre o tema pelos tribunais do país, devido à natureza erga omnis da decisão. Até então já havia casos de juízes de primeira instância conferindo um tratamento de união estável às relações homoafetivas, mas não havia uniformidade, restando aos litigantes confiar muito na sorte e não na justiça quando da distribuição de seus processos. A decisão do STF gerou muita polêmica e repercussão, sobretudo por parte dos grupos religiosos e

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segmentos mais conservadores da sociedade, como já era de se esperar. No entanto, a Corte Constitucional manteve sua decisão, mostrando-se atualizada quanto aos movimentos sociais do mundo no qual se insere, exercendo seu papel, muitas vezes esquecido, de tribunal contramajoritário. A interpretação lógica a que se chega após um exercício intelectivo sobre a decisão do STF é a mesma a que chegou o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que se aos casais homoafetivos é reconhecida a união estável e que a própria Constituição Federal preconiza que seja facilitada a conversão de união estável em casamento, não haveria óbice para sua realização. Avançando um pouco mais na interpretação, a indagação a que se chega é: se a união estável homoafetiva deve poder ser convertida em casamento, por que não é possível a habilitação direta para o casamento homoafetivo? Para responder a pergunta e garantir o bom funcionamento do ordenamento jurídico, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no exercício regular de suas atribuições, emitiu a Resolução Nº 175, em maio de 2013, destinada aos cartórios de todo país, garantindo a habilitação, a celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Após a compreensão da homoafetividade no cenário interno, apresenta-se um quadro de Direito Comparado, no qual é possível perceber como tem sido tratada a temática da matéria nos principais países cujo ordenamento jurídico se mostra relevante para o nosso e o quanto está avançado e alinhado com seu tempo o Poder Judiciário Nacional. Por fim, são feitas breves considerações sobre os motivos que dificultam a aprovação desse tipo de matéria pela via legislativa e mais uma vez faz-se um conclame ao Congresso Nacional para que enfrente suas dificuldades, inserindo a homoafetividade em sua pauta e debruçando-se sobre a matéria, sob pena de atrofiar ainda mais um Poder que já se encontra tão desacreditado.

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1 – UM NOVO CONCEITO DE FAMÍLIA: A AFETIVIDADE COMO NÚCLEO É muito possível que desde o surgimento da vida humana na Terra, no período Quaternário da Era Cenozoica, já existissem indícios de humanos vivendo em grupos. A vida em comunidade é algo inerente ao ser humano, uma vez levada em consideração sua necessidade premente de associação. A partir daí é que muitos autores buscam incessantemente encerrar um conceito que traduza o mais fielmente possível a ideia de família, no sentido de núcleo central de associação humana. Primeiramente, deve-se perceber a dificuldade que reside na tarefa uma vez que família e sociedade são construções culturais sujeitas à dinamicidade do tempo. De acordo com LÔBO, na Roma Antiga, por exemplo, a palavra família não era utilizada para designar o casal e sua prole, mas sim os escravos, uma vez que famulus significava escravo e, assim, o termo família referia-se ao conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem.3 Nas palavras de FARIAS: “[...] a família tem seu quadro evolutivo atrelado ao próprio avanço do homem e da sociedade, mutável de acordo com as novas conquistas da humanidade e descobertas cientificas, não sendo crível, nem admissível, que esteja submetida a idéias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. É a realidade viva, adaptada aos valores vigentes.”4

A despeito das dificuldades conceituais, é imperioso observar a importância da família para as sociedades modernas numa abrangência mundial. Tanto é assim que o Ordenamento Jurídico brasileiro confere à família um status constitucional, quando afirma no artigo 226 da Carta Magna que a família, que é a base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Por essa razão, mostra-se de suma importância uma digressão no instituto da família para que, a partir desse movimento, seja possível associar a ideia de homoafetividade com a de entidade familiar. Isso porque a primeira reação das maiorias dominantes, que vivem sob os preceitos heteronormativos, impregnados ainda pelo ranço do machismo e da sociedade patriarcal é negar direitos àqueles que são diferentes.

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LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 8. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 4. 4

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Indo um pouco mais longe, é possível dizer que a ideia de família é anterior ao próprio Direito. Sua importância nos campos: ético, moral, econômico, religioso e, principalmente, social é tamanha, que se trata de um valor objeto de estudo pelos mais diversos campos das ciências humanas. Por isso mesmo, como nos ensina GAMA, não há como encerrar um modelo único de família universal, hermético, estanque e intocável.5 Portanto, antes de se aventurar na tentativa de conceituar o que é família, devem-se observar os conselhos de TEPEDINO, sintetizados por GAMA, segundo o qual “o conceito de família é relativo, altera-se continuamente, renovando-se como ponto de referência do indivíduo na sociedade e, assim, qualquer análise não pode prescindir de enfocar o momento histórico e o sistema normativo em vigor”.6 É nesse sentido que se permite uma tentativa de conceituação do que seria esta nova família7, uma entidade que permanece essencial para a própria existência da sociedade e do Estado, mas que deslocou seu foco da antiga patrimonialização para encontrar a funcionalização em seus partícipes. Em sua obra, VILLELA evidencia as bases do novo Direito de Família, pautado em valores existenciais e não mais exclusivamente patrimoniais: “As relações de família, formais ou informais, indígenas ou exóticas, ontem como hoje, por muito complexas que se apresentem, nutrem-se todas elas, de substancias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar: afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido a arte e a virtude do viver em comum. A teoria e a prática das instituições de família dependem, em última análise, de nossa competência de dar e receber amor”.8

A sociedade brasileira, nas últimas décadas, evoluiu bastante no que se refere à pluralidade de realidades familiares. A flexibilização dos costumes, o fenômeno da urbanização cada vez mais acelerado e o movimento de emancipação feminina são apenas alguns dos responsáveis pelas novas facetas de família em detrimento daquela patriarcal. O

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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2001, p. 24. 6 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008, p. 6. 7 CAMPOS, Diogo Leite de apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família. p. 9. 8 VILLELA, João Baptista apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família. p. 9.

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casamento, sacramentado religiosamente no ato do matrimônio, que durante muito tempo foi o único meio de constituição de família, teve que dividir seu prestígio com as famílias de união estável, famílias monoparentais, famílias anaparentais, famílias homoparentais, famílias eudemonistas, famílias de união homoafetiva. No intuito de acompanhar as profundas mudanças na configuração das famílias, a Constituição Federal de 1988 incorporou novas categorias de entidades familiares no capítulo em que tratou das Famílias. Sim, famílias, no plural, porque a linguagem condiciona o pensamento,9 e uma consoante pode fazer muita diferença ao sintetizar a magnitude das famílias em suas multifacetadas formatações.10 Como salienta DIAS: “Assim, a expressão direito das famílias melhor atende à necessidade de enlaçar, no seu âmbito de proteção, as famílias, todas elas, sem discriminação, sem preconceitos.”.11 Ressalte-se, ainda, que o rol de entidades familiares elencados no art. 226 da Constituição Federal de 1988 não é taxativo, tendo os Tribunais por todo o país reconhecido entidades outras que se configuram como família. É interessante constatar que o modelo tradicional de família patriarcal, sustentado pela combinação dos paradigmas originários (casamento, sexo e reprodução), não mais prevalece. Cada vez mais, o elemento distintivo do conceito de família afasta-se da estrutura do casamento e passa a fundar-se sob os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo uma nova roupagem axiológica ao direito de família.12 Hoje, afirma-se que a família não é protegida pela Constituição como um fim em si, mas antes como um meio, que é tutelado na medida em que permite que cada um dos seus

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BARROS, Sérgio Resende de apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 28. 10 ALVES, Jones Figueirêdo apud DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 28. 11 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 28. 12 Ibidem, p. 43.

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integrantes se realize como pessoa, num ambiente de comunhão, suporte mútuo e afetividade.13 Indubitavelmente, a partir desses novos pilares, valores base das instituições familiares modernas, é que se tornou possível aos homoafetivos figurarem no plano da existência jurídica, pois até então eles sequer eram considerados pelo sistema. Dessa forma, parece muito adequada a conceituação de família sintetizada por GAMA, segundo a qual família seria “uma formação social, lugar-comunidade tendente ao desenvolvimento de seus participantes em suas personalidades, de modo a exprimir uma função instrumental para a melhor realização de seus interesses afetivos e existenciais.”.14 De acordo com PEREIRA, a família é uma estruturação psíquica onde cada integrante possui um lugar definido, independentemente de qualquer vínculo biológico.15 Nas lições de LÔBO, referenciadas por GAMA, apresenta-se, por sua vez, uma classificação bastante útil e atual para a compreensão dos modelos de família: Compreende-se a família a partir de duas estruturas associadas: a dos vínculos e a dos grupos. Há, assim, três espécies de vínculos que podem coexistir ou existir separadamente, a saber, os vínculos de sangue, os vínculos de direito e os vínculos de afetividade, como no exemplo dos liames jurídicos de parentesco existentes entre pais e filhos. E, com base nos vínculos familiares, há os diversos grupos que integram a noção de família: o grupo conjugal, o grupo parental (formado pelos pais e filhos) e os grupos secundários (constituído por outros parentes e afins). 16

Diante de tudo, as palavras de HIRONAKA parecem traduzir um consenso acalentador diante de toda efemeridade conceitual que cerca a ideia de família: De resto importa constatar, desde logo, e ao que tudo indica, que há uma imortalização na idéia de família. Mudam os costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade, vale dizer, a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família [...].17

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TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.347-366. 14 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família. p. 10. 15 PEREIRA, Rodrigo da Cunha apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios... p. 27. 16 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios... p. 41. 17 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Casamento e Regime de bens. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://jus.com.br/artigos/4095/casamento-e-regime-de-bens. Acesso em 08/12/2013.

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2 – HISTÓRIA DA HOMOSSEXUALIDADE E PRINCÍPIOS GARANTIDORES DE RECONHECIMENTO JURÍDICO ÀS FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS Quando se pretende falar de homossexualidade no tempo, é sempre muito adequado citar uma assertiva comumente atribuída a Goethe: “A homossexualidade é tão antiga como a heterossexualidade”.18 De fato, parece que Goethe tinha razão, pois é evidente a presença da homossexualidade desde as civilizações mais antigas, destacando-se a grega e a romana, nas quais a homossexualidade era uma prática inclusive estimulada. É importante lembrar que a homossexualidade não é fenômeno recente, tendo integrado a cultura da Grécia Antiga, na qual havia abertamente uma relação entre a prática da pederastia e o alcance pleno da cidadania. Ressalte-se que havia a ligação entre o “preceptor”, homem comumente mais velho, que escolhia e cortejava um “efebo”, rapaz que a ele devia se submeter, desempenhando aí uma postura passiva e submissa, por meio da qual este passaria a integrar verdadeiramente a estrutura social polis. Desde então já havia uma valorização exacerbada do machismo, pois apenas a postura ativa era valorizada, não só no aspecto sexual, mas na vida. Ser ativo significava ser dono de si mesmo, e não submisso como as mulheres. Havia a crença de que, no período da puberdade, o jovem se identificava com a figura materna, fase esta superada pela iniciação homossexual, por meio da qual o menino adquiria identidade e se integrava à comunidade masculina. Antes de ser reconhecido adulto, para se relacionar com o sexo oposto, o jovem devia incursionar em seu próprio gênero. A relação tinha caráter iniciatório e se restringia à ligação entre o homem mais velho e o menino ainda impúbere.19 Depois, o tema deixou de ter importância na Roma pré-cristã, como meio de oposição à sua relevância na Grécia clássica. No entanto, a homossexualidade continuou presente na vida daquela sociedade, mas novamente só era valorizado o “polo ativo” da relação. O preconceito da civilização romana existia apenas contra quem assumia a condição de passividade. Assumir uma postura passiva denotava impotência política e debilidade de

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VECHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade, p. 40. SOUZA, Ivone Coelho de apud DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. p. 35.

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caráter.20 Como quem assumia o polo passivo da relação eram rapazes, mulheres e escravos – todos excluídos da estrutura de poder -, evidente era a relação entre masculinidade-poderpolítico e passividade-feminilidade-carência de poder.21 O grande ataque à homossexualidade, no entanto, está ligado indiscutivelmente ao papel desempenhado pelas religiões, sobretudo o cristianismo, que ascendeu absurdamente até atingir seu ápice na Idade Média. Houve o distanciamento da cultura greco-romana e o mito Sodoma e Gomorra ganhou espaço, especialmente nas religiões judaico-cristãs, tornando-se um dos principais argumentos para os que são contrários às práticas homossexuais, criando um laço indissolúvel entre homossexualidade e pecado.22 Seguindo a filosofia de São Tomás de Aquino, o pecado do sexo justificava-se como caminho à procriação, devido à necessidade de preencher os vazios demográficos e assegurar a reposição da humanidade, uma vez que a expectativa de vida na época era de cerca de 30 anos. O matrimônio era considerado um remédio que Deus deu ao homem para preservá-lo da impudicícia23 e da luxúria.24 Nesse sentido é que a Igreja Católica sacralizou o casamento na Idade Média, não obstante a perpetuação do caráter patrimonial que lhe era característico. Com o surgimento da visão humanista na Itália do século XV, os valores da Grécia Clássica foram redescobertos e vários foram os filósofos que defendiam abertamente o chamado amor masculino25, desde que as relações homossexuais se dessem entre homens mais velhos e adolescentes.26 A ideia de dois homens mais velhos se relacionando era algo considerável degradante. No entanto, a simples ideia de repúdio e desprezo funciona como prova cabal de existência, pois isso não seria inventado de forma fortuita e apriorística. As poucas menções que se fazem às práticas homossexuais femininas são apenas como referência à lascívia e nada mais, pois às mulheres não era conferida cidadania, cabendo-lhes apenas a submissão de sempre.

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MORICI, Silvia apud DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito e a justiça. p. 35. Idem. 22 GUIMARÃES, Aníbal. Sexualidade heterodiscordante no mundo antigo. In: Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Coordenação: Maria Berenice Dias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 31. 23 Impudicícia: falta de pudor, de moral, imoralidade, indecência (Dicionário Houaiss). 24 MORICI, op. cit., p. 37. 25 VECHIATTI, op. cit., p. 56. 26 Ibidem, p. 57. 21

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No século XVII, com a ascensão do modelo econômico capitalista, passou-se a uma valorização do consumismo, tornando o amor homoafetivo um entrave para as elites dominantes. A explicação residia na potencialidade consumista aumentada nas famílias heteroafetivas uma vez que podem gerar descendentes. Na época, quase não se falava em adoção e não havia técnicas de inseminação artificial. Assim, além do já consagrado medo de extinção da humanidade se a homoafetividade fosse aceita, passou-se a considerar o amor entre iguais um inconveniente por não gerar futuros consumidores e não consumirem produtos infantis.27 Em meados do século XIX, a homossexualidade recebeu o status de comportamento patológico, em resposta à gradual descriminalização dos atos homoeróticos e a valorização da racionalidade em detrimento à religiosidade no que guarda relação com a explicação de fenômenos humanos e naturais. É interessante ressaltar que nesse período mencionou-se, pela primeira vez, o termo “homossexual”, pelo médico Karoly Maria Benkert, por ocasião de uma carta escrita por ele ao Ministério de Justiça da Alemanha do Norte em defesa dos homens homossexuais que estavam sendo perseguidos por questões políticas. O médico defendia que os homossexuais não deveriam ser perseguidos criminalmente, mas sim “curados” de sua condição homossexual.28 De maneira geral, os governos se aproveitaram do período de patologização da homossexualidade para perseguir àqueles considerados como transgressores do sistema vigente e, nesse grupo, incluíram os homossexuais e as mulheres, que davam seus primeiros passos no movimento feminista. Sob o pretexto de se buscar uma cura para a homossexualidade, foram administrados, com a chancela estatal, os tratamentos mais cruéis, desumanos e degradantes já experimentados por essa parcela da população. Foi o período das terapias com choques convulsivos, lobotomia e terapias por aversão.29

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Ibidem, p. 58. Ibidem, p. 60. 29 Nessas “pseudoterapias”, fazia-se o “paciente” ingerir remédios indutores ao vômito para, em seguida, assistir a cenas homoeróticas. Em decorrência do remédio, o “paciente” se sentia mal e vomitava. Após, recebia uma injeção de testosterona e assistia a filmes eróticos heterossexuais, no intuito de “despertar” a sexualidade “normal”... A posterior prova científica de que os homossexuais não possuem disfunções hormonais em muito decepcionou os homofóbicos que aplicaram os referidos tratamentos. 28

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Até meados do século XX, pode-se dizer que não houve avanços no entendimento da homossexualidade, o que contribuiu em parte para o massacre de milhares de homossexuais nos campos de concentração nazistas, ao lado de outros tantos judeus e ciganos no genocídio do Holocausto. Uma curiosidade que vale a pena ressaltar é que numa obra publicada em 1947, Homossexualismo masculino, texto apresentado pelo autor Jorge Jaime durante um seminário de medicina legal, apesar do caráter preconceituoso típico da época – “Coitados! Infelizes, só adoram machos e por eles se apaixonam” -, propõe algo inédito: “os homossexuais deveriam ter o direito de se casar”.30 E continua o autor com sua lógica, no mínimo, curiosa: “Existem milhares de invertidos que vivem maritalmente com indivíduos do seu próprio sexo. Se fosse concedido o casamento entre homens não se criaria nenhuma monstruosidade: apenas, se reconheceria por um estado de direito, um estado de fato [...] A união legal entre doentes é um direito que só os países ditatoriais negam. Se os leprosos podem casar entre si, por que devemos negar esse direito aos pederastas? Só porque aos normais repugna um ato de tal natureza?” 31

Por óbvio o raciocínio do autor é repleto de deturpações, sobretudo quanto ao aspecto patológico com que descreve a homossexualidade. No entanto, é interessante trazê-lo à tona senão para mostrar que mesmo numa lógica que enquadra a homossexualidade como doença não se encontra razão para privar esses casais dos direitos concedidos aos demais cidadãos. No entanto, o grande marco do século no que tange à homossexualidade veio a partir da publicação do Relatório Kinsey (como ficou conhecido o livro “Sexual Behavior in the Human Male”) em 1948. Alfred Kinsey, também conhecido como o pai da sexologia, defendeu a tese de que em matéria de sexo não existe aberração ou desvio. Sua pioneira pesquisa baseou-se em milhares de entrevistas com homens das mais diversas idades e camadas sociais.32 De acordo com Kinsey, os seres humanos não se classificam quanto à sexualidade em apenas duas categorias (exclusivamente heterossexual e exclusivamente

JAIME, Jorge apud DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo Na História do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011, p. 170. 31 Idem. 32 Em 1953, Kinsey publicou seu segundo volume (Sexual Behavior in the Human Female), no qual abordou a sexualidade feminina. 30

21

homossexual), mas apresentam diferentes graus de uma ou outra característica em diferentes períodos de suas vidas. Em resumo, os indivíduos seriam divididos nas seguintes categorias:

Nível

Descrição

0

Heterossexual exclusivo

1

Heterossexual ocasionalmente homossexual

2

Heterossexual mais do que ocasionalmente homossexual

3

Igualmente heterossexual e homossexual, também chamado de bissexual

4

Homossexual mais do que ocasionalmente heterossexual

5

Homossexual ocasionalmente heterossexual

6

Homossexual exclusivo

X

Indiferente sexualmente (assexual).

Não obstante as inúmeras críticas sofridas por Kinsey, a importância de seu relatório reside no fato de ter sido o primeiro estudo científico que não se deixou influenciar por preconceitos. O cientista deixou claro que a homossexualidade existe, de fato, na espécie humana e que não se trata de enfermidade ou anomalia. Ainda sobre a superação da ideia de patologia, muito apropriada parece a postura do famoso psiquiatra suiço Carl Gustav Jung a respeito do tema: “A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação” 33.

33

JUNG, Carl Gustav apud BRITTO, Ayres. STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, p. 22. Inteiro Teor disponível no endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 Acesso em 20/12/2013.

22

Um outro episódio marcante para a comunidade LGBT foi o que ficou conhecido como a Revolta de Stonewall. Em 1968, a repressão policial aos homossexuais nos EUA era intensa. Havia leis que puniam o travestismo e, embora a sodomia não fosse criminalizada, a moral pública e os bons costumes serviam para justificar a punição exemplar aos homossexuais. Poucos eram os locais que admitiam que os homossexuais pudessem aproveitar a noite. Um desses locais era o bar “Stonewall Inn”, no bairro boêmio do Village, em Nova Iorque. Só quem lá frequentava eram os marginalizados pela sociedade como gays, garotos de rua ou sem endereço fixo, garotos de programa e abandonados por suas famílias. O local era alvo constante de batidas policiais, durante às quais os frequentadores eram levados com violência pela polícia à delegacia. No entanto, na noite de 28 de junho de 1968 a história foi um pouco diferente. Naquela noite, uma batida policial rotineira preparava-se para ocorrer. Os policiais retiram os “depravados” do bar e os arrastam pela rua até o camburão, como de costume. Afinal, os policias estavam acostumados com a passividade daqueles gays, maricas incapazes de se defender ou de demonstrar agressividade. Apenas quando os primeiros gays e lésbicas se recusaram a entrar nos camburões é que os outros os seguiram enfrentando a força policial. Diante da crescente violência e agressividade dos frequentadores do Stonewall – e a notícia já corria as ruas do bairro, muitas pessoas, LGBT e simpatizantes, desciam à rua para prestar apoio e aumentar a turba – só restou aos policiais se refugiarem dentro do bar e aguardar reforços. Finalmente os reforços chegam – de ambos os lados – e os confrontos duram a noite inteira. Com o raiar do sol, a destruição e os detritos cobrem as ruas do bairro. E enquanto o sangue escorre pela sarjeta em direção ao bueiro, leva consigo um mito: de que os homossexuais aceitarão a opressão passivamente. Não, eles não aceitarão; não mais, não depois de Stonewall.34 Em 28 de junho de 1969, para celebrar um ano da Revolta de Stonewall, ocorreu, nas ruas de Manhattan, a primeira passeata que fixou o Dia Mundial do Orgulho LGBT, evento que se disseminou em diversos países do mundo. Cabe ressaltar que a palavra “Orgulho” é aqui utilizada em oposição à “vergonha”, que foi usada ao longo da história para controlar e

34

CARDINALI, Daniel. Somos todos Stonewall. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://osentendidos.com/2013/06/28/somos-todos-stonewall. Acesso em 02/11/2013.

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oprimir indivíduos dessa comunidade. É orgulho no sentido de afirmação de cada indivíduo e da comunidade como um todo. Apenas em 1973, a homossexualidade deixou de ser classificada como transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e foi removida do Manual de Diagnóstico e Estatística de Desordens Psiquiátricas. Em 1975 a Associação Americana de Psicologia adotou o mesmo procedimento, deixando de considerar a homossexualidade uma doença. No Brasil, em 1985, o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade um desvio sexual e, em 1999, estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão" e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade. No dia 17 de maior de 1990, a Assembleia-Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, a Classificação Internacional de Doenças (CID). Por fim, em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos.35 A partir do breve apanhado histórico sobre o tratamento dispensado à homossexualidade pelas sociedades em diferentes épocas, já é possível uma análise contemporânea do fenômeno da homoafetividade, bem como dos princípios jurídicos que garantem as relações decorrentes dela. A homoafetividade é um conceito que surgiu para ampliar o escopo do termo homossexualidade, sobretudo no âmbito do Direito de Família. A palavra homossexualidade limita a ideia de união entre pessoas do mesmo sexo apenas ao aspecto sexual da relação. O termo homoafetividade, por outro lado, mostra-se mais abrangente, compreendendo os laços de amor, afeto e união para uma vida em comum dos parceiros para a realização de seus projetos pessoais de maneira a alcançarem a felicidade. E se essas pessoas que compartilham o mesmo gênero unem-se por laços de afeto para dividirem seus projetos de vida um com o outro, o que mais elas almejam é que a natureza dessa relação seja abarcada pelo conceito de

35

Fonte:http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/05/16/interna_brasil,192631/index.shtml. Acesso em 13/10/2013.

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família e que suas vidas sejam tuteladas pelo ramo do Direito correspondente, de modo a lhes conferir segurança e proteção estatais. Não obstante os inúmeros esforços empenhados no sentido de conferir os direitos necessários a uma vida digna para os que encontram na homoafetividade um traço de suas personalidades, o Brasil ainda não conseguiu conciliar seus Poderes em um denominador comum. O Poder Judiciário, em sua máxima instância nacional, já decidiu pela possibilidade da união homoafetiva e, por consequência, abriu caminho para o casamento igualitário, ou seja, aquele realizado entre pessoas do mesmo sexo. Muitos outros direitos ainda carecem de reconhecimento, mas muitos já foram os avanços. Na esfera legislativa, parece quase impossível a aprovação de leis que se destinem a conceder direitos à população homoafetiva, dada a composição atual do Congresso Nacional, que hoje conta com uma parcela significativa de grupos religiosos, a dita “bancada evangélica”, que inviabiliza qualquer projeto de lei que busque êxito na matéria, traduzindo os interesses das parcelas mais conservadoras da sociedade, contrariando de maneira evidente o caráter laico que reveste o Estado Democrático de Direito. Com vistas ao Poder Executivo, o preconceito e a discriminação contra os homossexuais começaram a ser combatidos com a edição de atos por seus entes. Muito elucidativa foi a IN 50 de 2001, do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que estendeu benefícios previdenciários aos companheiros homossexuais ao incluí-los no rol de dependentes para fins previdenciários, bem como a Portaria Normativa 5, de 25.05.2009, do Ministério da Educação, que regulamentou o processo seletivo do Programa Universidade para Todos (PROUNI) estendendo o conceito de grupo familiar para fins de obtenção dos benefícios institucionais às uniões estáveis, inclusive homoafetivas.36

36

Portaria Normativa 5, de 25.05.2009 “Art. 6º Entende-se como grupo familiar, além do próprio candidato, o conjunto de pessoas residindo na mesma moradia do candidato que, cumulativamente: I - sejam relacionadas ao candidato pelos seguintes graus de parentesco: a) pai; b) padrasto; c) mãe; d) madrasta;

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Ainda na esfera Executiva, nomeie-se como relevante contribuição à modernidade democrática brasileira o Programa Nacional de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB (Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais) e de Promoção da Cidadania Homossexuais “Brasil sem Homofobia”, aprovado pelo Governo Federal e em vigor desde 2004, por meio do qual se instituiu políticas públicas de combate à discriminação, à promoção da cidadania homossexual e à construção de uma cultura de paz e valorização da diversidade humana. Em nível estadual cabe ressaltar que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que veio a ser recebida e julgada em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, foi proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, o que já denota um posicionamento deste Poder Executivo acerca da matéria. A decisão proveniente desse julgamento e seus desdobramentos serão tratados em capítulo oportuno. No entanto, adianta-se que não seria possível continuar negando o reconhecimento de direitos homoafetivos pelos atos omissivos do Poder Público, entenda-se aqui Poder Legislativo. Nesse sentido é que a incorporação à sociedade dos segmentos homoafetivos foi concedida de maneira definitiva por via judicial. E antes de tratar do posicionamento dos Tribunais Superiores a respeito da homoafetividade, parece salutar uma análise mais minuciosa dos princípios, alguns basilares do ordenamento jurídico pátrio, que permitiram o início do fim das injustiças perpetradas há anos contra os que amam os que lhes são iguais.

e) cônjuge; f) companheiro(a); g) filho(a); h) enteado(a); i) irmão(ã); j) avô(ó). (...) § 5º O disposto nesta Portaria aplica-se igualmente aos grupos familiares nos quais ocorra união estável, inclusive homoafetiva.” Disponível em meio eletrônico no endereço: http://prouniportal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=128&Itemid=122. Acesso em 08/12/2013.

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Como bem salienta GAMA, é mister levar em consideração as significativas mudanças ocorridas na teoria das fontes normativas, uma vez que, hodiernamente, os princípios ganharam importante reconhecimento quanto à sua força normativa, o que implica, muitas vezes, na solução de questões à luz da principiologia e das técnicas de interpretação e aplicação das normas a ela referentes, o que exige um esforço maior por parte do jurista.37 Pela importância que lhe cabe, vale rememorar, nesta oportunidade, a profícua lição propagada por Celso Antônio Bandeira de Mello: [...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada.38

A partir do momento em que ocorreu a primazia da Constituição como fonte maior do Estado Democrático de Direito, o Direito Civil e mais notadamente seu ramo do Direito de Família sofreu profundas transformações, uma vez que o positivismo puro e simples já não atendia mais aos interesses desta nova sociedade que já se baseia nos direitos humanos. Os princípios constitucionais adquiriram um caráter cogente nunca antes visto no ordenamento jurídico brasileiro graças ao seu maior grau de generalidade, que consagra uma noção de validade universal. As regras mostraram-se limitadas e já não mais atendem plenamente aos ideais de justiça clamados pela sociedade. A técnica hermenêutica da interpretação conforme a Constituição foi uma das maiores inovações do atual sistema jurídico ao propagar que a lei deve sempre ser interpretada a partir da lei maior.39 Como bem observa SARMENTO, se o direito não contivesse princípios, mas apenas regras jurídicas, seria possível a substituição dos juízes por máquinas.40

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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios..., p. 65. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 772. 39 DIAS, Maria Berenice. Manual..., p. 57-58. 40 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 44. 38

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2.1) Da Dignidade da Pessoa Humana É possível afirmar, sem qualquer objeção, que a ordem constitucional brasileira posicionou a dignidade humana como núcleo fundante, estruturante e essencial de toda a sociedade. Não existe direito fundamental, qualquer que seja, que possa ser analisado em dissonância com a dignidade humana.41 Trata-se, desse modo, de um macroprincípio que norteia e orienta todo o sistema jurídico brasileiro, possuindo caráter absoluto e não admitindo hipótese de relativização. Essa dimensão a que foi elevada a dignidade humana e a própria categoria dos chamados direitos humanos justifica-se, principalmente, após os absurdos perpetrados contra toda a humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. Assim, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), reconheceu-se a dignidade dos seres humanos e seus direitos iguais e inalienáveis como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.42 O episódio marcou o nascimento dos direitos de terceira geração, que asseguram a dignidade humana pela garantia de condições gerais e básicas como direitos difusos de toda a humanidade. Segundo SARMENTO, a dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas todo o conjunto de relações privadas que se verificam no âmbito da sociedade.43 Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração pelo Estado e pela comunidade. Constitui-se de um complexo de direitos e deveres fundamentais que resguardem a pessoa contra todo e qualquer ato considerado

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;” 42 Declaração Universal dos Direitos Humanos, preâmbulo. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em 08/12/2013. 43 SARMENTO, Daniel. A ponderação..., p. 60.

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degradante e desumano e, ainda, lhe garanta condições existenciais mínimas para uma vida saudável, propiciando e promovendo sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.44 O doutrinador confere ainda à dignidade uma tripla dimensão – normativa, principiológica e valorativa – de modo que: “a norma consagradora da dignidade da pessoa revela uma diferença estrutural em relação às normas de direitos fundamentais, justamente pelo fato de não admitir uma ponderação no sentido de uma colisão entre princípios, já que a ponderação acaba sendo remetida à esfera da definição do conteúdo da dignidade”. 45

O pensamento acerca da dignidade humana contou, sobretudo, com a valorosa contribuição dada por Immanuel Kant ao afirmar que “as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade”,46 elevando a dignidade ao patamar de valor absoluto da racionalidade humana. A partir da filosofia kantiana, entende-se que a dignidade humana é um valor intrínseco, absoluto e caracterizador da pessoa como um fim em si mesma, não permitindo que ela seja instrumentalizada, “coisificada”, ou descartada em virtude de outras características pessoais. No momento em que a Constituição elevou a dignidade humana a pilar fundante da ordem jurídica, houve uma opção expressa pela pessoa, submetendo todos os institutos à realização plena de sua personalidade. Esse fenômeno provocou duas mudanças radicais no direito das famílias, quais sejam a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito.47 Ressalte-se que o princípio da dignidade da pessoa humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para sua atuação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade

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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 60. 45 Ibidem, p. 73. 46 KANT, Immanuel. Fundamentação à metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2005. 47 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado apud DIAS, Maria Berenice. Manual..., p. 63.

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humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.48 GAMA aponta, ainda, um dos princípios gerais do Direito das Famílias, qual seja a tutela especial a todos os tipos de família, independentemente de sua espécie quanto à constituição e à manutenção de vínculos jurídicos. Isso porque “à família contemporânea passa a ser reputado o lugar privilegiado de realização existencial de seus integrantes e o espaço preferencial de afirmação e de consolidação de suas dignidades.”.49 O não reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares simbolizava claramente uma posição do Estado de que a afetividade dos homossexuais não tinha valor e não merecia respeito. Era uma violação do direito ao reconhecimento, que é uma dimensão essencial do princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque, como ser social, que vive inserido numa cultura, em relação permanente com outros indivíduos, a pessoa humana necessita do reconhecimento do seu valor para que possa desenvolver livremente sua personalidade. Sem este reconhecimento, ela perde a autoestima, que já foi definida por John Rawls como “o mais importante bem primário” existente na sociedade.50 O reconhecimento social pressupõe a valorização das identidades individuais e coletivas. A desvalorização social das características típicas e do modo de vida dos integrantes de determinados grupos, como os homossexuais, por sua vez, tende a gerar nos seus membros conflitos psíquicos sérios, infligindo dor, angústia e crise na sua própria identidade. Nas palavras de Axel Honneth, “A degradação valorativa de determinados padrões de auto realização tem para os seus portadores a consequência de eles não poderem se referir à condução de sua vida como a algo que caberia um significado positivo no interior de uma coletividade; por isso, vai de par com a experiência de uma tal desvalorização social, de maneira típica, uma perda de autoestima pessoal, ou seja, uma perda na

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SARMENTO, Daniel. A ponderação..., p. 71. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios..., p. 71. 50 RAWLS, John apud SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo e a Constituição Federal. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www.danielsarmento.com.br/2012/09/casamento-e-uniao-estavel-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-e-aconstituicao-federal. Acesso em 02/10/2012. p. 18. 49

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possibilidade de se entender a si próprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características”51.

Quando o Estado nega-se a reconhecer a união entre pessoas do mesmo sexo, ele atenta gravemente contra a identidade dos homossexuais, tratando-os como cidadãos de 2ª classe, perpetuando e legitimando uma cultura de homofobia na sociedade. Afinal, se o que caracteriza o homossexual é justamente o fato de sua afetividade estar direcionada para um indivíduo do mesmo sexo, rejeitar o valor das relações amorosas entre iguais é o mesmo que desprezar um traço essencial de sua personalidade, o que implicaria num atentado evidente à dignidade humana dessas pessoas.

2.2) Da Liberdade Não existe um consenso sobre as razões que determinam a orientação sexual dos indivíduos. Alguns estudos dotados de seriedade científica afirmam que a orientação sexual seria influenciada por fatores genéticos. Segundo outros estudos, igualmente sérios, os fatores determinantes seriam sociais. Não é importante para o jurista se posicionar nesse debate, salvo para deixar claro que não se trata de uma opção, mas de um fato da vida. E justamente por ser um fato da vida é que a homoafetividade não pode ser interditada pelo Direito ou pelo Estado e diz respeito apenas ao espaço privado da existência de cada cidadão. As relações homoafetivas existem, sempre existiram e continuarão a existir, independente de haver um reconhecimento jurídico positivo do Estado. A indiferença estatal teve apenas o condão de gerar um lastimável quadro de insegurança jurídica que por tanto tempo contribuiu para a legitimação do ódio e da homofobia na sociedade.52

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HONNETH, Axel apud SARMENTO, Daniel. Casamento e união estável entre pessoas do mesmo sexo e a Constituição Federal. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www.danielsarmento.com.br/2012/09/casamento-e-uniao-estavel-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-e-aconstituicao-federal. Acesso em 02/10/2012. p. 19. 52 “O homossexualismo é uma tragédia. Os Gays são gente pela metade. Se é que são gente!” “O homossexualismo é um defeito da natureza humana, como é o orgulho, a tendência ao roubo, a cleptomania, o homicídio, ou qualquer coisa assim.” “Os cachorros que me desculpem, mas o projeto de casamento gay é uma cachorrada.”

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A homoafetividade enquanto orientação sexual é um aspecto bastante significativo da personalidade humana e o indivíduo homossexual só é capaz de se realizar em plenitude, alcançando a tão buscada felicidade, quando lhe é permitido se autodeterminar a ponto de desenvolver essa personalidade. E nessa autodeterminação, nesse direito de escolha e deliberação sem interferências externas é que está presente um dos aspectos fundamentais do princípio da liberdade aristotélica, de todo modo assegurado constitucionalmente no art. 5º da Lei Maior.53 Conforme os ensinamentos de Maria Berenice Dias: “A liberdade geral de ação implica em um direito e em uma permissão prima facie. Cada um tem o direito a que o Estado não impeça suas ações ou omissões, bem como permita fazer ou não fazer o que quiser. Qualquer restrição a esta liberdade deve estar assentada em lei que, para isto, deve apresentar razões relevantes e constitucionalmente válidas, assentadas, em geral, no direito de terceiros ou no interesse coletivo. O princípio da liberdade está consubstanciado numa perspectiva de privacidade e intimidade, podendo o ser humano realizar suas próprias escolhas, isto é, o seu próprio projeto de vida. No campo específico da homoafetividade, o princípio da liberdade se faz presente no sentido de que toda e qualquer pessoa possui a prerrogativa de escolher o seu par, independentemente do sexo, assim como o tipo de entidade familiar que deseja constituir.”54

Na verdade, é tão evidente a importância da livre constituição da família para a realização da pessoa humana que não deveria ser preciso enfatizar o assunto. Afinal, é geralmente em família que o indivíduo firma suas relações mais profundas, duradouras e significativas; é nela que ele encontra o suporte espiritual para os seus projetos de vida e o apoio moral e material nos seus momentos de maior dificuldade. No entanto, para que a família desempenhe sua função social moderna, qual seja a realização existencial dos seus membros, a sua constituição deve basear-se num ato de

Essas e outras frases homofóbicas e discriminatórias foram atribuídas a elevadas autoridades religiosas do Brasil durante a década de 90 e são amplamente divulgadas na internet. Veja mais no endereço: Acesso em 27/11/2013. 53

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” 54 DIAS, Maria Berenice. União homoafetiva: o preconceito & a justiça. 5. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 89.

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liberdade, em que cada indivíduo tenha a possibilidade de escolher o parceiro ou a parceira com quem pretende compartilhar sua vida. Nesse ponto, aborda-se o aspecto objetivo do princípio da liberdade, segundo o qual o Estado democrático de direito deve não apenas assegurar o direito de escolha do indivíduo entre diversas alternativas possíveis, como, igualmente, deve propiciar condições objetivas para que estas escolhas possam se concretizar. As pessoas devem ter o direito de desenvolver sua personalidade e cabe às instituições políticas e jurídicas promover esse desenvolvimento, e não dificultá-lo. A partir daí é que, segundo Gustavo Tepedino, deve-se apontar a “inconstitucionalidade de qualquer ato estatal – praticado pelo Legislativo, Judiciário ou Executivo – que limitasse tais escolhas pessoais, circunscrevendo o rol de entidades familiares segundo entendimentos pré-concebidos, as mais das vezes arraigados a préconceitos de natureza cultural, religiosa, política ou ideológica”.55 De modo a privilegiar o princípio da liberdade em sua dimensão material, todos os indivíduos devem dispor da liberdade de escolha quanto ao tipo de entidade familiar que desejam constituir, desimportando o sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. Como adverte Maria Berenice Dias: “Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas é alvo do repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado em função de sua orientação sexual. A proibição dos casamentos inter-raciais, por exemplo, que vigorou em muitos países, é um belo exemplo de afronta ao princípio da liberdade. Ou seja, os negros não eram proibidos de casar. Só não podiam casar com alguém de cor distinta. A mesma lógica se aplica aos homossexuais. Podem casar desde que não seja com pessoa do mesmo sexo. Deste modo, como não desejam contrair matrimônio com uma pessoa de sexo distinto, não lhes é assegurado o direito de constituir família”. 56

E assim continua a aludida autora: “Os direitos fundamentais não são direitos de todos, mas direito de cada indivíduo singularmente. A liberdade de cada um é condição da liberdade de todos. Partindo dessas premissas, o direito geral de personalidade não permite influência do Estado na vida afetiva do indivíduo, tampouco na sua orientação sexual, devendo ser-lhe assegurado o direito de constituir família com pessoa do mesmo ou do sexo oposto;

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TEPEDINO, Gustavo. Relações familiares na legalidade constitucional. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www-antigo.mpmg.mp.br/portal/public/interno/arquivo/id/24115. Acesso em 08/12/2013. 56 DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. p. 89-90.

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a procriação natural ou assistida; o direito à adoção, ou mesmo o direito de não ter filhos etc. A proteção da personalidade do indivíduo pressupõe a liberdade para o seu desenvolvimento segundo a mundividência própria, o seu projeto de vida, as suas possibilidades, constituindo um status negativus que se materializa na defesa contra imposições ou proibições violadoras da liberdade geral de ação”.57

Quando o Estado não permite ao homossexual o direito de escolher com quem manter suas relações de afeto “à luz do dia”, ou seja, com a proteção jurídica que normalmente é dispensada às famílias de um modo geral, esses homossexuais estão sendo enclausurados “no armário”, condenados à clandestinidade. Nas palavras do eminente professor e ministro do STF Luís Roberto Barroso: “Esta seria, na verdade, uma forma comissiva de embaraçar o exercício da liberdade e o desenvolvimento da personalidade de um número expressivo de pessoas, depreciando a qualidade dos seus projetos de vida e dos seus afetos. Isto é: fazendo com que sejam menos livres para viver suas escolhas”.58

2.3) Da Igualdade, da Isonomia e da Vedação de Discriminações Odiosas Os princípios da igualdade, da isonomia e da vedação de discriminações odiosas possuem relevado destaque na ordem constitucional e possuem força suficiente para a defesa da homoafetividade. Os mandamentos contidos em cada princípio podem ser objeto de uma análise individualizada, mas devido à estreita relação entre eles buscou-se uma análise conjunta para um melhor embasamento e compreensão. Antes de tratar dos princípios propriamente ditos neste item, cumpre ressaltar alguns aspectos da Constituição Federal que, embora óbvios, merecem lembrança para orientar o raciocínio de quem se debruça sobre a temática homoafetiva. A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 é uma carta política que devolveu ao país o status de Estado Democrático de Direito após longos e

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Idem. BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL. p. 27. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/themes/LRB/pdf/diferentes_mas_iguais_atualizacao_2011.pdf. Acesso em 08/12/2013. 58

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tenebrosos anos de uma ditadura militar que tanto assolou a sociedade com um regime repressor. A Carta Magna veio para fundar uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”59, fundada em valores supremos como os da igualdade e justiça, abolindo todas as formas de preconceito e de discriminação odiosa fundada em arbitrariedade. Estabeleceu, ainda, como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Tamanha a força da Constituição republicana que, a partir dela, operou-se todo um movimento de constitucionalização do Direito das Famílias, de modo a adequá-lo em princípios e normas para refletir os valores desta nova sociedade. Hodiernamente, o ramo de estudo Civil-Constitucional já possui uma abrangência majoritária e muito contribui na instrução jurídica, na solução de demandas e nos avanços sociais. E o princípio da igualdade, ao menos em seu aspecto formal, contribuiu para o início de um movimento de declínio do modelo patriarcal de sociedade, na qual o homem era o senhor soberano do lar e a mulher exercia um papel inferior de submissão, a partir do momento em que houve a equiparação legal entre homens e mulheres. Mais do que isso, a Constituição Federal reafirmou o princípio da igualdade já mencionado em seu preâmbulo quando estabeleceu que, ao menos perante a lei, todos os cidadãos teriam um tratamento igualitário60 e também quando inseriu cláusula de expressa rejeição ao racismo61. Preciosa se apresenta a lição de Luís Roberto Barroso ao estabelecer a diferença fundamental entre igualdade formal e igualdade material no tocante às relações humanas objeto de estudo: “A igualdade formal, que está na origem histórica liberal do princípio, impede a hierarquização entre pessoas, vedando a instituição de privilégios ou vantagens que

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Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. CF/88, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;” 61 CF/88, art. 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. 60

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não possam ser republicanamente justificadas. Todos os indivíduos são dotados de igual valor e dignidade. O Estado, portanto, deve agir de maneira impessoal, sem selecionar indevidamente a quem beneficiar ou prejudicar. A igualdade material, por sua vez, envolve aspectos mais complexos e ideológicos, de vez que é associada à ideia de justiça distributiva e social: não basta equiparar as pessoas na lei ou perante a lei, sendo necessário equipará-las, também, perante a vida, ainda que minimamente.”.62

A partir dos esclarecimentos, resta claro que o conceito de igualdade material guarda estreita relação com a ideia de justiça distributiva e deve ser sempre perseguida tanto pelo legislador como pelo intérprete do direito. Não obstante o ideal democrático, a questão do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares para todos os efeitos legais resolve-se minimamente e com mais facilidade no plano da igualdade puramente formal, sem envolver quaisquer das dificuldades teóricas e práticas possivelmente presentes na concretização da igualdade material. Com efeito, o princípio da igualdade preconiza que todas as pessoas devem ser tratadas pelo Estado com o mesmo respeito e consideração63. Essa assertiva implica em reconhecer que todas as pessoas possuem igual direito de formular e perseguir autonomamente os seus projetos de vida e de buscar a própria realização existencial, desde que isso não implique numa violação de direitos de terceiros. É simplesmente inconcebível pensar num Estado que, nos dias de hoje, atribua valores desiguais aos projetos de vida de seus cidadãos. A respeito da expansão de conteúdo que ocorreu ao princípio da igualdade, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, mostra-se apropriada a leitura voltada ao multiculturalismo e à política de reconhecimento feita por Luís Roberto Barroso sobre o fato: “(...) No contexto do embate entre capitalismo e socialismo, os temas centrais de discussão gravitavam em torno da promoção de igualdade material e da redistribuição de riquezas. Com o fim da guerra fria, entraram na agenda pública outros temas, sobretudo os que envolvem as denominadas políticas de reconhecimento, designação sob a qual se travam as discussões acerca de etnia, gênero e orientação sexual. Sob o influxo do princípio da dignidade da pessoa humana, passou-se a enfatizar a ideia de que devem ser respeitados todos os

62 63

BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 21. Cf. Ronald Dworkin. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 205-213.

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projetos pessoais de vida e todas as identidades culturais, ainda quando não sejam majoritários.”64

Como afirma Daniel Sarmento, a igualdade impede que se negue aos integrantes de um grupo a possibilidade de desfrutarem de algum direito, apenas em razão de preconceito em relação às suas características ou ao seu modo de vida. No entanto, é exatamente o que ocorre quando a legislação infraconstitucional brasileira não reconhece o casamento ou a união entre pessoas do mesmo sexo, tratando de forma desigualitária os homossexuais e os heterossexuais.65 Não é plausível que apenas aos heterossexuais seja concedida a plena condição de constituir família, seguindo suas inclinações afetivas e sexuais, contando com a máxima proteção do Estado, enquanto aos homossexuais a mesma possibilidade seja denegada sem uma justificativa aceitável, uma vez que não existe essa justificativa. Além disso, defender que o princípio da igualdade seria atendido na medida em que aos homossexuais seria permitido que constituíssem família com pessoa do sexo oposto, tal como é permitido aos heterossexuais, é uma afirmativa, no mínimo, sarcástica, para não dizer cruel. Isso considerando que o caráter jocoso seja a intenção de quem afirma, e não o pleno desconhecimento da dimensão do princípio da igualdade. Isso porque, na primorosa lição de Boaventura de Souza Santos: “As pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza”66. A respeito da relação entre o princípio da igualdade, da isonomia e o direito à diferença, discorre Maria Berenice Dias: “Classicamente é dito – mas pouco praticado – que a igualdade é assegurar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, em conformidade com a sua desigualdade. Deste modo, a igualdade configura direito à diferença. Em lugar de se reivindicar uma ‘identidade humana comum’, são contempladas as diferenças

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BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 25. SARMENTO, Daniel. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www.danielsarmento.com.br/2012/09/casamento-e-uniao-estavel-entre-pessoas-do-mesmo-sexo-e-aconstituicao-federal. Acesso em 02/10/2012. 66 SANTOS, Boaventura de Souza apud BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 16. 65

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existentes entre as pessoas. A humanidade é diversificada e multicultural. Assim, é mais útil procurar compreender e regular os conflitos inerentes a essa diversidade do que buscar uma falsa – porque inexistente – identidade. Daí a sugestão de Maria Celina Bodin de Moraes, no sentido de trocar o termo ‘identidade’ por um que ofereça maior sentido de alteridade: o reconhecimento do outro, como um ser igual a nós. Enquanto na identidade existiria apenas a ideia de ‘mesmo’, o reconhecimento permite a dialética do mesmo com o outro. O princípio da isonomia não se exaure no enunciado básico de que todos são iguais perante a lei. Essa poderosa retórica, considerada parte essencial do igualitarismo, tende a desviar a atenção das diferenças. E o efeito de ignorarem-se as variações interpessoais pode ser, na verdade, profundamente não igualitário. Conclui Amartya Sen, vencedor do Prêmio Nobel de Economia: As exigências de igualdade substantiva podem ser especialmente rigorosas e complexas quando existe boa dose de desigualdade a ser enfrentada. Não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos, é também imprescindível que a lei em si considere a todos igualmente, ressalvadas as desigualdades que devem ser sopesadas para o prevalecimento da igualdade material em detrimento da obtusa igualdade formal. (...) Falar em cidadania, hoje, pressupõe não apenas o reconhecimento da igualdade, mas, fundamentalmente, da diferença, já que se vive em um mundo plural, onde a diversidade se torna cada vez maior. Afinal, igualdade nada mais é do que o direito de ser diferente, sem sofrer discriminação por isso”67.

Considerando o direito à diferença como uma das facetas do princípio da igualdade, não há que se falar em desequiparação onde não exista um motivo relevante e legítimo que a justifique. Como afirma Luís Roberto Barroso68, a não desequiparação deve ser a conduta de todos os órgãos e agentes públicos e, dentro de certa medida, deve ser imposta até mesmo aos particulares69. Há precedentes, inclusive, sancionando a discriminação contra homossexuais70.

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DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. p. 91-93. BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 21. 69 A jurisprudência do STF fornece o seguinte exemplo: “(...) I. – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, §1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. II. – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional (...)”. (STF, DJU 19 dez. 1997, RE 161243/DF, Rel. Min. Carlos Velloso). 70 A título de exemplo, em matéria trabalhista, v. TRT – 2ª Região, DJ 14 out. 2005, Acórdão nº 20050694159 (processo nº 00742-2002-019-02-00-9), Rel. Juiz Valdir Florindo: “OPÇÃO SEXUAL. DEMISSÃO. DANO MORAL CONFIGURADO (...). O homossexual não pode ser marginalizado pelo simples fato de direcionar sua atenção para outra pessoa do mesmo sexo, já que sequer pode-se precisar o que define a opção sexual do ser humano: se fatores biológicos, psicológicos ou até mesmo ambos. De todo acerto e procedência é a decisão de primeiro grau, que censurou a atitude da recorrente. Não há razão alguma ou argumento que possa retirar a 68

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No entanto, quando ocorre uma interpretação literal da Constituição e da legislação infraconstitucional, ignorando todo o contexto social e histórico, bem como as demais técnicas de interpretação constitucional, de maneira tendenciosa, alguns intérpretes chegam à conclusão de que é legítima a discriminação entre casais heteroafetivos e casais homoafetivos devido à conceituação de casamento e união estável ter mencionado os termos “homem” e “mulher”. A despeito de ter sido a conceituação inicial dos institutos baseada nessas palavras, o direito e a sociedade não são estáticos, possuindo um dinamismo que demanda uma gestão da mudança de modo a contemplar os novos modelos familiares e erradicar preconceitos históricos para a persecução da justiça. A exigência da diversidade de sexo para o reconhecimento da união homoafetiva e do casamento encobre dissimulada discriminação à orientação sexual, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico por força da Constituição e dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. É importante observar que o princípio da igualdade não é absoluto, diferente da dignidade da pessoa humana, e por isso admite ponderações nos casos em que o fundamento para a desequiparação seja razoável e o fim por ela visado seja legítimo. A questão restringe-se a investigar se existe razoabilidade e legitimidade para a negação de direitos utilizando-se como fator de discrímen a orientação sexual dos sujeitos. Convém, neste ponto, atentar para a advertência de Luís Roberto Barroso: “Note-se que a Constituição é expressa ao considerar suspeitas desequiparações baseadas na origem, no gênero e na cor da pele (art. 3º, IV). No item gênero, por certo, está implícita a orientação sexual. No caso de uma classificação suspeita, agrava-se o ônus argumentativo de quem vai sustentá-la. A este propósito, os autores que defendem a exclusão das relações homoafetivas do regime da união estável procuram justificar sua posição com base em três fundamentos, a seguir analisados: a impossibilidade de procriação, a violação dos padrões de ‘normalidade moral’ e a incompatibilidade com os valores cristãos. Nenhum deles resiste ao crivo da razão pública”71.

Além disso, as uniões homoafetivas existem a despeito da lacuna legislativa, não violam qualquer norma jurídica e decerto não violam direitos alheios, demandando um tratamento pelo Judiciário que conceda a essas entidades familiares a segurança jurídica a que

condenação”. No mesmo sentido, v. TRT - 15ª Região, DJ 1º out. 2004, Decisão 038178/2004-PATR (processo nº 01673-2001-096-15-00-8 ROPS), Relª. Juíza Rita de Cássia Penkal Bernardino de Souza. 71 BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 23.

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possuem direito. Na visão de Rodrigo da Cunha Pereira, na presença de vazios legais, o reconhecimento de direitos deve ser implementado pela identificação da semelhança significativa, ou seja, por meio da analogia, que se funda no princípio da igualdade 72. Como defende Maria Berenice Dias: “O princípio da igualdade não vincula somente o legislador. O intérprete também tem de observar suas regras. Assim como a lei não pode conter normas que arbitrariamente estabeleçam privilégios, o juiz não deve aplicar a lei de modo a gerar desigualdades. Em nome do princípio da igualdade, é necessário que assegure direitos a quem a lei ignora. Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não podem levar também o juiz a se calar. Imperioso que, em nome da isonomia, atribua direitos às situações merecedoras de tutela.”73

O que legitima os juízes a assumir essa postura mais ativista e acabarem por tutelar os direitos aos que lhes demandam, devido ao próprio silêncio legislativo, muitas vezes é a própria Constituição, que em seu artigo 5º, XXXV, estabeleceu o princípio de inafastabilidade de apreciação das demandas pelo Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito, permitindo aos casais homoafetivos buscar judicialmente o reconhecimento de seus direitos. A contribuição dos Tribunais Superiores, que desempenharam um papel culminante para os avanços da homoafetividade no Brasil, será tratada em capítulo próprio.

2.4) Da Laicidade Estatal e das Liberdades Religiosas Num cenário nacional em que pesam forças religiosas contrárias ao reconhecimento de direitos para os indivíduos homossexuais, sobretudo no tocante aos assuntos de família, pode parecer estranho, principalmente para o leigo, entender em que medida o princípio do Estado laico pode prestar um serviço a essas ditas minorias homoafetivas. Justamente por essa razão, mostra-se de suma importância que se teçam algumas considerações sobre o conceito da laicidade estatal e sua relação com a liberdade religiosa para o trabalho em curso.

72 73

PEREIRA, Rodrigo da Cunha apud DIAS, Maria Berenice. Manual..., p. 65. DIAS, Maria Berenice. Manual..., p. 66.

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De acordo com Jónatas Machado, a relação de poder entre Estado e Igreja passou por uma evolução histórica, que pode ser sintetizada em três momentos: momento hierárquico (afirmação dos direitos da Igreja em relação ao Estado, marcado pela libertas ecclesia, palavra de ordem na esteira das doutrinas de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, segundo a qual o direito subordinava-se às concepções teológicas da Igreja), momento regalista (afirmação dos direitos do Estado em relação à Igreja) e momento constitucional (afirmação dos direitos dos cidadãos em relação a ambos)74. Foi com a Reforma Protestante que o conflito entre Igreja e Estado se decidiu em favor deste último, afirmando a soberania estatal como solução política para os conflitos teológicos75. A partir da reforma, abriu-se espaço para o que um dia seria conhecido como afirmação de uma liberdade religiosa e o conceito começou a ganhar contornos e fazer sentido para as sociedades vindouras. Note-se que a partir de então já não faz mais sentido falar em Igreja como sinônimo para religião, pois esta já não é mais exclusiva, uma vez que religiões outras começam a ganhar espaço paulatinamente, marcando profundas transformações sociais e políticas76. O Brasil só veio a experimentar a cisão entre Estado e Igreja, configurando-se como um Estado laico, a partir do Decreto 119-A, de 07 de janeiro de 1890, produzido por Rui Barbosa77, cuja laicidade seria, mais tarde, alçada à condição de princípio constitucional pela Constituição de 1891, em seu art. 11, Parágrafo 2º, que desde então vem sendo reproduzido em todos os textos constitucionais do país78. Na Constituição Federal de 1988, o princípio da laicidade foi expressamente consagrado pelo art. 19, inciso I, segundo o qual é vedado a todas as entidades da federação

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MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes apud BARCELLOS, Ana Paula Gonçalves Pereira de et al. As Relações Entre Religião e Estado. Notas Sobre as Experiências Norte-Americana e Brasileira. In: RFD - Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v.1, n. 19, jun./dez 2011. p. 3. 75 WEINGARTNER NETO, Jayme apud idem. 76 BARCELLOS, Ana Paula Gonçalves Pereira de et al. As Relações Entre Religião e Estado. Notas Sobre as Experiências Norte-Americana e Brasileira. In: RFD - Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v.1, n. 19, jun./dez 2011. p. 3. 77 Ibidem, p. 25. 78 SARMENTO, Daniel. O Crucifixo nos Tribunais e a Laicidade do Estado. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/content/download/1631/14570/file/RE_%20DanielSarmento2.pdf Acesso em 23/12/2013.

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“estabelecer cultos religiosos ou subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Preocupou-se, ainda, o constituinte em conferir à liberdade religiosa o caráter de direito fundamental, segundo o art. 5º, VI, da Carta Magna, que dispõe como “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Com efeito, intrínseca é a relação existente entre os princípios da laicidade e da liberdade religiosa individual. Apenas um Estado laico é capaz de garantir aos seus cidadãos a liberdade de consciência e de crença prevista na Constituição brasileira. Isso porque um Estado laico não se confunde com Estado laicista. Não há e nem poderia haver animosidade estatal com relação à religião. Só não é cabível ao Estado manifestar preferências por qualquer religião, ainda que seja majoritária. Nas palavras de Daniel Sarmento: “A laicidade não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade. Na verdade, o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é também uma crença religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer outra cosmovisão. Pelo contrário, a laicidade impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes concepções religiosas presentes na sociedade, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o favorecimento ou o embaraço de qualquer crença” 79.

Como bem explica o autor, a laicidade pressupõe uma equidistância necessária ao Estado para manter uma neutralidade possível para garantir a existência, a convivência e o respeito recíproco entre as diversas religiões, sem manifestar preferência por nenhuma delas. Isso explica o porquê de o Estado não professar religião oficial e não admitir argumentos estritamente religiosos para justificar suas ações, por mais louváveis e tradicionais que esses argumentos possam ser. E continua Daniel Sarmento, com todo seu brilhantismo, a explicitar a relação que tece entre os princípios da laicidade estatal e da igualdade:

79

Ibidem, p. 3.

42

“Por outro lado, a existência de uma relação direta entre o mandamento de laicidade do Estado e o princípio da igualdade é também inequívoca. Em uma sociedade pluralista como a brasileira, em que convivem pessoas das mais variadas crenças e afiliações religiosas, bem como indivíduos que não professam nenhum credo, a laicidade converte-se em instrumento indispensável para possibilitar o tratamento de todos com o mesmo respeito e consideração. Neste contexto de pluralismo religioso, o endosso pelo Estado de qualquer posicionamento religioso implica, necessariamente, em injustificado tratamento desfavorecido em relação àqueles que não abraçam o credo privilegiado, que são levados a considerar-se como ‘cidadãos de segunda classe’. Tais pessoas, como membros da comunidade política, são forçadas a se submeterem ao poder heterônomo do Estado, e este, sempre que é exercido com base em valores e dogmas religiosos, representa uma inaceitável violência contra os que não os professam” 80.

É verdadeiramente impossível ler a citação acima e não fazer uma associação imediata, nem que seja mínima, com temas ainda polêmicos como a homoafetividade. E muito elucidativo se apresenta o autor quando considera os riscos de se permitir uma argumentação religiosa para definir assuntos jurídicos. Apesar da obviedade, vale a pena ressaltar que não deve haver confusão entre as uniões e casamentos homoafetivos na esfera civil com o sacramento religioso do matrimônio. São institutos diversos, cada qual com regulamentos próprios. O que não é racional ou aceitável é uma ou outra religião tentar definir o escopo jurídico dos institutos civis. Sobre a questão religiosa, eis o posicionamento de Luís Roberto Barroso: “As concepções religiosas dogmáticas, as ideologias cerradas e as doutrinas abrangentes em geral fazem parte da vida contemporânea. E, nos limites da Constituição e das leis, têm o direito de participar do debate público e de expressar os seus pontos de vista, que, em alguns casos, traduzem intolerância ou dificuldade de compreender o outro, o diferente, o homossexual. Mas a ordem jurídica em um Estado democrático não deve ser capturada por concepções particulares, sejam religiosas, políticas ou morais. Como assinalado, o intérprete constitucional deve ser consciente de suas preconcepções, para que possa ter autocrítica em relação à sua ideologia e autoconhecimento no tocante a seus desejos e frustrações. Seus sentimentos e escolhas pessoais não devem comprometer o seu papel de captar o sentimento social e de inspirar-se pela razão pública” 81.

E continua o autor, sobre as virtudes do intérprete constitucional: “A neutralidade, entendida como um distanciamento absoluto da questão a ser apreciada, pressupõe um operador jurídico isento não somente das complexidades da subjetividade pessoal, mas também das influências sociais. Isto é: sem história,

80 81

Ibidem. p. 4-5. BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 10.

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sem memória, sem desejos. Uma ficção. O que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (autocrítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (autoconhecimento). E, assim, sua atuação não consistirá na manutenção inconsciente da distribuição de poder e riquezas na sociedade nem na projeção narcísica de seus desejos ocultos, complexos e culpas. (...) O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. O contrário seria privilegiar as opções de determinados segmentos sociais em detrimento das de outros, desconsiderando que o pluralismo é não apenas um fato social inegável, mas também um dos fundamentos expressos da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1º, inciso IV, da Constituição” 82.

Além disso, há que se registrar a existência de religiões no cenário brasileiro que se mostram verdadeiramente inclusivas e admitem a homoafetividade de seus membros. Dentre elas, as que mais se destacam são as religiões afro-brasileiras e, na seara protestante, a Igreja Cristã Contemporânea que inclusive já celebra casamentos homoafetivos. Por acaso seriam essas religiões menos valorosas por não serem majoritárias? A resposta deve ser sonoramente negativa. É muito importante ter em mente que democracia não é o governo das maiorias, é o governo de todos, inclusive das minorias, que também precisam ser representadas e muitas vezes protegidas das vontades dominantes.

82

Idem.

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3 – UNIÃO HOMOAFETIVA E CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO: ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL, DA ATUAÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ E DO DIREITO COMPARADO Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, profundas mudanças começaram a se operar na sociedade brasileira. Diversos segmentos sociais, como o dos indivíduos homossexuais, ganharam visibilidade e pela primeira vez começou-se a cogitar a existência de direitos para essas minorias. Não obstante a existência de um terreno propício para a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, é preciso observar que mudanças culturais e sociais levam tempo para acontecer, sobretudo pela existência de segmentos de poder vinculados a uma tradição de conservadorismo que, muitas das vezes, inviabiliza o progresso. No Brasil, a maior dificuldade em se lograr êxito no reconhecimento de direitos aos homossexuais deve-se, em grande parte, ao Congresso Nacional. A casa legislativa tornou-se verdadeiro palco político. Interesses escusos são os que movem os parlamentares, cujo compromisso com o país resta prejudicado por uma representação ineficiente. As minorias não têm vez naquela casa, haja vista só haver prosperidade para o que for do interesse dos grupos dominantes. A título de exemplo, note-se o Projeto de Lei 1.151/1995, de autoria da então deputada Marta Suplicy, que visava disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Não é preciso dizer que a iniciativa não obteve sucesso. Registrada a crítica com relação ao referido Poder da tríade nacional, volta-se ao objetivo do trabalho proposto. Se o Congresso Nacional não é lugar para as minorias a despeito de uma Constituição Federal que se propõe cidadã, devia haver algum lugar que pudesse acolher os marginalizados do sistema. Felizmente, a via judicial foi o modo encontrado para se fazer justiça e impulsionar o país rumo aos novos tempos. No entanto, embora o ordenamento jurídico possua lógica, coerência e unidade, os magistrados julgam de acordo com sua própria consciência e infinitas podem ser suas interpretações acerca do Direito. Desse modo, no campo das uniões homoafetivas, aos postulantes somente era cabido recorrer à fé para que seu processo fosse distribuído a um juiz favorável à possibilidade de existência daquele modelo de entidade familiar. Isso porque, na

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ausência de legislação que tratasse do tema, a maioria dos processos era extinta sem julgamento do mérito, sem ao menos uma tentativa de utilizar-se dos mecanismos de integração existentes para suprir as lacunas legislativas, como a analogia ou a interpretação conforme a Constituição. Inicialmente, as sentenças proferidas reconhecendo a existência de relações homoafetivas serviram para caracterizá-las como sociedades de fato. A decisão pioneira nesse sentido deu-se no processo envolvendo os bens deixados pelo artista plástico Jorge Guinle Filho, que faleceu depois de ter convivido por 17 anos com parceiro do mesmo sexo83. Com o passar do tempo, esta orientação foi se afirmando na jurisprudência e as relações homoafetivas passaram a ser tratadas como questão concernente ao Direito das Obrigações84. Se por um lado essas decisões serviram ao menos para deixar consignado a existência de relações entre pessoas do mesmo sexo, por outro elas desprezaram o caráter afetivo das relações e negaram a existência de uma entidade familiar entre aquelas pessoas, perpetuando o preconceito existente contra elas no meio social na medida em que transforma suas relações afetivas em um negócio econômico. Ainda assim, em meio à delicadeza e complexidade do tema à época, houve vozes de juízes que se atreveram a “remar contra a maré” para serem coerentes com seus ideais de justiça. Desse modo, de maneira até mesmo vanguardista, foram surgindo julgados que

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Ação objetivando o reconhecimento de sociedade de fato e divisão dos bens em partes iguais. Comprovada a conjugação de esforços para a formação do patrimônio que se quer partilhar, reconhece-se a existência de uma sociedade de fato e determina-se a partilha. Isto, porém, não implica, necessariamente, em atribuir ao postulante 50% dos bens que se encontram em nome do réu. A divisão há de ser proporcional à contribuição de cada um. Assim, se os fatos e circunstâncias da causa evidenciam uma participação societária menor de um dos ex-sócios, deve ser atribuído a ele um percentual condizente com a sua contribuição. (TJRJ, AC 731/89, 5ª Câmara Cível, rel. Desembargador Narcizo Pinto, julgada em 22.08.89). 84 SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O PARCEIRO TEM O DIREITO DE RECEBER A METADE DO PATRIMONIO ADQUIRIDO PELO ESFORÇO COMUM, RECONHECIDA A EXISTENCIA DE SOCIEDADE DE FATO COM OS REQUISITOS NO ART. 1363 DO C. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ASSISTÊNCIA AO DOENTE COM AIDS. IMPROCEDENCIA DA PRETENSÃO DE RECEBER DO PAI DO PARCEIRO QUE MORREU COM AIDS A INDENIZAÇÃO PELO DANO MORAL DE TER SUPORTADO SOZINHO OS ENCARGOS QUE RESULTARAM DA DOENÇA. DANO QUE RESULTOU DA OPÇÃO DE VIDA ASSUMIDA PELO AUTOR E NÃO DA OMISSÃO DO PARENTE, FALTANDO O NEXO DE CAUSALIDADE. ART. 159 DO C. CIVIL. AÇÃO POSSESSORIA JULGADA IMPROCEDENTE. DEMAIS QUESTÕES PREJUDICADAS. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E PROVIDO. (STJ - REsp: 148897 MG 1997/0066124-5, Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, julgado em 09/02/1998).

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vislumbrassem semelhanças entre as uniões entre pessoas do mesmo sexo e as uniões estáveis heterossexuais para conceder-lhes certo revestimento afetivo. Ressalte-se a decisão proferida pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul na Apelação Cível nº 7000138892, relatada pelo Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis e julgada em 14/03/2001, com a seguinte ementa: “UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica.”

Passados mais alguns anos, os processos que tratavam do tema homoafetivo foram galgando instâncias superiores e, pouco a pouco, começaram a surgir indícios de uma jurisprudência que reconhecesse a existência, por analogia, de uma “união estável homoafetiva”, caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura de duas pessoas do mesmo sexo, e estabelecida com o objetivo de constituição de família. No sentido de ilustrar a evolução do pensamento jurisdicional para uma compreensão familiar das uniões homoafetivas parece salutar a apresentação de alguns julgados numa crescente ordem cronológica: “APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Negado provimento

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ao apelo. (TJRS, AC 70012836755, 7ª Câmara. Cível, Rel. Desembargadora Maria Berenice Dias, julgada em 21.12.2005).” “Ação Ordinária. União Homoafetiva. Analogia. União estável protegida pela Constituição Federal. Princípio da igualdade (não discriminação) e da dignidade da pessoa humana. Reconhecimento da relação de dependência de um parceiro em relação ao outro, para todos os fins de direito. Requisitos preenchidos. Pedido procedente. À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito. (TJMG - AC 21.0024.06.930324-6/001(1), Rel. Desembargadora Heloisa Combat, julgada em 22.05.2007).”

“Apelação Cível. União homossexual. Reconhecimento de união estável. Separação de fato do convivente casado. Partilha de bens. Alimentos. União homossexual: lacuna do Direito. O ordenamento jurídico brasileiro não disciplina expressamente a respeito da relação afetiva estável entre pessoas do mesmo sexo. Da mesma forma, a lei brasileira não proíbe a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Logo, está-se diante de lacuna do direito. Na colmatação da lacuna, cumpre recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, em cumprimento ao art. 126 do CPC e art. 4º da LICC. Na busca da melhor analogia, o instituto jurídico, não é a sociedade de fato. A melhor analogia, no caso, é a com a união estável. O par homossexual não se une por razões econômicas. Tanto nos companheiros heterossexuais como no par homossexual se encontra, como dado fundamental da união, uma relação que se funda no amor, sendo ambas as relações de índole emotiva, sentimental e afetiva. Na aplicação dos princípios gerais do direito a uniões homossexuais se vê protegida, pelo primado da dignidade da pessoa humana e do direito de cada um exercer com plenitude aquilo que é próprio de sua condição. Somente dessa forma se cumprirá à risca, o comando constitucional da não discriminação por sexo. A análise dos costumes não pode discrepar do projeto de uma sociedade que se pretende democrática, pluralista e que repudia a intolerância e o preconceito. Pouco importa se a relação é hétero ou homossexual. Importa que a troca ou o compartilhamento de afeto, de sentimento, de carinho e de ternura entre duas pessoas humanas são valores sociais positivos e merecem proteção jurídica. Reconhecimento de que a união de pessoas do mesmo sexo geram as mesmas consequências previstas na união estável. Negar esse direito às pessoas por causa da condição e orientação homossexual é limitar em dignidade a pessoa que são. A união homossexual no caso concreto. Uma vez presentes os pressupostos constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) e demonstrada a separação de fato do convivente casado, de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano. Via de consequência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, tal como a partilha dos bens, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual. (TJRS - AC 70021637145, 8.ª Câmara Cível, Rel. Desembargador Rui Portanova, julgada em 13.12.2007).”

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“Processo civil. Ação declaratória de união homoafetiva. Princípio da identidade física do juiz. Ofensa não caracterizada ao artigo 132, do CPC. Possibilidade jurídica do pedido. Artigos 1º da lei 9.278/96 e 1.723 e 1.724 do código civil. Alegação de lacuna legislativa. Possibilidade de emprego da analogia como método integrativo. 1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações principal e cautelar. 2. O entendimento assente nesta Corte, quanto à possibilidade jurídica do pedido, corresponde à inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o ajuizamento da demanda proposta. 3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 7. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 820.475/RJ, 4ª T., Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02/09/2008).”

“Apelação cível. Ação declaratória de reconhecimento de união homoafetiva. Direito à sucessão. Imóvel adquirido pelas companheiras em partes iguais. Sentença parcialmente procedente. Reconhecimento da sociedade de como união homoafetiva e da parcela de apenas 20,62% do imóvel adquirido pelo casal na constância da união. Pedido da autora relativo à herança julgado improcedente. Pedido contraposto dos réus, irmãos da falecida, pela fixação de taxa de ocupação julgado improcedente. Reforma do decisum. Óbito ocorrido na vigência da Lei 8.971/94 que deve ser aplicada analogicamente ao caso vertente, sob pena de violação da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Parcela de 50% do único

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imóvel do casal que já integrava o patrimônio da autora, eis que esta figura RGI com, o co-proprietária do referido bem. Direito da autora à totalidade da herança deixada por sua companheira, que não deixou ascendentes nem descendentes, representada pela outra metade do imóvel (50%), na forma do art. 2º, III do antecitado diploma legal. Aplicação das regras da união estável às relações homoafetivas, mormente quando as conviventes se uniram como entidade familiar e não como meras sócias. Lacuna na lei que deve ser dirimida a luz dos princípios gerais e do direito comparado. Impossibilidade de dar tratamento diferenciado entre união heterossexual e união homossexual, eis que a própria Constituição veda expressamente a segregação da pessoa humana por motivo sexo, origem, raça, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Precedentes jurisprudenciais do Tribunal Gaúcho e do STJ nesse mesmo sentido. Apelos conhecidos. Desprovimento do apelo dos réus, dando-se provimento ao apelo da parte autora. (TJRJ, AC 0007309-38.2003.8.19.0204, 19ª Câmara Cível, Rel. Desembargador Ferdinaldo Nascimento, julgada em 28/09/2010).”

Um dado digno de registro é que os Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro foram as cortes mais comprometidas com a questão homoafetiva, desempenhando papel muito importante na sedimentação de uma jurisprudência favorável à inserção das relações homoafetivas no ramo do Direito das Famílias. O STJ também, com seu papel de uniformizador da interpretação legislativa infraconstitucional, começava a dar sinais de admissibilidade das “uniões estáveis homoafetivas”. Do campo previdenciário vieram decisões dos Tribunais Regionais Federais da 1ª 2ª

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, 4ª

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e 5ª

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Regiões e do próprio STJ

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85

,

, reconhecendo o direito do homossexual ao

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Agravo de Instrumento nº 2003.01.00.000697-0/MG, 2ª Turma, Rel. Des. Fed. Tourinho Neto, julgado em 29.04.2003. 86 Apelação Cível nº 2002.51.01.000777-0, 3ª Turma, Rel. Des. Federal Tânia Heine, publicado no DJ de 21.07.2003, p. 74. 87 Apelação Cível nº 2000.04.01.073643-8, 6ª Turma, Rel. Des. Nylson Paim de Abreu, julgada em 21.11.2000; Apelação Cível nº 2001.04.01.027372-8/RS, Rel. Des. Fed Edgar Lippman Jr., julgada em 17 de outubro de 2002; Apelação Cível nº 2001.72.00.006119-0/SC, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Luiz Carlos de Castro Lugon, julgada em 21 de setembro de 2004; Apelação Cível nº 2001.70.00.02992-0-0/PR, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. Néfi Cordeiro, julgada em 15 de dezembro de 2004; e Apelação Cível nº 2000.71.000.009347-0/RS, 6ª Turma, Rel. Des. Fed. João Batista Pinto Silveira, julgada em 27 de julho de 2005. No último caso citado, tratava-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, dotada de efeitos nacionais, que postulava a condenação do INSS a conceder aos parceiros homossexuais direitos previdenciários em igualdade de condições em relação aos casais heterossexuais. Na ementa do acórdão que acolheu o pedido, ficou registrado: “11. Uma vez reconhecida, numa interpretação dos princípios norteadores da constituição pátria, a união entre homossexuais como possível de ser abarcada dentro do conceito de entidade familiar e afastados quaisquer impedimentos de natureza atuarial, deve a relação da Previdência para com os casais de mesmo sexo

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recebimento de pensão do INSS ou estatutária, em caso de óbito do seu companheiro ou companheira. Atualmente, os benefícios previdenciários correlatos às uniões homoafetivas já podem ser pleiteados pela via administrativa. Em matéria tributária, a Receita Federal também já admite dependentes homoafetivos para fins de Declaração de Imposto de Renda90. Não obstante os avanços que a população homoafetiva conquistara nos tribunais na primeira década deste novo milênio, há que se pesar o fato das decisões terem sido esparsas e não vinculantes, restando prejudicada a segurança jurídica dos casais homossexuais que batiam às portas do Judiciário em busca de uma solução para suas situações de fato. Somente em maio de 2011 as uniões homoafetivas ganhariam verdadeiro destaque, quando trazida a debate a questão em audiência pública no Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277-DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132-RJ, cujo acórdão reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo, por unanimidade, com vistas senão à elucidação, ao menos objetivando o alcance de um protocolo mínimo que servisse de norte aos magistrados no enfrentamento da questão. A partir do pronunciamento do STF, cuja decisão é revestida de caráter erga omnes e vinculante, o mínimo de segurança jurídica foi garantido aos casais homoafetivos, que tiveram suas relações caracterizadas, de uma vez por todas, como entidades familiares pelo instituto da união estável. Devido ao marco histórico que representou o julgamento em comento para a luta por direitos da população homoafetiva, revela-se importante um aprofundamento nas questões

dar-se nos mesmos moldes das uniões estáveis entre heterossexuais, devendo ser exigido dos primeiros o mesmo que se exige dos segundos para fins de comprovação do vínculo afetivo e dependência econômica presumida entre os casais (art. 16, I, da Lei nº 8.213/91), quando do processamento dos pedidos de pensão por morte e auxílio reclusão.” 88

Apelação Cível nº 2003.05.00.029875-2, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, julgada em 14.05.2004; Apelação Cível nº 2002.84.00.002275-4, 3ª Turma, Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano, julgada em 17.06.2004; e Apelação Cível nº 2000.81.00.017834-9, Rel. Des. Fed. José Batista de Almeida Filho, julgada em 13.12.2005. 89 REsp. nº 395.904/RS, 6ª Turma, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, julgado em 13.12.2005. 90 De acordo com o Parecer PGFN/CAT nº 1.503/2010, de 19 de julho de 2010, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda em 26 de julho de 2010.

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debatidas na ocasião e a transcrição de alguns trechos mais significativos dos votos dos senhores ministros que compuseram o aludido acórdão. A ADPF 132-RJ foi proposta pelo então governador do Estado do Rio de Janeiro, senhor Sérgio Cabral, legitimando-se como representante da sociedade fluminense, em especial da significativa parcela homoafetiva dos servidores públicos do Estado, em que pesem as numerosas controvérsias administrativas e judiciais sobre direitos alusivos a esses servidores, mormente sobre as licenças por motivo de doença em pessoa da “família” ou para acompanhamento de “cônjuge”, bem como questões relativas à previdência e assistência social. No STF a referida ADPF foi recebida sob a forma de ADI 4277-DF pela coincidência de objetos e pela maior abrangência desta última no escopo de tão complexa discussão. A questão girou em torno da equiparação das uniões homoafetivas ao instituto das uniões estáveis heteroafetivas para todos os fins de direito, sob a pretensão de uso da técnica analógica e integrativa de interpretação conforme à Constituição do Art. 1723 do Diploma Civil vigente, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da vedação de discrimações odiosas, da liberdade e da proteção à segurança jurídica. Ainda, foi feita uma releitura do Art.226 da Constituição Federal, cujo caput trata da proteção estatal à família, ressaltando que o dispositivo não faz distinção entre família formal ou informal, hetero ou homoafetiva, não havendo motivo para a discriminação que gera o ódio e outros sentimentos indignos. Diante de tema tão polêmico, complexo e incomumente relevante para a composição social brasileira, o relator da ação, ministro Ayres Britto, admitiu o ingresso de 14 amici curiae à causa, com especial destaque para a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros – ABGLT e para o Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Fez ainda constar do relatório que os terceiros, em sua maioria, por meio de “substanciosas e candentes defesas”, perfilharam a tese do autor. No entendimento do ministro Ayres Britto, a disposição da sexualidade dos indivíduos e, por conseguinte, os tipos de relações de afeto que manterão contam com proteção constitucional por serem interpretados na qualidade de:

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“Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do ‘Torna-te quem és’, tão bem teoricamente explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo (cito de memória). Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano” 91.

E avança o ministro em seu voto para defender constitucionalmente a homoafetividade numa base principiológica que extirpe o preconceito e discriminação existentes, expandindo o conceito de entidade familiar para que as uniões homoafetivas sejam vividas em sua plenitude, pois “a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família” 92. O ministro Luiz Fux, por sua vez, utiliza-se inicialmente de um raciocínio dedutivo para acompanhar o voto do relator no sentido da equiparação da união homoafetiva à união estável heteroafetiva. Os pressupostos invocados no voto do eminente ministro são os seguintes: 1ª: a homossexualidade é um fato da vida; 2ª: a homossexualidade é uma orientação e não uma opção sexual. Trata-se de uma característica da personalidade do indivíduo e não uma doença, desvio ou distúrbio mental; 3ª: a homossexualidade não é uma ideologia ou uma crença; 4ª: os homossexuais constituem entre si relações contínuas e duradouras de afeto e assistência recíprocos, com o propósito de compartilhar meios e projetos de vida.

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BRITTO, Ayres. STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, p. 27. Inteiro Teor disponível no endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 Acesso em 20/12/2013. 92 Ibidem, p. 39.

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5ª: não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade no estabelecimento de uniões homoafetivas. Não existe, no direito brasileiro, vedação às uniões homoafetivas. E como não poderia deixar de ser, conclui o ministro Fux pela concessão de um tratamento de união estável para as uniões homoafetivas dada a similitude entre os institutos, não sem antes discorrer sobre o sentido constitucional de família e sobre a política de reconhecimento. Sobre este último tema, é interessante observar alguns pontos ainda pouco explorados no cenário jurídico pátrio compartilhados pelo ministro em seu voto: “O problema, contudo, não se esgota na observância dos iguais respeito e consideração. É necessário enfrentar a questão sob o prisma do que a professora norte-americana NANCY FRASER (Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma concepção Integrada de Justiça. In SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, Diferença e direitos Humanos. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 167) denomina ‘política do reconhecimento’, em que ‘[...] o objetivo, na sua forma mais plausível, é contribuir para um mundo amigo da diferença, onde a assimilação à maioria ou às normas culturais dominantes não é mais o preço do igual respeito [...]’. Especificamente sobre a injustiça perpetrada contra os homossexuais, a autora expõe, verbis: [...] Um exemplo que parece aproximar-se deste tipo ideal é o de uma sexualidade desprezada, compreendida através do prisma da concepção weberiana de status. Nessa concepção, a diferenciação social entre heterossexuais e homossexuais está fundada em uma ordem de status social, como patrões institucionalizados de valor cultural que constituem a heterossexualidade como natural e normativa e a homossexualidade como perversa e desprezível. O resultado é considerar gays e lésbicas como outros desprezíveis aos quais falta não apenas reputação para participar integralmente da vida social, mas até mesmo o direito de existir. Difusamente institucionalizados, tais padrões heteronormativos de valor geram formas sexualmente específicas de subordinação de status, incluindo a vergonha ritual, prisões, “tratamentos” psiquiátricos, agressões e homicídios; exclusão dos direitos e privilégios da intimidade, casamento e paternidade e de todas as posições jurídicas que dela decorrem; reduzidos direitos de privacidade, expressão e associação; acesso diminuído ao emprego, à assistência em saúde, ao serviço militar e à educação; direitos reduzidos de imigração, naturalização e asilo; exclusão e marginalização da sociedade civil e da vida política; e a invisibilidade e/ou estigmatização na mídia. Esses danos são injustiça por não reconhecimento. [...] (ob. cit., p. 173)” 93.

Em seguida, inicia seu voto a sensível ministra Cármen Lúcia, trazendo uma citação de Guimarães Rosa, da obra “Grande sertão: veredas”, para defender o papel da Corte Constitucional no sentido de garantir que o Estado trate seus cidadãos com o respeito e a

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FUX, Luiz. Ibidem, p. 66.

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consideração que lhes são devidos, sobretudo no direito personalíssimo da homoafetividade, um fato da vida ainda não plenamente compreensível. “Até porque, como afirmaram muitos dos advogados que assumiram a tribuna, a escolha de uma união homoafetiva é individual, íntima e, nos termos da Constituição brasileira, manifestação da liberdade individual. Talvez explicasse isso melhor Guimarães Rosa, na descrição de Riobaldo, ao encontrar Reinaldo/Diadorim: ‘enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. ...o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos...amor desse, cresce primeiro; brota é depois. ... a vida não é entendível’ (Grande sertão: veredas). É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito” 94.

O voto do ministro Ricardo Lewandowski baseou-se em atribuir juridicidade às relações homoafetivas como verdadeiras entidades familiares sem, contudo confundi-las com a união estável já existente, e sim se apropriando desta para buscar sua caracterização no que houver semelhança, pois, segundo o ministro, uma simples equiparação implicaria em afronta ao desejo do constituinte originário. Segue o fragmento mais significativo de seu voto para a questão: “O que se pretende, ao empregar-se o instrumento metodológico da integração, não é, à evidência, substituir a vontade do constituinte por outra arbitrariamente escolhida, mas apenas, tendo em conta a existência de um vácuo normativo, procurar reger uma realidade social superveniente a essa vontade, ainda que de forma provisória, ou seja, até que o Parlamento lhe dê o adequado tratamento legislativo. Cuida-se, em outras palavras, de retirar tais relações, que ocorrem no plano fático, da clandestinidade jurídica em que se encontram, reconhecendo-lhes a existência no plano legal, mediante seu enquadramento no conceito abrangente de entidade familiar. Esse proceder metodológico encontra apoio no respeitável entendimento de Konrad Hesse, segundo o qual ‘o que não aparece de forma clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata’ 95. Dito de outro modo, não é dado ao intérprete constitucional, a pretexto de ausência de previsão normativa, deixar de dar solução

94 95

LÚCIA, Cármen. Ibidem, p. 87. HESSE, Conrar. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1989, p. 162.

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aos problemas que emergem da realidade fenomênica, sob pena, inclusive, em nosso caso, de negar vigência ao disposto no art. 5º, XXXV, da Lei Maior” 96.

O ministro Joaquim Barbosa enfatiza em seu voto a relevância do papel das Cortes constitucionais para abarcar no mundo jurídico as transformações sociais. Ele utiliza-se de pensamento do jurista israelense Aaron Barak, segundo o qual, cabe às Cortes Supremas e Constitucionais fazer a ponte entre o mundo do Direito e a Sociedade, isto é, cumpre-lhes fazer o que ele mesmo qualifica como BRIDGING THE GAP BETWEEN LAW AND SOCIETY97. Na argumentação jurídica, Barbosa extrai da matriz principiológica constitucional o comando para o dever de juridicidade com as relações homoafetivas, como é de se notar do trecho a seguir: “Entendo, pois, que o reconhecimento dos direitos oriundos de uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os dispositivos constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais, no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio à igualdade e da não discriminação. Normas, estas, auto-aplicáveis, que incidem diretamente sobre essas relações de natureza privada, irradiando sobre elas toda a força garantidora que emana do nosso sistema de proteção dos direitos fundamentais” 98.

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, trouxe contribuição muito valiosa para o debate quando se aproveita das teorias de Zagrebelsky, em sua obra chamada “O Direito Dúctil”, e de Peter Häberle com sua Teoria do Possível, segundo as quais não há espaço no constitucionalismo hodierno para uma soberania valorativa ou axiológica, devendo haver um modo de conciliar as diferenças para comportar a existência dos mais diversos grupos no sentido real de pluralismo. A Teoria do Possível, de Häberle, pressupõe um “pensamento jurídico do possível” na qualidade de expressão, consequência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta, de modo a permitir a criação de uma teoria constitucional das alternativas que possa converter-se numa teoria constitucional da tolerância99.

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LEWANDOWSKI, Ricardo. STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, p. 108-109. 97 BARBOSA, Joaquim. Ibidem, p. 113. 98 Ibidem, p. 116-117. 99 Häberle, P. Demokratische Verfassungstheorie im Lichte des Möglichkeitsdenken, in: Die Verfassung des Pluralismus, Königstein/TS, 1980, p. 9.

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Nas palavras de Zagrebelsky: “As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo, conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade da mesma” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad. de Marina Gascón. 3a. edição. Edt. Trotta S.A., Madrid, 1999. p. 13). “No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da nãocontradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil., cit., p. 16). “Da revisão do conceito clássico de soberania (interna e externa), que é o preço a pagar pela integração do pluralismo em uma única unidade possível – uma unidade dúctil, como se afirmou – deriva também a exigência de que seja abandonada a soberania de um único princípio político dominante, de onde possam ser extraídas, dedutivamente, todas as execuções concretas sobre a base do princípio da exclusão do diferente, segundo a lógica do aut-aut, do 'ou dentro ou fora'. A coerência 'simples' que se obteria deste modo não poderia ser a lei fundamental intrínseca do direito constitucional atual, que é, precipuamente, a lógica do et-et e que contém por isso múltiplas promessas para o futuro. Neste sentido, fala-se com acerto de um 'modo de pensar do possível' – é a fórmula que foi adotada pelo notável professor Peter Häberle, no chamado Pensamento do Possível – (Möglichkeitsdenken), como algo particularmente adequado ao direito do nosso tempo. Esta atitude mental 'possibilista' – diz Zagrebelsky – 'representa' para o pensamento o que a 'concordância prática' representa para a ação” (Zagrebelsky, El Derecho Dúctil, cit., p. 17).

E continua o ministro a entrelaçar as teorias para formular sua argumentação citando agora as palavras de Häberle: “O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve estar aberto para terceiras ou quartas possibilidades, assim como para compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes Denken). Na res publica existe um ethos jurídico específico do pensamento em alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de alternativas abre suas perspectivas para ‘novas’ realidades, para o fato de que a realidade de hoje poder corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa, sem que se considere o novo como o melhor” (Häberle, Die Verfassung des Pluralismus, cit., p. 3).

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Conclui o ministro pelo reconhecimento das uniões homoafetivas manifestando, contudo, uma preocupação no que diz respeito à fundamentação tal qual o ministro Lewandowski, segundo o qual a pretensão somente poderia ser satisfeita com base nos direitos fundamentais extraídos da Constituição, direitos esses de perfil fundamental, associados ao desenvolvimento da personalidade, que justifiquem a criação de um modelo de proteção jurídica para essas relações existentes, com base no princípio da igualdade, no princípio da liberdade, de autodesenvolvimento e no princípio da não discriminação por razão de opção sexual. Em seguida, o ministro Gilmar Mendes discorre sobre a lacuna legislativa na seara dos direitos homoafetivos e a consequente legitimação do Supremo Tribunal Federal para atuar no caso. “O limbo jurídico, aqui, inequivocamente, contribui para que haja um quadro de maior discriminação; talvez contribua até mesmo para as práticas violentas que, de vez em quando, temos tido notícia em relação a essas pessoas. São práticas lamentáveis, mas que ocorrem. Então, é dever de proteção do Estado e, ultima ratio, é dever da Corte Constitucional e da jurisdição constitucional dar essa proteção se, de alguma forma, ela não foi engendrada ou concebida pelo órgão competente”.

E encerra magnificamente com o pensamento do filósofo e constitucionalista alemão Robert Alexy, segundo o qual o parlamento representa o cidadão politicamente enquanto o Tribunal Constitucional o representa argumentativamente: “O princípio fundamental: 'Todo poder estatal origina-se do povo' exige compreender não só o parlamento, mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal argumentativamente. Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico do que aquela pelo parlamento. A vida cotidiana do funcionamento parlamentar oculta o perigo de que maiorias se imponham desconsideradamente, emoções determinem o acontecimento, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidas faltas graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo senão, em nome do povo, contra seus representantes políticos. Ele não só faz valer negativamente que o processo político, segundo critérios jurídico-humanos e jurídicofundamentais, fracassou, mas também exige positivamente que os cidadãos aprovem os argumentos do tribunal se eles aceitarem um discurso jurídico-constitucional racional. A representação argumentativa dá certo quando o tribunal constitucional é aceito como instância de reflexão do processo político. Isso é o caso, quando os argumentos do tribunal encontram eco na coletividade e nas instituições políticas, conduzem a reflexões e discussões que resultam em convencimentos examinados. Se um processo de reflexão entre coletividade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza duradouramente, pode ser falado de uma institucionalização que deu certo dos direitos do homem no estado constitucional democrático. Direitos fundamentais e democracia estão reconciliados”.

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O ministro Marco Aurélio inicia seu voto já em defesa da homoafetividade como já se manifestara outrora em coluna do jornal Folha de São Paulo. Ele ressalta que não há muito tempo, na década de 60, travou-se intenso debate na Inglaterra sobre a legalidade das relações homossexuais. Num dos países mais liberais e avançados do mundo discutia-se sobre a criminalização da sodomia com base em critérios morais. A discussão foi capitaneada pelo renomado professor L. A. Hart e pelo magistrado Lorde Patrick Devlin. O primeiro sustentava o respeito à individualidade e à autonomia privada e o segundo, a prevalência da moralidade coletiva, que à época repudiava relações sexuais entre pessoas de igual gênero. É interessante trazer à tona as quatro razões apontadas por Hart para refutar a posição de Devlin. Primeira: punir alguém é lhe causar mal, e, se a atitude do ofensor não causou mal a ninguém, carece de sentido a punição. Em outras palavras, as condutas particulares que não afetam direitos de terceiros devem ser reputadas dentro da esfera da autonomia privada, livres de ingerência pública. Segunda: o livre arbítrio também é um valor moral relevante. Terceira: a liberdade possibilita o aprendizado decorrente da experimentação. Quarta: as leis que afetam a sexualidade individual acarretam mal aos indivíduos a ela submetidos, com gravíssimas consequências emocionais. Do exemplo, nota-se a magnitude dos avanços obtidos pela população homoafetiva nas últimas décadas e o quanto ainda resta de caminhos a percorrer. Segue o ministro com a constatação sobre as mudanças no Direito de Família, agora Direito das Famílias, para ilustrar a pluralidade de entidades familiares privilegiadas nos tempos hodiernos e o decaimento da vetusta tríplice identidade: família-sexo-procriação. Abandonou-se o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe, como defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de família e o novo Código Civil, p. 93, citado por Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, 2010, p. 43). Uma interessante observação feita pelo eminente ministro tem a ver com o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil para justificar a homoafetividade a partir do núcleo de personalização que passou a orientar a disciplina em detrimento da obsoleta patrimonialização. “O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma ‘virada de Copérnico’, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do

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patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do ‘ser’, da personalidade, da existência”. “Relegar as uniões homoafetivas à disciplina da sociedade de fato é não reconhecer essa modificação paradigmática no Direito Civil levada a cabo pela Constituição da República. A categoria da sociedade de fato reflete a realização de um empreendimento conjunto, mas de nota patrimonial, e não afetiva ou emocional. Sociedade de fato é sociedade irregular, regida pelo artigo 987 e seguintes do Código Civil, de vocação empresarial. Sobre o tema, Carvalho de Mendonça afirmava que as sociedades de fato são aquelas afetadas por vícios que as inquinam de nulidade, e são fulminadas por isso com o decreto de morte (Tratado de direito comercial brasileiro, 2001, p. 152 e 153). Para Rubens Requião, ‘convém esclarecer que essas entidades – sociedades de fato e sociedades irregulares – não perdem a sua condição de sociedades empresárias’ (Curso de direito comercial, 2010, p. 444). Tanto assim que as dissoluções de sociedades de fato são geralmente submetidas à competência dos Juízos cíveis, e não dos Juízos de família. Nada mais descompassado com a essência da união homoafetiva, a revelar o propósito de compartilhamento de vida, e não de obtenção de lucro ou de qualquer outra atividade negocial”.

Ainda, para emocionar o leitor, o autor menciona um trecho de Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005, no qual resta clara a importância encerrada nos projetos de vida dos indivíduos ante a efemeridade da vida: “Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo ‘projeto’ encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. (tradução livre)”.

A respeito da legitimidade do Tribunal Constitucional para o reconhecimento do direito pleiteado, nunca é demais a ressalva feita pelo ministro Marco Aurélio: “No mais, ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República, como o fez no julgamento do Recurso Extraordinário nº 633.703, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, quando declarou a inconstitucionalidade da aplicação da “Lei da Ficha Limpa” às eleições de 2010, por desarmonia com o disposto no artigo 16 da Carta Federal. Assim já havia procedido em outras oportunidades, tal como na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.351/DF, de minha relatoria, relativamente aos pequenos partidos políticos, no célebre caso ‘Cláusula de Barreira’”.

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O penúltimo voto, o do ministro Celso de Mello, inicia com um apanhado histórico da homossexualidade a partir do período colonial imposto por Portugal ao Brasil através de sua legislação reinol. Ele evidencia o tratamento criminoso que era dado aos sodomitas, praticantes do “pecado nefando”. A título de ilustração, segue transcrição de trecho da obra de Minisa Nogueira Napolitano (“A Sodomia Feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil”), trazida pelo próprio ministro em seu voto: “As punições previstas em tais leis tinham, sobretudo, a finalidade de suscitar o medo, explicitar a norma e dar o exemplo a todos aqueles que assistissem às sentenças e às penas sofridas pelos culpados, fossem humilhações perante todo o público, fosse a flagelação do seu corpo ou, até mesmo, a morte na fogueira, chamada de pena capital. Essas punições possuíam menos o intuito de punir os culpados do que espalhar o terror, a coerção, o receio. Elas espalhavam um verdadeiro temor, fazendo com que as pessoas que presenciassem esses espetáculos punitivos examinassem suas consciências, refletissem acerca de seus delitos. O ritual punitivo era uma cerimônia política de reativação do poder e da lei do monarca. A sodomia propriamente dita, segundo o livro Quinto das Ordenações Filipinas, se equiparava ao de lesa-majestade e se estendia tanto aos homens quanto às mulheres que cometessem o pecado contra a natureza. Todos os culpados seriam queimados e feitos por fogo em pó, seus bens confiscados para a coroa e seus filhos e netos seriam tidos como infames e inábeis. (grifei)”.

Ressalta o ministro que ainda hoje existe o ranço do preconceito e da discriminação aos homossexuais pelo Poder Público citando exemplo do Código Penal Militar: “Vê-se, daí, que a questão da homossexualidade, desde os pródromos de nossa História, foi inicialmente tratada sob o signo da mais cruel das repressões (LUIZ MOTT, “Sodomia na Bahia: O amor que não ousava dizer o nome”), experimentando, desde então, em sua abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação, como resulta claro da punição (pena de prisão) imposta, ainda hoje, por legislação especial, que tipifica, como crime militar, a prática de relações homossexuais no âmbito das organizações castrenses (CPM, art. 235), o que tem levado alguns autores (MARIANA BARROS BARREIRAS, “Onde está a Igualdade? Pederastia no CPM”, “in” “Boletim IBCCRIM, ano 16, nº 187, jun/2008; CARLOS FREDERICO DE O. PEREIRA, “Homossexuais nas Forças Armadas: tabu ou indisciplina?”, v.g.) a sustentar a inconstitucionalidade material de referida cláusula de tipificação penal, não obstante precedente desta Corte em sentido contrário (HC 79.285/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES)”.

Acerca da justificação argumentativa para a concessão do direito pleiteado, o ministro Celso de Mello põe fim ao debate que sustentava um possível caráter excludente de direitos do §3 do art. 226 da Constituição Federal ao que restringia a união estável àquela entre “homem” e “mulher”. E o faz apoiado nos posicionamentos dos ilustres constitucionalistas Daniel Sarmento e Luís Roberto Barroso, respectivamente:

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“Um obstáculo bastante invocado contra a possibilidade de reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo é a redação do art. 226, § 3º, da Constituição, segundo o qual ‘para o efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.’ Os adversários da medida alegam que o preceito em questão teria barrado a possibilidade do reconhecimento da união homoafetiva no Brasil, pelo menos enquanto não fosse aprovada emenda alterando o texto constitucional. Contudo, o argumento, que se apega exclusivamente na literalidade do texto, não procede. Com efeito, sabe-se que a Constituição, em que pese o seu caráter compromissório, não é apenas um amontado de normas isoladas. Pelo contrário, trata-se de um sistema aberto de princípios e regras, em que cada um dos elementos deve ser compreendido à luz dos demais. A noção de sistema traduz-se num importantíssimo princípio de hermenêutica constitucional, que é o da unidade da Constituição. (...). No sistema constitucional, existem princípios fundamentais que desempenham um valor mais destacado no sistema, compondo a sua estrutura básica. (...). No caso brasileiro, nem é preciso muito esforço exegético para identificá-los. O constituinte já tratou de fazê-lo no Título I da Carta, que se intitula exatamente ‘Dos Princípios Fundamentais’. E é lá que vão ser recolhidas as cláusulas essenciais para a nossa empreitada hermenêutica: princípios da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de preconceitos e discriminações, dentre outros. Estes vetores apontam firmemente no sentido de que a exegese das normas setoriais da Constituição - como o nosso § 3º do art. 226 -, deve buscar a inclusão e não a exclusão dos estigmatizados; a emancipação dos grupos vulneráveis e não a perenização do preconceito e da desigualdade. (...) Da leitura do enunciado normativo reproduzido, verifica-se que ele assegurou expressamente o reconhecimento da união estável entre homem e mulher, mas nada disse sobre a união civil dos homossexuais. Esta ausência de referência não significa, porém, silêncio eloqüente da Constituição. O fato de que o texto omitiu qualquer alusão à união entre pessoas do mesmo sexo não implica, necessariamente, que a Constituição não assegure o seu reconhecimento. ................................................... Não bastasse, o elemento teleológico da interpretação constitucional também não é compatível com a leitura do art. 226, § 3º, da Constituição, segundo a qual do referido preceito decorreria, ‘a contrario sensu’, o banimento constitucional da união entre pessoas do mesmo sexo. Com efeito, o referido preceito foi inserido no texto constitucional no afã de proteger os companheiros das uniões não matrimonializadas, coroando um processo histórico que teve início na jurisprudência cível, e que se voltava à inclusão social e à superação do preconceito. Por isso, é um contra-senso

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interpretar este dispositivo constitucional, que se destina a ‘inclusão’, como uma cláusula de exclusão social, que tenha como efeito discriminar os homossexuais. (grifei)100”. “Insista-se, para que não haja margem a dúvida: não tem pertinência a invocação do argumento de que o emprego da expressão ‘união estável entre o homem e a mulher’ importa, ‘a contrario sensu’, em proibição à extensão do mesmo regime a uma outra hipótese. Tal norma foi o ponto culminante de uma longa evolução que levou à equiparação entre companheira e esposa. Nela não se pode vislumbrar uma restrição – e uma restrição preconceituosa – de direito. Seria como condenar alguém com base na lei de anistia. O Código Civil, por sua vez, contém apenas uma norma de reprodução, na parte em que se refere a homem e mulher, e não uma norma de exclusão. Exclusão que, de resto, seria inconstitucional. (grifei)101”.

No que concerne à legitimação do STF para exercer seu papel contramajoritário, podese dizer que quem melhor defendeu e argumentou nesse sentido tenha sido o ministro Celso de Mello, de cujo voto extrai-se trecho trazido aos autos pelo Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, que muito bem sintetiza o melhor entendimento: “O papel desempenhado pelos direitos fundamentais na restrição da soberania popular decorre da limitação imposta pelo princípio do Estado de direito, que não admite a existência de poderes absolutos, nem mesmo o da soberania popular e do fato de que uma dimensão formal de democracia não está habilitada para proteger efetivamente o funcionamento democrático do Estado. Portanto, da mesma forma que se veda à maioria que faça determinadas escolhas suprimindo direitos necessários à participação política de determinados cidadãos é igualmente vedado a essa maioria que deixe de tomar decisões necessárias à efetivação da igualdade entre os indivíduos. Ao não estabelecer regras jurídicas que regulem a construção de uma vida afetiva em comum pelos casais homossexuais, o Poder Legislativo - representando a maioria da população brasileira - exclui, marginaliza e diminui o papel social dos indivíduos que mantêm relações homoafetivas. Retira-lhes a condição de igualdade necessária para que possa haver igualdade de participação no debate público. Para salvaguardar os requisitos essenciais à participação dos indivíduos no processo democrático, o Judiciário é mais uma vez chamado a tomar tal posição de vanguarda, garantindo o livre exercício da liberdade e igualdade, atributos da cidadania, e principalmente a dignidade humana. É preciso atuar onde não há certeza e efetividade do sistema nas relações privadas, em prol dessas garantias. Com efeito, não pode o Estado democrático de direito conviver com o estabelecimento de uma diferença entre pessoas e cidadãos com base em sua

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SARMENTO, Daniel apud MELLO, Celso de. STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, p. 232-233. 101 BARROSO, Luís Roberto apud MELLO, Celso de. Ibidem, p. 234.

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sexualidade. Assim como é inconstitucional punir, perseguir ou impedir o acesso dos homossexuais a bens sócio-culturais e é igualmente inconstitucional excluir essa parcela de cidadãos do direito à segurança em suas relações afetivas. São irrelevantes, do ponto de vista jurídico, as opiniões morais ou religiosas que condenam as relações homossexuais. Ainda que tais opiniões constituíssem o pensamento hegemônico hoje nos órgãos políticos representativos (...), nem a maioria, nem mesmo a unanimidade dessas opiniões, está acima da Constituição. Nesse passo, o Poder Judiciário assume sua mais importante função: a de atuar como poder contramajoritário; de proteger as minorias contra imposições dezarrazoadas ou indignas das maiorias. Ao assegurar à parcela minoritária da população o direito de não se submeter à maioria, o Poder Judiciário revela sua verdadeira força no equilíbrio entre os poderes e na função como garante dos direitos fundamentais. (grifei)”.

Conclui seu voto o ministro Celso de Mello no sentido de satisfazer a pretensão postulada, evidenciando a primazia dos princípios do afeto nas relações familiares e da busca pela felicidade, ambos dotados de prestígio na nova ordem constitucional. “Esta decisão – que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório – não é nem pode ser qualificada como decisão proferida contra alguém, da mesma forma que não pode ser considerada um julgamento a favor de apenas alguns”.

Finalmente, o presidente da Corte na ocasião do julgamento, ministro Cezar Peluso, encerra o debate confirmando a unanimidade dos votos no sentido de extirpar anos de preconceito e discriminação ao reconhecer o caráter familiar das relações homoafetivas por meio da interpretação conforme à Constituição do art. 1723 do Código Civil. O ministro presidente aproveitou para conclamar o Congresso Nacional, competente originariamente para disciplinar a nova categoria familiar das uniões homoafetivas, para que exerça seu papel. Até o momento, o convite não surtiu efeito. Para sintetizar a decisão proveniente do já histórico julgamento das uniões homoafetivas, segue a ementa do acórdão da ADI 4.277/DF: “1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir ‘interpretação

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conforme à Constituição’ ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICOCULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana ‘norma geral negativa’, segundo a qual ‘o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido’. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da ‘dignidade da pessoa humana’: direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIOCULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão ‘família’, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA.

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FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE ‘ENTIDADE FAMILIAR’ E ‘FAMÍLIA’. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia ‘entidade familiar’, não pretendeu diferenciá-la da ‘família’. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado ‘entidade familiar’ como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua nãoequiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem ‘do regime e dos princípios por ela adotados’, verbis: ‘Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetivas nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de ‘interpretação conforme à Constituição’. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva102”.

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STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno.

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Não obstante a clareza com que foi tratada a questão das uniões homoafetivas, no afã de tirá-las do obscurantismo para a luz, o Supremo Tribunal Federal, enquanto integrante do Poder Judiciário, também está circunscrito aos limites da atuação jurisdicional nas causas que lhe são submetidas. Em respeito a esses limites deu-se sua atuação no julgamento das ADPF 132-RJ e ADI 4277-DF, na ocasião em que reconheceu como entidade jurídica e familiar as uniões homoafetivas, e estendeu a elas “as mesmas regras e mesmas consequências da união estável heteroafetiva”. No entanto, como os ilustres ministros já podiam antever, dessa marcante decisão decorrem inúmeras consequências lógicas, algumas previsíveis de imediato, outras somente com o tempo e incidência nos casos concretos vindouros. Preconiza a Constituição Federal, no §3º de seu art. 226, que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. Isso porque, embora não haja hierarquia entre as entidades familiares no que diz respeito à sua dignidade, o Estado confere algumas peculiaridades a umas e a outras dependendo do rito e do nível de formalidade para sua constituição, sendo ainda o casamento a modalidade de formação de família que conta com maior leque de direitos de proteção estatal, conferindo aos cônjuges maior segurança jurídica. E se à união estável heteroafetiva deve haver facilitação na conversão a casamento, é de se deduzir, logicamente, que o mesmo o valha para as uniões estáveis homoafetivas, por força da decisão do STF. Empregando, ainda, um pouco mais de esforço intelectivo do intérprete, há de se concluir que, se a união estável homoafetiva pode ser convertida em casamento entre pessoas do mesmo sexo, não haveria impedimento para que houvesse uma habilitação direta para essa modalidade de casamento. Infelizmente, mais uma vez, a realidade não acompanhou a lógica nem a razão. Os diversos cartórios do país começaram a atuar de acordo com suas próprias interpretações, impedindo uma uniformidade procedimental e mostrando verdadeira incoerência nos procedimentos de jurisdição voluntária, pois um pedido de habilitação para casamento poderia ser concedido em um Estado da Federação e negado em outro.

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Demandas e mais demandas judiciais começaram a surgir, demonstrando um desrespeito praticado contra a decisão do STF e que a mesma não estava se mostrando efetiva, embora vinculante. A título de ilustração, seguem algumas decisões que mostram os pedidos denegados em primeira instância submetidos à apreciação pelos tribunais com suas respectivas fundamentações, que merecem leitura pelo valor de seus argumentos: “Direito de família. Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (homoafetivo). Interpretação dos arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 do Código Civil de 2002. Inexistência de vedação expressa a que se habilitem para o casamento pessoas do mesmo sexo. Vedação implícita constitucionalmente inaceitável. Orientação principiológica conferida pelo STF no julgamento da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF. 1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da- diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por

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casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto. 7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. 8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. 9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contra majoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso especial provido. (STJ, REsp 1.183.378 - RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011)”. “PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO. PEDIDO DE CONVERSÃO DE UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO. INDEFERIMENTO PELO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU. INCONFORMISMO DOS REQUERENTES. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM DECISÃO PROFERIDA NA ADI nº. 4-277/DF, ATRIBUIU EFICÁCIA ERGA OMNES E EFEITO VINCULANTE À INTERPRETAÇÃO DADA AO ART. 1.723, DO CÓDIGO CIVIL, PARA EXCLUIR QUALQUER SIGNIFICADO QUE IMPEÇA O RECONHECIMENTO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS COMO ENTIDADES FAMILIARES, DESDE QUE CONFIGURADA A CONVIVÊNCIA PÚBLICA, CONTÍNUA E DURADOURA E ESTABELECIDA COM O OBJETIVO DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA. A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DETERMINA SEJA FACILITADA A CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO. PORTANTO, PRESENTES OS REQUISITOS LEGAIS DO ART. 1.723, DO CÓDIGO CIVIL, NÃO HÁ COMO SE AFASTAR A RECOMENDAÇÃO CONSTITUCIONAL, CONFERINDO À UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA OS MESMOS DIREITOS E DEVERES DOS CASAIS HETEROSSEXUAIS, TAL COMO SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO. PRECEDENTE DO STJ QUE ADMITIU O PRÓPRIO CASAMENTO HOMOAFETIVO, A SER REALIZADO POR SIMPLES HABILITAÇÃO. IN CASU, FORÇOSO É DE SE CONCLUIR QUE MERECE REFORMA A DECISÃO MONOCRÁTICA, CONVERTENDO-SE A UNIÃO ESTÁVEL CARACTERIZADA NOS AUTOS EM CASAMENTO. PROVIMENTO DO RECURSO. (TJ-RJ - APL: 72523520128190000 RJ 0007252-35.2012.8.19.0000, Relator: DES. LUIZ FELIPE FRANCISCO, Data de Julgamento: 17/04/2012, OITAVA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 24/04/2012)”.

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“Relação homoafetiva. União estável conversão em casamento. Possibilidade. Princípio da unidade constitucional. Apelação cível. União estável homoafetiva. Existência de comprovação dos requisitos ensejadores da união estável. Procedimento de jurisdição voluntária em que os requerentes pretendem a convolação desta em casamento. ADI nº. 4-277/DF, que atribuiu eficácia erga omnes e efeito vinculante à interpretação dada ao art. 1.723 reconhecendo como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo. Extrai-se do princípio da unidade constitucional a possibilidade de convolação da união estável homoafetiva em casamento. Artigo 226, §3º de nossa carta magna. Precedente do STJ e deste Tribunal de Justiça, convertendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento. Conhecimento do recurso e seu provimento. (TJRJ, AC 001751189.2012.8.19.0000, 12ª C. Cível, Des. Lucia Miguel S. Lima, julgada em 24/07/2012)”. “Constitucional, civil e processual civil. Apelação em actio de conversão de união estável homoafetiva em casamento (procedimento de jurisdição voluntária). Extinção sem resolução de mérito pelo juízo de primeiro grau, ante a equivocada premissa de impossibilidade jurídica do pedido (carência de ação). Inexistência de vedação expressa no nosso ordenamento jurídico acerca do direito reivindicado. Confusão perpetrada entre o direito material (mérito) e o instrumental secundário. Análise das condições de procedibilidade as quais devem ser feitas in status assertionis (teoria da asserção). Imperiosa a anulação do julgado primevo – análise da matéria meritória. Lide pronta para julgamento (teoria da causa madura - Art. 515, §3º do CPC). Reconhecimento pelo plenário do STF, em julgado histórico (ADPF 132-RJ e da ADI 4277-DF), como legítima entidade familiar a união contínua, pública e duradoura de pessoas do mesmo sexo, abolindo quaisquer distinções interpretativas com as relações heteroafetivas. Eficácia erga omnes e efeito vinculante da orientação içada em sede controle abstrato de constitucionalidade (§ 2º, do art. 102, da CF e parágrafo único, do art. 28, da lei 9.868/99). Inafastabilidade do decidido pela augusta casa suprema que, esteada nos princípios, direitos e garantias fundamentais (preâmbulo, arts. 1º III, 3º, I e IV e 5º, caput, I, II e X, da CF), explicou o verdadeiro sentido axiológico do art. 226 § 3º da CF, bem como empregou ao art. 1.723 do CC interpretação conforme à constituição. Situação jurídica que deve ser facilitada pela lei (art. 226 § 3º da CF, art. 1.726 do CC e art. 8º da Lei Nacional 9.278/96). Ausência de proibição no código civil acerca da aludida conversão. Omissão legislativa suprível pela lei de introdução as normas do direito brasileiro (art. 4º). Proclamação textual e expressa do STJ (guardião máximo da matéria infraconstitucional) no sentido de que "os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do código civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar" (Resp 1183378/RS). Pensamento divergente repercutente, de maneira insofismável, em fomentação à insegurança jurídica (matéria dirimida pelos guardiões maiores constitucional e infraconstitucional), afronta a dignidade da pessoa humana, discriminação preconceituosa ao optante pelo mesmo sexo, vilipêndio aos princípios da isonomia e da liberdade, e exclusão da família constituída pelo casal homoafetivo à proteção estatal arraigada na carta magna, reduzindo-a a uma subcategoria de cidadão. Elementos existentes nos autos demonstrativos, indubitavelmente, do preenchimento dos requisitos subjetivos e objetivos do rogo – Desconstituição da sentença que se impõe, com o adentramento, pari passu, na querela de fundo para julgar procedente o pleito exordial (art. 269 I do CPC) comunis consensus dos autores (apelantes). Conhecimento e provimento do apelo. (TJRN, AC 2012.003093-8, Rel. Juíza Convocada Sulamita Bezerra Pacheco, julgada em 23/08/2012)”.

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“Registro civil das pessoas naturais. Recurso interposto contra sentença que deferiu o registro da conversão de união estável homoafetiva em casamento. Orientação emanada em caráter definitivo pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4277), seguida pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp 1.183.378). Impossibilidade de a via administrativa alterar a tendência sacramentada na via jurisdicional. Recurso não provido. (TJSP, AC 0004195-34.2011.8.26.0037, Rel. Corregedor Geral da Justiça José Renato Nalini, julgada em 30/08/2012)”.

A partir do quadro apresentado, nota-se que, embora houvesse uma clareza demonstrada na tendência jurisdicional do reconhecimento das uniões homoafetivas e conversão destas em casamento, havia um dissenso na via administrativa, pois os pedidos estavam sendo negados. Nesse sentido é que se mostrou necessária a atuação do Conselho Nacional de Justiça, órgão máximo do Poder Judiciário no que concerne a zelar pela legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, consoante prerrogativa constitucionalmente prevista no §4 do art. 103-B da Carta Magna, quando da edição da Resolução Nº 175, de 14 de maio de 2013, a qual uniformizou os procedimentos administrativos cartorários a nível nacional, vedando a negativa quanto aos pedidos de conversão de união estável em casamento ou habilitação direta, desde que atendidos os pressupostos legais. Eis o teor da resolução: “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação”.

Ressalte-se que, a despeito das inúmeras críticas que sempre são feitas contra a edição de atos regulamentares pelo CNJ, a Resolução Nº 175 restringiu-se à uma uniformização dos procedimentos administrativos do Poder Judiciário, não tendo havido nenhuma criação legislativa pelo Conselho. O CNJ limitou-se a dar efetividade a uma decisão do STF que estava sendo descumprida por uma lógica incoerente dos cartórios que estavam exercendo um juízo subjetivo, que lhes é vedado. Não resta dúvida quanto à legitimidade do CNJ para orientar a atuação dos cartórios em nível nacional.

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Além disso, há muito já foi superada a controvérsia a respeito da constitucionalidade do Conselho Nacional de Justiça, órgão relativamente novo, tendo sido criado durante a reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional 45/2004. A Associação dos Magistrados do Brasil, em sede da ADI 3.367/DF, já questionou a própria EC 45/2004, no que concerne a constitucionalidade do Conselho, com base, fundamentalmente, numa violação ao princípio da separação de Poderes e numa lesão ao princípio federativo. O Tribunal rejeitou a tese de afronta ao princípio da separação de Poderes, enfatizando que, tal como concebido, o Conselho Nacional de Justiça configura órgão interno do Poder Judiciário e não instrumento de controle externo, e que, em sua maioria, os membros que o compõem são integrantes do Poder Judiciário. Assinalou-se, também, que o próprio Congresso Nacional havia aprovado proposta de emenda que impõe aos membros do Conselho as mesmas restrições e impedimentos constitucionais impostos aos juízes, o que estaria a sinalizar a plena integração do órgão na estrutura do Poder Judiciário. Ademais, por expressa disposição constitucional, os atos do Conselho estão submetidos ao controle judicial do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, r)103. Da mesma forma, não se acolheu a impugnação quanto à afronta ao princípio federativo, tendo em vista o perfil nacional do Poder Judiciário, fortemente enraizado na versão original do texto constitucional de 1988104. A análise do Direito Comparado pode servir, especialmente para assuntos polêmicos, como um importante meio de se buscar respostas a questionamentos nacionais. No que se refere ao casamento ou à união civil entre pessoas do mesmo sexo, válido é não apenas se verificar o modo como as demais nações lidaram ou ainda lidam com o tema, mas, principalmente, valer-se de experiências estrangeiras para se atestar o grau de complexidade dessa questão. Em referência à questão da homoafetividade, antes de se fazer uma análise mais pormenorizada do tratamento dispensado à matéria pelos sistemas jurídicos mais relevantes no cenário mundial, mostra-se oportuno destacar sua sintonia com os Princípios de

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MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 940. Idem.

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Yogyakarta, que traduzem recomendações dirigidas aos Estados nacionais, fruto de conferência realizada, na Indonésia, em novembro de 2006, sob a coordenação da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos. Essa Carta de Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero fez consignar, em seu texto, o Princípio nº 24, cujo teor assim dispõe: “DIREITO DE CONSTITUIR FAMÍLIA Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. Os Estados deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero; b) Assegurar que leis e políticas reconheçam a diversidade de formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência ou casamento e tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nenhuma família possa ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que diz respeito à assistência social relacionada à família e outros benefícios públicos, emprego e imigração; ............................................... f) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que qualquer obrigação, prerrogativa, privilégio ou benefício disponível para parceiros não-casados de sexo diferente esteja igualmente disponível para parceiros não-casados do mesmo sexo; (...)”.

No cenário internacional, os países podem ser classificados em três grandes grupos, de acordo com o tratamento jurídico concedido aos indivíduos e às relações homossexuais. Há os países repressores, que proíbem e punem o “homossexualismo”; os indiferentes, ainda que

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não criminalizem esta conduta, não criam medidas favoráveis a ela e, finalmente, os Estados avançados, que possuem medidas para proteção da população homossexual105. No grupo de extrema repressão, o maior destaque é para os países islâmicos e muçulmanos e para a região que ficou internacionalmente conhecida como MENA (Middle East and North Africa – Oriente Médio e África do Norte), onde é prevista a pena de morte à manifestação da homossexualidade tanto masculina quanto feminina. Assim, no Afeganistão, Arábia Saudita, Iêmen, Irã, Mauritânia, Sudão, Sul da Somália e Emirados Árabes, por exemplo, ser homossexual pode custar a vida. Apenas em alguns países da região MENA (Barém, Jibuti, Jordânia, Palestina) a homossexualidade nunca foi criminalizada. A despeito da necessidade de ativismo em favor dos direitos homoafetivos nessas regiões, o trabalho é extremamente árduo nesse verdadeiro campo minado para qualquer militante, uma vez que mais ou menos todos os direitos humanos mais básicos são violados regularmente em quase todos os países da região. Em árabe, as palavras mais comuns para descrever os homossexuais são “shodoud” (tarado) e “lewath” (sodomita, que sempre se refere a “desviante” ou “antinatural”), pelo que não surpreende que, na sua maioria, os órgãos de informação árabes ainda retratem as relações do mesmo sexo de forma muito negativa. A homossexualidade é amplamente vista como uma ameaça contra a heterossexualidade, contra as funções definidas para homens e mulheres (“binarismo”) e contra a ordem social em geral, porque desafia a restrição do sexo à procriação e enfatiza os aspetos de prazer e satisfação que confere ao sexo, em detrimento da sua função puramente reprodutiva106. Não obstante todas as dificuldades e o perigo decorrente da intensa e violenta repressão estatal, é interessante ressaltar o sem número de grupos ativistas que têm surgido nessas zonas de conflito, possibilitados inicialmente pela Internet, pois eram grupos online e anônimos no começo, e até mesmo as redes de TV por satélite que têm permitido uma maior

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VARGAS, Fábio de Oliveira. União homoafetiva. Direitos sucessórios e novos direitos. Curitiba: Juruá Editora, 2011, p. 99. 106 Cf. Yahia Zaidi In: Lucas Paoli Itaborahy & Jingshu Zhu. HOMOFOBIA DO ESTADO - Análise mundial das leis: criminalização, proteção e reconhecimento do amor entre pessoas do mesmo sexo, 2013. Disponível em meio eletrônico no endereço: http://ilga.org/ilga/en/article/1161. Acesso em 05/01/2014.

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visibilidade aos movimentos que não cessam a batalha pelo mínimo de dignidade para essas pessoas. Felizmente, o cenário sombrio como apresentado vem sendo iluminado a cada dia e eis que a população homoafetiva começa a enxergar uma luz no fim do túnel no que concerne ao reconhecimento de seus direitos. Inúmeros países têm reconhecido senão o casamento, pelo menos a união civil homoafetiva, muitos deles já permitindo inclusive a adoção por casais homoafetivos. Alguns países já contam com legislação contra a discriminação e homofobia, agravando os crimes praticados com essas qualificadoras. A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união homoafetiva, em 1989, ao permitir o registro de parcerias civis. Os debates acerca desse tema iniciaram-se, porém, em 1968, com a apresentação de uma proposta de lei. Nos anos seguintes, instaurou-se uma forte discussão na sociedade sobre a extensão dos direitos que deveriam ser reconhecidos aos casais de mesmo sexo. A união civil existia na Holanda desde o ano de 1998, conferindo direito à saúde, à educação e aos benefícios trabalhistas iguais aos dos heterossexuais. Uma nova legislação, estendendo o direito do casamento aos homossexuais, passou a valer a partir de 2001. O país já possibilita a adoção de crianças por casais homossexuais, desde que passados três anos de convivência. A Suécia legalizou as uniões civis homossexuais em 1994. Já o casamento passou a ser permitido em 2010. A Alemanha tratou amplamente a respeito das uniões homoafetivas, em legislação própria, país em que desde 2001 vigora a “parceria de vida”, instituída pela Act on Registered Life Partnerships107. Na preciosa lição do ministro Gilmar Ferreira Mendes:

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Disponível no idioma original em: www.gesetze-im-internet.de/lpartg/index.html ou em inglês no endereço: http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_lpartg/index.html. Acesso em: 05/01/2014.

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“Essa lei é resultado de uma discussão iniciada na década de oitenta e que continua em vigor após o início de sua vigência, com debates acerca da possibilidade de aumento do rol de direitos e deveres dos parceiros de mesmo sexo. A extensão do projeto de lei era bem maior do que o aprovado e acabou por ser reduzido após algumas concessões. A lei alemã estabelece as condições para a união civil entre casais do mesmo sexo – iguais aos impedimentos do casamento – e elenca direitos e deveres existentes entre os companheiros da união homossexual, como a possibilidade de adotarem o mesmo sobrenome, o direito à herança e a assistência ao filho do companheiro morto. Prevê, também, que parceiros homossexuais não podem adotar, mas institui que, caso um companheiro adote uma criança, o outro deverá consentir. Ainda faz referência ao casamento tradicional, indicando que, em algumas questões, é válido o estabelecido pelo Código Civil Alemão na parte referente ao matrimônio – por exemplo, no tocante ao regime de bens”108.

No Reino Unido, que desde 2001 já permitia o registro de parceria de casais homossexuais e desde 2005 o registro de união civil, o ano de 2013 representou um marco no continente europeu com a aprovação do casamento homoafetiva pela rainha Elizabeth II. A decisão da rainha, que era o último passo para a legalização, já havia sido precedida pelo êxito da proposta na Câmara dos Lordes e na Câmara dos Comuns. A Bélgica estende o direito de casamento aos casais homossexuais desde 2003. A adoção por casais do mesmo sexo foi autorizada em 2005. A Espanha aprovou em 2005 tanto o casamento quanto a adoção por casais homoafetivos. Portugal autorizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em maio de 2010, mas vedou expressamente o direito à adoção109. Na França, em 1999, mediante alteração do Código Civil, foi criado o Pacto Civil de Solidariedade – PACS, autorizando duas pessoas do mesmo ou de diferentes sexos a firmarem contrato para “organizar sua vida em comum”. No entanto, ambos os pactuantes permaneciam solteiros. Em maio de 2013, o presidente francês, François Hollande, promulgou a lei sobre o casamento homossexual, o último trâmite para sua aplicação efetiva, permitindo inclusive a

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STF - ADI: 4277 - DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, p. 167. 109 Texto da lei disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/2010/05/10500/0185301853.pdf. Acesso em 05/01/2014.

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adoção por casais homossexuais. O ato foi recebido com extrema revolta, seguida por violentas manifestações e protestos homofóbicos por parte dos direitistas da União por uma Maioria Popular (UMP). Ainda assim, felizmente, a justiça prevaleceu. A Nova Zelândia permite as uniões civis homossexuais no país por meio de lei desde 2005. Em abril de 2013, o Parlamento da Nova Zelândia aprovou a legislação que reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que a transformou no primeiro país da Oceania a legalizar este tipo de união. Na Suíça, as uniões homoafetivas são disciplinadas por uma lei 110 que entrou em vigor em janeiro de 2007 e que depois foi referendada pelo povo suíço em junho do mesmo ano. Ressalte-se que antes do surgimento dessa lei federal, os cantões de Genebra, Zurique e Neuchâtel já possuíam leis estaduais que protegiam as uniões homoafetivas111. Em Taiwan, país em que desde 2007 existe lei que proíbe a discriminação no emprego por motivo de orientação sexual, grupos de direitos dos homossexuais estão pressionando para que a presidente Ma Ying-jeou legisle, antes que seu mandato termine em 2016, permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo e também que casais homossexuais possam adotar. O destaque mundial para a questão homoafetiva na República da China deu-se em 2012, quando um casal de mulheres contraíram matrimônio em uma cerimônia de casamento budista, ou seja, estritamente religiosa e desprovida de efeitos civis. Na Austrália, a maioria de seus Estados112 autoriza a união civil entre pessoas do mesmo sexo, cujos direitos decorrentes da união são, em sua maioria, os mesmos dos casais heterossexuais. Em outubro de 2013, foi aprovada uma lei autorizando o casamento homossexual em Camberra, capital australiana. No entanto, a Suprema Corte da Austrália anulou a lei em dezembro de 2013, numa infeliz decisão que repercutirá em todo o país.

Eingetragene Partnerschaft (alemão) ou Partenariat enrigestré (francês) significando “Parceria Registrada”. CHAVES, Marianna. As uniões homoafetivas no direito comparado. In: DIAS, Maria Berenice et al. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 62-63. 112 Estados australianos que conferem praticamente os mesmos direitos às uniões homossexuais que aqueles decorrentes de uniões heterossexuais: Território da Capital (2008), Nova Gales do Sul (2010), Tasmânia (2004) e Vitória (2008). Estados australianos que conferem alguns direitos semelhantes aos das uniões heterossexuais: Ilha de Norfolk (2006), Território do Norte (2004), Queensland (diversas leis de 1999 em diante), Austrália Meridional (2003, 2007), Austrália Ocidental (2002). 110 111

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O Uruguai, em janeiro de 2008, legalizou a união de casais homossexuais depois que o presidente ratificou a chamada lei da união concubinária. Em abril de 2013, a Câmara dos Deputados uruguaia ratificou o projeto de lei do “matrimônio igualitário”, sob a afirmação que “matrimônio civil é a união permanente de duas pessoas de distinto ou igual sexo”. Cabe destacar que o projeto obteve o aval de 71 dos 92 deputados presentes à votação. No Equador, as uniões civis homoafetivas foram aprovadas na nova Constituição de 2008, mas a adoção foi expressamente vedada. Na Colômbia, em 2009, o Tribunal Constitucional afirmou que aos casais de fato do mesmo sexo devem ser outorgados todos os direitos garantidos aos casais heterossexuais não casados113. Na Argentina, as uniões civis são reconhecidas na cidade de Buenos Aires desde 2002. Em julho de 2010, o país tornou-se o primeiro país da América Latina a aprovar lei permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No ano de 2006, na Cidade do México, e em 2007, no Estado de Coahuila, houve a aprovação leis inspiradas no Pacto Civil de Solidariedade francês, permitindo a união civil entre pessoas do mesmo sexo nos respectivos estados. Em 2010, foi aprovado o casamento homoafetivo na Cidade do México. No Canadá, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é autorizado desde 2005, quando foi aprovado o “Ato de Casamento Civil”114, o qual deu uma definição livre de gênero ao casamento no país. Com isso, todos os direitos decorrentes do casamento passam a ser estendidos aos casais homossexuais, inclusive o direito à adoção. Nos Estados Unidos, a legitimidade para dispor sobre casamento é restrita a cada um dos estados, modelo que gera um quadro bastante heterogêneo. Em maio de 2012, o atual presidente e primeiro negro a ocupar o cargo, mostrou-se também o primeiro presidente a manifestar seu apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, pelo menos durante o mandato. Além disso, A administração Obama pediu à Suprema Corte dos EUA para derrubar a proibição do casamento homossexual na Califórnia, invocando argumentos legais que

113

CHAVES, Marianna. op. cit., p.50. Civil Marriage Act (inglês) ou Loi sur le mariage civil (francês). Texto da lei disponível em: http://lawslois.justice.gc.ca/PDF/C-31.5.pdf. Acesso em 05/01/2014. 114

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estabelecem as bases para a expansão do casamento homossexual mesmo nos Estados que ainda não o reconhecem. Em junho de 2013, uma decisão da Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucional a Lei de Defesa do Casamento (Defense of Marriage Act – DOMA), que o definia como "a união entre um homem e uma mulher" e impedia que os homossexuais casados nos Estados onde a união é legal conseguissem reconhecimento e benefícios em nível federal. A decisão da Suprema Corte deixa a responsabilidade para decidir sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo exclusivamente para os estados. Ainda assim, é um precedente que enche de esperanças a população homoafetiva norte-americana. Até o momento, 16 estados permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos115.

115

Massachusetts (2004), Califórnia (2008-2013), Connecticut (2008), Iowa (2009), Vermont (2009), New Hampshire (2010), Nova York (2011), Washington (2012), Maine (2012), Maryland (2013), Rhode Island (2013), Delaware (2013), Minnesota (2013), Distrito de Columbia (2010), Nova Jersey, Havaí e Illinois (2013).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS “Na década de 70, nos Estados Unidos, um soldado que havia sido condecorado por bravura na Guerra do Vietnã escreveu ao Secretário da Força Aérea declinando sua condição de homossexual. Foi imediatamente expulso da corporação, com desonra. Ao comentar o episódio, o militar produziu uma frase antológica: ‘Deram-me uma medalha por matar dois homens, e uma expulsão por amar outro’”116.

A pretensão da sociedade pelo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar encontra guarida no princípio da dignidade da pessoa humana que, como é cediço, talvez seja uma das maiores conquistas na teoria dos direitos fundamentais e que foi obtida, na visão de Hannah Arendt, depois de inúmeras lutas e inúmeras barricadas. Em análise à exposição realizada, não restam dúvidas quanto à possibilidade jurídica do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Atualmente, o fato já é uma realidade, decorrente da decisão do Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição Federal em território nacional, aliada à resolução oriunda do Conselho Nacional de Justiça, que revestiu de efetividade o conteúdo da decisão. Ainda sobre as uniões homoafetivas, não é momento para descanso. Por óbvio, o Brasil tem um sistema judicial que, embora moroso, não foge à luta, enfrentando os problemas que lhes são apresentados e operando verdadeiras mudanças na sociedade brasileira. Relembrando as palavras do ilustre ministro Luiz Fux, mais que um projeto de vida, o Supremo Tribunal federal concedeu à população homoafetiva um projeto de felicidade. Com efeito, a busca pela felicidade, princípio implícito que emana diretamente do postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, tendo suas raízes históricas no iluminismo que inspirou a própria Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de 1776, é razão mais que suficiente para a inserção da célula homoafetiva na sociedade, dispensando-lhes o mesmo respeito e consideração que a todos os

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BARROSO, Luís Roberto. DIFERENTES, MAS IGUAIS... p. 3.

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cidadãos para que possam trilhar seus caminhos e perseguir dignamente seus projetos de felicidade. Nesse sentido é a afirmação do ministro Ayres Britto: “(...) se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”. Pois não há que se falar em cura onde não há doença ou distúrbio. Inobstante a via judicial ter dado uma solução paliativa, que satisfez a população homoafetiva quanto ao resultado, o Poder Legislativo precisa exercer seu papel previsto constitucionalmente e legislar sobre a matéria porque o debate ainda não chegou ao fim. O Poder competente originariamente para tratar da questão precisa calar as vozes que disseminam o ódio, o preconceito e a discriminação, dando a palavra final no sentido da evolução e do bom senso, em harmonia com os países mais desenvolvidos do mundo, sobretudo os vizinhos das Américas. O Estado inimigo das minorias, protagonista da repressão e da imposição moral “dominante”, como se fosse a única legítima, tem cedido espaço, historicamente, ao Estado solidário, agente da tolerância e da inclusão social. O Legislativo precisa confirmar essa tendência. Infelizmente, quando se amplia o foco para além do amor e do afeto que os homossexuais buscam terem reconhecidos, ainda existem diversas outras mazelas sociais que assolam a comunidade homoafetiva. Os crimes motivados por homofobia, muitos dos quais resultam em morte do agredido ou sequelas permanentes, ainda são noticiados em demasia nos meios de comunicação. Isso quando o elemento “homofobia” não é descartado da notícia. Quando não é a violência física, é a violência psicológica, é o menosprezo, são os xingamentos, as piadas, o deboche, o escárnio, a discriminação profissional que impede um homossexual de ocupar um cargo de confiança numa empresa. Daí muitos homossexuais construírem um verdadeiro “armário”, baseado em casamentos de fachada, para terem a mínima chance de alçar voos mais altos em suas carreiras.

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Não é possível, todavia, acreditar na ilusão de que decisões judiciais, legislações protetivas117 e políticas públicas de conscientização sejam suficientes para acabar com séculos de preconceito e discriminação, mas já é um bom começo. As mudanças culturais são as que levam mais tempo para se efetivar, demandando uma vitória a cada dia. No entanto, são essas mudanças os maiores instrumentos de transformação social a longo prazo, a exemplo dos índios, dos negros, dos imigrantes, das mães solteiras, dos filhos adotivos, das pessoas portadoras de deficiências entre tantas outras minorias que encontraram e ainda encontram seu espaço na sociedade hodierna.

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A Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil elaborou um anteprojeto de Estatuto da Diversidade Sexual e o mesmo encontra-se em fase de coleta de assinaturas para ser submetido à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) para votação no Congresso Nacional. O anteprojeto pode ser consultado no endereço: http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/geral/estatuto_da_diversidade_sexual.pdf. Acesso em 05/01/2014.

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