A \"ideologia do embranquecimento\" no telejornal da Cultura

October 17, 2017 | Autor: P. da Veiga Borges | Categoria: Comunicacion Social
Share Embed


Descrição do Produto

A “IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO” NO TELEJORNAL DA CULTURA* Patrícia da Veiga Borges**

Resumo: este artigo inicia uma reflexão sobre as representações do negro na televisão brasileira, a partir das peculiaridades de uma emissora que há 40 anos carrega o emblema de “pública, educativa e cultural”: a TV Cultura. Para tanto, observará como a proposta hegemônica do “embranquecimento” da sociedade segue sendo consolidada no espaço público, por meio da reprodução de estereótipos. Palavras-chave: Cultura. Educação. Racismo. Televisão. O QUE DISSERAM DE NÓS1: A “IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO”

A

s primeiras definições sobre o povo brasileiro nascem com as teorias raciais do século XIX que, embasadas pelo positivismo evolucionista, tentam responder ao questionamento de por que somos um país de “atrasados”. O primeiro olhar usa o pensamento europeu para justificar, em tese, o motivo de, apesar da colonização e da catequese, sermos “diferentes”. É aí que serão formulados dois parâmetros de compreensão do “atraso” brasileiro: meio ambiente e raça (ORTIZ, 1994, p. 15). São os acidentes geográficos, as condições de plantio de uma terra, o clima, a vegetação, somadas às características físicas dos homens que habitam essa terra que fazem os estudos sociais brasileiros explicarem “nosso” povo pela primeira vez. É daí que surge a ideia de que as diferentes histórias de “nossa” origem ocorrem porque a terra assim favorece (ou desfavorece) e que, grosso modo, o brasileiro é a somatória de três raças: FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

25

índios, negros e brancos, sendo essa última superior, conforme a escala “evolutiva” dos seres humanos. É dessa fase do pensamento social brasileiro, também, que a escravidão passa a ser compreendida ou, melhor dizendo, justificada. Autores que marcaram essa primeira fase dos estudos da identidade nacional2 foram intensamente apropriados até a primeira metade do século XX, tendo ajudado, inclusive, a formular os conceitos de mestiçagem e sincretismo. Conceitos esses que vão ressurgir em Gilberto Freyre, por exemplo, nos anos 30 e que contribuirão para a conformidade de uma democracia multicultural que não enxerga com muita clareza os processos históricos em que o pensamento sociológico está inserido. A constituição do Estado brasileiro enquanto nação unificada pesa para difundir o racismo velado (disfarçado de liberdade) e o obscurantismo da fábula (ou do mito) das três raças. ... essa fábula é engendrada no momento em que a sociedade brasileira sofre transformações profundas, passando de uma economia escravista para outra de tipo capitalista, de uma organização monárquica para republicana, e que se busca, por exemplo, resolver o problema da mãode-obra incentivando-se a imigração europeia (ORTIZ, 1994, p. 38).

Nos anos 50, o país que drasticamente deixa de ser rural para ser urbano faz sua intelectualidade abandonar a ideia da mestiçagem, mas não perde de vista o devir de um povo que ainda está “em construção” e, por isso, pode ser “aculturado”. Considerando que está na cultura tanto a alienação de um sujeito como a sua libertação, a identidade brasileira é convertida em luta de classes, em que os antigos senhores feudais transformados em patrões são os dominadores e os imigrantes europeus transformados em trabalhadores são os dominados. A brancura persiste no mais marxista dos discursos e os ex-escravos novamente são ignorados. O pensamento sociológico, que já destinava a cultura popular ao diletante lugar do folclore e da “união” entre as etnias, passa a preocupar-se com os grandes processos da industrialização e com o brasileiro que está a vir a ser, ignorando, mais uma vez, o passado (ORTIZ, 1994). Daí é que o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), nos anos 60, toma para si a tarefa de “repensar a mestiçagem”. Com o reconhecimento de que onde há leitura de mundo, há compreensão desse mundo, do lugar do homem nesse mundo e, assim, há cultura 3 e transformação dessa cultura, o CPC enxerga o “popular” 26

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

como o locus de um processo de tomada de consciência por parte das diversas camadas sociais. A geração CPC foi importante para retomar o debate sobre a identidade nacional, a partir das bases e sem separar a cultura da política. “A pergunta fundamental seria: quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos sociais elas se vinculam e a que interesses servem?” (ORTIZ, 1994, p. 139). Para Muniz Sodré (1999) falar de identidade é reconhecer um sujeito em seu espaço, mediante condições históricas e psicossociais de sobrevivência. Por isso, dizer o que o “outro” é, é dizê-lo considerando uma série de fatores historicamente construídos e com base na visão do que penso que sou “eu”. O que faz com que o reconhecimento da diferença ocorra a partir do estranhamento e da aproximação (SODRÉ, 1999, p. 35-6). Reconhecer a identidade alheia é classificá-la com base em um vocabulário e em uma forma de dar nome ao mundo que estão externos ao alheio. Com esse raciocínio, é possível resgatar as formulações de Nina Rodrigues (SODRÉ, 1999, p. 88). O que Sodré chama de “ideologia do embranquecimento” é fruto desse movimento de enxergar o “outro” a partir do “eu” (e optar por um “eu” mesmo quando se é classificado como “outro”). Assim surge, em um primeiro momento, o não-reconhecimento total do outro e, em uma segunda instância, o recalque desse reconhecimento por meio da miscigenação, da formação natural da “raça” brasileira. Conforme o que prega essa ideologia, o brasileiro se enxerga como semelhante a um branco (a “raça” superior) e nega sua proximidade com um negro (a “raça” inferior), reconhecendo a negritude, no máximo, como algo que existe, mas está distante do seu corpo. O compromisso racial seria, assim, a racionalização, por parte das camadas dirigentes, de uma realidade miscigenada. Mesmo parecendo acreditar na superioridade branca, as elites nacionais elaboraram um discurso de transigência, o da mestiçagem biológica e cultural, que gerou simultaneamente as ideologias do embranquecimento e da democracia racial (SODRÉ, 1999, p. 103).

Conforme dados do último censo demográfico feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1999, 54% da população brasileira se declarava de cor branca, 39,9% se dizia parda e apenas 5,4% consideravam-se de cor preta4. À época, foram ouvidas FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

27

165.371.493 pessoas em todo o território nacional, com exceção da zona rural dos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Por essa estatística, é possível presumir que o Brasil é um país de maioria branca, com uma considerável parcela de pardos. Mas, por tudo o que já vimos até aqui, é possível enxergar nessa fria estatística uma sugestão ideológica que faz um povo sufocado reconhecer-se mais enquanto “outro” (ou com base no pensamento do “outro”) do que enquanto “eu”. E a TV, assim como outras instituições, pode ter contribuição importante nesse processo. A EMPREITADA “PÚBLICA, EDUCATIVA, CULTURAL” DA ELITE PAULISTANA NA TV CULTURA A segunda emissora que Assis Chateaubriand inaugurou no estado de São Paulo, em 1960, chamava-se TV Cultura. Em sintonia no canal 2 do televisor dos paulistas, a Cultura recebeu como incumbência servir como diferencial em um tempo em que o que predominava na TV brasileira era o populacho, o sensacionalismo e o melodrama, que desde o rádio serviam como fórmula para “pescar” patrocinadores e manter o sucesso das grades de programação. Com dez anos de existência, à época, a televisão do país já condicionava toda sua sobrevivência ao modelo de gestão privada. Por isso, a proposta da TV Cultura de Chateuabriand pouco resistiu (LEAL FILHO, 1988) e logo os programas policiais do Homem do Sapato Branco despontaram nas imagens da emissora. Após um incêndio em sua sede principal e a derrocada dos Diários Associados, a TV Cultura foi fechada e sua concessão passou a bailar novamente no Congresso, sob a suspeita de mover um confuso processo de negociação entre parlamentares, iniciativa privada e governo. Eis que, em 16 de junho de 1969, a emissora renasceu, mais uma vez na sintonia do canal 2, mas com a ancoragem na letra “e”, de educativa. Administrada pela recém-criada Fundação Padre Anchieta, a TV Cultura reabriu suas portas na condição de “pública, educativa e cultural”, sendo subsidiada pelo governo do estado de São Paulo. Os tempos, no Brasil, eram de ditadura militar e ações fortes de repressão à liberdade de expressão. Nos jornais, receitas de bolo substituíam as notícias censuradas e outras atrocidades não ditas, enquanto novos parques gráficos eram financiados pela União. No rádio, o ostracismo da audiência e dos patrocinadores levava o Repórter Esso 28

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

para a televisão enquanto que uma força-tarefa rumo ao povoamento do Norte criava a Rádio Nacional da Amazônia. Na TV, a telenovela, os programas de auditório e os pseudonoticiários sobre o “mundo-cão” envolviam a família brasileira enquanto que o governo incentivava a produção de televisores mais baratos (MATTOS, 2002, p. 82). O cenário e o contexto eram contraditórios, oscilando entre a expansão e a tentativa de regulação e controle dos meios de comunicação massivos por parte do Estado. Ainda assim, a expectativa era de que a nova emissora educativa paulistana viesse a cumprir um papel, até então, atribuído às instituições de ensino e, também, ao rádio (conforme o sonho difusionista de Roquette Pinto). Mais: o discurso era de que essa emissora seria a base democrática e livre da TV nacional. Leal Filho, em Atrás das Câmeras, reproduz o discurso do primeiro presidente da Fundação Padre Anchieta, José Bonifácio Coutinho Nogueira, delimitando, assim, que tipo de ideologia essa emissora “pública, educativa e cultural” estava disposta a reproduzir – tendo em vista que tinha em sua administração tanto as mãos do Estado como as de uma entidade de direito privado: Os artistas, os cientistas, os professores, os intelectuais estão, desde já, convocados para o esforço comum que a TV-Educativa espera de todos eles. [...] A nação colherá um dia os frutos de mais este esforço paulista no sentido de preparar os brasileiros para o desenvolvimento econômico retardado pelos que, no passado, não o alicerçaram na cultura do povo e, agora, acelerado pelos que o fundamentam na educação (NOGUEIRA, apud LEAL FILHO, 1988, p. 23).

Ele identifica que o projeto de criação da TV Cultura teve características como: produção de e para as elites, forte regionalismo, visão conservadora da sociedade e discurso liberal. Além disso, encampou fortemente a proposta de preencher os vazios do seu público, orientando de forma conservadora para a educação moral e para a ilustração erudita. Como bem define, de forma alguma a programação da TV Cultura (bem como de qualquer televisão educativa brasileira) poderia “fazer concessões ao vulgar” (LEAL FILHO apud BUCCI, 2000, p. 156). Tanto, que seu conselho de programação foi formado por representantes da intelectualidade brasileira: reitores, secretários de educação e de cultura, presidentes de agremiações estudantis, de academias literárias etc. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

29

Ao tratarem sobre o tema, Venício A. de Lima e Sérgio Capparelli levantam outra questão, enxergando nas orientações internacionais o embasamento necessário para essa proposta “formadora” da TV Cultura e das demais televisões educativas no Brasil: “Essas crenças estavam inseridas em programas como os da UNESCO, que sugeriam o uso da televisão para suprir as necessidades educacionais dos países em desenvolvimento”. (LIMA & CAPPARELLI, 2004, p. 125).

Das “boas intenções” à realidade, a sobrevivência da TV Cultura, ao longo de seus quase 41 anos, oscilou entre seus princípios morais, as intransigências do Estado e a necessidade de financiamento. Sua estrutura pouco se diferenciou do observado em emissoras de gestão privada e sua grade de programação, por mais peculiar que se propunha. Somado a isso está seu forte caráter conservador e liberal de retratar a realidade, principalmente em produtos tradicionais como o seu telejornal. Na Folha de São Paulo de 21 de julho de 2000, Jorge da Cunha Lima, então presidente da Fundação Padre Anchieta, escreveu que a TV Cultura: ... busca ser uma alternativa para o cidadão. E busca isso por alguns caminhos já aceitos pela embrionária rede de televisão pública: produzir uma programação educativa que não pretende substituir a escola, mas complementar a educação do homem brasileiro para a cidadania; divulgar cultura, mas não apenas os valores consagrados no mercado comercial da arte; implantar um jornalismo [...] que não faça da notícia um mero espetáculo, mas um retrato compreensível da realidade, que transforme formatos de captação, edição e divulgação de notícias, em que os repórteres não sejam meros prepostos da pauta compulsória e os apresentadores não pareçam ventríloquos de um moralismo farisaico de classe média (LIMA apud CAPPARELLI, 2000, p. 164).

O telejornalismo da emissora se propõe a ser, sobretudo, crítico. Contudo, a ideia de que há um público vazio que merece benevolamente ser preenchido com conteúdo e cidadania permanece inalterada. “Me Vê Pobre, Preso ou Morto, Já é Cultural”5 O telejornal da Cultura vai ao ar em rede aberta para São Paulo e para todas as regiões retransmissoras6 da TV Cultura de segunda a sábado, 30

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

das 21h às 21h40. Conforme o texto de apresentação do noticiário, a meta de todos os dias é realizar um “jornalismo sério e imparcial”: As notícias são apresentadas com seu respectivo contexto e explicadas pelos jornalistas da emissora. O novo formato do programa trouxe de volta a bancada de apresentadores. Outra opção da TV Cultura foi tirar os comentaristas das edições, tornando o programa mais ágil e informativo7.

O programa é estruturado em quatro blocos, sendo que o primeiro traz os destaques do jornal e suas possíveis repercussões (com entrevistas e comentários de especialistas) e o último faz um apanhado geral de notícias internacionais. O conteúdo do dia é apresentado tanto por meio de reportagens produzidas pela própria produção do telejornal como notícias cedidas por agências internacionais. Ao todo, são de 23 a 25 matérias com duração que varia de 30 segundos a três minutos. Política, economia, esportes, direito do consumidor, meio ambiente e educação são temas recorrentes e considerados de interesse do público. Com reportagens que trazem tanto “a descoberta do código genético do boi” como “a redução do IPI na produção de eletrodomésticos”, a proposta é atingir um público bastante heterogêneo. Para a realização deste trabalho, foram assistidas as edições correspondentes ao período de 13 a 25 de abril de 2009 8 e assinalados três aspectos: tema da reportagem em que o negro aparece; em que posição está ele, entre as imagens e a narrativa; e de que forma ele é retratado. À época uma das apresentadoras do noticiário era negra: Adriana Couto, a única afrodescendente do corpo de estrelas da emissora9. Foi percebida a presença de negros – seja enquanto sujeito participante ou componente de um ambiente ou uma imagem – em onze matérias, entre reportagens e notas cobertas. Isso sem contar as notícias veiculadas todos os dias (sem exceção) sobre as políticas estadunidenses, a guerra no Iraque, o fechamento da base de Guantánamo e os resquícios da crise econômica mundial, em que Barack Obama, presidente democrata e negro, é protagonista. Um aspecto geral dessas onze matérias é que negritude, principalmente quando o tema se refere ao Brasil, está direta ou indiretamente ligada à festividade, à pobreza ou ao crime. Do torcedor do Corinthians que está animado com o desempenho de seu time no início do campeoFRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

31

nato paulista10 aos piratas somalis que assaltam containeres ingleses em alto mar11, o cidadão negro tem seu lugar na sociedade. Lugar histórico e sutilmente à margem. Quando há aspectos positivos, como no caso das eleições na África do Sul, exibidas nos dias 20 e 22 de abril, em que o destaque é para o processo democrático de escolha de representantes, é possível perceber estereótipos que levam ao racismo disfarçado e legitimado. Por exemplo, sempre que negros são exibidos diante das urnas eleitorais ou em comícios realizados em praça pública, estão ao lado de brancos. Tanto a criminalização como a ingenuidade ou o exotismo acompanham os negros exibidos no Jornal da Cultura. No dia 15 de abril, com a chamada de abertura “Orquestra formada por meninos carentes de Heliópolis apresenta-se em festival na Alemanha”, uma reportagem de destaque no noticiário apresentou como ponto principal o fato de os jovens serem reconhecidos pelos europeus. Os componentes da música erudita, instrumentos de corda e orquestra sinfônica atuando, foram associados ao fato de aqueles jovens serem oriundos de uma das favelas mais conhecidas e violentas da Zona Leste paulistana. Contraste social resolvido com o tão conclamado “acesso à cultura e à educação”. Uma característica interessante também notada foi a ausência completa de negros com voz de autoridade. Não há um especialista negro. Não há pessoas afrodescendentes que expliquem o mundo sob o recorte de sua visão. Quando da inconfidência mineira, em 21 de abril, por exemplo, uma reportagem especial sobre Tiradentes fala da história do Brasil, mostra imagens das gerais de minas, relembra o ciclo do ouro no desenvolvimento da colônia, mas exclui os negros de sua narrativa: a tradutora de livros entrevistada é branca, o historiador entrevistado também. Além disso, analisam os fatos sem mencionar a população escrava da época. Nos 217 anos da morte do alferes, a demarcação da negritude por sua ausência (ou o “embranquecimento ideológico” da história do país) fica ainda mais emblemática quando é revelado que Tiradentes foi pego porque era um dos menos favorecidos economicamente entre os insatisfeitos com a coroa portuguesa. A essa altura, a repórter Carmem Amorim diz: “pagou com a vida porque era pobre”. Simultaneamente, a imagem que acompanha sua fala é uma pintura em que o “mártir”, já preso, muito magro, recebe o pão de uma mucama, vigiada por um representante da Igreja Católica. Na cena seguinte, outra pintura apresenta senhores bem vestidos, provavelmente fidalgos, sobre seus cavalos, puxados por um negro descalço. 32

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

“Essa Televisão de Sinhá que sempre Tivemos”12 Em 1995, quando da lembrança dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, o jornalista Eugênio Bucci (1997, p. 169, 170) escreveu em O Estado de São Paulo artigo de opinião sobre a representação do negro na TV. Como se tratava de uma semana de efemérides13, Bucci aproveitou para comentar sobre a “inclusão” étnica nas emissoras de sinal aberto. E criticou tanto a personagem negra que é negada porque pouco ou nada aparece como a que também é negada porque aparece de forma demarcada socialmente: como jogador de futebol, empregada doméstica, cantor de grupo de pagode, “ex-macumbeiro arrependido”, traficante, assaltante, “favelado” (desmerecendo e criminalizando, também, a pobreza e a miséria) etc. Bucci reclamou dos nossos quase cinco séculos de história e segregação, questionou a forma como a mídia e a sociedade brasileiras tentavam (e tentam) redimir a dívida histórica do país com os afrodescendentes (de forma estereotipada), mas mostrou-se entusiasmado com o que começava a ver. A TV Cultura, lembrou Bucci, fazia sua ode étnica exibindo o documentário O fio da memória, dirigido por Eduardo Coutinho, que aborda o racismo brasileiro em suas mais gritantes nuances. Tratava-se de um diálogo contextualizado que a emissora da Fundação Padre Anchieta travava com seu público. E isso poderia, na visão de Bucci (1997), render boa angústia e reflexão. “Vê-lo na TV, durante esta semana de Zumbi, foi experimentar, ao mesmo tempo, um luto e uma esperança” (BUCCI, 1997, p. 170). A emissora paulistana (que à época ainda não era transmitida em rede nacional, a não ser por emissão de sinais via satélite ou a cabo) se propôs a “comemorar” a negritude com a denúncia do cinema-verdade que traz a história à tona. Contudo, o que, na ocasião desse artigo, Bucci chamou de “racismo dissimulado” e “preconceito bravo”, 14 anos e meio depois, parece não ter desaparecido. Muito pelo contrário. Não bastou exibir (e assistir) O fio da memória para que a palavra “preconceito” (seguida de todas as suas práticas) fosse de vez abolida. Afinal, não existe preconceito. O que há, sim, são conceitos completamente formados e arraigados. Em tempos em que o único negro da vida real retratado cotidianamente pelo jornalismo brasileiro é o presidente democrata dos Estados Unidos, Barack Obama, a televisão que Bucci chamou de “sinhá”, atualizou-se, mas segue tão ambígua quanto o pensamento da elite histórica, social e econômica (bem como com seus agregados) que lhe dirige. Mesmo FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

33

tendo caráter público, a TV Cultura faz parte de um projeto hegemônico de organização, controle e consenso social. Por isso, por mais que tenha qualidade cultural e educativa (sim, sabemos que tem!), comporta-se indiferentemente à realidade brasileira, classificando, escondendo e rotulando com imagens; tomando postura “branca, sudestina, exógena e indiferente”, como bem definiu Gabriel Priolli14. THE "IDEOLOGY OF WHITENING" ON THE NEWS CULTURE Abstract: This article begins a discussion on the representation of blacks in Brazilian television, from the peculiarities of a station that 40 years ago bears the emblem of "public, educational and cultural": TV Cultura. For this, notice how the proposal of the hegemonic "whitinizing" of society is being consolidated in the public space, through the reproduction of stereotypes. Keywords: Culture. Education. Racism. TV. Notas 1 Usar a primeira pessoa (principalmente do plural) é uma opção a partir deste subtítulo, uma vez que pode ser inviável falar de identidade, cultura e cidadania apenas do ponto de vista distante e frio de uma terceira pessoa. 2 Como Nina Rodrigues, médico que estudava a condição de negro dos africanos e afrodescendentes como patologia e definiu pela primeira vez caboclos, mamelucos e cafuzos como o resultado da mistura entre as raças; e Euclides da Cunha, que em Os Sertões separa o homem da natureza e considera o meio como um dos constitutivos da identidade de um povo. 3 A militância rumo aos sentidos do popular, nos anos 60, são orientadas pelo pensamento do professor e advogado Paulo Freire, que desenvolve o conceito de leitura de mundo baseado na proposta de transitoriedade crítica das consciências. Assim, a cultura existe à medida que os homens se reconhecem nela, em seu ambiente e em seu contexto histórico. O que outros pensadores retiram da convivência entre os homens, Paulo Freire devolve. Freire (2000). 4 Essas estimativas, bem como um histórico dos censos demográficos brasileiros, são apresentadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como parte dos indicadores sociais mínimos da nação. Disponível em: 34

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

Acesso em: 04 nov. 2009. 5 Verso retirado da música popular brasileira Negro Drama, do grupo de rap da Zona Leste paulistana Racionais MCs. A canção faz parte do álbum Nada como um dia após o outro, encarte nº 1 – Chora Agora, lançado pela gravadora Cosa Nostra em 2001. Racionais MCs é um dos grupos do fim dos anos 1980 e começo da década de 1990 que traz em suas letras um protesto contra a desigualdade social no Brasil. 6 Em Goiás, o sinal da TV Cultura é retransmitido pelo canal 13 da rede aberta, concessão dirigida à TV Brasil Central (TBC). A TBC Cultura é gerenciada pela Agência Goiana de Comunicação (Agecom), órgão ligado ao primeiro escalão do governo estadual, e tem autorização para veicular a programação nacional da emissora paulistana desde 1996. 7 Retirado de: . Aesso em: 12 dez. 2009. 8 Os jornais foram assistidos, mas não foram gravados. Para a confecção desse trabalho (e a retomada dos dados) serviu como auxílio o acervo que o Jornal da Cultura disponibiliza na internet, por meio do link: . Acesso em: 12 dez. 2009. É preciso fazer, contudo, uma ressalva: as matérias disposta na rede correspondem apenas aos principais destaques do jornal. 9 Atualmente, Adriana Couto comanda a agenda cultural eletrônica Metrópole, que vai ao ar logo depois do Jornal da Cultura e traz as novidades do circuito artístico dos grandes centros brasileiros (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Salvador). 10 Reportagem do dia 13 de abril, em que todos os entrevistados corinthianos são negros ou “mestiços”. 11 Nota coberta apresentada pelo resumo de notícias internacionais no último bloco, exibida no dia 15 de abril. 12 Expressão retirada de O racismo (e o avesso do racismo) na TV, artigo escrito por Eugênio Bucci e publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 25 de novembro de 1995, quando o país lembrava (ou será que comemorava?) os 300 anos da morte do líder dos quilombos Zumbi dos Palmares (BUCCI, 1997). 13 A partir de 20 de novembro daquele ano houve muita homenagem a Zumbi, FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

35

o “novo” herói nacional, reconhecido pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso durante visita a Alagoas. 14 Expressão retirada do texto Antenas da Brasilidade, escrito por Gabriel Priolli e publicado por Eugênio Bucci em 2000. À época, ele acusou as emissoras de submeterem a estereótipos não apenas negros, mas também pobres (que podem ter outros fenótipos, vale ressaltar), nortistas, nordestinos, mulheres e homossexuais. Curiosamente o jornalista hoje é coordenador de Expansão e Rede da TV Cultura de São Paulo.

Referências BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Boitempo Editorial, 1997. BUCCI, Eugênio. A TV aos 50 – criticando a televisão brasileira no seu cinquentenário. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. COUTINHO, Eduardo. O fio da memória. (115 min.) Rio de Janeiro: Funarj, 1991 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. Disponível em: . Acesso: 09 de novembro de 2009. LEAL FILHO, Laurindo Lalo. Atrás das câmeras – relações entre cultura, estado e televisão. São Paulo: Summus, 1988. LIMA, Venício A.; CAPPARELLI, Sérgio. Comunicação e televisão: desafios da pós-globalização. São Paulo: Hacker, 2004. MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira. Petrópolis: Vozes, 2002. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. TELEJORNAL da Cultura – TV Brasil Central – Canal 13.

36

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

TELEJORNAL da Cultura on line. Disponível em: . * Este artigo é parte de um trabalho realizado no segundo semestre de 2009 para a disciplina Seminário de Pesquisa em Mídia e Cidadania, atividade regular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás (PPGCOM/UFG).

Recebido em: 21.04.2010.



Aprovado em: 04.05.2010.

** Mestranda em Comunicação pela UFG. Especialista em Jornalismo Literário pela Faculdade Integrada Metropolitana de Campinas (Metrocamp). Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela UFG. Integrante do Núcleo de Criação de Conteúdos Audiovisuais (Nucca) da TV UFG. Orientadora: Profa. Dra. Cleide Aparecida Carvalho Rodrigues. E-mail: patriciadaveiga@ gmail.com

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 20, n. 1/2, p. 25-37, jan./fev. 2010.

37

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.