A idolatria epistemológica: uma crítica à história dos grandes debates

July 3, 2017 | Autor: M. De Paula Rocha | Categoria: Critical Theory, Metatheory, Theory of International Relations
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NOTA

Realizado em três meses, este trabalho de conclusão de curso tem insuficiências. Em especial no quarto capítulo, devido à pesquisa histórica rasa. Também há problemas no terceiro capítulo, em afirmações categóricas em solo incerto e frases obscuras. Se fosse reescrevê-lo, mudaria parte significativa do texto. Entretanto, continuo sustentando o argumento principal, desenvolvido nos capítulos 1, 2 e 3; além disto, acredito haver debate interessante na introdução do trabalho. Como ainda não realizei versão sintética e harmônica do argumento, deixo ele aqui para quem se interessar.

9 de Setembro, 2015.

*O trabalho original foi defendido em Fevereiro de 2015.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE ECONOMIA

MATEUS DE PAULA NARCISO ROCHA

A IDOLATRIA EPISTEMOLÓGICA: Uma Crítica à “História dos Grandes Debates”

UBERLÂNDIA, 2015

MATEUS DE PAULA NARCISO ROCHA

A IDOLATRIA EPISTEMOLÓGICA: Uma Crítica à “História dos Grandes Debates”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para a conclusão da graduação em Relações Internacionais. Orientadora: Professora Mestre Lara Martim Rodrigues Selis.

(Exemplar revisado) UBERLÂNDIA 2015

Para Mamãe, Papai, Ná e Ju.

AGRADECIMENTOS À professora Lara! Pelas aulas e sapiência, e o inestimável apoio, incentivo e paciência na orientação! Sem a sua ajuda o trabalho não seria metade do que é, e nem terminaria! rs rs. Valeu, Lara! Aos professores Filipe e Wolf! Pelas aulas e orientações, e também por aceitarem participar da banca! Aos professores Pedro e Marisa! Também pelas aulas, luta e ‘brilhanteza’! Admiro vocês! À minha família, Andréa, Fábio, Juliana, Natália! À Mariani, minha companheira! E à minha família uberlandense Mimi, Ciça, Adriany, Sampaio! E à dona Tânia e dona Cecília! Aos amigos Joyce e Gera! Pelo carinho e acolhida nas terras uberlandenses! À galera do DARI, do Levante, do MPRA e do AMERI! Pelos ensinamentos que não cabem em palavras ou em salas de aula. Ao vovô Ari e vovô Ulysses, e à vovó Bigas e vovó Luiza! Aos tios Fá, Ronan, Anderson! Às tias Alcione, Amanda, Noriko, Ana Paula! E um alô pros primos e primas, e também pros tios sumidos! Aos amigos da RI! Ana Lu, Júlia, Lagares, Marinara, Ana Carol, Anderson, Carlos, Mariana(s), Thays, Thiago, Elton, Alanna, Luana, Rodrigo, Davi, Poli, Waldemar, Ageu, Sargs, Daniel, Gabriel, Flavi, Nath, Arthur, Amanda, Daniel, Manoel, Luciano... Aos amigos da Economia! Iago, Iana, Zoboo, Pilegi, Victor, Maycon, Alt, Luiz, Frota, Isa, Ludmila... Aos amigos de outros cursos e de outras terras! Olívio, Clara, Márcia, Jovanna, Natane, Pato, Paulo Fernando, Ana Lídia, Tutu, Vitão, Ju, Flaves, Núbia, Brandão, Pruds, Alan, Sorriso, Rodolfo, Kádio, Binho, Sena, Piqui, Nilo, Clério, Wellington, Soliz, Morcego, Rodolffo, Alice, Sinval, Geovani Giovanna, Sofia, Mariana, Rafilds, Nathalia, Glomer, Gabriel, Alê... Aos professores João Medeiros e Mário Duayer que atenciosamente responderam meus emails. Aos professores e professoras do curso! E aos professores do Colégio Pirapora! Aos funcionários da UFU e do Parque do Sabiá! Por fim, ao povo latino-americano! Que paga a banda e um dia há de querer música!

E faltam adjetivos e nomes... Enfim, muito obrigado a todo mundo! Levo vocês no coração.

A coruja de Minerva só alça vôo ao cair da tarde.1 Georg W. F. Hegel

Não convém fazer escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. João Guimarães Rosa

De fato, o pensamento é essencialmente a negação do que está aí imediatamente.2 Georg W. F. Hegel

Um homem traz dentro de si toda uma época, como a onda traz dentro de si todo o mar..3 Jean Paul Sartre

1

“die Eule der Minerva beginnt erst mit der einbrechenden Dämmerung ihren Flug”. “in der Tat ist das Denken wesentlich die Negation eines unmittelbar Vorhandenen”. 3 “a man carries a whole epoch within him, just as a wave carries the whole of the sea...” 2

RESUMO

Este trabalho pretende apresentar e criticar ontologicamente a “história dos grandes debates”, a principal forma de contar a história da disciplina de Relações Internacionais. Argumentamos que esta narrativa é mais retórica do que histórica, pois incorre em uma “idolatria epistemológica”. Observando a produção e circulação de teorias a partir da lógica mercantil e do trabalho imaterial, propomos uma forma de pesquisa imanente para a história da disciplina. Por fim, realizamos um pequeno esboço de como seria este tipo de história, relacionando prática e pensamento.

Palavras-Chave: Metateoria; Crítica Ontológica; História dos Grandes Debates; Teoria Internacional; Teoria Crítica; Idolatria Epistemológica; Empirismo embutido.

ABSTRACT

This work aims to present and make an ontological critique of "great debates history", the main form of tell the history of international relations discipline. We argue this narrative is more rhetoric than historic, because incurs an “epistemological idolatry”. Seeing the production and circulation of theory by market logic and immaterial work, we propose an immanent research form for discipline history. At end, we make a little sketched of how will be this kind of history, relating practice and thought.

Key-Words: Metatheory; Ontological Critique; Great Debates History; International Theory; Critical Theory; Epistemological Idolatry; Embedded Empiricism.

RESUMEN

Este trabajo pretende presentar y criticar ontológicamente la "historia de los grandes debates", la principal forma de contar la historia de la disciplina de relaciones internacionales. Nosotros sostenemos que esta narrativa es más retórica que histórica, porque incurre en una "idolatría epistemológica”. Observando la producción y circulación de las teorías desde la lógica del mercado y el trabajo inmaterial, proponemos una forma de investigación inmanente a la historia de la disciplina. Por último, hacemos un pequeño bosquejo de cómo sería este tipo de historia, que relaciona la práctica y el pensamiento.

Palabras clave: Metateoría; Crítica ontológica; Historia de los Grandes Debates; Teoría Internacional; Teoría Crítica; Idolatría epistemológica; Empirismo incrustado.

SUMÁRIO

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS ..................................................................................... 10

2. OS “GRANDES DEBATES” ..................................................................................... 32 2.1. A “História dos Grandes Debates” .............................................................................32 2.2. Premissas .................................................................................................................. 36

3. A IDOLATRIA EPISTEMOLÓGICA ...................................................................... 38 3.1. Uma Crítica Ontológica .............................................................................................39 3.2. História? ...................................................................................................................45

4. PROPOSTA & ESBOÇO .......................................................................................... 47 4.1. Uma Proposta Imanente ............................................................................................47 4.2. Do Outono à Primavera .............................................................................................51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 58

6. REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 62

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS [...] A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso Fernando Pessoa (2008, p. 114)

A temática das Relações Internacionais 4 ganhou projeção nas últimas décadas, assim estudantes e interessados na área aumentaram a procura por material deste campo. Em geral, cedo ou tarde, terão contato com a “História dos Grandes Debates” – o modo predominante de apresentar a história da disciplina. Esta narrativa reverbera, tanto fora, quanto dentro da academia. Poderíamos imaginar que isto é um sinal de vigor explicativo e apreço pela realidade histórica. Entretanto, revisões historiográficas recentes5 revelaram equívocos empíricos desta história. Ainda assim, ela continua a ser a principal vereda, pela qual é apresentado o pensamento teórico da área. Conforme abordaremos no trabalho, a força desta narrativa não é casual. Ademais, questionar consensos é indispensável, tanto para o vigor da área, quanto para o debate público consistente. Em vista disto, o trabalho foi pensado. Nossa proposta é realizar uma avaliação crítica das premissas filosóficas desta história. Pois, certamente uma narrativa equivocada empobrece a compreensão da realidade e da teoria. Nosso trabalho tem um viés metateórico, por acreditarmos que este tipo de reflexão não só resolve as falsas aporias teóricas, como ultrapassa as visões superficiais de mundo, aumentando o potencial de compreender a realidade e, assim, transformá-la. Iniciamos com os princípios da investigação e, depois, apresentando o que é esta história. Posteriormente, oferecemos a nossa interpretação crítica sobre ela. Ao final, 4

Conforme convencionado, doravante adotamos as iniciais maiúsculas “Relações Internacionais” para referirmos à ciência e “relações internacionais” para referirmos ao objeto. 5 Comentadas no terceiro capítulo.

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realizamos um esboço de uma história da disciplina mais concreta, isto é, vinculada a realidade. Pois, não é suficiente desconstruir o equivocado. Como alertou Weber, é preferível qualquer explicação a explicação nenhuma (SOUZA, 2009, p. 67). Assim, é necessário indicar onde está o correto, ou o mais próximo disto. Esta é a nossa pretensão, deixamos ao leitor o juízo sobre o seu cumprimento. Nas notas seguintes apresentamos as questões de fundo do trabalho. Pois, tal qual todo ato, o trabalho científico se ergue sobre um solo de pressupostos. Entretanto, em geral estes pressupostos ficam ocultos. Em vista da crítica realizada, é fundamental trazê-los à superfície.

Princípios O que é uma estátua? a estátua é a superfície da pedra, a estátua é só a superfície da pedra, é o resultado daquilo que foi retirado da pedra [...]. Saramago (1998)

Não é trivialidade começar pelos princípios, especialmente se estes revelam o subsolo filosófico do trabalho. Nesta nota apresentamos e defendemos três princípios. Estes se referem, respectivamente, a considerações ontológicas, epistemológicas e axiológicas. As questões debatidas são: (i) O que é a realidade social? (ii) Como conhecer? Por que investigar? (iii) Há neutralidade na pesquisa? Toda pergunta já guia e limita suas possíveis respostas. Muitas vezes o embaraço na resposta se dá por uma pergunta mal formulada, ou mesmo por uma falsa questão. Estas perguntas nos permitem apresentar considerações indispensáveis ao trabalho, entretanto são questões de caráter inesgotável. Portanto, está além de nossa capacidade colocar ponto final ao debate, mas não podemos deixar de apresentar a nossa posição. Em primeiro lugar uma precisão. A ontologia, debatida nesta questão, é o estudo do ser, da essência. Já a epistemologia, ou gnosiologia, questiona: “como conhecer?”. Assim, esta se ocupa da possibilidade dos sujeitos alcançarem a verdade, sendo realizada, segundo 11

os termos platônicos, para sairmos da opinião (doxa) em busca do conhecimento (episteme). Já aquela não se ocupa da verdade para o sujeito, trata da verdade em si, independente do sujeito. Uma posição ontológica, diz respeito à realidade em si, e trabalha com as categorias de “ser” (i.e. substância) e “ente” (i.e. existente). Uma posição epistemológica, diz respeito à realidade para o sujeito, e trabalha com as categorias de sujeito (posto sob) e objeto (posto adiante), e suas relações. Dito isto, a pergunta da ontologia é: “o que é?”. Esta é a principal questão da filosofia, sendo caracterizada por Aristóteles (2002) como a “filosofia primeira” (philosophia prima). Ao longo dos séculos, diversos pensadores apresentaram e defenderam ontologias radicalmente distintas. A indagação sobre “a essência da realidade” atravessa toda a história do pensamento ocidental. Basicamente são duas as ontologias sobre a realidade: Realismo e Antirrealismo. Aquela defende a tese de que há uma realidade independente de qualquer observador ou observação (NIINILUOTO, 2002). Esta defende a tese oposta 6 . Em outros termos, o primeiro caso, onde a substância é o ser, é chamado de realismo ontológico. O segundo caso, onde a substância é o sujeito cognoscente, é chamado de antirrealismo (idealismo) ontológico. A divisão de tipo ideal (idealtypen) entre realismo e antirrealismo traduz, em certa medida, o antigo debate entre o materialismo e o idealismo 7. Assim, podemos considerar Marx e Descartes como grandes expoentes destas ontologias antagônicas. Karl Marx (2007b) afirmou 8: “Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, seu ser social é que determina sua consciência” 9 . Além disto, contestou ontologicamente a visão hegeliana da política ao afirmar que não é o Estado que funda a sociedade, mas o contrário. Enquanto, René Descartes (2013, p. 27) expressando seu

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O idealismo subjetivo, em geral, produz o antirrealismo, especialmente quando se torna solipsismo. Pois, subsumindo a ontologia à epistemologia, coloca o conhecer acima do ser, negando a ontologia. 7 Este debate, muitas vezes taxado como antiquado, é indispensável. Por exemplo, entre a metodologia dedutivista e indutiva está ancorada, respectivamente, preceitos idealistas e materialistas. Escolher a metodologia é escolher um corte ontológico e epistemológico particular. Assim, a metodologia indutivista têm um caráter de intentio recta, oposta à dedutivista com seu caráter de intentio obliqua. 8 Discordamos e evitamos a identificação entre “homem” e “humanidade”, entretanto diversos textos citados utilizam esta. Assim, ao menos deixamos esta ressalva. 9 A palavra utilizada é “determina” (bestimmt) e não “pré-determina” (Vorherbestimmt). Um pensador dialético não poderia utilizar pré-determina (implicando necessidade invariável), pois entraria em contradição com sua perspectiva. No pensamento dialético não cabe relação mecânica.

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idealismo subjetivo condiciona o ser ao conhecer: “Penso, logo sou” (Cogito ergo sum) 10. Outro exemplo de idealismo subjetivo é Kant, que foi mais longe e, por meio de sua epistemologia, “impossibilitou” a ontologia (CHASIN, 1988, p. 30). A posição marxiana é devedora do materialismo de Feuerbach (2008, p. 16), que afirma: “A verdadeira relação entre pensamento e ser é apenas esta: o ser é o sujeito, o pensamento o predicado. O pensamento provém do ser, mas não o ser do pensamento”. Assim, seguindo o princípio de Petrônio, “primeiro no mundo foi o medo que criou os deuses” (primus in orbe deos fecit timor) 11, Feuerbach (2007, p. 45) dissolve a teologia na antropologia: “A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das limitações do homem individual”. Esta bifurcação ontológica - entre o realismo e o antirrealismo - não pode ser ignorada. Assim, mesmo reconhecendo os limites gnosiológicos de nossa condição humana, acreditamos que só é concebível o “pensamento” se houver o “Ser”, não o contrário. Se isto é correto, a prioridade investigativa deve estar no Ser, na ontologia, pois este é o elemento imprescindível e intransitivo em relação ao conhecer, a epistemologia. De acordo com Marias (1947, p. 333), o ato do conhecimento sempre se assenta na crença de que há um ser. Do mesmo modo, todo ato humano se assenta na mesma crença, ou seja, no pressuposto da existência da realidade. A crença de que a realidade é anterior a existência humana é essencial ao realismo ontológico. Portanto, dependente e determinada por esta existência, sem ser reflexo perfeito, está o pensamento. A posição de subordinação da epistemologia à ontologia12, do pensamento ao ser, do ideal ao real, é a que nos parece a mais correta. Pois, a causa do afogamento não é a ideia da gravidade: Certa vez, um nobre homem, imaginou que os seres humanos se afogavam na água apenas por que estavam possuídos pela idéia de gravidade. Se afastassem essa representação da cabeça, por exemplo, esclarecendo-a como uma representação supersticiosa, religiosa, eles estariam livres de todo e qualquer perigo de afogamento. Durante toda a sua vida combateu a ilusão da gravidade, 10

Conforme Dussel (1993), a perspectiva de Descartes, “ego cogitans” (penso, logo existo), criadora de um paradigma epistêmico, foi precedida pelo “ego conquistus” (conquisto, logo existo) da invasão da América em 1492 (GROSFOGUEL, 2008, p. 120). Portanto, a conquista epistêmica não se dá por si só, necessita ser mediada por uma conquista ontológica. 11 Tradução disponível em . Acesso em 31 de janeiro de 2015. 12 Essa subordinação não é plena, pois as idéias também constroem o real. Entretanto isso só é possível, por exemplo, pela prévia realização das demandas físico-biológicas de seres animais.

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cujas danosas conseqüências todas as estatísticas lhe forneciam novas e numerosas provas. Aquele nobre homem era do tipo dos novos filósofos revolucionários alemães. (MARX; ENGELS, 2007, p. 523)

Assim, a ontologia é fundamental. Utilizando metaforicamente a imagem de Saramago, é possível pensar cada “teoria” como uma estátua distinta. Mas, para além da superfície da estátua, com suas singularidades, toda estátua é feita da pedra. A pedra é a ontologia. Tal qual o fazer da estátua é tirar pedra da pedra, o fazer teórico é o talhar da ontologia. Como a pedra para a estátua, a ontologia é inescapável à teoria, ao pensamento, à ação e, logo, à vida. Deste modo, em conformidade com a historiografia, observamos que primeiro há o ente (i.e. o objeto), só depois a teoria13. Esta última surge a posteriori (ex post) visando interpretar e desvendar o fenômeno que surgiu, ou está surgindo, ao teatro da vida. Conforme Lukács (1978), a consciência é um desenvolvimento tardio do ser material. Evita-se, assim, a “falácia epistêmica” 14, as especulações inócuas e a inversão da realidade pelo pensamento. De acordo com Vandenberg (2010, p. 47): O fato de que a realidade existe independentemente das observações e descrições que possuímos acerca dela não significa, entretanto, que possamos conhecer a realidade independentemente de tais observações e (re)descrições. A realidade só pode ser conhecida graças à intervenção de categorias, teorias e quadros conceituais, mas – pace Kuhn, Foucault e Rorty – eles não determinam a estrutura do mundo.

Ou seja, a realidade só pode ser conhecida por meio de nossas observações, mas estas, por si mesmas (per se), não modificam o ser. A rocha não deixa de ser rocha se começo a imaginar que sua consistência não é sólida, mas liquida. Ela é indiferente ao nosso pensamento. Segundo Edgar Morin (2011, p. 28): “Devemos reconhecer como dignas de fé apenas as ideias que comportem a ideia de que o real resiste a ideia. Esta é uma tarefa indispensável na luta contra a ilusão”. Nossa posição, não idealista, indica a ontologia como a instância principal da atividade investigativa. Em vista disto, não nos associamos ao idealismo, especialmente o

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Está presente no próprio étimo de “teoria” esta concepção. Teoria vem do grego (Theoria) e designa “observação”, “contemplação”. O sujeito que contempla precisa contemplar algo, este algo precisa existir previamente. Não por acaso a palavra teatro (Theátron) compartilha a mesma raiz etimológica (Thea). Ou seja, é preciso que a realidade surja, como os atores surgem ao palco, para o espectador saboreá-la. Além disto, sabor (sapore) é da mesma família latina de saber (sapere). Indicando, a proximidade do saber à realidade. Cf: . 14 A falácia epistêmica consiste em reduzir a ontologia à epistemologia. Sendo esta falácia, portanto, uma expressão da falácia antropológica.

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subjetivo. Posto a subsunção, realizada por este, da ontologia à epistemologia, mistificando a realidade concreta. Ademais, como indica Booth (2008, p. 258), é preciso parar de fugir do real. Além disto, as posturas tipicamente idealistas – negação da existência da realidade objetiva, ou tornar igualmente verdadeiras teses antagônicas sobre o mundo social - nos parecem equivocadas. Deste modo, não compartilhamos do relativismo ontológico 15 (antirrealismo) de Nietzsche (1978, p. 304): “Contra o positivismo, que atesta ao fenômeno, ‘só existem fatos’, eu objetaria: não, justamente não há fatos, somente interpretações.” 16. Portanto, a causalidade no estudo do real deve ser do real para o espiritual, não o contrário. Entretanto, isto não implica uma carência de força da consciência. Pois, como observa Lukács (1978, p. 3): “a consciência tem um real poder no plano do ser [social]”. Ou seja, no terreno social há uma retroalimentação entre o pensamento e a prática humana. Deste modo, indicamos o concreto, a realidade objetiva, defendendo a sua prioridade sobre a realidade do espírito (i.e. a consciência, a ideia, a ciência). Assim, defendemos uma intentio recta – o olhar direcionado ao objeto - em preferência à intentio obliqua – o olhar direcionado à reflexão. Entretanto, o horizonte do realismo ontológico é apenas uma consideração primeira e genérica. É necessário, em vista da especificidade da realidade social, “talhar” o tipo de realismo ontológico adequado. Uma consideração indispensável é sobre o movimento, o tempo. É indiscutível que a realidade social é um produto histórico. Mas a história e a causalidade são significantes para a realidade contemporânea? Esta questão desdobra-se em uma nova bifurcação, com duas perspectivas distintas: uma sincrônica, outra diacrônica. Precisamente neste ponto Feuerbach e Marx se separam. 15

O relativismo ontológico é distinto do relativismo epistêmico. De acordo com Duayer (2012, p. 21): “A relatividade epistêmica refere-se unicamente ao fato, reconhecido por todas as partes envolvidas na polêmica, de que nossos conhecimentos são relativos, porque são sociais, históricos etc. O problema é que as correntes teóricas hoje predominantes deduzem do relativismo epistemológico o relativismo ontológico. Em outros termos, do caráter transitório e relativo de nossos conhecimentos deduzem que eles não podem ser objetivos. Do relativismo epistemológico, portanto, deduzem o antirrealismo, ou a paridade de todas as ontologias. De bônus obtêm, como corolário, o relativismo julgamental, vale dizer, a concepção de acordo com a qual ideias, teorias etc. opostas não podem ser objetivamente comparadas, porque, da mesma forma que a beleza está nos olhos de quem ama, a verdade está na ótica de quem a afirma.” 16 É possível apontar, como seguidores destas abordagens, à agenda pós-moderna/pós-estruturalista. Cf: (VIOTTI, 1994)

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O primeiro próximo à contemplação filosófica (sincronia), o segundo próximo a dialética (diacronia) e a filosofia da práxis. 17 Assim, no horizonte do realismo ontológico há duas ontologias: uma empírica, outra dialética18. Aquela toma os entes como fixos (i.e. ignora o movimento) e indica uma apreensão atemporal, imediata, pela lógica formal. Esta toma os entes enquanto processos (i.e. torna relevante o movimento) e indica uma apreensão mediata, pela lógica dialética. A “ontologia empírica” 19 tem raízes no sensualismo de Hume. Entretanto, é Comte (1978, p. 19) o seu grande divulgador “involuntário”

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: “A visão positiva dos fatos

abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidos como relações constantes entre fenômenos observáveis.” 21 A “ontologia dialética” tem raízes no idealismo objetivo, precisamente na lógica dialética de Hegel. Entretanto, retirado seu “invólucro místico” (MARX, 2013, p. 129) e especulativo (i.e. tornada imanente), esta abordagem é adequada ao realismo. Esta perspectiva afirma que as sensações imediatas são superficiais sendo necessário ultrapassálas, indo ao encontro dos processos contraditórios que geram os fenômenos sociais (i.e. ela visa descobrir as causas que Comte condenou como teologia/metafísica). A realidade social não é a priori, estática ou imutável, mas, precisamente, o oposto. Assim, uma ontologia empírica - restrita à sincronia, ao momentâneo - é equivocada, pois isola a parte do todo. Com uma visão superficial e fragmentada da realidade, o horizonte de compreensão desta ontologia é limitado, assim como o potencial das teorias associadas a ela.

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Conforme Paulani (2005, p. 4): “Marx deixa clara a razão pela qual aquele defeito do materialismo então existente [de Feuerbach] o incomodava tanto: porque levava à conclusão de que bastava mudar as idéias para que o mundo se modificasse”. 18 Doravante, utilizaremos “ontologia dialética”, para fazer referência à ontologia realista dialética, e “ontologia empírica”, para fazer referência à ontologia realista empírica. 19 Que pode ser associada tanto ao positivismo, quanto ao estruturalismo. 20 Afinal, Comte nega que sua abordagem tenha uma ontologia e, também, invalida qualquer debate ontológico/metafísico. Assim, sua ontologia pode ser definida de modo dual. Por um lado nominal ela é uma “antiontologia” (por negar a validade do debate ontológico). Mas, pelo lado efetivo ela é uma ontologia empírica. A antiontologia é a capa que esconde as fragilidades intrínsecas à ontologia empírica, uma vez que nesta ontologia “o mundo está colapsado nas sensações dos sujeitos" (DUAYER, 2015, p.19). 21 Percebe-se - ao desprezar as causas, a história, e fixar o posto - o caráter conservador/reificador da perspectiva comtiana.

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Já a dialética, que defendemos, observa o momento enquanto parte do todo, identificando que a compreensão efetiva não pode se restringir ao empírico (parte). Conforme Kosik (1976, p. 13): “A dialética trata da ‘coisa em si’. Mas a ‘coisa em si’ não se manifesta imediatamente ao homem.”. Ou seja, o terreno das sensações, o empírico, não possibilita compreender a “essência”. Esta só se mostraria, em alguma medida, no processo. Ademais, se a ontologia trata do que é, e tudo aquilo que é tem existência temporal e espacial, a dimensão temporal não é descartável, ou marginal22. Aliás, a marca que diferencia o pensamento crítico do pensamento acrítico é justamente a busca daquele de ir além do que está aos sentidos. Conforme sugere Hegel, pensar é devorar o imediato (SALGADO, 1996, p. 60). Assim, não é equivocado rotular a “ontologia dialética” enquanto crítica23. Considerando a realidade social, Hermínio Martins (2003, p. 15) observa: “o mundo social, o mundo sócio-cultural, é ontologicamente dependente de nós, constituído pelas nossas ações, crenças e conceitos (‘representações coletivas’), embora o encontremos sempre já pré-constituído”. Aqui, é imperativo retomar a frase de Lukács (1978, p. 3): “a consciência tem um real poder no plano do ser [social]”. Esta consideração, aparentemente simples, separa a ontologia dialética do positivismo e do materialismo mecânico. Pois, desconsiderar a subjetividade e a historicidade é desconsiderar a possibilidade dos seres humanos fazerem a sua própria história. Como escreve Marx (2009): “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Portanto, a dialética é o instrumental capaz de descortinar a realidade e oferecer explicações qualitativas sobre esta, pois busca ser a “lógica do real” - em contraposição a “lógica do pensamento”, que seria a lógica formal.

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Conforme indicam Hobson e Lawson (2008), a abordagem positivista nas Relações Internacionais, especialmente o neorrealismo, não é ahistórica como muitos alegam. A história é, na verdade, vista como laboratório de testes para as teorias, o que não deixa de ser equivocado. 23 Há diversos tipos de realismo crítico. Por exemplo, um que se desdobra aceitando a crítica kantiana (Bhaskar), outro que parte da crítica hegeliana à Kant (Marx). Mas, as diversas tonalidades se unem na rejeição ao “realismo ingênuo”. O realismo ingênuo é a concepção epistemológica de que as “coisas externas existem exatamente como as conhecemos” (PESSOA JR, 2011). A despeito da proximidade entre Bhaskar (realismo transcendental crítico) e Marx (realismo/materialismo dialético) nos associamos ao último. Cf: (PRADO, 2009).

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Tratando da dialética hegeliana, Julian Marias (2004, p. 352) explica: “A tese leva necessariamente à antítese, e vice-versa, e este movimento do ser conduz inexoravelmente à síntese, na qual se encontram conservadas e superadas [...] a tese e a antítese. E cada estágio encontra sua verdade no seguinte. É essa a índole do processo dialético”. Assim, a contradição é essencial ao movimento. Caso inexistisse a contradição, o conflito, o mundo social não passaria por mudanças. A ontologia da lógica formal, por suas premissas - como o princípio da não contradição - imagina um mundo não contraditório que, efetivamente, deve ancorar a comunicação e o pensamento, mas que na prática é ilusório. Assim, Marx (2007a) indica: “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. Ou seja, algo só surge por uma dinâmica processual e contraditória, que está escondido-mostrada em sua aparência. Sendo a dialética a investigação da essência, que necessitou este acontecimento. Por exemplo, a constituição de um país é a síntese de uma luta política cristalizada na forma da lei, uma crise sistêmica capitalista é a síntese de suas contradições internas elevadas ao limite, etc. Se a lógica formal não apreende o conflito, e o realismo empírico desconsidera as causas e a processualidade como “irrelevância metafísica”, ambos são insuficientes na compreensão das questões sócio-históricas. Assim, é a dialética, a “lógica do concreto” segundo Lefebvre e Kosik, aquela que, apreendendo a contradição presente em toda síntese momentânea, busca descortinar o real em seu movimento. Não sendo lógica humana para o humano (lógica formal), ela não é mero instrumento do pensar. Sendo efetivamente lógica do concreto é “lógica do ser”, portanto, ontologia. É imprescindível que a questão ontológica fique clara. Assim, resumimos, esquematicamente, o percurso. Dentro da ontologia a primeira questão é: Há uma realidade independente da consciência humana? Esta questão é respondida positivamente pelos “realistas”, e negativamente, pelos “antirrealistas” - estes, a partir desta resposta, defendem um relativismo ontológico. Dentro do horizonte dos realistas, é imperativo uma nova questão: A realidade social se apresenta como é? Nesta questão, duas posições surgem. Uma que responde positivamente, o “realismo empírico”, outra que responde negativamente, o “realismo dialético”. Assim, o traço definidor é que este último não se 18

restringe ao nível empírico e busca, na processualidade sócio-histórica, as essências dos fenômenos verificados superficialmente pelos sentidos 24. Em vista desta sistematização, observamos a possibilidade de um conhecimento objetivo, pois existe um mundo objetivo. Assim, na esfera epistemológica, poderíamos traduzir aquelas questões em outros termos: É possível conhecer objetivamente? Desta questão surgem duas respostas, uma positiva, “objetiva” (expressando o realismo ontológico), outra negativa, “subjetiva” (expressando o antirrealismo ontológico). Dentro da possibilidade de conhecimento objetivo, outra pergunta é importante: Como conhecer? Desta questão duas respostas se seguem, uma que indica o conhecimento direto e imediato das coisas, rotulado de “realismo ingênuo”. Outra que indica o conhecimento mediato pelo processo sócio-histórico, rotulado de “realismo crítico”. Por fim, em vista do caráter dependente do pensamento para o ser, uma ontologia realista é adequada, caso contrário a investigação não é investigação, mas especulação. E, em vista do caráter da realidade social, de sua processualidade e conflito, esta só pode ser corretamente apreendida através da dialética. Defendemos, assim, uma ontologia dialética. (i) Portanto, o primeiro princípio do trabalho é: A realidade social é um todo orgânico e dinâmico, formada por uma retroalimentação/dialética entre realidade e pensamento. Entretanto, o pensamento (epistemologia) é dependente da realidade/ser (ontologia), sendo este o elemento prioritário e intransitivo. Ademais, a ontologia não impossibilita um conhecimento objetivo, pois efetivamente existe um mundo objetivo. A epistemologia, questão debatida agora, não é somente um desdobramento da ontologia, ela tem suas dinâmicas particulares. A ontologia é condição necessária, mas não suficiente, para compreendê-la. Retomando a imagem de Saramago, a pedra diz algumas coisas sobre a estátua, mas só observando suas formas singulares que compreendemos como a estátua de fato é.

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Destaque-se que estas respostas, podem ser aproximadas à divisão habermasiana n”O discurso filosófico da modernidade”. Onde Habermas apresenta três perspectivas para a modernidade: Jovens Hegelianos, Velhos Hegelianos e Nietzsche. Aproximando-as, respectivamente, à ontologia dialética, à ontologia empírica (i.e. reificação do contemporâneo) e ao antirrealismo ontológico (i.e. relativismo ontológico), temos um quadro amplo das bases filosóficas daquelas. Segundo Nobre (2000, p.1), a divisão habermasiana pode ser traduzida como: “modernidade crítica e transformadora, modernidade conservadora e pós-modernidade”. Assim, sendo as ontologias produtos sociais, é observado como elas ancoram e refletem interesse políticos.

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Na problemática epistemológica é impossível escapar de Kant. Este, com o seu idealismo subjetivo, afirmou a impossibilidade de apreensão das “coisas em si” (númeno), resignando à razão pura a apreensão das “coisas para nós” (fenômeno). A posição kantiana é importante, pois marca uma divisão com a ontologia clássica. Após a crítica kantiana e a crítica hegeliana, a ontologia clássica começou a ser identificada como “realismo ingênuo”. Assim, realçando a interferência da subjetividade na apreensão das coisas, Kant afirmou a impossibilidade de um conhecimento puro objetivo. Entretanto, observa Jaguaribe (2008, p. 890): [...] A verdade, entretanto, é que o espírito – como compreenderam os idealistas – não é um mero espelho neutro e passivo, que se limita a refletir as coisas. Em contrapartida, o idealismo confunde a parte com o todo. Se é certo que o mundo exterior só pode ser captado por uma operação do sujeito cognoscente, que constitui a coisa em objeto do conhecimento, as coisas por seu lado não são produzidas pelo sujeito, e este não poderia existir com independência delas.

Ou seja, antes da epistemologia ser possível são necessários os entes. Estes podem ser recortados, a posteriori, pela consciência enquanto “sujeitos” e “objetos”. Mas, não são independentes um do outro na realidade. A crítica de Jaguaribe tem raízes explícitas em Ortega y Gasset, e raízes implícitas, na crítica hegeliana ao idealismo kantiano. Como se sabe, colocando a história e a processualidade em relevo, Hegel apreendeu uma lógica das coisas, a dialética, que afirma ser equivocado isolar a parte do todo, e o todo da parte. Como mostra Hegel, a posição kantiana só se sustenta pelo dualismo sujeitoobjeto, imperativo para a filosofia contemplativa. Entretanto, a contemplação só atinge um momento da realidade (sincrônico) e a realidade é processo. Como escreve Hegel (1997, p. 106): “O que é racional, é efetivamente real, e o que é efetivamente real, é racional.” 25 Assim, observa Mascaro (2012, p. 242): Ao contrário da tradição moderna, essencialmente dividida, tratando de planos distintos - razão e realidade -, e mesmo tratando de objetos incognoscíveis em si mesmos, Hegel dirá que a compreensão da história é a compreensão da razão e da realidade, e para tanto utilizará tanto os instrumentos da lógica - e da dialética, sua grande contribuição teórica para a filosofia -, quanto os instrumentos de compreensão da realidade - as ciências, a religião, o direito, a economia. Não se compreende algo em si mesmo, sem cotejá-lo com outros fenômenos e com a própria história. A filosofia, buscando a totalidade, supera os fatos isolados e alcança as relações.

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“Lo que es racional, eso es efectivamente real, y lo que es efectivamente real, eso es racional.” (Tradução nossa - doravante, só indicaremos aquelas traduções que forem de outrem).

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Desta maneira, o alcance de um conhecimento das “coisas em si” não se coloca pela razão pura, mas pela razão histórica. O conhecimento, caso queira ultrapassar o fenomênico, não pode ser imediato. Precisa ser mediato, pelo processo. Em uma palavra, o conhecimento das “coisas em si” não é imediato, é post festum. Assim, a superação do realismo

ingênuo termina em uma bifurcação

epistemológica. Uma regressiva (antirrealista), que abandona a essência ou a ontologia, condenando o conhecimento aos fenômenos subjetivamente apreendidos

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. Outra

progressiva, que apreende a dialética entre o sujeito e o objeto como um momento dentro do desenvolvimento da realidade. É preciso, desta forma, qualificar epistemologicamente a ontologia defendida. Pois, o realismo que defendemos não busca ser o “realismo ingênuo”, que imaginava a apreensão direta da “coisa em si”, sem mediação. Mas um que reconhece a intervenção da subjetividade na apreensão do real, mas busca superá-la pela mediação sócio-histórica. Ou seja, um realismo crítico27, que reconhece o conhecimento como uma mútua constituição entre sujeito e objeto, e busca na diacronia a essência dos processos. Assim, o conhecimento efetivo dos fenômenos não pode se restringir aos próprios fenômenos, mas buscar a processualidade que os engendra. Mas, enfim, por que investigar? Como já indicamos, o ato investigativo é um ato epistemológico. A cognoscibilidade do real (i.e. o ser é passível de ser conhecido) é pressuposto para os atos epistemológicos ocorrerem28. O agnosticismo, o solipsismo e o ceticismo total negam a possibilidade do conhecimento e chegam, pela via epistemológica, a negação da ontologia. Neste caso, seria válido o alerta da moderação. O real é cognoscível, mas não totalmente, pois o absoluto não cabe em um ente contingente. Nem estamos aptos a conhecer tudo, nem estamos condenados a não conhecer nada. 26

Com a prioridade no problema epistemológico, a realidade começa se dissipar e até a existência objetiva mais obvia parece ilusória. A inversão da realidade pelo pensamento obscurece as propriedades essenciais da realidade e conduz ao terreno especulativo. Não por acaso, é possível encontrar quem defenda a exploração contemporânea como fruto exclusivo da linguagem - perdendo a consideração do caráter ontológico e sóciohistórico da linguagem. Como aponta Sodré (2002), a linguagem não apenas traduz, mas produz realidade e direciona práticas. Mas, tomar a causa de uma opressão material pela linguagem é não perceber o elo histórico, social e dialético cuja linguagem é expressão dinâmica. 27 Até onde pudemos identificar, o traço definidor dos diversos realismos críticos é a crítica tanto do realismo empírico quanto do antirrealismo. 28 Os meios para se defender a incognoscibilidade do real são vários. Um seria pelo dogmatismo afirmando que não podemos saber nada. Outro, estabelecer critérios tão altos e rigorosos para o conhecimento que seria impossível alcançá-los, daí uma vitória por baixo do ceticismo aconteceria. (MOSER et al., 2009)

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Em vista da herança intelectual recebida e os desenvolvimentos técnicos e sociais pretéritos, acreditamos que, como humanos, estamos aptos a apreender ao menos algumas coisas. Assim, é imperativo a busca pela: “porção de verdade que é possível alcançar” (MALATESTA apud CORRÊA, 2013). Isto sem esquecer que a realidade sempre transborda as teorias que tentam capturá-la. Borges brilhantemente escreveu sobre “o rigor da ciência”: [...] Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu tal Perfeição que o Mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o Mapa do Império toda uma Província. Com o tempo, estes Mapas Desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações seguintes não sem Impiedade entregaram-nos às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.29

Nesta linha argumentativa, pensando a partir do trabalho de Moser et al. (2009), defendemos um ceticismo parcial em relação à verdade. Posição que indica a possibilidade de alcançar alguma verdade, mas não toda, ou, a possibilidade de alcançar um conhecimento mais verdadeiro, mas não o conhecimento verdadeiro. Desta forma, não compartilhamos a atitude de desprendimento para com a verdade (relativismo ontológico) de Rorty (apud Duayer, 2015, p. 2) que diz: “devemos assumir uma atitude de benigna negligência em relação à verdade”. Segundo Aristóteles (2002, p. 3), a busca do conhecimento verdadeiro, episteme, é inerente à condição humana, pois: “Todos os homens tendem, por natureza, ao saber”. E, diz ele, “quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe” (Ibidem, p. 11). Do mesmo modo, o ato investigativo é reconhecimento de um “não saber”. Pois, toda investigação implica alguma insuficiência de conhecimento, e ambiciona aumentar o saber (sófos). Indica, assim, que as coisas investigadas não revelam tudo de imediato. Ou seja, elas se apresentam parcialmente cifradas e o ato investigativo almeja sua decifragem. Logo, no próprio “ser” da ciência está inscrita a possibilidade de apreender algo mais sobre seus objetos de inquirição. A investigação, muitas vezes, alcança justamente o oposto do que a intuição sugere. Por exemplo, é contra-intuitivo para o ser humano o 29

Disponível em Acesso em 30 de Abril de 2014.

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formato esférico da Terra, pois, na experiência cotidiana, tudo se dá em um ambiente plano. Só sociedades mais avançadas, do ponto de vista técnico, conseguiram superar esta intuição (STEINER, 2006, p. 234). Portanto, investigar é duvidar do que se apresenta imediatamente aos sentidos. O óbvio nem sempre é verdadeiro30 e o inverso. Caso houvesse identidade entre verdade e aparência toda ciência seria desnecessária. Pois, o “parecer” seria “ser”, o fenômeno revelaria imediatamente a essência das coisas e todo saber seria automático 31 . Não existiriam dúvidas, opiniões, filosofias, religiões ou ciências. Entretanto, esta identidade não existe na realidade, somente na esfera especulativa. São inerentes à condição humana as atividades de questionar, especular, conhecer. A diferença entre aparência e essência é central. Segundo Kosik (1976, p. 13), o mundo do cotidiano é o mundo da pseudoconcreticidade, pois a “coisa em si” não se manifesta imediatamente. O mundo concreto está “escondido-mostrado” pela aparência: O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. [...] A essência não se dá imediatamente; é mediada ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. (Ibidem, p. 15)

Neste sentido, por meio da investigação a ciência almeja atingir um conhecimento transfenomênico 32 . Pois, a essência, ao mesmo tempo se mostra e se esconde nos fenômenos. Por exemplo, se uma criança utiliza o dinheiro que recebe para comprar um lanche, e sempre efetiva este desejo, imagina logicamente que a moeda é somente um meio de troca entre coisas. Se, anos depois, ela começa a considerar que o que ocorre ali não é uma troca superficial de coisas, mas uma complexa relação social mediada pela moeda 30

Como mostrou Darcy quando comentou a realidade brasileira: “Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio deles - nosso negócio - é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de gente - os cientistas - para ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir outras, mais óbvias ainda”. Cf: “Sobre o óbvio”, Disponível em ( ). Acesso em 15 de Janeiro de 2015. 31 A teoria é uma proposta de decifragem do real. Se o real não fosse cifrado ela teria utilidade? A afirmação de Marx é precisa: “toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX, 1985, p. 271) 32 Utilizamos a nomenclatura “transfenomênico”, preterindo “extrafenomênico”, pois, como indica o materialismo dialético e a fenomenologia realista, no fenômeno se apresenta a essência. O fenômeno só é fenômeno por denotar, em alguma medida, a essência das coisas. Portanto, a essência não está além, está presente, embora cifrada.

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descobre, no mesmo fenômeno, propriedades que sempre estiveram ali, mas antes eram ocultas. Ou seja, o fenômeno (comprar o lanche com algum dinheiro) é o mesmo e nele está exposto elementos de sua essência, mas apreende-los não é atividade imediata. Portanto, a inexistência da identidade entre aparência e essência valida ontologicamente o ato investigativo. Sem ontologia não há epistemologia. Nesta linha, sendo uma das formas da tentativa do conhecimento33, as ciências: [...] não pretendem chegar a leis universais por meio da generalização indutiva da sucessão regular de fenômenos observáveis, mas antes inteligir o que está “por trás” ou “além” dos fenômenos revelados pela experiência sensorial, de modo a oferecer-nos conhecimentos das “estruturas numênicas” (Bachelard) ou “mecanismos gerativos” (Harré) que, de algum modo, necessitam esses fenômenos. (VANDENBERG, 2010, p. 46)

Além disto, o trabalho científico (i.e. expressão do trabalho espiritual 34 ) é uma forma de atividade em uma sociedade onde impera a divisão social do trabalho. Portanto, nesta formação social, é uma atividade valorizada, em alguma medida, pela sociedade. Pois, a sociedade tem expectativas positivas, em vista dos avanços pretéritos, nas coisas, materiais ou imateriais, produzidas por meio desta atividade. Mas, isto não implica defender o monopólio do saber pela ciência. Lembrando o alerta de Boaventura S. Santos (2007), a civilização ocidental comumente incorreu neste fundamentalismo 35 . O imperativo da diversidade, de valorização da alteridade, como propõe um projeto da ecologia dos saberes, é essencial. Pois, não há “o conhecimento”, mas diversos. Cada um tem seus próprios caminhos e dinâmicas. Por exemplo, observa corretamente Sodré (2012), há certa impossibilidade de ensinar objetivamente a alteridade e o afeto, pois a alteridade não é parte exclusiva da dimensão racional (intelectual), mas principalmente da dimensão emocional. Portanto, neste caso, é a arte ou uma experiência estética que possibilitaria construir intersubjetivamente este saber. É preciso entender os

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Utilizamos a expressão “tentativa do conhecimento”, pois o conhecimento, tal qual a verdade, são objetos abstratos, inalcançáveis em sua completude. Não por acaso os gregos modificaram a nomenclatura “sófos” por “filósofos”, para denotar a possibilidade de ser “amigo” do conhecimento, mas não deter o conhecimento. 34 Terminologia de Sohn-Rethel (1978). Acrescenta-se, em conjunto a Sohn-Rethel, o fato do trabalho espiritual sempre ter sido mais valorizado na cultura ocidental em relação ao trabalho corporal. Esta desvalorização do trabalho manual é percebida mesmo na concepção aristotélica das quatro causas. 35 Segundo Grosfoguel (2008, p. 117): “O que todos os fundamentalismos têm em comum (incluindo o eurocêntrico) é a premissa de que existe apenas uma única tradição epistêmica a partir da qual pode alcançarse a Verdade e a Universalidade”.

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saberes como partes de dinâmicas distintas e não hierarquizá-los a partir de um dado saber - igualando, diminuindo e restringido aqueles diferentes do referente36. Assim, a investigação científica é respaldada ontologicamente, pois inexiste identidade entre essência e aparência. Sendo, também, respaldada pela sociedade, pois esta atividade tem acrescentado algum conhecimento à comunidade. (ii) Portanto, o segundo princípio do trabalho é: O ato investigativo/científico é respaldado ontologicamente e socialmente, pois tem potência para alcançar algum conhecimento da coisa em si. O conhecimento dos fenômenos deve buscar as essências que o gera. Entretanto, não é possível alcançar toda a verdade (o absoluto), mas há conhecimentos mais verdadeiros do que outros. Admitida a possibilidade de alcançar algum conhecimento pela via investigativa, é necessário indagar o caráter das investigações sociais. Esta questão implica considerar a relação entre ciência e sociedade, e a possível autonomia daquela em relação a esta. É possível a neutralidade científica? Como se sabe, esta questão atravessou o século XX e ainda continua a ser motivo de controvérsias. Conforme a perspectiva ontológica que defendemos, há uma inseparabilidade entre epistemologia e ontologia, sendo a última o leitmotiv. Em vista disto, a atividade científica não pode ser uma atividade isolada, realizada por “marcianos desinteressados”. Pois, a ciência é uma forma de atividade social, uma parte em um todo. Depende da sociedade para existir. Não existiu enquanto a sociedade não tinha meios para se libertar da reprodução da vida animal, e só existirá enquanto a sociedade tiver meios para isto e acreditar que esta é uma atividade válida. Ademais, a ciência é uma forma de trabalho humano, o começo e o fim desta atividade estão permeados por objetivos e interesses humanos, materiais ou imateriais.

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Ademais, em matéria epistemológica, cabe ressaltar os relevantes desenvolvimentos da perspectiva póscolonial (por exemplo, Said), decolonial (por exemplo, Dussel, Mignolo, Quijano), feminista (por exemplo, Collins, Kergoat), em abrir leques para conhecimentos antes subalternizados, realizando perguntas antes suprimidas e/ou silenciadas. Assim, na perspectiva epistemológica, é indispensável à diversidade, especialmente tomar o ponto de vista dos oprimidos. Só assim uma visão mais ampla e humana é alcançada, propiciando a constituição de uma ética da alteridade. Deste modo, não acreditamos que a ontologia dialética suprima a diversidade dos saberes possíveis, antes fornece elementos para aqueles conhecimentos que demandam a investigação objetiva.

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Tanto o é, que até a ciência natural é impactada pela sociedade, pela política. O exemplo de Galileu é claro, ainda que distante. Um mais recente, conta Löwy (2013, p. 11): “vimos um governo, o de George Bush, proibir seus cientistas – especialmente James Hansen, o climatologista da NASA – de tornar públicos os resultados dos seus trabalhos sobre a mudança climática.” Neste sentido, voltamos à Marx (2004, p. 112), uma: “base para a vida, uma outra para a ciência é de antemão uma mentira”. Logo, a neutralidade científica (parte) só seria possível se houvesse uma prévia “neutralidade” na sociedade (todo). A parte pode realizar diversas coisas dissociadas do todo, mas, na medida em que o princípio, os agentes, e o fim de sua atividade se direcionam ao todo, ela é mais dependente que autônoma. Ademais, em vista das assimetrias de poder e interesse presentes em nossas sociedades modernas e capitalistas, esta “neutralidade” é impossibilitada. Assim, a neutralidade científica, defendida por positivistas, é falsa, especialmente nas ciências humanas. Conforme Novais e da Silva (2011, p. 23): “Nas ciências do espírito há a identidade entre o sujeito e o objeto do conhecimento, o que faz com que toda a análise seja, em última instância, uma autoanálise”. Assim, se a ciência social tem como sujeito e objeto o ser humano, torna-se permeada irremediavelmente por interesses humanos, políticos. Conforme Löwy (2013, p. 26): “O axioma da neutralidade valorativa das ciências sociais conduz, logicamente, o positivismo, a negar – ou melhor, a ignorar - o condicionamento histórico-social do conhecimento [...] a própria ciência social nele aparece soberanamente livre de vínculos sociais.” Desta feita, anunciar a neutralidade é esconder a tomada de posição. Assumir uma perspectiva não contestatória é aceitar o mundo e as coisas tal qual eles são, ignorando a possibilidade do mundo ser algo distinto do que é. Ignorar é posicionar. Ou seja, toda postura, negativa ou positiva, implica uma normatização sobre o mundo. No primeiro caso o mundo deveria ser outra coisa, no segundo caso o mundo deveria ser o que é37.

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Esta posição não é facilmente identificada, pois há a problemática do “ponto zero” do conhecimento. Segundo Grosfoguel (2007, p.120): “O ‘ponto zero’ é o ponto de vista que se esconde e, escondendo-se, se coloca para lá de qualquer ponto de vista, ou seja, é o ponto de vista que se apresenta como não tendo um ponto de vista”.

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Ademais, a dialética observa que tanto o sujeito faz o objeto, quanto o objeto faz o sujeito. Assim, indica a impossibilidade de um sujeito ausente, que apreende de forma neutra o objeto. Esta impossibilidade, entretanto, é verificada na epistemologia eurocentrada38. Segundo Grosfoguel (2007, p.119): “Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apagado da análise.” A ideologia cientificista, como mostra Goldman (1986), foi necessidade prática no ocidente, em dado período, pelas pressões da teologia. Mas não deixa de ser problemática, especialmente quando esconde o sujeito e seus interesses e, mais ainda, quando cria cercamentos simbólicos, fechando para si as únicas formas de atingir o saber. Ademais, todo ser social é permeado por identidades, opções políticas, consciência de classe, vinculações epistêmicas, valores culturais, morais, etc. Em suma, estamos condicionados por valores sociais e culturais. Em geral, estes valores refletem a sociedade da qual somos socius. Não por acaso, o eminente antropólogo Levi Strauss (1952, p. 19) destacou, que algum grau de etnocentrismo é inerente as culturas39: A atitude mais antiga e que repousa sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos.

Estes valores e mais uma série de outros, pode ser resumido no conceito de “condicionamento socio-histórico do conhecimento”. Como aponta Strauss e outros sociólogos, muitos valores são irrefletidos e naturalizados na cosmovisão dos sujeitos. A íntima relação entre a visão social de mundo é observada por Bourdieu (apud LÖWY, 2013, p. 23) como: “as categorias de pensamento impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento”. Portanto, as ações destes socius responderão, ainda que não queiram, a estes condicionamentos.

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A epistemologia eurocentrada toma como padrão de referência a Europa e os europeus, desvalorizando tudo o diferente. Cf. (GROSFOGUEL, 2007). 39 Podemos considerar, em outro nível de abstração, que a mente tem mecanismos de defesa para proteger a estabilidade emocional dos sujeitos, como mostrou Freud. Por outro ângulo, Jessé Souza observa: “como diria Max Weber, a primeira necessidade dos seres humanos não é a de dizer a verdade -- muito menos a verdade sobre si mesmos --, mas sim justificar e legitimar a vida que realmente levam.” (Disponível em: Acesso em 16 de Fevereiro de 2015)

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A ciência e o cientista não são neutros, pois estão plenamente enraizados nas dinâmicas sociais de produção e reprodução da vida40. Assim, se não há neutralidade no trabalho científico, deveria existir consciência e clareza sobre ela. De nossa parte, há interesse na utopia da sociedade humana plenamente emancipada em sua diversidade. Ou seja, desejamos um projeto descolonizador, antiimperialista, anticapitalista, antiestatal – que supere tanto estes macro-poderes, quanto os micro-poderes. Entretanto, esta posição pode levar a uma conclusão equivocada. Aquela de que se sacrificaria a razão e a verdade em vista de levar adiante um projeto político. Ora, a exceção daqueles que buscam conservar a sociedade tal qual ela é (e necessitam de subterfúgios ontológicos, epistemológicos e retóricos para tal), esta consideração é paradoxal para aqueles que almejam transformá-la. Para os explorados, denunciar a exploração é um passo para rompê-la. A verdade é mecanismo de transformação para a classe proletária (Marx), para os condenados da terra (Fanon), para os oprimidos (Benjamin). Partindo da concepção de ciência de Malatesta e dos apontamentos de Löwy sobre a possibilidade de objetividade, buscamos realizar um trabalho científico, não propaganda. Assim, destacamos zelo na busca por uma crítica objetiva. Entretanto, sabemos que, seja aquele que anuncia quanto àquele que omite a efetividade do pretendido só se dá na prática. Se declararmos apreço à verdade e realizamos um trabalho enviesado, ou se omitimos a questão e realizamos o mesmo trabalho enviesado, o resultado é o mesmo. Independe se esta consideração axiológica exista ou não, o efetivo só se mostra na prática, não na anunciação. Assim, defendemos a não neutralidade científica. Mas, isto não implica produzir um trabalho panfletário, que desconsidere o interesse pela verdade. Antes, ressalta a vinculação social e histórica da atividade, do pesquisador e do seu trabalho. Entretanto, a análise não comporta juízos de valor ou declarações políticas, mas, efetivamente, uma crítica objetiva e racional.

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Sempre é importante recordar que estamos dentro do “espírito do tempo” (zeitgeist) da nossa época e, portanto, compartilhamos preconceitos, imagens e expectativas que, de tão profundas, sequer são refletidas e que irão diferir daqueles espíritos do tempo anteriores e posteriores. Ademais, ressaltamos, os espíritos do tempo estão ancorados materialmente, não brotam do céu, suas determinações são encontradas na própria dinâmica de produção e reprodução da vida social.

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(iii) Assim, nosso terceiro e último princípio é: Nenhuma ciência ou cientista são neutros. Especialmente na ciência social (do espírito), esta neutralidade é uma ilusão. Entretanto, isto não implica produzir trabalho panfletário. O interesse em descortinar a verdade das coisas é indissociável à luta pela emancipação humana. Assim, chegamos à conclusão. Ressaltamos a defesa de uma ontologia dialética (crítica). Acreditamos ser possível alcançar um conhecimento da “coisa em si” pela via investigativa sócio-histórica. E, reconhecendo a não neutralidade científica, não abrimos mão da busca da verdade, buscando realizar uma crítica objetiva.

Objeto & Meios “Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde...” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “...desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. “Oh, esteja certa de que isso ocorrerá”, falou o Gato,“desde que você caminhe o bastante.” Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll (2000, p. 81)

Nem todo caminho é caminho, se buscamos chegar a um lugar particular. Aqui é importante revelar a vereda pela qual esperamos à compreensão mais completa do nosso objeto. Nesta nota, apresentamos: (i) O objeto do trabalho e (ii) os meios utilizados para tentar apreendê-lo. Como se sabe, uma metodologia não cai do céu. É sempre uma cristalização, síntese, de uma ontologia e uma epistemologia. Ou seja, síntese de uma visão de mundo, uma Weltanschauung (cosmovisão), representando também um dado momento histórico. Portanto, a metodologia também não é neutra. E, sendo a metodologia o caminho, este não pode estar dissociado do objeto.

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(i) O nosso objeto de inquirição são as Relações Internacionais. Como se sabe, a expressão “Relações Internacionais” designa, ao mesmo tempo, um objeto e uma ciência. Consideraremos, em grande monta, a ciência. Ao final, os dois relacionadamente. Ademais, antes de tornar-se ciência, as relações internacionais efetivamente existiram. Estas nasceram e se sustentam através da ação dos seres humanos, portanto, a sua ciência é parte do grupo das ciências sociais. Ou seja, do grupo onde tanto sujeito, quanto objeto são os seres humanos. Assim, a despeito de tentativas de reificação, as relações internacionais não são monolíticas, transhistóricas. São históricas, processuais, relacionais e permeadas por transformações qualitativas. Todo método coloca em relevo certos aspectos da realidade, encobrindo outros. Daí a importância do método ser o mais consistente quanto possível, para tentar alcançar as essências dos processos. Em vista do objeto e dos princípios apresentados, entendemos a necessidade do pensamento ontológico, dialógico e dialético. (ii) É o método marxiano o que julgamos fornecer a compreensão mais elevada das relações sócio-históricas modernas. Assim, nosso método é o materialismo histórico, desenvolvido por Marx. Consistente com este método, a ontologia dialética é guia de nossa abordagem. Ademais, em vista do caráter metateórico da pesquisa utilizamos majoritariamente fontes secundárias na pesquisa,

Objetivos & Estrutura Sansão, com seus músculos fantásticos, sobrepujavam-nas. Sansão era a admiração de todos. [...] Sua solução para cada problema, para cada contratempo, era "Trabalharei mais ainda", frase que adotara como seu lema particular. A Revolução dos Bichos, Orwell (2000, p. 31)

Pouco adianta elevado empenho se o horizonte, pelo qual vemos o mundo e tentamos apreende-lo, é limitado ou infértil. Por isto, a reflexão metateórica é indispensável. Nesta nota apresentamos (i) os objetivos e (ii) a estrutura do trabalho. 30

(i) São dois os objetivos substantivos do trabalho. O primeiro, apresentar o que é a história dos grandes debates. O segundo, realizar uma crítica ontológica à história dominante da disciplina, ou seja, à sua forma filosófica. Sendo três os objetivos suplementares. O primeiro, apresentar nossa perspectiva ontológica. O segundo, realçar a vinculação imanente entre prática e teoria. O terceiro, apontar as fundações por onde uma nova história da disciplina poderia ser construída. (ii) Sendo assim, compõem a estrutura do trabalho quatro capítulos, além deste capítulo introdutório. No segundo capitulo, apresentamos a “história dos grandes debates” e suas premissas. No terceiro capitulo, realizamos uma crítica ontológica a esta narrativa, contestando o seu estatuto de história. No quarto capítulo, apresentamos uma proposta de reconstrução histórica (em vista das considerações (meta)teóricas explanadas) e esboçamos 41 uma pequena análise da história da disciplina, calcada em concepções imanentes. Por fim, nas considerações finais, retomamos o percurso e finalizamos a monografia.

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Nossa proposta no quarto capítulo é, precisamente, um rascunho. Deixamos a tarefa de reconstruir a história da disciplina para acadêmicos mais capacitados.

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2. OS “GRANDES DEBATES” Não há alternativa42 Margaret Thatcher

A história dos grandes debates é a principal forma de apresentação da teoria internacional e das transformações da disciplina. Para muitos, deveria ser a única. Neste capítulo, apresentamos (2.1) as linhas principais desta história e (2.2) suas mais importantes premissas. Em primeiro lugar, é preciso observar que a história dos grandes debates não foi criada por um único autor e, portanto, não têm uma forma unívoca de ser apresentada. É, na verdade, uma aglutinação de diversas ideias sobre a disciplina. Entretanto, esta aglutinação não é ao acaso. Na verdade, há um sentido comum e uma lógica própria, que tornam possível caracterizá-la como uma narrativa consolidada. Em geral, os manuais introdutórios apresentam esta narrativa como “a história da disciplina”.

2.1. A “História dos Grandes Debates” [...] você receberá uma história de três grandes debates. Não há outra forma estabelecida de contar a história da disciplina.43 Ole Waever

Como observa Lake (2013, p. 568): “A história do campo das Relações Internacionais é tipicamente contada como uma série de Grandes Debates, batalhas épicas

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“There is no alternative.” “[…] you will get a story of three great debates. There is no other established means of telling the history of the discipline.” Disponível em: Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

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entre titãs que conformaram a direção da investigação e do conhecimento nas décadas seguintes.” 44 Esta história conta que a disciplina de Relações Internacionais pode ser corretamente resumida em três ou quatro intervalos, onde interpretações distintas competiram para entregar a melhor teoria sobre o mundo. Segundo Jackson e Sørensen (2007, p. 61): Houve três grandes debates desde que as RI se tornam uma disciplina acadêmica, no final da Primeira Guerra Mundial, e agora estamos entrando no quarto. O primeiro grande debate foi entre o liberalismo utópico e o realismo; o segundo, entre as abordagens tradicionais e o behaviorismo; e o terceiro, entre o neorealismo/neoliberalismo e o neomarxismo. O quarto debate, o atual, envolve tradições consagradas contra alternativas pós-positivistas.

Segundo esta abordagem, o nascimento da disciplina seria uma resposta intelectual à guerra mundial e sua devastação: “A Primeira Guerra Mundial (1914-18), responsável por milhões de mortes, foi o impulso decisivo para o estabelecimento de uma disciplina acadêmica de RI, cujo objetivo seria nunca mais permitir o sofrimento humano em tal escala.” (JACKSON; SØRENSEN, 2007, p. 62). Assim, o nascimento da disciplina é fixado no ano de 1919 (SCHMIDT, 2012) (CARVALHO et al. 2011). Carvalho et al. (Ibidem, p. 4) interpretam esta data como o big bang da disciplina. Segundo a narrativa, neste ano surge o primeiro departamento em Aberswyth, no Reino Unido, e a Liga das Nações. Segundo Albrecht e Brauch (2008, p. 504): A disciplina de relações internacionais nasceu em 30 de maio de 1919 na conferência da Paz de Versalhes (Paris) quando os conselheiros políticos do presidente dos EUA W. Wilson e o Primeiro Ministro Britânico L. George acordaram de estabelecer institutos científicos para o estudo das relações internacionais em seus países para enfocar as causas, condições e formas da guerra e paz [...].45

Como conta esta história, o nascimento da disciplina seria uma vitória do “idealismo” e do seu desejo voluntarista de impedir outras guerras46. A criação da Liga das Nações e discursos como os “14 pontos de Wilson” explicitariam o domínio desta

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“The history of the field of International Relations is typically told as a series of Great Debates, epic battles between titans that shaped the direction of inquiry and knowledge for decades afterwards.” 45 The disciple of international relations was born on 30 May 1919 at the Peace Conference in Versailles (Paris) when policy advisers of US Presidente W. Wilson and British Prime Minister L. George agreed to establish scientific institutes for the study of war and peace […].” 46 O idealismo teria como precursor o pensamento de Norman Angell, no livro “A grande ilusão” de 1910.

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abordagem. Entretanto, a utopia idealista cai em conjunto à Liga das Nações e a paz mundial, na década de 30. A melhor interpretação do mundo não deveria ter se pautado no que “o mundo deveria ser”, mas em como “o mundo é”. Os custos da abordagem idealista foram muito altos, pois a guerra voltava a assolar o mundo. O “realismo” é a proposta de E. H. Carr para combater o pensamento utópico/idealista (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 3). Em 1939, pouco após o começo da segunda guerra mundial, Carr publica “The Twenty Years' Crisis”, contestando o idealismo predominante nos estadistas e acadêmicos. Em vista dos prejuízos do idealismo (i.e. ter permitido a segunda guerra mundial) ele indica a necessidade de uma visão mais realista 47 das relações internacionais. Segundo Carr (2001, p. 21): “a fraqueza característica da utopia é também a fraqueza característica dos intelectuais políticos: não entender a realidade existente e o modo pelo qual os padrões se relacionam com ela”. Ademais, aponta Carr (ibidem, p. 17): A antítese de utopia e realidade pode, em alguns aspectos, ser identificada com a antítese livre arbítrio e determinismo. O utópico é necessariamente voluntarista: acredita na possibilidade de, mais ou menos radicalmente, rejeitar a realidade, e substituí-la por sua utopia por meio de um ato de vontade. Já o realista analisa um curso de desenvolvimento predeterminado, que ele é impotente para modificar.

Assim, observa Carr (ibidem, p. 85): “o realismo entra em cena muito após a utopia, e como forma de reação contra ela”. No livro “Introdução as Relações Internacionais” de Jackson e Sørensen (2007, p. 69), é observado que: “O idealismo liberal não foi uma boa orientação intelectual para as relações internacionais nos anos 30”. De acordo com Hey (apud CARVALHO et al, 2011, p. 752): Depois que a Primeira Guerra Mundial demonstrou o horror que humanos poderiam impor uns aos outros, idealistas solicitaram a criação de instituições para mitigar a violência e a ganância... A Segunda Guerra Mundial, e especialmente o Holocausto, assim como o colapso da Liga das Nações, efetivamente minaram a teoria idealista48

Assim, o primeiro grande debate foi vencido pelo “realismo”, que detinha a teoria mais apta para explicar o mundo. De acordo com Jackson e Sørensen (2007, p. 74): “O primeiro grande debate foi claramente vencido por Carr, Morgenthau e outros pensadores 47

Ressalte-se que estamos tratando do plano político, não do filosófico. Portanto, realismo faz referência ao “realismo político”. 48 After World War I demonstrated the horror that humans could wreak on each other, idealists sought to create institutions that would mitigate violence and greed…. World War II, and especially the Holocaust, as well as the collapse of the League of Nations, effectively undermined idealist theory.

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realistas. A lógica do realismo prevaleceu nas relações internacionais, não somente entre os acadêmicos, mas também entre os políticos e diplomatas”. Assim, “foi a falha idealista em compreender as forças que levaram à Segunda Guerra Mundial que fizeram emergir o realismo como paradigma dominante no imediato período após 1945” (ROCHESTER apud CARVALHO et al, 2011, p. 753) 49 Entretanto, observa Jackson e Sørensen (2007, p. 74) que: “embora o realismo tenha vencido o primeiro debate, ainda permaneceram, na disciplina, teorias em competição que se recusaram a aceitar a derrota definitiva.” Estas teorias iriam suscitar os debates seguintes da disciplina. Em seguida, nos anos 50 e 60, teria se desenvolvido o segundo grande debate, relativo a questões metodológicas. Este iria separar os “tradicionalistas” dos “cientificistas” (behavioristas). Este debate não teve um vencedor claro, mas o behaviorismo teve um efeito duradouro na disciplina (JACKSON; SØRENSEN, 2007, p. 77). Os cientificistas ganharam fôlego nos EUA, sendo a posterior “síntese neo-neo” (entre a teoria neoliberal e a teoria neorealista), proposta por Waever, um indicativo disto. O terceiro grande debate50, rotulado de interparadigmático, surge nos anos 70. É instigado pela crítica neomarxista às abordagens predominantes da disciplina – (neo) liberalismo e (neo) realismo. Em semelhança ao anterior, neste debate também não houve um vencedor claro (JACKSON; SØRENSEN, 2007, p. 77). Entretanto, este debate inseriu temas sócio-econômicos na agenda do campo: Não é um debate como os dois discutidos anteriormente, mas uma expansão notável da agenda de pesquisa acadêmica de RI, com o objetivo de incluir questões socioeconômicas de bem-estar, assim como político-militares e de segurança. (JACKSON; SØRENSEN, 2007, p. 92)

De acordo Waever (2005, p. 9): “Em 1980 houve um maior – e em geral brutal – confronto entre o que Keohane rotulou de racionalistas e reflexivistas [...]” 51. Este seria o último e o atual debate. Despontando em meados dos 80 e início dos anos 90, coloca em campos opostos os positivistas (i.e. neorrealistas e neoliberais) e os pós-positivistas (teoria

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It was the idealists’ failure to comprehend the forces leading to World War II that gave rise to realism as the dominant paradigm in the immediate postwar period after 1945. 50 Não é consenso caracterizar este debate como um “grande debate”. Cf: (LAKE, 2013) (WAEVER, 2005) (SCHMIDT, 2012). 51 “In the 1980s there was a major – and often brutal – confrontation between what keohane has labeled rationalists and reflectivists […]”

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crítica, pós-estruturalismo, pós-colonialismo, feminismo entre outros), sendo caracterizado como um debate epistemológico (NOGUEIRA; MESSARI, 2005) (JACKSON; SØRENSEN, 2007). Portanto, é correto afirmar que a disciplina não só surge da guerra, mas está em estado de guerra, guerra teórica. Esta guerra já obteve um vencedor, a abordagem que teve o mérito de oferecer a melhor explicação para o mundo ser o que é. Entretanto, os vencidos não aceitaram sua condição de vencidos e continuam a instigar sucessivas batalhas teóricas.

2.2. Premissas Por trás da narrativa supracitada existem diversas premissas. Estas são derivadas de uma cosmovisão, uma ontologia e uma epistemologia particular. Podemos indicar seis premissas principais. A primeira premissa (i) é a fixação de uma data formal para o nascimento da disciplina. O ano de 1919 é central à história dos grandes debates, pois indica, ao mesmo tempo, o surgimento de uma nova ciência e a vitória inicial do idealismo, cujo símbolo seria a criação da Liga das Nações. A segunda premissa (ii) é a antropologia hobbesiana da disciplina. Esta concepção negativa da natureza humana embasa a ideia dos grandes debates, conflitos teóricos que culminam na vitória do mais forte. Como se sabe, é esta a ideia hobbesiana do “Estado de Natureza”, um mundo onde prevalece a anarquia, estágio anterior ao surgimento do Estado, instituidor da ordem e da unidade. A terceira premissa (iii) é a identidade entre “sucesso teórico” e “correção teórica” (Darwinismo teórico). Conforme conta o primeiro debate, o sucesso do realismo no após a segunda guerra foi indicativo direto da sua correção teórica. Enquanto o fracasso terminal dos idealistas um indicativo da sua debilidade analítica. A hegemonia contemporânea do (neo) realismo refletiria sua correção teórica.

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A quarta premissa (iv) é a percepção de que teorias recentes são melhores que as antigas. Esta percepção está presente na ideia, por exemplo, do quarto debate. Este debate colocaria em campos opostos positivistas e pós-positivistas, sugerindo que as abordagens anteriores a este debate foram derrotadas ou superadas. Não é preciso voltar aos primórdios da disciplina para descobrir a melhor teoria, basta se situar entre aquelas do atual debate. A quinta premissa (v) é a percepção de que temas e agendas surgem da realidade social, já teorias não. Esta premissa se mostra na ausência. A história dos grandes debates conta, por exemplo, o impacto atomístico e exógeno de eventos como a segunda guerra, na disciplina - demonstrando a falha das teorias idealistas e a correção da teoria realista. Entretanto, estão ausentes as causas e a produção social que possibilitam o surgimento das teorias, ou melhor, nesta história as teorias parecem “cair do céu”. Assim, ou a questão é vista como irrelevante, ou é observado que as teorias não estão na mesma realidade social que medra eventos como a segunda guerra. A sexta premissa (vi) é o desejo de a disciplina tornar-se uma “ciência madura”. Este desejo está implícito na ideia da resolução dos debates a partir da “vitória”. A percepção de que existiria uma teoria vencedora, associada ao contínuo estado de debate, indica que não teríamos ainda alcançado o estado de unidade adequado a produção científica. Assim, as seis premissas que ancoram esta história são: (i) Fixação de uma data formal para o nascimento da disciplina; (ii) Antropologia hobbesiana; (iii) Identidade entre “sucesso teórico” e “correção teórica” (Darwinismo teórico); (iv) Teorias recentes são melhores que as antigas (v) Temas e agendas surgem da realidade social, já teorias não; (vi) Desejo de a disciplina tornar-se uma “ciência madura”. No capítulo seguinte, ao realizarmos a crítica ontológica, debatemos estas premissas.

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3. A IDOLATRIA EPISTEMOLÓGICA Ser bem sucedido não é idêntico a estar certo [...] Nosso senso de certo e errado está entrando em extinção pela nossa preocupação com o sucesso, medido pelo dinheiro.52 George Soros (1997)

Nem tudo autodenominado “história” efetivamente é. A palavra, per se, não revela o verdadeiro. Este só emerge da correta costura entre o designativo e o real, na fórmula filosófica: Adaequatio rei et intellectus. Tendo em vista a narrativa apresentada no capítulo anterior, neste capítulo apresentamos: (3.1) Uma crítica ontológica e (3.2) uma crítica ao seu estatuto de história. Em primeiro lugar, é importante destacar o movimento intelectual de revisão da história da disciplina. Este movimento contesta, com sólidos argumentos, a existência empírica do primeiro grande debate53. Diversos acadêmicos defendem que este debate teria sido um mito (SCHMIDT, 2012) (ASHWORTH, 2014) (CARVALHO et al, 2011) (WILSON, 1998) (BELL, 2009). O argumento gira em torno do fato de que não existiu uma escola de pensamento idealista, nem houve um “debate” entre ela e os realistas. Nas palavras de Ashword (2014): O problema com esta história, emocionante e sensível, é que não há evidência dela. Assim como os arqueologistas tentaram encontrar a Grã-Bretanha do século sexto, vários historiadores do pensamento internacional e da teoria de RI cavaram o fundo (em textos antigos, em arquivos e em papéis privados) e falharam em encontrar essa batalha titânica perdida. Mais ainda, as lições dos eventos deste tempo, especialmente da década de 1930 à corrida para a Segunda Guerra Mundial, até contradizem o mito.54

Assim, o primeiro grande debate teria sido um “espantalho” criado por pensadores da década de 50 e 60 cuja funcionalidade principal seria indicar o caráter vitorioso do realismo. Não por acaso o primeiro grande debate é aquele que é apontado, por alguns de

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“being successful is not identical with being right. […] Our sense of right and wrong is endangered by our preoccupation with success, as measured by money.” 53 Mesmo adeptos da história dos grandes debates, como Waever, reconhecem que o primeiro grande debate foi uma imagem criada pelos realistas. Cf: (WAEVER, 2005). 54 “The problem with this story, exciting and simple though it is, is that there is no evidence for it. Like the archaeologists trying to find sixth century Britain, various historians of international thought and IR theory have dug down (in old texts, in archives and in private papers) and have failed to find this lost titanic battle. What is more, the lessons from the events of the time, especially from the 1930s and the road to the Second World War, even contradict the myth.”

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seus expoentes (JACKSON; SØRENSEN, 2007), como “o único que teve um vencedor claro”. Segundo Carvalho et al (2011, p. 737), o primeiro grande debate é equivocado por quatro questões: [...] Em primeiro lugar, porque apresenta a disciplina como uma extrapolação ahistórica distinta dos desenvolvimentos correntes e que concerniam às relações internacionais; em segundo lugar, porque permite a leitura historiográfica da disciplina onde certas perspectivas teóricas vencem devido a sua habilidade de explicar o chamado “mundo real”; em terceiro lugar, porque esconde as fundações racistas e eurocêntricas da disciplina fornecendo por um lado uma leitura “Whiggish” do nascimento da disciplina, e por outro, fornecendo uma epistemologia empirista que é mal equipada para lidar com os multifacetados e transformadores desafios que confrontam a disciplina hoje; e, em quarto lugar, seguindo o último, o problemático pressuposto de que as RI submeteram um miraculoso nascimento virgem que ocorreu quase na noite de 1919 seguindo um esgotante período de 48 meses de gestação nos campos ensanguentados da Europa.55

Ao que pudemos verificar, as críticas historiográficas - à exceção de Carvalho et al. (2011), Ashword (2014) e Bell (2009) - não contestam muito mais do que a existência empírica do primeiro grande debate. Indo além deste movimento, defendemos que não somente este debate é um equívoco. Acreditamos, na verdade, que a “forma” desta história é problemática em si mesma. Portanto, na seção seguinte esboçamos uma crítica ontológica a esta abordagem, e não uma crítica historiográfica.

3.1. Uma Crítica Ontológica Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Marx & Engels (2007, p. 94)

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“[…] firstly, because it presents the discipline as an ahistorical extrapolation backwards of current developments and concerns in international relations; secondly, because it allows for a reading of the historiography of the discipline where certain theoretical perspectives win out due to their ability to best explain the so-called ‘real world’; thirdly, because it glosses over the Eurocentric and racist foundations of the discipline by providing a Whiggish reading of the discipline’s birth on the one hand, while, on the other, providing an empiricist epistemology that is ill-equipped to handle the many-faceted and constantly changing challenges that confront the discipline today; and, fourthly, and following on directly from the third, is the problematic assumption that IR underwent a miraculous virgin birth that occurred almost overnight in 1919 following a gruelling 48-month gestation period on the blood-drenched battlefields of Europe”.

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De acordo com Duayer (2012, p. 39), crítica efetiva é crítica ontológica. De fato, se a ontologia lida justamente com os primeiros princípios, o equivoco nestes compromete o resto do edifício teórico. Nesta seção criticamos a forma e as premissas da história dos grandes debates, indicando seu caráter mistificador em vista daquilo que denominamos “Idolatria Epistemológica”. As premissas apresentadas no capítulo anterior constituem elementos de uma constelação ontológica e epistemológica. Moldam a “forma” desta história, isto é, a forma rígida por onde o conteúdo histórico é captado, apreendido e apresentado. Assim, retomamos as premissas: (i) Fixação de uma data formal para o nascimento da disciplina; (ii) Antropologia hobbesiana; (iii) Identidade entre “sucesso teórico” e “correção teórica” (Darwinismo teórico); (iv) Teorias recentes são melhores que as antigas (v) Temas e agendas surgem da realidade social, já teorias não; (vi) Desejo de a disciplina tornar-se uma “ciência madura”. (i) A data formal de nascimento da disciplina (1919) sugere uma concepção atomística e mecânica do mundo (CARVALHO et al, 2011), especialmente por marginalizar as posições anteriores a este fatídico ano. Com ela, perde-se a processualidade e a dimensão qualitativa que medra tanto o surgimento do objeto, quanto da ciência. O quantitativismo, restrito a sincronia, diminui as contribuições anteriores ao “nascimento” do campo (i.e. contribuições da “pré-história”), ainda que estas contribuições sejam centrais. (ii) A antropologia hobbesiana (Homo homini lupus), está implícita nos grandes debates, com a ideia dos combatentes teóricos lutando “até a morte”, em um mundo autônomo e anárquico, em busca da “verdade”. A despeito de não existir nenhuma comprovação antropológica de que o ser humano é naturalmente mau, a questão é que até os “debates” que culminam em vitória, são uma ilusão nas ciências humanas. Pois, em vista da natureza destas, e do tipo de debate aceito pela seara positivista, não há discussão profunda, apenas discussão de casos. Assim, a ideia de debate é equivocada, pois cada qual partindo de ontologias e epistemologias distintas encontra elementos e respostas condizentes com sua teoria. Portanto, não há contato entre as posições. A ausência empírica dos debates, apesar da óbvia evidência das controvérsias, é um indicativo disto.

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(iii) A identidade entre “sucesso” e “correção” (i.e. “vitória” e “verdade”) imagina que os atributos teóricos e analíticos explicam o sucesso de certas teorias na academia e na política, e não a realidade social e a política. Esta premissa é, na verdade, um desdobramento da premissa anterior, com a ideia da vitória do mais forte. Este tipo de “verdade pragmática” é defendido até por Popper, sob a ideia de um “Darwinismo teórico” (LÖWY, 2013). O equívoco desta abordagem está em desconsiderar que o sucesso em ciências humanas, se coloca muito mais por atributos sociais (extra-teóricos) do que por uma “correção” na apreensão do objeto. O nosso próprio caso demonstra isto (i.e. a história dos grandes debates é equivocada empiricamente e, ainda assim, é a principal narrativa). Assim, identificar a teoria da moda como “a melhor teoria” é uma concepção equivocada e idealista da realidade, por não perceber que as teorias sociais respondem dinamicamente à realidade social. (iv) A premissa de que o novo é melhor que o antigo guarda uma visão linear e modernizadora de tempo, que poderíamos chamar de “temporalidade consumista”. Esta “narrativa progressista das relações internacionais” tem sido combatida pelo novo movimento historiográfico (BELL, 2009, p. 6). Quando se imagina que teorias e abordagens recentes são necessariamente melhores que as antigas, perde-se, novamente, a vinculação da ciência com a realidade, caindo na reprodução do espírito evolucionista do século XIX. Ademais, este equívoco é, em certa medida, uma tradução da antiga e problemática disjuntiva “civilização e barbárie”. O século XX demonstrou até a civilização europeia que não há relação necessária entre o tempo e o progresso. Diz Walter Benjamin (1987, p.3) na sua 9ª tese sobre a história56: Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

(v) Já a ideia de que as teorias não têm vinculação direta com a realidade social e política é simbólica. Esta ideia é verificada quando se aponta o impacto exógeno das 56

A perspectiva de Walter Benjamin que também critica à noção de progresso, é distinta da perspectiva aristocrática de Nietzsche. Neste sentido, conferir: (LÖWY, 2002).

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guerras na disciplina (i.e. “formando agenda”, “mostrando a verdade das teorias”), mas não se apresenta as teorias enquanto produtos desta mesma base real/social. Esta autonomia da produção do conhecimento em relação à realidade (i.e. da epistemologia em relação à ontologia) sugere que a realidade comprova a verdade ou inverdade de uma teoria, mas não que esta mesma realidade produz as teorias. Em outras palavras, temas e agendas até surgem (atomisticamente) do mundo, mas a ciência e as teorias habitam, nesta perspectiva, um mundo independente. Esta autonomia sugere que a história da disciplina não precisa ter relação direta, apenas relação marginal e atomística com a história concreta. Este descolamento/autonomia da epistemologia é equivocado, conforme detalhamos nos princípios do trabalho. Pois, antes de participar de uma esfera autônoma da realidade (um mundo paralelo), a ciência e os cientistas estão enraizados e respondendo as dinâmicas da realidade social e política. (vi) O desejo de tornar as Relações Internacionais uma “ciência madura”, onde um único paradigma seria o dominante, novamente não apreende a especificidade das ciências sociais em relação às ciências naturais. A ideia de um paradigma, “vencedor”, é concebível para as ciências naturais, onde, por exemplo, o modelo geocêntrico foi substituído pelo modelo heliocêntrico e assim por diante. Nas ciências sociais é possível falar de uma teoria dominante, mas não de um “paradigma”, pois paradigma - na perspectiva de Kuhn implica a ideia de unidade, que é ausente das ciências humanas (SAYAD, 2013) (ASSIS, 1997). As ciências humanas são, por essência, plurais (i.e. seu atributo principal é que estas não são “ciências maduras”), justamente porque refletem interesses sociais antagônicos. Portanto, estas premissas são equivocadas, interessadas e conservadoras. A “forma” que elas embasam, perverte o “conteúdo” da narrativa. Assim, a forma da história dos grandes debates mistifica o processo de transformação teórica e, quando materializada nas salas de aula e nos livros introdutórios, encaminha estudantes para um problemático consenso, a legitimação das teorias tradicionais (positivistas e empiristas), que compartilham a mesma matriz desta narrativa. Em outras palavras, estas seis premissas podem ser sintetizadas em uma premissa maior: “a percepção positivista 57 das ciências sociais”.

Esta percepção sugere que

57

O positivismo, geralmente apresentado como uno, ganhou distintas tonalidades em seu desenvolvimento. Entretanto, suas diversas tonalidades não excluem seus elos principais que formam uma “matriz positivista” Cf: Acesso em 3 de fevereiro de 2015.

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pesquisadores buscariam a verdade e os fatos de forma desinteressada, tendo a ciência autonomia em relação à sociedade e aos socius. Obviamente se houvesse esta autonomia, a teoria vitoriosa seria a melhor teoria. Entretanto, esta autonomia não existe. É simbólica a ideia de “vitória”, ou seja, a concepção de que a teoria com maior aplicação pragmática seria a verdadeira, a teoria mais correta. Esta ideia compreende as ciências sociais a partir do “naturalismo positivista” imaginando e almejando que as ciências sociais tornem-se uma “ciência madura”, como as ciências naturais - onde apenas um paradigma existiria e todos trabalham para “o bem da ciência”. Ou seja, nesta perspectiva as ciências sociais só são plurais por um viés pré-científico, e não por sua própria essência. Assim, este atraso poderia e deveria ser superado. Entretanto, como já ressaltamos diversas vezes, esta percepção é equivocada, pois há diferença de essência entre as ciências humanas e as ciências naturais ou exatas58. A percepção de insulamento pleno da ciência social é falsa, esta ciência nunca está dissociada do real. Portanto, é a “matriz positivista59” a base de sustentação destas premissas e de seus equívocos. Ademais, o positivismo guarda, dentro de si, uma série de idolatrias. Em especial, podem ser destacadas duas, a “idolatria metodológica” e a “idolatria científica”. A idolatria metodológica é apregoada por sociólogos positivistas como Durkheim, ao afirmar a necessidade do rigor para com o método. Já a científica, é a idolatria das ciências naturais, especialmente a sua unidade de abordagem, seu debate de casos, seu sucesso, etc. Estas idolatrias podem ser entendidas, em termos hegelianos, como expressão de uma idolatria maior: A “idolatria epistemológica”. Isto é, a exacerbação da importância da epistemologia em relação à ontologia (realidade). É precisamente este fenômeno que possibilita e esconde os equívocos daquelas premissas e da forma desta narrativa. Quando a esfera epistemológica (dependente) é a esfera principal, são dissociadas e escondidas às dinâmicas da realidade. Ou seja, caso esta “manobra” não fosse realizada não haveria sequer a possibilidade de uma história nesta forma.

58

Esta diferença de essência não implica tomar uma posição anti-naturalista, que seria um equívoco de matriz antropomórfica. A diferença de essência é base epistemológica, não ontológica. 59 Utilizamos “matriz positivista” para fazer referência não apenas ao positivismo, mas também ao neopositivismo e, em alguma medida, ao pós-positivismo em filosofia da ciência. Uma vez que estas correntes compartilham uma visão distorcida das ciências sociais, da objetividade em ciências sociais, etc. Cf: (LÖWY, 2013, p. 25-63).

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Esta categoria indica uma exacerbação da importância da produção do conhecimento. Justamente esta exacerbação possibilita perder os vínculos com a realidade, e esconder o caráter positivista, conservador e empirista desta abordagem. Como coloca a dialética, é enganoso isolar a parte do todo. Assim, como é enganoso tomar a ciência, a produção e reprodução de conhecimento, enquanto distintos e dissociados da realidade social. O clamor de “livre de valores” (value-free), postulado pelas teorias cientificistas ou behavioristas é a expressão última deste engano primário. Como observa Löwy (2013, p. 126), a história da ciência: “não pode escapar aos condicionamentos sociais e não se move no espaço e no tempo de forma independente do movimento histórico concreto.” Ademais, a idolatria geralmente caminha com o sacrifício. Neste caso, é possível observar alguns sacrifícios, como a marginalização de abordagens distintas daquelas em debate (SCHMIDT, 2012), de ontologias e antropologias distintas da que embasam a história, bem como o mascaramento dos interesses que as teorias guardam em si. Sendo, portanto, uma espécie de “violência simbólica”, nos termos de Bourdieu, que faz reverberar ontologias conservadoras e as teorias associadas a elas, em detrimento das perspectivas críticas. Marx disse sobre o “fetichismo da mercadoria”, que as mercadorias aparentavam ser autônomas em vista da realidade social. No nosso caso, a epistemologia, a produção de conhecimento, é efetivamente tomada como autônoma e dissociada da realidade. A mistificação e equívoco da narrativa dos grandes debates é um desdobramento deste ponto. Assim, esta história não passa de mitologia, e como observa Bell (2009, p.5): Mitos, em uma leitura antropológica, são narrativas muito simplificadas que atribuem sentidos fixos e coerentes a eventos selecionados, pessoas e lugares. Eles são facilmente inteligíveis e transmissíveis, e ajudam a constituir ou apoiar visões particulares do ego, da sociedade e do mundo. Como muitos mitos políticos – incluindo o mito da nação – eles assumem formas comuns, a despeito da grande divergência de parcelas que eles narram: ‘histórias da origem e fundação, histórias das façanhas da cultura do herói, histórias do renascimento e renovação, e histórias escatológicas’. As mitologias da disciplina realizam varias funções legitimadoras, classificando algumas posições como produto do progresso intelectual, jogando outras para sempre na lata de lixo da história.60

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“Myths, on this anthropological reading, are highly simplified narratives ascribing fixed and coherent meanings to selected events, people and places. They are easily intelligible and transmissible, and help to constitute or bolster particular visions of self, society and world. Like many political myths—including myths of the nation—they often assume common forms, despite the widely divergent plots they narrate: ‘stories of origins and foundings, stories of the exploits of culture heroes, stories of rebirth or renewal, and eschatological stories’. Disciplinary mythologies perform various legitimating functions, classifying some

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Ou seja, o mundo e a ciência social não são assim, a ontologia que embasa esta história é ilusória. Uma narrativa que guarda uma concepção de mundo desta forma é necessariamente mistificadora. E, pior, mascara os interesses dos quais as teorias sociais nunca estão dissociadas. Portanto, esta narrativa, em sua forma, é equivoca, especialmente por sua “idolatria epistemológica”.

3.2. História? Como observamos na seção anterior, esta narrativa torna adjetivo aquilo que é substantivo, retirando o elo entre ontologia e epistemologia, tornando autônoma a última esfera. Marginalizando a ontologia, oculta as dinâmicas de poder fundamentais a produção e reverberação das teorias. Em vista do equívoco empírico, denotado pela historiografia, e do “equívoco ontológico”, esta história ainda pode ser caracterizada como “história”? Para poder caracterizar ou descaracterizar algo é necessário uma definição analítica. Ou seja, é necessário um entendimento do que é história. De acordo com Novais e Da Silva (2011), a história busca a reconstituição dos fatos, sendo este seu único e principal objetivo. Portanto, a história não busca explicar, exceto quando a explicação auxilia a reconstituir. Inversamente, para estes autores, uma ciência social se caracteriza pela busca de explicar o mundo, assim à reconstituição só fará parte quando auxiliar na explicação. A distinção entre história e ciência social é, portanto, uma questão de meios e fins. Na história o meio pode ser a explicação, mas o fim é a reconstituição. Já na ciência social o meio pode ser a história, mas o fim é a explicação. Esta caracterização auxilia, sobremaneira, a diferenciar, por exemplo, a “história econômica” da “interpretação econômica da história”. Pelos equívocos já mencionados, formais e empíricos, não é possível caracterizar esta narrativa enquanto história. Mas o que seria, então, esta narrativa? É possível afirmar,

positions as the product of intellectual progress, others as consigned for ever to the proverbial dustbin of history.”

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que esta narrativa é uma ciência social retrospectiva? Algum tipo de “interpretação realista da história da disciplina” 61? Entretanto, qual a explicação que esta narrativa fornece? Segundo Ashword (2014), esta narrativa conta mais sobre as três últimas décadas, do que sobre o percurso intelectual do campo. Assim, esta narrativa, antes de ser uma interpretação da história, é uma narrativa presentista, whiggist. Contando mais sobre o hoje do que sobre o passado, ela poderia ser mais bem caracterizada enquanto retórica. A retórica, segundo Aristóteles, é a apropriação das atenções do público, sendo seu fim/objetivo não a verdade, mas a persuasão. Como explica Umberto Eco (2005, p. 281): O discurso persuasivo [...] quer levar-nos a conclusões definitivas, prescreve-nos o que devemos desejar temer, querer, e não querer. [...] o primeiro grande teórico do discurso persuasivo foi Aristóteles na sua Retórica [...] [que] prescreveu as regras de um discurso que, partindo de “opiniões comuns”, leve o ouvinte a assentir, a concordar com aquele que fala [...] Não foi por acaso que a técnica do discurso persuasivo nasceu em uma sociedade democrática, como a grega. Tenho necessidade de discursos persuasivos somente quando preciso convencer as pessoas a quem peço o livre consentimento.

Não é precisamente o que ocorre com uma narrativa que esconde os interesses das teorias, que toma uma visão linear e progressiva da história idolatrando o novo (“neo”, ou o “pós”), que guarda uma antropologia hobbesiana (curiosamente presente nas principais teorias das RI), que guarda uma percepção atomística de mundo? Assim, esta narrativa é retórica, e, tendo em vista que ela é apresentada em manuais introdutórios, sua função também é pedagógica. Observado estas questões, não é surpresa constatar a retroalimentação entre as teorias tradicionais e a tradicional forma de contar a história da disciplina.

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Posto a obsessão pelo conflito, pela vitória e a percepção positivista das ciências sociais.

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4. PROPOSTA & ESBOÇO62 Se examinarmos um indivíduo isolado sem o relacionarmos com o que o rodeia, todos os seus atos nos parecem livres. Mas se virmos a mínima relação entre esse homem e quanto o rodeia, as suas relações com o homem que lhe fala, com o livro que lê, com o trabalho que está fazendo [...] verificamos que cada uma dessas circunstâncias exerce influência sobre ele e guia, pelo menos, uma parte da sua atividade. E quantas mais influências destas observamos mais diminui a ideia que fazemos da sua liberdade, aumentando a ideia que fazemos da necessidade a que está submetido. Tolstoi63

Em vista da seção anterior, que realçou insuficiências da “história dos grandes debates”, nesta seção estruturamos (4.1) uma proposta imanente para a história da disciplina e (4.2) realizamos um pequeno esboço de como poderia ser esta história. Nesta seção consideramos especificamente as teorias sociais em um contexto de capitalismo avançado. Assim, quando mencionamos teorias, queremos dizer teorias sociais e, quando consideramos a teoria como produto do trabalho imaterial, não buscamos uma regra geral e invariável da proposta, pois acreditamos que, se há alguma validade na proposta, esta só se mostraria no sistema capitalista avançado.

4.1. Uma Proposta Imanente64 Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.65 Voltaire

A teoria, quando dissociada de seu contexto social, do autor que a criou, e de seus condicionantes históricos parece ser expressão livre e desinteressada na busca pela 62

Esta seção é altamente panorâmica e, mesmo, superficial, uma vez que lida com quase 100 anos de história, mundial e científica. Apesar de seus defeitos, seu intuito é realçar a possibilidade de se contar a história da disciplina em concomitância com a história mundial. 63 Disponível em Acesso em 2 fevereiro de 2015. 64 Por proposta “imanente” queremos ressaltar o seu viés “não transcendente”, ou seja, a conexão com o movimento do real. Afinal, o principal problema da história tradicional é a separação e autonomização da esfera epistemológica, desconectando o desenvolvimento da disciplina ao seu terreno histórico e obscurecendo a produção e interesse que necessitam e fazem emergir as “teorias científicas”. 65 Si Dieu n'existait pas, il faudrait l'inventer.

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“verdade”. Entretanto, quando a relacionamos ao seu contexto social e político, desvelamos suas bases metateóricas e observamos seu condicionamento histórico, percebemos que ela, antes de ser uma expressão livre, é na verdade um produto necessário de seu tempo e de sua sociedade. Não por acaso, a sabedoria popular diz que “a necessidade faz a criatividade”. São precisamente as necessidades políticas e sociais que fazem surgir às teorias, incluindo aquelas cinicamente auto-proclamadas “livre de valores”. No capítulo anterior debatemos a “Idolatria epistemológica” e o seu encobrimento dos interesses das teorias. Portanto, é preciso repensar a história da disciplina, buscando superar este equívoco. Acreditamos que a ontologia dialética fornece substância para uma história mais concreta. Assim, é da processualidade histórica para as interpretações teóricas, não o inverso, que deveríamos partir. Buscando a íntima e imanente relação dialética entre pensamento e prática. Toda teoria tem sua forma teórica determinada pela sua forma social. Isto é, as teorias hegemônicas de uma ciência só o são por atender aos interesses e demandas de grupos e classes sociais. Como aponta Robert W. Cox, seguindo a trilha da “Escola de Frankfurt”, a teoria é sempre para alguém e para alguma coisa (Theory is always for someone and for something). Entretanto, este autor não foi até os últimos desdobramentos deste insight. Pois, se sua caracterização é correta, a dinâmica da teoria não é muito distinta da dinâmica da mercadoria. É precisamente tratando a teoria enquanto “mercadoria imaterial”, que imaginamos suscitar uma história mais concreta. Realizando a crítica do trabalho no capitalismo, Marx aponta que o trabalho neste sistema é caracterizado como “trabalho abstrato”. Ou seja, o trabalhador, elemento indispensável à criação do valor, está invisível nas trocas de mercadorias, ainda que seja ele que possibilite estas acontecerem. Ademais, Marx afirma que o “segredo da mercadoria” não está em uma propriedade mística em seu conteúdo, mas “na sua própria forma”. Isto é, na relação social que ela esconde, no trabalho abstraído de seu corpo físico. Portanto, o “segredo da teoria” só é revelado apreendendo a relação social que lhe constituiu, procedimento só possível quando a teoria é recosturada à realidade social que a engendrou. Ademais, teoria e mercadoria são produtos sociais, criadas por meio do trabalho humano. Entretanto, diferente das mercadorias comercializáveis, a teoria não é 48

intercambiável, pois têm caráter imaterial. Mesmo assim, tal qual a mercadoria material, a teoria tem duas esferas (produção & circulação) e sua produção atende às demandas sociais e políticas. Pensar a teoria enquanto mercadoria não é novidade. Boaventura S. Santos (2008) cita em seu artigo a ideia, pensada há mais de um milênio por Luciano de Samosata, da “venda de filosofia”. A ideia é que, uma vez posta à venda, desnuda-se, em vista das perguntas inesperadas, as propriedades essências que as teorias buscam esconder. Entretanto, nem Santos nem o autor da ideia da venda de filosofias trabalham com a descoberta marxiana, sua teoria do valor. Segundo Jappe (2006), esta seria a principal contribuição teórica de Marx. Isto é, foi Marx, em vista de suas condições sócio-históricas quem descortinou as relações mercantis em sua unidade básica: a mercadoria. Sobre esta, Marx aponta o “fetichismo da mercadoria”, fenômeno onde, na sociedade capitalista, as relações efetivas parecem ocorrer entre coisas e não entre seres humanos. A lógica do trabalho abstrato, presente no corpo das mercadorias e escondida pelas ideologias conservadoras66, assemelha-se à “concepção de ciência positivista”. Neste caso, pregando o sujeito ausente, a teoria é abstraída do terreno onde foi produzida (i.e. todas as implicações desta produção são excluídas)67. É diferente a lógica do trabalho abstrato nas mercadorias materiais da descontextualização histórica da teoria68? Como corretamente observa Selis (2011, p. 18) “[...] uma vez descontextualizado todo conhecimento torna-se potencialmente absoluto”. E, além disto, torna-se: (i) potencialmente neutro e desinteressado (ii) autônomo em relação as dinâmicas de poder sociais e acadêmicas (micro-poder); (iii) distante das dinâmicas de poder nacionais (macropoder). Ou seja, a idolatria epistemológica e outras formas de mistificação, escondem os interesses e as dinâmicas exploratórias e, assim, se assemelham ao trabalho abstrato inserido na mercadoria, que esconde as relações de exploração por detrás da mercadoria. Todos os agentes e sociedades têm interesses. Entretanto, este interesse, ao mesclar-se a conceitos e categorias, vira “teoria” e transforma-se. A teoria segue sendo interesse (de 66

Este “encobrimento” é perceptível no abandono da teoria do valor pela economics. Ressalte-se, que nem sempre se percebe a magnitude destas implicações. 68 Uma vez descontextualizado o conhecimento segue a mesma lógica do trabalho abstrato inserido na mercadoria. Tudo está lá, embutido, mas a priori (ex ante) não se percebe. A dinâmica mercantil estando presente na teoria ela pode ser estudada, em alguma medida, por ela. 67

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classe, de governo, de sociedade), mas quando aparecem como teoria, os interesses objetivos que a precederam e preenchem seu conteúdo pode aparecer sob o mantra da neutralidade, instrumento caído do céu para apreender a realidade. Assim, quando se torna teoria, o “interesse” coloca uma máscara que esconde sua verdadeira face. E, enquanto não houver sua recostura a realidade que a engendrou, a face “verdadeira” será a máscara. Assim, nossa proposta pensa a teoria enquanto relação social, permeada por interesses que se escondem sobre a batuta do “livre de valores” (value-free). Assim, não apreende todo o conteúdo teórico, mas a forma social que determina este conteúdo. Desta maneira a teoria, além de ser uma mercadoria imaterial tem: (i) trabalho abstrato; (ii) relações de classe; (iii) esfera produtiva e esfera circulacionista; (iv) valor (prestígio); (v) Fetichismo; (vi) Transformação da matéria teórica; (vii) DIT (i.e. centro pensa, periferia reproduz).69 Em outras palavras, o trabalhador, em vista da demanda social, transforma palavras, conceitos, aportes teóricos e seu pensamento em uma teoria. Quando alça sua teoria ao mercado teórico seu trabalho pode tornar-se trabalho abstrato (i.e. neutralidade científica). Sendo trabalhador, a sociedade em que vive é cindida em classes, com interesses antagônicos. Daí o sucesso ou fracasso de sua mercadoria imaterial não se dá pelo conteúdo específico da abordagem, mas pela forma social que atende ou não as demandas práticas de uma sociedade70. O fetichismo nascido do trabalho abstrato só se revela ao compreender a teoria como uma relação social. Ademais, e por fim, tal qual o mundo se divide em uma DIT, a epistemologia mimetiza esta relação, onde o centro produz teoria e a periferia a compra ou é seu objeto de análise. Assim, faz-se necessário, contextualizar o conhecimento, apresentar sua vinculação ao solo que o gerou e repercutiu. Esta contextualização se coloca, segundo nossa 69

Em face desta última é interessante pensar a categoria necessidade na transformação da economia política em economia, e, no mesmo momento, no abandono da teoria do valor trabalho, em favor da teoria da utilidade marginal (que implica uma “cirurgia” para separar e retirar a esfera produtiva da esfera circulacionista). Esta transformação, dos clássicos para os neoclássicos, se deu em face de uma necessidade objetiva da classe burguesa que, ascendendo ao poder, tornava-se conservadora, e não poderia admitir uma epistemologia que conduzisse a reflexão à problemática do conflito entre as classes. A necessidade da conciliação, de uma teoria apologética, foi preenchida pela perspectiva neoclássica. Este episódio particular denota elementos para se pensar outros momentos históricos, como aquele onde os EUA ascendem a potência hegemônica e necessitam de teorias que embasem suas ações e sua administração do mundo. 70 Uma vez que, no capitalismo, o valor de uso é secundário em relação ao valor de troca. A água não é vendida por que sacia a sede humana, mas porque existe demanda desta mercadoria.

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concepção, por meio de um processo de costura e moda, ou seja, “costura” o conhecimento a realidade sócio-histórica em que foi produzido e que observa seu sucesso, sua transformação em “moda”, mais por atributos reais do que ideais (i.e. mais pelos horizontes de expectativa - vinculados aos interesses materiais da sociedade de que é parte - do que por atributos analíticos internos). Assim, uma teoria se torna moda em vista das condições materiais do solo por onde se espalha. Solos permeados por relações de classe e poder. Mais ainda, pensamos que a categoria de “necessidade” é mister para compreender o surgimento de dadas teorias em dados contextos, como necessidades em face de problemas objetivos enfrentados por uma sociedade ou por uma classe. Por exemplo, a teoria neorrealista, em sua forma, atende a demandas sociais e políticas, e caso contrário não teria sucesso. Tais como: (i) justificar gastos bélicos; (ii) ser apologética do Estado hegemônico; (iii) propiciar ou justificar ações do Estado hegemônico; (iv) apontar para o caráter imutável do sistema (i.e. exclusão do tempo), defendendo os padrões estabelecidos. Enquanto a teoria liberal atende as mesmas necessidades, por outra trilha, com elementos como: (i) apologética do sistema econômico; (ii) mistificar a compreensão aprofundada das estratégias econômicas do Estado hegemônico.

4.2. Do Outono à Primavera71: O percurso de uma ciência reificadora Se pudéssemos parar o tempo, poderíamos escapar da morte – o fato de que não podemos nos faz, em última instância, impotentes, nos iguala à peça de madeira a deriva na correnteza do rio. O medo da morte é assim transformado em medo do tempo.72 Hans Reichenbach (1971, p. 4)

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A imagem das estações é uma forma de apresentação das ideias, entretanto o leitor deve entender essa imagem como somente um instrumento heurístico para apresentar as ideias de forma ordenada. Não é nossa intenção ressaltar a existência de um movimento “estacional” na história. Essa interpretação é totalmente contraditória com os princípios que guiam nosso trabalho, tal qual apresentados nas notas introdutórias. 72 If we could stop time, we could escape death – the fact that we cannot makes us ultimately impotent, makes us equals of the piece of lumber drifting in the river current. The fear of death is thus transformed into a fear of time…”

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Reconstruir uma história já estabelecida não é simples, nem é possível nos limites deste trabalho. Assim, nesta seção buscamos realçar pontos fundamentais que não são sequer considerados pela narrativa atual. Ademais, em vista de nosso pouco conhecimento em tradições distintas da ocidental, nos restringimos a esta perspectiva. Nosso principal objetivo é indicar a possibilidade de apresentar os movimentos da disciplina sem cair na equivocada caracterização de “Grandes debates”, ou outros reducionismos. Nesta seção, buscamos realizar um esboço de três momentos importantes para a disciplina: (4.2.1) a “demanda por uma nova mercadoria”, (4.2.2) as “mercadorias administrativas” e (4.2.3) “diversidade epistêmica”. Sendo o nosso objetivo a busca do que está “por trás” das teorias. Ou seja, partindo da realidade buscamos descortinar as formas sociais que determinam – embora nem expliquem ou esgotem- o conteúdo teórico.

4.2.1. O Outono Europeu: Do imperialismo à demanda por uma nova mercadoria. Em primeiro lugar, é importante retomar o desenvolvimento do pensamento econômico e o abandono da teoria do valor pela economics. Esta observação auxilia a compreender o desenvolvimento histórico das Relações Internacionais. Como se sabe desde meados de 1830 a economia clássica vai criando novos contornos. Mas, particularmente nos anos de 1870, com a chamada “revolução marginalista”, se modificam os traços desta ciência dali até os nossos dias. Esta mudança, que retira a teoria do valor, e impossibilita o pensamento dialético, também retira potencial heurístico da economia, especialmente em relação às grandes questões. A especialização e matematização de seu objeto fornecem elementos a esta ciência para lidar com fenômenos específicos, mas cria insuficiências heurísticas na compreensão dos fenômenos sistêmicos. Esta transformação da ciência econômica torna a economia política uma subárea, retirando a teoria do valor e a possibilidade do pensamento dialético se situarem ao centro do debate73. Este movimento, de fatiar e tornar mais empírica à ciência é indispensável para a atividade servir aos propósitos do mercado e da burguesia. O conservadorismo e o 73

Destaque-se que mesmo dentro do pensamento crítico, o começo do século XX é marcado pelo pensamento positivista. Um exemplo evidente é a segunda internacional.

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empirismo sempre andam de mãos dadas. E, assim como a economia especializou-se para estancar o pensamento crítico e melhor servir aos interesses pragmáticos das classes dominantes, as relações internacionais, que se consolidam mais tarde, se constituem marginalizando o pensamento dialético. Portanto, o imperialismo, por exemplo, iniciado em meados de 1870 que eclode em 1914, não encontra instância explicativa tradicional, nem na economia, nem em outra disciplina positivadas. O positivo, reificando o mundo, não busca transformações. Os debates sobre o “imperialismo” detinham este potencial analítico, como a historiografia demonstrou. Entretanto, estes debates sempre se travaram em uma subárea, nunca foram a órbita de uma ciência. O acirramento da corrida imperialista desdobrou-se na Primeira Guerra Mundial, eclodida em 1914, que fez ruir a chamada belle epoque. Hobsbawm (1995) classificou o período do começo da primeira guerra até 1948 de: “Era da catástrofe”. Esta “era” assinala o colapso “da civilização ocidental do século XIX”. Assim, a eclosão da grande guerra, em 1914, revela as insuficiências das ciências positivas em tratar deste fenômeno. Ou seja, uma demanda prática, não havia sido respondida teoricamente. A partir daí começa a germinar as Relações Internacionais enquanto uma área autônoma de estudos que, se possível, não deveriam se identificar com os debates do imperialismo, por suas implicações críticas. Compreendendo isto, é preciso buscar as causas do nascimento da disciplina. É em vista do desenvolvimento técnico, da destruição criativa do capital, que o mundo foi tornando-se pequeno e foram possíveis as guerras nas proporções observadas no século XX. Ou seja, uma das causas primárias que possibilitaram tanto ápice do horror, quanto o ápice do conforto, é justamente o movimento de acumulação de capital. Em grande medida as causas da primeira guerra mundial se colocaram pelo fenômeno do “imperialismo”. Como se sabe, boa parte da historiografia adotou como uma das principais causas para o surgimento da primeira guerra mundial justamente o fenômeno imperialista (HOBSBAWM, 2002). Entretanto, esta consideração passou longe da narrativa dominante da disciplina. 53

Esta ausência não ocorre por acaso. Como aponta Hollis e Smith (1990, p. 18), a disciplina se forma justamente nos países satisfeitos com o poder internacional após a Primeira Guerra Mundial, ou seja, EUA e Inglaterra. O debate do imperialismo, por exemplo, cria uma série de dúvidas à narrativa “espantalho” do primeiro grande debate. Logo, muitas vezes ao contestar teorias empiristas/positivadas não se percebe quão fundas são suas raízes. Nas relações internacionais estas raízes se confundem com o próprio solo. A possibilidade de contestação teórica, epistemológica, esconde a vitória ontológica do empirismo. Os próprios termos em questão enviesam a compreensão e o debate. É simbólico o quadro de Wendt, com as disjuntivas “materialismo e idealismo” e “agente e estrutura”. A ausência da temporalidade é produto deste movimento histórico. Assim, tal qual o “liberalismo embutido” se coloca nas organizações internacionais (RUGGIE, 1982) (MENDONÇA, 2013), podemos considerar que as Relações Internacionais têm uma espécie de “empirismo embutido”. Afinal, como se sabe, elas se constituem como ciência dentro da Inglaterra e, posteriormente, nos EUA, lugares marcadamente satisfeitos com o poder e com uma forte tradição empirista. Assim, a disciplina de Relações Internacionais, em sua forma ocidental e positivada, foi engendrada pelo processo histórico imperialista que culmina na primeira guerra mundial. E, enquanto grande parcela da historiografia adota esta perspectiva, a história dos grandes debates sustenta outra abordagem onde considerações sobre o capitalismo, imperialismo e colonialismo passam longe. Portanto, o surgimento desta nova disciplina é produto de uma insuficiência heurística das ciências positivas. Esta insuficiência cria uma demanda por uma nova mercadoria intelectual. Que, desde o começo, recebeu indicativos sobre sua forma, sobre o que deveria e o que não deveria possibilitar. E entre o começo da primeira e o fim da segunda guerra mundial a Europa ruiu. Tal qual caem às folhas no outono, a Europa após 1945 não pode mais ser o centro capitalista global. Assim, a disciplina ainda passaria por mudanças importantes. Criada no velho mundo, seus contornos serão desenvolvidos nas academias e gabinetes norte-americanos, a nova hegemonia mundial.

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4.2.2. O Inverno do Mundo: Institucionalização nos EUA e mercadorias administrativas. Nos Estados-Unidos a disciplina se desenvolve de forma carnal aos investimentos científicos norte-americanos no pós-guerra. Em vista da ascensão hegemônica deste Estado, pode-se considerar que os retornos esperados por estes investimentos eram instrumentais teóricos para consolidar e sustentar a hegemonia norte-americana. Em outras palavras, a mercadoria demandada deveria auxiliar na administração do sistema. A Guerra Fria é o traço político marcante do período posterior à Segunda Guerra Mundial. Esta, conforme se diz, criou a bipolaridade. Em concomitância a este ambiente político internacional, observa Hobsbawm (1995) que do final da segunda guerra até meados dos anos 60 o capitalismo viveu sua “Era de Ouro”. Onde um crescimento sustentado a partir da acumulação do modelo keynesiano-fordista (GUTTMANN, 1996), não enfrentou graves crises. Este período, também é caracterizado a partir do Welfare State na Europa, suscitando desejos e percepções de que aquela forma do capitalismo se sustentaria dali em diante. Não por acaso, neste tempo a marca do pensamento nas ciências sociais é o chamado “estruturalismo”, que indicava a impossibilidade de transformação da realidade pela ação humana (COUTINHO, 2010), traduzindo a indesejabilidade desta transformação. Assim, em meados da década de 70, a partir das obras de Keohane e Nye, se desenha na disciplina uma espécie de síntese neo-neo (WAEVER, 2005), entre as abordagens neorrealistas e neoliberais. Esta síntese, ancorada no estruturalismo, no positivismo, no empirismo, guarda relação direta com as demandas políticas norteamericanas. Ademais, o medo do tempo é a característica principal das abordagens conservadoras. Não por acaso, a tentativa de naturalizar, reificar e essencializar a natureza humana se colocam como o primeiro passo para justificar o mundo como ele é. O conservador com motivos sólidos para ser conservador, tem aversão a processualidade histórica (i.e. uma história atomística é até aceitável), pois esta denota o inevitável perecimento das coisas. 55

É imperioso constatar como o ano de 1968 modifica o pensamento na Europa, em particular na França. Do estruturalismo ao pós-estruturalismo, ou pós-modernismo. Esta mudança, em grande medida se coloca pelo declínio das bases de sustentação da era de ouro capitalista. Assim, conforme observa Terry Eagleton (apud VIOTTI, 1994) a geração de 68, incapaz de modificar as estruturas de poder, subverteu a linguagem. Igual maneira, só que em uma posição conservadora, incapaz de congelar o tempo no ápice do poder norteamericano, os acadêmicos congelaram a teoria, expurgando o tempo. Assim, este contexto de bem estar e satisfação, não dura muito tempo. A década de 70 marca uma ruptura na realidade capitalista internacional. A crise dos anos 70 criou desafios tanto à hegemonia norte-americana, quanto modificou a forma do capitalismo dali em diante. Portanto, em meio a Guerra Fria, o governo dos EUA investe significativas somas de dinheiro nas Relações Internacionais, esperando instrumentos teóricos para a administração da ordem. Sendo este o objetivo, nada mais natural do que congelar, ao menos na teoria, o tempo, buscando, pelas vias possíveis, tornar infinita a situação daquele período, de ápice do poder norte-americano

4.2.3. A Primavera Neoliberal: Obsolescência e diversidade epistêmica. A era de ouro capitalista começa a ruir no final dos anos 60. Mas é a década de 70, com o colapso de Breton Woods e as crises do petróleo, que a hegemonia norte-americana é desafiada. Não por acaso, nos anos 70 surge o debate sobre o “declínio” da hegemonia dos EUA, suscitado pelos trabalhos de Gilpin e Kindleberger. A crise dos anos 70 é emulada, ou traduzida, para o âmbito epistemológico. A teoria tradicional, buscando a reificação do presente, vai progressivamente tornando-se incapaz de explicar as mudanças no mundo. Este novo déficit heurístico vai derrubando os muros da disciplina.

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No começo da década de 80, para retomar a lucrabilidade do capital, uma nova forma de organização da produção capitalista foi estabelecida. Tendo a frente Ronald Reagan e Margaret Thatcher esta época, nomeada de neoliberal (HARVEY, 2008), inaugura uma nova forma de organização do capitalismo, regulado pelas finanças. Em concomitância a esta reorganização do capitalismo global e o declínio da URSS, surgem teorias que desafiam as abordagens tradicionais. As abordagens até então silenciadas e marginalizadas na disciplina “são chamadas à mesa”. A diversidade epistêmica, que brota em meados dos anos 80, é intensificada com a queda da bipolaridade, a ruína do muro de Berlim. Assim, os cercamentos epistêmicos (i.e. o congelamento/reificação do mundo bipolar e do capitalismo) caem com a insuficiência heurística das abordagens tradicionais em lidar com o mundo transformado e suas agendas e temas. Este período marca, ainda que com seus problemas, um começo de reflexão efetiva, não pragmática, sobre as relações internacionais.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nada es permanente, excepto el cambio. Heráclito

O verdadeiro é o inteiro. Mas o inteiro é só a essência que se completa mediante seu desenvolvimento.74 Georg W. F. Hegel

Acreditamos ter colocado em relevo a importância, tanto da reflexão metateórica, quanto de debater os pontos que as teorias e as narrativas não querem debater. A consideração dos primeiros princípios é indispensável para superarmos a superficialidade e a imediatez das abordagens tradicionais75. Ademais, o rigor investigativo sempre demanda coerência metateórica, mas isto, per se, não é suficiente. As perspectivas restritas aos fenômenos (como a ontologia empírica ou a ontologia antirrealista) têm um limitado horizonte de compreensão da realidade. A história dos grandes debates, a despeito das críticas que vêm sofrendo, tende a continuar por algum tempo como a principal narrativa da disciplina. Afinal, esta história cumpre a função de apresentar superficialmente as teorias, além de encaminhar o estudante ao pensamento tradicional. Sua funcionalidade é grande para os neorrealistas e os neoliberais, em vista de respaldar a antropologia competitiva, a percepção positivista da ciência, suas ontologias empíricas, etc. Mas não é disfuncional aos autonomeados “póspositivistas”. Afinal, a perspectiva de tempo linear ou progressiva - temporalidade consumista - que indica o novo (o “pós” ou o “neo”) como melhor, ancora tanto a nomenclatura desta abordagem, quanto o pensamento comum ocidental 76 . Por fim, em vista das críticas que vem sofrendo, destaque-se que a presença desta história não pode ser tão explícita como antes, e isto já é positivo. 74

“Il vero è l'intero. Ma l'intero è soltanto l'essenza che si completa mediante il suo sviluppo.” Ademais, não só as teorias bloqueiam a reflexão ontológica. Como mostra Duayer (2012), mesmo as filosofias da ciência ditas pós-positivistas defendem a incomensurabilidade dos “paradigmas” (Kuhn), ou do “núcleo duro” (Lakatos), das teorias. Ou seja, mesmo neste nível de abstração, a ontologia ainda é dogmaticamente excluída do debate científico. 76 Em vista da influência da religião cristã. 75

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Conforme a crítica realizada no terceiro capítulo, esta história é equivocada em sua raiz, ou melhor, na sua forma. Pois, em vista de sua idolatria epistemológica, a imagem de mundo desta narrativa é mistificada e esconde as dinâmicas efetivas de interesse que não estão ausentes nem das teorias sociais, nem das narrativas históricas. Entretanto, esta idolatria não é facilmente superável, pois a maior parte da ciência moderna está no leitmotiv da teoria do conhecimento, excluindo a reflexão ontológica. Nem realistas empíricos, nem antirrealistas, parecem ter interesse em “desbloquear” este tipo de reflexão. Pois, quando a ontologia desvela as essências teóricas, revela as insuficiências e fragilidades intrínsecas a cada abordagem. A compreensão distorcida da realidade é um produto desta negligência. Contestar a narrativa mitológica e retórica dos grandes debates implica reconsiderar as próprias teorias. Além disto, esperamos ter evidenciado que é frágil defender uma teoria de ciências sociais a partir do seu “sucesso”. O argumento de uma “teoria analiticamente vitoriosa” esconde o movimento da realidade, que é a real causa do “sucesso” e das modas teóricas. Ademais, em vista do neorrealismo, seu sucesso, em grande medida, é explicado pela reificação e tradução em “letras científicas” do senso comum no mundo capitalista. O alerta de George Soros, adepto de diversas teses popperianas, de que sucesso não é correção, não deve ser esquecido. Por fim, torna-se indispensável, em vista das debilidades causadas por um parco pensamento metateórico, refletirmos “a partir” e “para” a periferia. Ou seja, reconciliar o “em-si” e o “para-si”, tomando consciência dos constrangimentos e possibilidades da nossa condição objetiva de periferia. Portanto, romper a emulação acrítica das teorias centrais, com as “ideais fora do lugar”, continua a ser a tarefa do nosso tempo e da nossa sociedade.

Há um sentido para a disciplina? Como observa Nicolai Hartmann (1954), a palavra “sentido” é incerta, sendo imperativo precisá-la. Sentido aqui se refere a um caminho que poderia ser identificado e traçado do nascimento da disciplina até os nossos tempos. Além disto, é importante observar que esta pergunta pode ser enganosa. Pois, o sentido da disciplina não é autônomo, não está dissociado do sentido da realidade. Ao contrário, em geral, é na realidade que se revela o sentido da disciplina. 59

Em vista disto, observamos que o solo de onde brotou a disciplina é marcadamente empirista, enviesando as discussões internas e encaminhando o posterior “triunfo” positivista. Debater teorias sem levar em conta a origem da arena é ingenuidade. Ademais, se estamos dispostos a contestar teorias, devemos estar dispostos mais ainda em contestar a estrutura fatiada do conhecimento e das ciências sociais em geral. Estrutura útil apenas ao mercado, não ao gênero humano. Assim, imaginamos que a narrativa proposta no capitulo anterior é mais concreta, embora não seja obviamente a única possível. Sua vantagem é a desnudar os interesses e denunciar as explicações falaciosas e tautológicas que as teorias e os teóricos dão para justificar a si e as suas abordagens. Desde a sua criação a disciplina de Relações Internacionais adotou traços conservadores. O “empirismo embutido”, que condiciona a visão superficial de mundo, está presente no nascimento da disciplina e em seu descolamento do debate sobre o capitalismo. É icônico, como mostramos, que a economia política seja apenas uma subárea, quando, por exemplo, foram os seus debates que forneceram à historiografia a explicação de uma das principais causas da primeira guerra mundial, o imperialismo 77. Ademais, acreditamos que a disciplina sempre esteve em um estado de falsa aporia. Até o dito “quarto debate” é, na verdade, um monólogo a dois78. Uma vez que as bases ontológicas das correntes distintas são, em grande medida, as mesmas. Além disto, a divisão macro-teórica atual entre positivismo e pós-positivismo 79 é problemática, pois esconde as questões essenciais em disputa. Esta disjuntiva tem raízes na divisão metateórica de Robert Cox, entre: “Teorias de Solução de Problemas” e “Teorias Críticas” 80

. Acreditamos, em vista dos desdobramentos da teoria crítica e o neoconservadorismo

pós-moderno, que é importante um novo recorte que não esconda as reais divergências

77

Ressalte-se que os debates da economia política em relação ao imperialismo envolveram não apenas marxistas, mas também liberais críticos como John A. Hobson. 78 Inicialmente caracterizávamos esta situação como ”diálogo de surdos”, sem perceber o teor preconceituoso da expressão. Conforme Salvador e Perini-Santos (2009, p. 72), a língua de sinais tem todos os atributos ontológicos para propiciar um diálogo. Assim, a expressão é um equívoco, um preconceito. 79 A divisão é pautada por uma perspectiva linear e modernizadora de tempo (onde as teorias mais recentes seriam melhores) e sugere que antes dos pós-positivistas só existiam abordagens positivistas na disciplina, 80 Ressalte-se que a nomenclatura pode oferecer confusão. Na filosofia da ciência os teóricos posteriores a Popper de pós-positivistas. No caso da teoria de relações internacionais, os ditos pós-positivistas são, em uma definição substantiva, aqueles que não são positivistas.

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ontológicas que separam as abordagens contemporâneas 81 . Não por acaso, esta divisão linear e superficial possibilitou a manobra teórica de Keohane, caracterizando o estado atual do campo entre “racionalistas” e “reflexivistas”, sugerindo a irracionalidade dos últimos. É fato que toda época é de transição, travessia entre o passado desaparecendo e o futuro desconhecido. Entretanto, as inovações técnicas, nas mais diversas áreas, deram início a uma rápida destruição criativa que intensifica a desorientação em um mundo que não para de mudar. Esta desorientação não pode, entretanto, criar a dúvida da real existência do mundo. O relativismo ontológico deve ser evitado. Caso contrário, assistimos a vitória do conservadorismo por outra via, ou melhor, o conservadorismo se escondendo em uma nova máscara. Por fim, retomando o questionamento da seção, cabe observar a consideração de Hollis e Smith (1990, p. 18): “a disciplina foi originada em dois países que estavam essencialmente satisfeitos com o poder após a Primeira Guerra Mundial”. Percebe-se, em vista da discussão do trabalho, o traço principal, o sentido maior da disciplina, até sua obsolescência na década de 80: a marginalização do pensamento dialético. A partir deste período as estruturas científicas, que conservavam o antigo estado da disciplina, chegam ao limite e começam a ruir. A história dos grandes debates é sistematizada quase ao mesmo tempo, numa última tentativa de estabelecer os limites do pensamento do campo. Por tudo aqui tratado, julgamos que esta narrativa deveria fazer parte de algum tipo de museu da disciplina, não de livros didáticos.

81

Em vista disto, propomos uma nova divisão metateórica entre: Positivistas (por exemplo, Keohane ou Mearsheimer), anti-positivistas (por exemplo, Ashley ou Der Derian), críticos (por exemplo, Cox e Booth). Enquanto o primeiro trabalha com uma ontologia empirista o segundo com o negativo desta, uma ontologia antirrealista. Assim, é o terceiro que poderia oferecer o horizonte mais rico à disciplina e a compreensão do mundo.

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