A imagem de Domiciano em Marcial e em moedas de seu tempo

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Descrição do Produto

algumas visões da antiguidade Coleção Estudos Clássicos Volume 2

organizadores

Paulo Martins Henrique F. Cairus João Angelo Oliva Neto

Coleção Estudos Clássicos – volume 2 fbn – pec | proaera/ufrj | iac/usp | VerVe/usp A Coleção Estudos Clássicos é um projeto editorial do Polo de Estudos Clássicos do Rio de Janeiro (pec-rj) que reúne alguns laboratórios e programas de estudos em Filosofia e Letras, com fomento da Fundação de Amparo à Pequisa no Estado do Rio de Janeiro (faperj) e apoio de duas das mais prestigiosas instituições culturais brasileiras: a Fundação Biblioteca Nacional e a Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (sbec).

© 2011 Paulo Martins, Henrique F. Cairus e João Angelo Oliva Neto

Sumário

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenação editorial Isadora Travassos Produção editorial Eduardo Süssekind Cristina Parga Larissa Salomé Rodrigo Fontoura Sofia Soter Sofia Vaz

Imagens da capa: impressas sob permissão © Trustees of the British Museum

cip-brasil. catalogação-na-fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj Algumas visões da antiguidade / organizadores Paulo Martins, Henrique F. Cairus, João Angelo Oliva Neto. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2011. 236 p. : il. ; 23 cm. - (Estudos clássicos ; v.2) Inclui bibliografia isbn 978-85-7577-850-0 1. Literatura clássica - História e crítica. 2. Civilização clássica. 3. Literatura antiga História e crítica. 4. Visão na literatura. 5. Imaginação na literatura. I. Martins, Paulo. II. Cairus, Henrique F. (Henrique Fortuna), 1967-. III. Oliva Neto, João Angelo, 1957-.

2011 Viveiros de Castro Editora Ltda. R. Goethe, 54 | Botafogo Rio de Janeiro RJ cep 22281-020 Tel. (21) 2540-0076 [email protected] | www.7letras.com.br

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Prolegômenos à visão Paulo Martins e Henrique Cairus

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Imagines Physiognomonicae: a repercussão de lições de fisiognomonia em epigramas de Marcial Alexandre Agnolon

Revisão Julieta Alsina

11-5048.

Siglas de autores e obras

cdd: 809 cdu: 82.09

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Eikones de Filóstrato, o Velho: um método Rosângela Santoro de Souza Amato

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A visão de arte em De signis, de Cícero: uma reflexão tradutológica Anna Carolina Barone

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De Visu hipocrático Henrique Cairus

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Júlio César por ele mesmo Gdalva Maria da Conceição O retrato de Aníbal entre dois gêneros historiográficos: seu éthos em Lívio e Nepos Cynthia Helena Dibbern A fraqueza de Flaco no Livro dos Epodos Alexandre Pinheiro Hasegawa

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A imagem de Domiciano em Marcial e em moedas de seu tempo

Salamanca, aprendendo as línguas latina e grega e, quando quis que passasse a outras ciências, encontrei-o tão embebido na da Poesia (se a esta se pode chamar ciência), que não é possível fazer-lo dedicar-se à das Leis, que eu quisera vê-lo estudar, nem à rainha de todas, a da Teologia. Quisera eu que fosse coroa de sua linhagem, pois vivemos em um século em que nossos reis premiam altamente as virtuosas e boas letras, já que letras sem virtude são pérolas no muladar. Passa o dia a averiguar se Homero disse bem ou mal, em tal verso da Ilíada, se andou Marcial desonesto ou não em tal epigrama; se se devem entender de um modo ou de outro tais e tais versos de Virgílio. Em suma, todas as suas conversações são com os livros dos referidos poetas, e com os de Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo; que dos modernos romancistas não faz grande conta. E apesar pouco carinho que tem à poesia vernácula, está agora com o pensamento dedicado a fazer uma glosa de quatro versos que lhe enviaram de Salamanca e creio serem de torneio literário.1

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introdução Uma das características mais marcantes da obra do poeta latino Marcos Valério Marcial (c. 40 – c. 105 d.C.) é a presença dos imperadores na matéria de seu livro. Entre eles, destaca-se Domiciano, sob cujo governo foram publicados nove dos quinze livros que compõem a obra daquele poeta. Tão efetivos são estes poemas que a crítica posterior produziu significativa quantidade de juízos (a maior parte dos quais reticente, quando não abertamente negativos) a respeito do poeta e de seu caráter, os quais, o mais das vezes, baseiam-se apenas a leitura dos poemas e ignoram que estes foram escritos de acordo com padrões genéricos prescritos em preceptivas que eram utilizadas no tempo do autor. Este tipo de crítica, chamado biografista ou intencionalista, é problemático na medida em que não deixa de considerar diversos aspectos relevantes da prática poética do período em que a obra foi composta. Um deles é a impossibilidade de relacionar o êthos da primeira pessoa poética ao do autor. Sendo a primeira uma construção artística e se adequando aos parâmetros prescritos pelas poéticas para a produção de cada gênero, deve ter pouca credibilidade como documento histórico da determinação biográfica do escritor – se é que este tipo de informação contribui para a compreensão da obra. Complementar a esta, outra questão ignorada neste tipo de leitura é que, em geral, o juízo emitido por estes leitores se fundamenta majoritariamente no sistema cultural do tempo do comentarista, não no da obra. Diferentes épocas, lendo-se a si mesmas, incorrem nesse tipo de juízo que, embora possa ser deletério para a compreensão das letras antigas, é fundamental para que estes autores constituam o seu presente literário. Demonstra esta dupla articulação a seguinte passagem do Dom Quixote, de cervantes. Indo por certa estrada, o cavaleiro andante e seu escudeiro emparelham um fidalgo, com quem travam conversação. Inquirido sobre seus filhos, diz o fidalgo: — Eu, senhor D. Quixote — respondeu o fidalgo — tenho um filho que, se o não tivesse, talvez me considerasse mais ditoso do que sou; e não porque ele seja mau, mas porque não é tão bom quanto eu quisera. Tem de idade dezoito anos: seis esteve em 62

Deixando-se de lado a discussão do que representa a passagem acima para a poesia da virada do século xvi para o xvii, é notável que pudesse haver leitores julgando Marcial do ponto de vista de sua desonestidade (note-se que a passagem não trata de sua honestidade). Este juízo, assim como o resto da passagem, encarece a questão da moral na leitura dos antigos. A moral desusada dos antigos na relação com seus governantes também não passou desapercebida pelos comentadores: no século xv, Domenico Calderini (Domitius Calderinus Veronensis), comentador da obra de Marcial, se refere a estes poemas da seguinte forma: (...) XII addidit, in quo Neruae et Traiano assentatur clam damnatis Domitianis temporibus: quibus [Domitiano] seruili ferme adulatione blanditus fuerat non suo magis ingenio quam imperatoris arrogantia, qui diuinam adorationem a suis exegit.2 (...) Acrescenta o Livro 12, no qual aprova dissimuladamente a Nerva e a Trajano, tendo sido condenado o tempo de Domiciano, ao qual lisonjeou com uma adulação quase que servil, não tanto pelo seu engenho quanto pela arrogância do imperador, que exigia dos seus a adoração divina.

Que o governante simplesmente pudesse obrigar seu povo a uma atividade religiosa, me parece, é algo característico dos governantes cristãos do período de calderini no qual, vale lembrar, se combatia para expandir a fé cristã e também florescia o pensador Maquiavel. Mais notável se torna esta passagem na medida em que o comentarista nota Marcial produzindo o mesmo tipo de elogio ao imperador para os sucessores de Domiciano, Nerva e Trajano, embaraçando-se ao explicar

1 cervantes saavedra, M. Dom Quixote de la Mancha. Volume 2. Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 2

calderini, D. Commentarii in Martialem. Veneza, Iacobus Rubeus, 1480.

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que, para estes últimos, o elogio era uma dissimulação (clam) e, para o primeiro, uma obrigação. No entanto, uma chave de leitura que auxilie na interpretação do que representa o elogio ao imperador pode ser encontrada exatamente em um dos epigramas em que Marcial, no epigrama 8, 24: Si quid forte petam timido gracilique libello, improba non fuerit si mea charta, dato. Et si non dederis, Caesar, permitte rogari: offendunt numquam tura precesque Iouem. Qui fingit sacros auro uel marmore uultus, non facit ille deos: qui rogat, ille facit.3 Se algo eu pedir no livro tímido e gracioso, Se a folha não for ímproba, darás. E se não deres, César, permite que eu peça: Preces e incensos nunca ofendem Júpiter. Quem sacros rostos de ouro ou mármore modela, Este não faz os deuses: faz quem pede.

Aceitando – como veremos adiante – que Marcial coloca o imperador entre os deuses, vemos que a investidura do poder depende de que alguém a outorgue a ele, neste caso, aqueles que pedem (v. 6). Isto está ligado particularmente à dinâmica das relações sociais de Roma, em que o favorecimento, ou a troca de favores, era uma ferramenta política valiosa. Do ponto de vista dos imperadores, muito embora a sua aclamação tivesse muito pouco a ver com a vontade do povo, favorecimento implica em dar ao povo motivo para que o considerasse um bom imperador. Nos dizeres de Marcial, isso se conseguiria atendendo aos pedidos dos súditos. A visão do poder expressa por Marcial neste poema se aproxima da terceira preocupação metodológica que Foucault, na Microfísica do Poder, se impõe para compreender os discursos do poder:

nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão.4

Dadas essas considerações, será aqui analisado um conjunto de epigramas de Marcial nos quais, louvando sua pessoa ou comentando seus feitos, o poeta constrói o poder imperial de Domiciano. Considerando-se além disso que, como foi mencionado, este tipo de poesia representa um discurso construído com base em parâmetros genéricos que circulavam nas preceptivas retóricas daquele período, procuraremos sistematizar os poemas de forma a encontrar tipologias significativas. Além disso, confrontaremos este sistema a algumas moedas do período, comparando o discurso “oficial” das oficinas de cunhagem com o dos epigramas.

os leões de césar O primeiro grupo de epigramas que pretendemos apresentar faz parte do assim chamado “ciclo da lebre e do leão”, conjunto de poemas dispersos principalmente pelo primeiro livro de Marcial nos quais se constrói a alegoria de Domiciano como leão. A matéria desses epigramas é um espetáculo apresentado na arena durante o qual um leão permitia que uma lebre entrasse e saísse de sua boca sem feri-la. Vejamos um destes textos, o 1, 14: Delicias, Caesar, lususque iocosque leonum uidimus – hoc etiam praestat harena tibi – cum prensus blando totiens a dente rediret et per aperta uagus curreret ora lepus. Vnde potest auidus captae leo parcere praedae? Sed tamen esse tuus dicitur: ergo potest.5 Vimos, César, delícias, gracejos e jogos Dos leões – isso até te dão na arena – Quando a lebre fugia da branda mordida, Perambulando pela boca aberta. Como pode um leão preservar sua presa? Diz-se, porém, que é teu: logo, ele pode.

Terceira precaução metodológica: não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder − desde que não seja considerado de muito longe − não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, Mart., 8, 24. marcial, Epigrams; edited and translated by D. R. Shackleton Bailey; vol. i, ii, iii. Cambridge/ London: Harvard University Press, 1993. Cf. marcial, Epigramas vol. i, ii, iii; trad de Delfim Ferreira Leão, Paulo Sérgio Ferreira e José Luís Brandão. Lisboa, Edições 70, 2000. 3

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4 foucault, M. Microfísica do Poder. Acessado em 5 de julho de 2006, em: http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/ foucault/microfisica.pdf. 5

Mart., 1,14

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Enquanto certos comentaristas procuram um velado vitupério neste tipo de poema, me parece que aqui, pelo contrário, ocorre um elogio ao imperador. Sobre o leão, justaposto ao seu dono, Marcial declara que está gracejando (vv. 1-2) ao permitir que a lebre escape ilesa de sua boca. Desta forma, o poeta transfere ao leão uma virtude que é cara aos Césares, a clemência. No epigrama 1, 22, Marcial vai mais adiante na formulação deste êthos: Quid nunc saeua fugis placidi, lepus, ora leonis? frangere tam paruas non didicere feras. Seruantur magnis isti ceruicibus ungues nec gaudet tenui sanguine tanta sitis. Praeda canum lepus est, uastos non implet hiatus: non timeat Dacus Caesaris arma puer.6 Por que a lebre fugiu do leão calmo agora? Este não morde bichos tão pequenos. Estas garras se guardam pra grandes pescoços, Sede tal não se mata a breve sangue. A lebre é para os cães, não enche a vasta goela: Não tema o jovem dácio a mão de César.

Aqui, a clemência é relacionada a outra característica: o poder. As garras do leão servem para pegar grandes pescoços (v. 3), não exíguas lebres. Neste caso, para que não haja dúvidas sobre quem é o leão e quem é a lebre, o último verso redireciona abruptamente a matéria: do leão e da lebre a César e ao menino do povo dácio. Por meio dessa justaposição, os não-identificados grandes pescoços ficam avisados que é esperado o seu temor. Ainda sobre leões e lebres, um terceiro poema (1, 6, que, na ordem do livro, é o primeiro a ser lido) define melhor a natureza deste poder:

Qual prodígio é maior? Os dois têm um autor Supremo: deste é César, do outro, Júpiter.

Neste epigrama, o leão de César é posto ao lado da águia de Júpiter, ambos simbolizando os poder de seus donos e capazes de não ferir as vítimas indefesas que possuem em suas garras. Além disso e mais importante, ambos pertencem a um summus auctor (vv. 5-6), isto é, os donos de cada animal, Domiciano e Júpiter, são equivalentes. Assim, estes três epigramas resumem e põem em movimento uma demonstração de poder que descrevemos da seguinte forma: o leão é similar ao imperador, pois ambos são poderosos, clementes e equiparáveis a Júpiter, o mais poderoso dos deuses, e sua águia. A transição da matéria do leão ao César faz com que o poema ganhe um segundo sentido e que este incorpore as ações do sentido primário do poema.

o nome de césar Entre as atividades que estavam reservadas ao imperador, incluía-se a gestão dos exércitos e condução das guerras. Esta é a opinião de Tácito, segundo o qual “o valor de um bom general deve caber ao Imperador”.8 Esse autor menciona ainda que Domiciano era particularmente sensível a esta atividade, a ponto de considerar menores suas “ocupações do foro e o brilhantismo das artes civis” em relação aos seus feitos militares que, aliás, são contestados por este historiador. A visão de Marcial sobre os feitos do imperador é bem diversa, como podemos ver no epigrama 2, 2: Creta dedit magnum, maius dedit Africa nomen, Scipio quod uictor quodque Metellus habet; nobilius domito tribuit Germania Rheno, et puer hoc dignus nomine, Caesar, eras. Frater Idumaeos meruit cum patre triumphos: quae datur ex Chattis laurea, tota tua est.9

Aetherias aquila puerum portante per auras inlaesum timidis unguibus haesit onus: nunc sua Caesareos exorat praeda leones tutus et ingenti ludit in ore lepus. Quae maiora putas miracula? summus utrisque auctor adest: haec sunt Caesaris, illa Iouis.7

Creta deu grande nome, a África, um maior, A Cipião e a Metelo, vencedores. A Germânia um mais nobre deu, domado o Reno, Do qual, menino, César, eras digno. Teu irmão mereceu, com o pai, os judeus: Os louros contra os catas são só seus.

A águia levava pelos ventos um menino Pendente, ileso, nas temíveis garras. Agora, a lebre co’os leões de César brinca, Segura, na gigante e branda boca.

Tac., Agric., 39. tácito. Obras Menores. Tradução e nota prévia de Agostinho da Silva. Lisboa: Livros Horizonte. 1974.

8 6

Mart., 1, 22.

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Mart.,1,6.

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Mart., 2,2.

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A matéria do poema em questão é a prática dos romanos de acrescentar ao próprio nome cognomina que recordasse suas ações dignas de memória. No caso dos generais, estes apelidos eram conferidos em virtude das vitórias obtidas. Esse costume é ancestral, e Marcial abre seu epigrama apresentando exemplos da tradição: Cecílio Metelo, vencedor em Creta (século i a.C.) e os dois Cipiões (séculos iii-ii a.C.) vencedores das Guerras Púnicas. O caso de Domiciano se insere na tradição, uma vez que obteve o nome Germânico com o triunfo que celebrou por sua vitória contra os catas. O que o distingue, porém, na hipérbole de Marcial, é a juventude com que ganhou essa guerra, sendo ainda menino (v. 4). Além disso, acrescenta-lhe o mérito de tê-lo feito sozinho, quando seu irmão só pôde obter a vitória sobre os judeus ao lado do pai. Para Tácito, tal triunfo teria sido forjado. No entanto, embora não possamos ter um parecer conclusivo da repercussão desse evento na época, importa ver que Marcial utiliza este dado para conferir credibilidade ao imperador, além de inseri-lo na tradição.

ser louvada no imperador. Este é um dos motivos pelos quais é inadequado tomar os epigramas como testemunho de uma possível condição social inferior do poeta.12 Em seus epigramas, portanto, Marcial estabelece certa relação com Domiciano na qual a sua própria humildade eleva o imperador. Esse procedimento é claro no epigrama 5, 19: Si qua fides ueris, praeferri, maxime Caesar, Temporibus possunt saecula nulla tuis. Quando magis dignos licuit spectare triumphos? Quando Palatini plus meruere dei? Pulchrior et maior quo sub duce Martia Roma? Sub quo libertas principe tanta fuit? Est tamen hoc uitium, sed non leue, sit licet unum, Quod colit ingratas pauper amicitias. Quis largitur opes ueteri fidoque sodali, Aut quem prosequitur non alienus eques? Saturnaliciae ligulam misisse selibrae Flammarisue togae scripula tota decem Luxuria est, tumidique uocant haec munera reges: Qui crepet aureolos, forsitan unus erit. Quatenus hi non sunt, esto tu, Caesar, amicus: Nulla ducis uirtus dulcior esse potest. Iam dudum tacito rides, Germanice, naso, Vtile quod nobis do tibi consilium.13

a liberalidade do imperador Entre as virtudes que são atribuídas a Domiciano, inclui-se a liberalidade. Esta é, por exemplo, a afirmação de Suetônio: (...) dedit, immo e diverso magna saepe non abstinentiae modo sed etiam liberalitatis experimenta. [2] Omnis circa se largissime prosecutus nihil prius aut acrius monuit quam ne quid sordide facerent.10

Se a verdade merece fé, maior dos Césares, Tempo algum é de preferir ao teu. Quando se viu tantos triunfos assim dignos E mais se deu aos deuses palatinos? Sob qual chefe maior foi e mais bela Roma? Sob qual príncipe tanta liberdade? Há, porém, este vício não leve, mas único, De o pobre ter ingratas amizades. Quem dá riquezas com fiel e velho amigo Ou cavaleiro estranho tem na escolta? Nas saturnais, mandar colher de meia libra Ou dez escrôpulos em toga inflada É luxo; orgulham-se os patronos de tais prêmios. Um só, talvez, moedas de ouro traz. Se estes não são amigos, César, que tu sejas:

(...) deu até, várias vezes, provas ruidosas não somente de desinteresse, mas ainda de liberalidade. Mostrava-se profusamente munífico para com todos aqueles que o rodeavam, recomendando-lhes, antes de tudo e com insistência, nada fizessem que pudessem denotar mesquinhez.11

Essa é uma característica muito abordada por Marcial, por motivos que incluem as características do gênero que pratica. O epigrama pode ser incluído entre os gêneros baixos, isto é, aqueles que, segundo a definição aristotélica, tratam de caracteres inferiores. Certamente, não é esse o êthos em que os governantes devem ser enquadrados; pode, no entanto, ser adequado para enquadrar a persona epigramática – particularmente tendo-se em vista que a humildade da persona faz por realçar a liberalidade a

Outro motivo é que as diversas informações que a persona dá de si estão longe de terem coesão ou formarem uma unidade.

12 10

Suet., Dom., 9,1-2.

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suetônio, Vida dos Dozes Césares. Tradução de Sady Garibaldi. São Paulo: Ediouro, 2002. p. 509

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Mart., 5, 19

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Há virtude mais doce para um chefe? Há algum tempo, Germânico, ris em silêncio, Pois convém-me o conselho que te dou.

Aqui, além da enumeração dos feitos do imperador, tema do qual trataremos adiante, Marcial declara que somente o imperador tem condições de ser adequadamente patrono ou, nos seus termos, amigo (v. 15). No último dístico, no qual os críticos intencionalistas veem a prova do clientelismo do poeta, fica claro o procedimento que acima referimos, no qual, para expor a munificência de Domiciano, a persona se colocará na posição de pedinte. Em conjunto com esse poema, veja-se o 6, 10:

justificativa: o que não foi dado, não foi dado ainda. Trata-se de um quadro engenhoso: Domiciano não é um patrono qualquer, mas um grande patrono, e sua liberalidade pode tardar, mas não falha. O objeto da liberalidade de Domiciano não é apenas o dinheiro (como em vi, 10) ou os presentes comuns oferecidos nas celebrações das Saturnais (como em v, 19), esperados em um patrono usual. Ao contrário, os pedidos da persona denotam justamente a elevação de seu destinatário, como ocorre em 2, 91: Rerum certa salus, terrarum gloria, Caesar, sospite quo magnos credimus esse deos, si festinatis totiens tibi lecta libellis detinuere oculos carmina nostra tuos, quod fortuna uetat fieri permitte uideri, natorum genitor credar ut esse trium. Haec, si displicui, fuerint solacia nobis; haec fuerint nobis praemia, si placui.15

Pauca Iouem nuper cum milia forte rogarem, ‘Ille dabit’ dixit ‘qui mihi templa dedit.’ Templa quidem dedit ille Ioui, sed milia nobis Nulla dedit: pudet, a, pauca rogasse Iouem. At quam non tetricus, quam nulla nubilus ira, Quam placido nostras legerat ore preces! Talis supplicibus tribuit diademata Dacis Et Capitolinas itque reditque uias. Dic, precor, o nostri dic conscia uirgo Tonantis, Si negat hoc uultu, quo solet ergo dare? Sic ego: sic breuiter posita mihi Gorgone Pallas: ‘Quae nondum data sunt, stulte, negata putas?’.14 Quando, há pouco, pedi poucos mil ao Tonante, “Dará”, me disse, “quem me deu os templos.” Deu a Júpiter templos, é fato; a mim, nada: A Júpiter pedi pouco, vergonha! E tão sem sombra de ira, tão sem ameaças E com tão calma fronte leu meus rogos! Assim dá diademas aos súplices dácios E passa pelas vias capitólias. “Diz, peço, diz, ó sábia virgem do Tonante, Se com tal rosto nega, com qual dá?” Falei; longe de Górgone, Palas diz, breve: “O que não se deu, tolo, crês negado?”

Nele, Marcial comenta o fato de não ter sido atendido em uma solicitação que fizera, quando se dá conta de que seu pedido, por humilde, desdoura o imperador, afeito a oferecer diademas. A deusa Palas Atena (que é deusa de predileção desse imperador e, por isso, deve conhecer seus intentos) se aproxima do poeta e acrescenta outra 14

Mart., 6,10

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Glória das terras, salvação das coisas, César, Protetor que faz crer grandes os deuses, Se, unidos tanta vez em rápidos livrinhos, Meus versos detiveram os teus olhos, O que nega a fortuna, permite que seja: Que me tomem por pai de três crianças. Se desagrado, isto é consolo para mim; Se agrado, isto será pra mim um prêmio.

Nele, após a exposição da virtude do imperador nos versos 1 e 2, Marcial solicita que lhe seja conferida uma dignidade, o ius trium liberorum, apesar de não ter os três filhos que esta lei requisitava. Se aceitarmos que a fortuna referida no quinto verso seja a própria deusa Fortuna, significará que o imperador tem autoridade de agir além do desígnio divino. Outra mostra da liberalidade do imperador se faz no último dístico do epigrama (vv. 7-8): a persona está tão segura de que será atendida que afirma que vai receber seu pedido pelo mérito do seu engenho, como prêmio, ou mesmo pela falta desse mérito, como consolo. Esse epigrama traz à tona outra característica atribuída a Domiciano: sua apreciação da poesia. Suetônio relata os diversos concursos que esse César instituiu para os variados gêneros poéticos, além de se afirmar comumente que, em sua juventude, ele próprio fosse poeta. Outro epigrama relaciona este apreço à profusão com que o governante recompensava os poetas. Referimo-nos ao 4, 27: 15

Mart., 2, 91.

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Saepe meos laudare soles, Auguste, libellos. Inuidus ecce negat: num minus ergo soles? Quid, quod honorato non sola uoce dedisti, Non alius poterat quae dare dona mihi? Ecce iterum nigros conrodit liuidus ungues. Da, Caesar, tanto tu magis, ut doleat.16

“Quid sentis” inquis “de nostris, Marce, libellis?” Sic me sollicitus, Pontice, saepe rogas. Admiror, stupeo: nihil est perfectius illis, ipse tuo cedet Regulus ingenio. “Hoc sentis?” inquis “faciat tibi sic bene Caesar, sic Capitolinus Iuppiter.” Immo tibi.17

Costumas sempre elogiar-me, Augusto, os livros. Um invejoso nega: dirás menos? Que fazer se, não só por palavras honrado, Me deste o que ninguém mais pode dar? Eis que, outra vez, tal invejoso rói as unhas: Dá-me mais, César, pra que mais lhe doa.

“Que pensas, Marcos, dos meus livros?” me perguntas Assim tímido, Pôntico, amiúde. Me espanto, admiro: mais perfeitos não existem; Mesmo Régulo é menos pelo engenho. “Assim pensas? Que César assim te augure, Que Júpiter te augure!” A ti primeiro.

Os presentes de Domiciano não são apenas os elogios aos livros de Marcial, mas também aquilo “que ninguém mais pode dar” (v. 4). Lendo tais epigramas em conjunto com o 8, 24, apresentado na introdução deste ensaio, percebemos que a liberalidade está no centro da estruturação do poder do qual Domiciano ocupa o lugar mais alto. É a súplica dos súditos que confere o governo a um indivíduo, a divindade aos deuses, e é a atenção a esses pedidos a forma de confirmar esse poder. Além disso, Marcial ressalta a grandeza desse poder, não afeito a dar poucos mil sestércios (6-10, v. 1) ou a lançar exércitos contra o menino dácio (1-22, v. 6). A liberalidade, portanto, usando os termos de foucault, faz com que o poder circule. Outro aspecto digno de nota para a compreensão destes textos é o decoro do epigrama, gênero considerado adequado para os mês de dezembro (no qual ocorrem as Saturnais, festejos marcados pela licenciosidade e pela troca de presentes) e remontando o caráter de oferta da inscrição votiva. De certa forma, os epigramas em que o imperador é evocado pela sua munificência para com o autor de epigramas revestem-se da aura religiosa da solicitação de uma graça por um devoto a um deus.

Embora sutil, é possível perceber a relação de proximidade entre ambos nos versos 5-6. As ações de ambos, justapostas, podem ser vistas como equivalentes. Outro procedimento utilizado pelo epigramatista é o símile. Já vimos um exemplo no epigrama 1, 6, acima citado, no qual a matéria é disposta de forma a expor que Domiciano é como Júpiter, pois ambos, ao seu turno, conduziram os seus animais de forma a manterem ilesos os seres indefesos sob sua guarda. Além do símile, Marcial pratica também a metáfora, como em 9, 24. Quis Palatinos imitatus imagine uultus Phidiacum Latio marmore uicit ebur? haec mundi facies, haec sunt Iouis ora sereni: sic tonat ille deus cum sine nube tonat. Non solam tribuit Pallas tibi, Care, coronam; effigiem domini, quam colis, illa dedit.18 Quem, retratando o palatino rosto, vence O marfim de Fídias com latino mármore? Eis a face do mundo e de Júpiter calmo: Assim ressoa o deus quando sem nuvens. Não só coroas, Caro, Palas te entregou: A imagem deu-te do senhor que estimas.

domiciano (e) júpiter Uma vez que mencionamos a religiosidade nos epigramas, passemos aos poemas em que Domiciano é representado no mesmo texto que Júpiter. A predileção do imperador por este deus é conhecida através de várias fontes, sendo explicitada por Marcial em 6, 10, vv. 1-3 (acima citado), onde é mencionada a construção por aquele de templos dedicados a este. Alguns epigramas limitam-se a apenas justapor o deus e o César. É o caso de 5, 63: 16

Mart., 4, 27.

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No primeiro dístico, a escultura de Caro relata o rosto palatino, isto é, a face do imperador. No segundo, o rosto de Júpiter. Da justaposição que ocorrera antes, passamos à sobreposição. Domiciano e Júpiter são a mesma coisa.

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Mart., 5,63.

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Mart., 9,24.

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Exemplo mais contundente, no qual a narração prolonga a metáfora, transformando-a em uma alegoria,19 é o já citado epigrama 6, 10. Em seu primeiro verso, o poeta se dirige a Júpiter. Quando se refere novamente a ele, no quarto verso, já não trata mais do pai dos deuses, mas do próprio Domiciano, que, nos versos seguintes (5-8), tem seu comportamento divino relatado. Esse é um dos aspectos mais importantes do encômio de Marcial a Domiciano. Este poeta é o primeiro a declarar a divindade de um imperador em vida deste. Tal procedimento, se considerado como um argumento de justificativa do poder, tem efeito bastante forte. Em última instância, valida que o César possua uma autoridade tão grande e intocável quanto a de Júpiter. Essa divindade, por si só, já seria uma inovação significativa, não fosse o fato de o epigramatista ir mais além em sua amplificação. É o caso do epigrama 6, 83:

Ó, que mundo de gente retorna aos altares Do Lácio e cumpre votos por seu chefe! Não há, Germânico, só júbilos dos homens: Também os deuses, creio, sacrificam.

E em 9, 34: Iuppiter Idaei risit mendacia busti, dum uidet Augusti Flauia templa poli, atque inter mensas largo iam nectare fusus, pocula cum Marti traderet ipse suo, respiciens Phoebum pariter Phoebique sororem, cum quibus Alcides et pius Arcas erat ‘Gnosia uos’ inquit ‘nobis monumenta dedistis: cernite quam plus sit Caesaris esse patrem.’ 22

Quantum sollicito fortuna parentis Etrusco, tantum, summe ducum, debet uterque tibi. Nam tu missa tua reuocasti fulmina dextra: hos cuperem mores ignibus esse Iouis; si tua sit summo, Caesar, natura Tonanti, utetur toto fulmine rara manus. Muneris hoc utrumque tui testatur Etruscus, esse quod et comiti contigit et reduci.20 Tanto a sorte do pai aos cuidados de Etrusco Deve quanto ambos, sumo chefe, a ti Pois os raios co’a destra lançados recolhes: Quem dera Júpiter fizesse assim. Se fosse tua a natureza do Tonante, César, farias raro uso do raio. Etrusco atesta dois favores teus: lhe coube Ser companheiro e ser recondutor.

No verso 3, temos ainda a alegoria Domiciano-Júpiter, mas, nos versos 4 a 6, Domiciano é melhor que Júpiter. A elevação é ainda maior quando os próprios deuses aceitam a supradivinização. É o que ocorre no epigrama 8, 4: Quantus, io, Latias mundi conuentus ad aras suscipit et soluit pro duce uota suo! Non sunt haec hominum, Germanice, gaudia tantum, sed faciunt ipsi nunc, puto, sacra dei.21 Quint., Inst., 2.46.7-8: (...) allegoriai facit continua metaphora. quintiliano, M. Fabii Quintiliani Institutionis Oratoriae, Cambridge / London: Harvard University Press, 1989. 19

Jove ri desse embuste dos bustos ideus Vendo o templo dos Flávios de seu posto E, no festim, por muito néctar já tomado, Deixando até seus copos ao seu Marte, Voltando os olhos tanto a Febo quanto à irmã, Com quem Árcade, pio e Alcides via, Diz: “Monumento em Cnossos destes vós a mim: Vede que vale mais ser pai de César.”

No primeiro, não só os homens cumprem votos por Germânico ter voltado bem, mas também os próprios deuses sentem-se agraciados por isso e sacrificam. O segundo, relacionado ao templo da família Flávia, que ele erigiu no lugar da casa em que nascera, compõe uma fábula na qual o pai dos deuses, embriagado, contempla os filhos e o templo que estes erigiram em sua homenagem em Cnossos, na ilha de Creta, local onde algumas versões do mito creem que Júpiter nasceu. A afirmação desse deus no verso 8 é categórica: vale muito mais ser pai de César que pai dos deuses.

Domiciano (e) Hércules Procedimento análogo ao que verificamos em relação a Júpiter é praticado por Marcial em relação a Hércules em diversos epigramas dispersos pelo livro ix. Esses poemas estão relacionados à recente conclusão de um templo dedicado ao herói na via Ápia,23 junto ao qual havia uma estátua colossal que o representava, cujo rosto era o de Domiciano. Vejamos um destes epigramas, o 9, 64:

20

Mart., 6,83.

22

Mart., 9, 34.

21

Mart., 8,4.

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A partir das informações dadas por Marcial, foi encontrado o sítio arqueológico destas construções.

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Herculis in magni uultus descendere Caesar dignatus Latiae dat noua templa uiae, qua Triuiae nemorosa petit dum regna, uiator octauum domina marmor ab urbe legit. ante colebatur uotis et sanguine largo, maiorem Alciden nunc minor ipse colit. hune magnas rogat alter opes, rogat alter honores; illi securus uota minora facit.24 César, dignando-se a descer no hercúleo rosto Deu à via Latina novos templos Ali onde, buscando-se o bosque da Trívia, Lê-se oito marcas da cidade-chefe. Antes com voto e sacrifício cultuado, Hoje o Alcides menor reza ao maior. A este, pedem riquezas uns, outros mais glórias; Àquele fazem, salvos, menor voto.

Aqui, temos César superior a Hércules, dignando-se a descer ao rosto deste. Esse Hércules-Domiciano é tão maior que o próprio Hércules, definido como “menor”, rende culto a ele (v. 6). Não se deve ignorar, neste caso, que a magnitude espacial da estátua pode ser lida pelo poeta como metáfora da magnitude do indivíduo representado. De tal forma Domiciano é maior que Hércules que seus súditos, tendo as garantias fornecidas pelo imperador, pouco necessitam pedir ao filho de Júpiter. No poema que se segue a este na ordem do livro, o epigrama 9, 65, Marcial se dirige, de forma original, ao próprio Hércules (menor):

Alcides, já reconhecido do Tonante Pois tens o belo rosto do deus César, Se tivesses tal rosto então, tal compleição, Quando deteve monstros tua mão, Servo humilde do rei de Argos nunca serias Nem sofrerias sob nocivo jugo, Mas mandarias no Eristeu e o falso Licas Não traria o cruel prêmio de Nesso; Sem passar pela pira, seguro, verias A estrela do teu pai, que a dor te deu; Nem lã darias à soberba dona lídia, Nem Estige ou tartáreo cão verias. Já tens favor de Juno; de Hebe, tens cuidados: Se a ninfa te notar, te manda um Hilas.

Aqui, o poeta sustenta que Hércules melhorou por receber o rosto de Domiciano. Se isso tivesse ocorrido antes, não teria sido submetido aos trabalhos. Novamente, César é superior a Hércules, podendo, neste caso, garantir-lhe a salvação. O último destes textos, 9, 101, justifica esta superioridade: Appia, quam simili uenerandus in Hercule Caesar consecrat, Ausoniae maxima fama uiae, si cupis Alcidae cognoscere facta prioris, disce: Libyn domuit raraque poma tulit, peltatam Scythico discinxit Amazona nodo, addidit Arcadio terga leonis apro, aeripedem siluis ceruum, Stymphalidas astris abstulit, a Stygia cum cane uenit aqua, fecundam uetuit reparari mortibus hydram, Hesperias Tusco lauit in amne boues. Haec minor Alcides: maior quae gesserit audi, sextus ab Albana quem colit arce lapis. adseruit possessa malis Palatia regnis, prima suo gessit pro Ioue bella puer; solus Iuleas cum iam retineret habenas, tradidit inque suo tertius orbe fuit; cornua Sarmatici ter perfida contudit Histri, sudantem Getica ter niue lauit equum; saepe recusatos parcus duxisse triumphos uictor Hyperboreo nomen ab orbe tulit; templa deis, mores populis dedit, otia ferro, astra suis, caelo sidera, serta Ioui. Herculeum tantis numen non sufficit actis: Tarpeio deus hic commodet ora patri.26

Alcide, Latio nunc agnoscende Tonanti, postquam pulchra dei Caesaris ora geris, si tibi tunc isti uultus habitusque fuissent, cesserunt manibus cum fera monstra tuis: Argolico famulum non te seruire tyranno uidissent gentes saeuaque regna pati, sed tu iussisses Eurysthea; nec tibi fallax portasset Nessi perfida dona Lichas, Oetaei sine lege rogi securus adisses astra patris summi, quae tibi poena dedit; Lydia nec dominae traxisses pensa superbae nec Styga uidisses Tartareumque canem. nunc tibi Iuno fauet, nunc te tua diligit Hebe; nunc te si uideat Nympha, remittet Hylan.25 24

Mart., 9, 64.

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Mart., 9, 65.

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Mart., 9, 101

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Ápia, em que, igual a Alcides, César venerável É, maior das ausônias vias, sacro, Se desejas saber do outro Alcides os feitos, Eis: a Líbia tomou e os raros pomos; Da Amazona com pelta tirou o cinto cítico; Ao javali juntou tez de leão; Cervo de brônzeos pés, das selvas e Estanfálides, Do céu, tomou; o cão trouxe do Estige; Vetou trazerem aos mortais a fértil Hidra, Banhou os bois da Hespéria em rio toscano. Este, o menor. O maior Hércules, que a sexta Pedra a partir do Albano já venera, O palácio salvou dos governos malfeitos; Jovem, começou guerras por seu Jove; Sozinho embora possuísse as rédeas júlias Relegou e em seu mundo foi terceiro; Esmagou cornos sármatas no Istro três vezes E os cavalos lavou na neve gética; Muito modesto recusando seus triunfos Do norte trouxe o nome vencedor; Deu templo ao deus, moral ao povo, à espada folga, Astros aos seus, aos céus, coroa a Júpiter. Para tanto, o poder que é de Alcides não basta: Que o deus empreste o rosto ao pai tarpeio.

O epigrama narra os feitos de Hércules e de Domiciano, concluindo que aquele não teria condições de realizar o que este fora capaz. Domiciano deveria, portanto (fechando o ciclo) emprestar seu rosto ao pai tarpeio, isto é, Júpiter (v. 24).

Desta forma, ao contrário do que esperaram aqueles que veem o epigrama apenas como gracejo, o imperador é tema por excelência desse gênero. Nos epigramas vistos até agora, há diversas referências às ações de Domiciano: 1) Venceu guerras e obteve muitos triunfos (5, 19, v. 3; 6, 10, v. 8 e 9, 101, v. 17) a. quando jovem, contra os catas (2, 2 e 9, 101, v. 14) b. contra os sármatas venceu três vezes (9, 101, v. 17) 2) Protegeu a religião (2, 91, v. 1; 5, 19, v. 4 e 9, 101, 21) a. Erigindo templos a Júpiter (6, 10, v. 1 e 9, 101, v. 22) b. Erigindo templos aos Flávios (9, 34) c. Erigindo um templo a Hércules (9, 64 e 9, 101, v. 1) 3) Protegeu o governo estabelecido (9, 101, v. 13) 4) Deu a paz (9, 101, v. 21) 5) Permitiu a liberdade (5, 19, v. 6) 6) Engrandeceu (física e moralmente) Roma (5, 19, v. 5 e 9, 101, v. 21) Ainda, alguns epigramas tratam especificamente de alguns destes feitos. Apresentamos, primeiramente, o 8, 65: Hic ubi Fortunae Reducis fulgentia late templa nitent, felix area nuper erat: hic stetit Arctoi formosus puluere belli purpureum fundens Caesar ab ore iubar; hic lauru redimita comas et candida cultu Roma salutauit uoce manuque ducem. Grande loci meritum testantur et altera dona: stat sacer et domitis gentibus arcus ouat. hic gemini currus numerant elephanta frequentem, sufficit inmensis aureus ipse iugis. Haec est digna tuis, Germanice, porta triumphis; hos aditus urbem Martis habere decet.27

os feitos do imperador O último aspecto que aqui será tratado – a meu ver o mais importante – da poesia imperial de Marcial é a narração dos feitos de Domiciano. Importante, em primeiro lugar, na medida em que se trata de uma divulgação clara e objetiva, por meio da qual confirma a investidura do poder. Em segundo lugar, esses epigramas importam pela forma como lidam com a prescrição genérica. O encômio, no gênero epigramático, está vinculado, sob alguns aspectos, aos tópicos da inscrição fúnebre. Este tipo de epigrama tem, basicamente, quatro lugares-comuns: (1) Nome do morto; (2) circunstância da morte; (3) sua ἀρετή (uirtus), isto é, as razões pelas quais o indivíduo é digno da memória que o monumento preservará e (4) advertência ou reflexão. É por intermédio desta relação do epigrama com a história, ou melhor, com a memória, que esses textos devem ser lidos. 78

Aqui, onde o altar brilha da Recondutora Fortuna, outrora foi um descampado. Aqui, nobre do pó dos combates ao norte, César parou, lançou purpúrea vista. Aqui, louro na testa e vestida de branco, 27

Mart., 8, 65.

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Roma o chefe aclamou com voz e mão. Outro presente atesta o mérito do sítio: Triunfa um arco sobre os conquistados. Gêmeos carros retêm elefantes inúmeros E o próprio, em ouro, guia a enorme biga. Esta porta, Germânico, é digna de ti: Convém esta entrada à terra de Marte.

Nesse epigrama, a disposição da matéria permite que o leitor vá formando em sua mente a imagem de um local, nomeando-o somente no último dístico (vv. 11-12). A ékphrasis começa com a apresentação de um lugar, antes descampado, no qual se ergue um templo fulgurante dedicado à deusa Fortuna. Nesse ponto, Marcial produz uma variação no tempo da matéria e inclui uma narrativa da chegada de César àquele campo (vv. 3-6).28 Voltando ao tempo presente, descreve uma segunda construção existente no local, um arco do triunfo (v. 8). Os versos seguintes (9 e 10) relatam o relevo deste arco, ou uma estátua contígua, no qual dois carros são puxados por inúmeros elefantes, conduzidos pelo próprio imperador. Este epigrama, portanto, celebra dois feitos: o triunfo do imperador e a construção de monumentos dignos dele e da cidade. Ao mesmo tempo, contrapõe um tempo em que uma dada área era um campo inútil e o tempo em que esta se transformou num espaço útil. Ainda sobre edificações, Marcial nos apresenta outro epigrama, o 7, 61, no qual Domiciano aumenta os bairros e as ruas, contribuindo para a ordem pública. Abstulerat totam temerarius institor urbem inque suo nullum limine limen erat. Iussisti tenuis, Germanice, crescere uicos, et modo quae fuerat semita, facta uia est. Nulla catenatis pila est praecincta lagonis nec praetor medio cogitur ire luto, stringitur in densa nec caeca nouacula turba occupat aut totas nigra popina uias. Tonsor, copo, cocus, lanius sua limina seruant. Nunc Roma est, nuper magna taberna fuit.29

Nem o pretor precisa andar na lama, Nem a navalha cega afiam entre a turba Nem a taberna negra ocupa as ruas. Taverneiros, barbeiros já têm seus limites. Virou Roma o que foi grande taberna.

Aqui, novamente a variação temporal constrói a grandeza do imperador: hoje é uma cidade o que antes de seu governo fora uma taberna. Outro epigrama, este sobre matéria legislativa, tem o mesmo teor. Trata-se do 6, 2: Lusus erat sacrae conubia fallere taedae, Lusus et inmeritos execuisse mares. Vtraque tu prohibes, Caesar, populisque futuris Succurris, nasci quos sine fraude iubes. Nec spado iam nec moechus erit te praeside quisquam: At prius – o mores! – et spado moechus erat.30 Era um jogo trair a sagrada união E até castrar injustamente os machos. Ambos proíbes, César, e às vindouras gentes Proteges ao mandar nascer sem crime. No teu governo, eunuco e adúltero não mais: Antes – ó tempos – mesmo o eunuco traía.

Novamente, há uma contraposição temporal: Domiciano veta tanto a castração quanto o adultério. Antes, relata o último verso, até os castrados cometiam o adultério. Finalmente, um último epigrama (8, 80) demonstra a relevância da divisão dos tempos e sua relação com o teor dos feitos: Sanctorum nobis miracula reddis auorum nec pateris, Caesar, saecula cana mori, cum ueteres Latiae ritus renouantur harenae et pugnat uirtus simpliciore manu. Sic priscis seruatur honos te praeside templis et casa tam culto sub Ioue numen habet; sic noua dum condis, reuocas, Auguste, priora: debentur quae sunt quaeque fuere tibi.31

Mercante audaz toda a cidade dominara E porta alguma havia em cada porta. Ordenaste, Germânico, bairros mais amplos E das vielas tu fizeste ruas. Já colunas não prendem correntes com bilhas Variação e narração são procedimentos retóricos que sofisticam os gêneros. A este respeito, ver Cairns, F. Generic composition in Greek and Roman poetry. Edinburg: Edinburg University Press, 1972. p. 127ss.

Restituis o milagre de avós veneráveis, César, não deixas morto o velho tempo: Renovaste os antigos costumes da arena

28

29

Mart., 7, 61.

80

30

Mart., 6, 2.

31

Mart., 8, 80.

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E a virtude combate com mão pura. Governando, preservas as honras nos templos, Com Júpiter, há nume na cabana. Assim, fundando o novo, Augusto, o antigo trazes: Tudo que foi e que é se deve a ti.

Os tempos agora são três: o louvado tempo de Domiciano, o reprovado tempo anterior a ele (aqui omitido) e um mais antigo, o dos “ancestrais venerandos” (v. 1). Desse modo, os feitos do imperador fazem sentido como restituidores dos costumes ancestrais, algo valorizado pelos romanos (estes feitos são representados por arena, virtude, templos e cabana de Rômulo) e fundador de um novo tempo (baseado nesta tradição). Em virtude dessa junção, todas as coisas passam a ser devidas a Domiciano, não por acaso evocado como Augusto.

as imagens de domiciano Além dos epigramas de Marcial acima apresentados, exporemos aqui algumas moedas, procurando interpretar (e, onde couber, comparar com os epigramas) o discurso de poder que elas representam. A cunhagem de moedas constitui um discurso oficial. Seu serviço estava a cargo de tribunos que, sob a orientação do senado, autorizavam a sua produção nos ateliês romanos e provinciais. O conteúdo das moedas, como se pode supor, está restrito ao seu espaço reduzido. Nelas, cabem pequenas inscrições e imagens. Sendo o sistema monetário romano baseado na equivalência entre os metais utilizados, não havia a necessidade, como hoje, de figurar em uma das faces o valor. Desta forma, podia-se veicular imagens nas duas faces da moeda. A partir de Júlio César, as moedas romanas passaram a figurar também pessoas vivas, o que era antes vetado. Este fato permitiu que os césares seguintes também cunhassem a própria imagem em suas moedas. A informação verbal está usualmente restrita ao nome dos retratados, cargos que desempenha e breves notícias ou lemas explicativos, vinculados a outras imagens. Estas combinações podem ser interpretadas como articulação de um discurso de poder que, importa mencionar, circulará por toda a extensão do império. Não é nossa intenção, aqui, substituir o discurso visual pelo verbal, tomando as imagens por equivalentes a palavras, superiores ou inferiores a elas. Apenas apontaremos alguns aspectos que chamam a atenção na constituição deste discurso. Vejamos um exemplo: 82

mfa 58.4 = British Museum an361880

Esta é uma moeda produzida em Roma, datada dos anos 80-81 d.C. De um lado, apresenta o busto de Domiciano, com a inscrição caes divi f – domitianvs cos vii. No lado oposto, um altar e a inscrição divo – vesp. Trata-se do templo do divino Vespasiano (pai de Domiciano), erigido em Roma, do qual ainda há ruínas. Um dos motivos desta representação é o de informar a existência do referido monumento para aqueles entre os quais a moeda vai circular. Contudo, este templo, posto ao lado do busto de Domiciano, vincula as duas representações. Dá a conhecer o responsável pelo ato piedoso da sua construção. Ousando avançar mais, esta moeda recorda, duas vezes (pela justaposição das representações e pela inscrição que diz “Domiciano, filho do divino César, cônsul pela 7ª vez”) que o poder do figurado procede do divino. Outra imagem que veicula com clareza um discurso de poder é a seguinte:

mfa 63.251 = British Museum an691516

Esta moeda, datada do quinto consulado de Domiciano (em 76 d.C.), portanto, cunhada ainda sob o império de Vespasiano, representa Domiciano em sua procedência (domitianvs caesar avg f ), ao lado de um líder prostrado, entregando insígnias. A insígnia tem um significado importante na tradição política romana. Trata-se de um símbolo do poder; sua obtenção significava que um dado povo estava cedendo o seu governo ao imperador (aquele que detinha, fora de Roma, o poder de decidir em nome do Senado) que a recebia. Desta forma, tem uma importância 83

a imagem de domiciano em marcial e em moedas de seu tempo

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quase protocolar, como aceitação, por parte do povo conquistado, de que Roma passasse a governá-lo. A catalogação do Museum of Fine Arts interpreta este líder como um sármata. Neste caso, a representação se destina a divulgar uma vitória em guerra e preservar a memória do feito (a vitória sobre os sármatas citada no epigrama 9, 101). Num sentido mais amplo, esta imagem recorda aqueles não-romanos que utilizam esta moeda que o seu comandante, tal como o da representação, concedeu o governo de seu povo. Recebeu-o aquele que está na outra face da moeda. Semelhante é o discurso representado nesta moeda:

Trata-se, neste caso, de uma moeda provincial, datada de 93 ou 94 d.C., cunhada em Cesareia, Capadócia, com o objetivo de circular localmente. No obverso, temos o busto do imperador com uma inscrição em grego (ΑΥΤ ΚΑΙ ΔΟΜΙΤΙΑΝΟΣ ΣΕΒΑΣΤΟΣ ΓΕΡΜ – imperador César Domiciano Augusto Germânico); no reverso, temos uma quadriga (carro conduzido por quatro cavalos). Novamente, há uma representação simbólica: a quadriga é o veículo no qual os generais vencedores desfilam na celebração do seu triunfo. Portanto, pode ser tomada como a própria representação da vitória. Assim, a justaposição destes dois elementos é simples: o indivíduo retratado é um vencedor. Vejamos mais uma moeda:

mfa 63.77 = British Museum an691662

Esta moeda, datada dos anos 90-91 d.C. (15º consulado de Domiciano) representa, de um lado, o imperador, com as inscrições de costume acrescidas de novos títulos atribuídos a Domicino, censor perpétuo e pai da pátria (imp caes domit avg germ cos xv cens per pp). O reverso representa novamente o imperador, à esquerda, sendo coroado pela Vitória, à direita. Notável, neste caso, é que o tem em uma das mãos a lança e, na outra, um raio. Desta forma, sua imagem é sobreposta à de Júpiter, detentor do raio. Esta sobreposição, como vimos, é semelhante à que ocorre em Marcial, que também menciona, em 6, 83, o uso do raio por Domiciano. Vejamos mais uma moeda, catalogada sob o número 63.77 no Museum of Fine Arts de Boston:

mfa 68.613 = British Museum an642709

A imagem do reverso é um templo. Segundo sua catalogação, trata-se do templo de Júpiter Capitolino, no qual há uma representação deste deus entre Juno e Minerva. Não mencionaremos novamente sua importância como divulgação e memória. Esta moeda nos interessa por uma de suas inscrições. Abaixo do templo, lemos restit[uit]. Trata-se de termo importante na atribuição das atividades do imperador. Restituir, como ato político, é buscar no mos maiorum as coisas dignas de ser restabelecidas, função muito reverenciada por um romano (a respeito desta atribuição, ver o epigrama 8, 80, acima citado). Ao restituir Júpiter ao seu templo do Capitólio, Domiciano dá provas de sua pietas, isto é, do seu respeito pela ordem, exemplo este salutar aos seus súditos, na medida em que torna o imperador respeitável.

conclusão

mfa 00.289 = British Museum an657727

84

O que vimos em operação na poesia de Marcial foi a construção de uma unidade coesa, em que as qualidades de Domiciano são solidificadas progressivamente em cada um de seus aspectos, como no caso dos epigramas sobre a sua liberalidade. Nesses, se colocados na ordem de sua publicação, apresentam, a partir de um imperador que concede um pequeno benefício a um indivíduo (2, 91), a sua própria divindade relacionada aos seus presentes (8, 24). 85

fábio paifer cairolli

Em nosso trabalho, procuramos evitar exageros na interpretação cronológica, bem como na compartimentalização das unidades de cada livro. Ressaltamos a importância da unidade do liber na poética de Marcial, mas não consideramos decoroso para a natureza do presente estudo empreender uma análise tão extensiva quanto a de lorenz em seu doutorado32. Este pesquisador, a respeito, por exemplo, do epigrama 6, 2, sobre a proibição de Domiciano ao adultério e à castração, analisa todos os epigramas sobre adultério do livro 6, apontando neles a ausência de punição e concluindo pela ironia daquele epigrama. Tal afirmação não ousaríamos, encontrando em Marcial uma emphasis talvez excessiva. Em que pese o engenho de Marcial na articulação de seus poemas, deve-se notar que a sua produção segue preceitos retóricos para a produção do discurso encomiástico. Importam para nosso trabalho os Tratados de Retórica Epidítica, de Menandro, o Retor.33 Nele, encontramos uma seção dedicada ao encômio específico do imperador, cujo teor coincide com os procedimentos de Marcial na produção de seus epigramas sobre Domiciano. Veremos alguns exemplos: – [368] “De forma que conterá uma amplificação convencional das boas qualidades que são próprias de um imperador (…)”: exemplo disso é a condução do êthos do imperador a um nível superior ao de Hércules e Júpiter. A afirmação mais concisa desta amplificação está em 2, 91, v. 1, “terrarum gloria” (glória das terras), ou em 8, 80, v. 8, “debentur quae sunt quaeque fuere tibi” (Tudo que foi e que é se deve a ti). – [370] “(...) Se for ilustre [sua família], desenvolverás o que concerne a ela”: deste ponto, Marcial recorda que também o pai e o irmão eram meritórios generais (ii, 2; ainda que menos que Domiciano) e que a divindade desta família mereceu um templo superior ao de Júpiter (9, 34).

a imagem de domiciano em marcial e em moedas de seu tempo

súditos. Destacamos a menção da placidez de seu rosto ao receber pedidos (6, 10, vv.5-6) e ao ser melhor que Júpiter (6, 83, vv.5-6 e 9, 24, vv.3-4). – [376] “Depois da justiça, elogiarás sua temperança, porque a temperança é muito próxima da justiça. O que dirás então? ‘Graças ao imperador, são castos os matrimônios, legítimos os filhos; espetáculos, festivais e certames se celebram com a gala necessária e a devida moderação’ (…)”: a castidade dos matrimônios e a legitimidade dos filhos são o tema do epigrama 6, 2; sobre os espetáculos, é desnecessário dizer o quanto Marcial tratou deste tema. – [376] “(...) Passarás à comparação mais completa, confrontando seu principado com os anteriores [377], sem rebaixar aqueles – pois seria improcedente – mas admirando-os e, por sua vez, concedendo ao atual a perfeição.”: como salientamos no capítulo 8, Marcial expõe os feitos de Domiciano confrontando-os cronologicamente. A síntese desta diacronia, feita em 8, 80, talvez seja um dos mais bem acabados exemplos deste preceito. Assim, tanto o pesquisador de Domiciano quanto o de Marcial devem estar atentos a essas camadas ao interpretar esses epigramas. Ao crítico literário, convém que se intere dos métodos historiográficos para compreender a matéria que é elaborada pelo poeta. Ao historiador, convém compreender os procedimentos literários para uma valoração mais sensata do texto literário como dado histórico. E, se entre os últimos, há pesquisadores como Bann e White defendendo tal procedimento, cumpre a nós, pesquisadores da literatura clássica, por estarmos atentos às armadilhas da matéria dos textos, que ressaltemos essa preocupação entre os nossos pares, tornando produtiva, e não danosa, a proximidade que há entre História e Arte.

– [371] “(...) Em seguida vem o capítulo da criança: (…) se [teve destaque] no exercício da guerra e das armas, te admirarás de que tenha nascido com bom destino, já que a fortuna faz [372] o casamento dele com o futuro (…)”: Este ponto não foi ignorado, visto que Marcial destaca a vitória juvenil de Domiciano sobre os catas (2, 2 e 9, 101). – [375] “(…) Dentro da justiça deves elogiar a amabilidade para com os súditos (…)”: diversas passagens se vinculam à forma justa com que Domiciano trata os lorenz, S. Erotik und Panegyrik: Martials epigrammatische Kaiser. Tübingen 2002 (Classica Monacensia 23).

32

A edição que utilizaremos a seguir é a espanhola: menandro el retor. Dos Tratados de Retórica Epidíctica. Traducción y notas de Manuel García García y Joaquín Gutiérrez Calderón. Madrid: Gredos. 1996. Para maior comodidade, traduziremos as citações ao português. 33

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