A Imagem do Cinema na Construção dos Conceitos Científicos

June 3, 2017 | Autor: D. G. Tierro Ramos | Categoria: Cinema E Educação
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David José Gonçalves Tierro Ramos

A Imagem do Cinema na Construção dos Conceitos Científicos Reflexões a partir da Tese de Doutorado de Gaston Bachelard “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”

CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS Mestrado em Educação Tecnológica Belo Horizonte 2008

David José Gonçalves Tierro Ramos

A Imagem do Cinema na Construção dos Conceitos Científicos Reflexões a partir da Tese de Doutorado de Gaston Bachelard “Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado”

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFETMG, para obtenção do título de Mestre em Educação Tecnológica. Orientador: Prof. Dr. Fábio Wellington Orlando da Silva

Belo Horizonte (MG) 2008

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Resumo

Esta pesquisa procura compreender os mecanismos cognitivos do aprendizado através das imagens de cinema, utilizando o modelo epistêmico desenvolvido por Gaston Bachelard em sua tese de doutorado de 1928. Segundo esse modelo, a construção do conhecimento científico se inicia nos atos cotidianos, em contatos com a realidade que podem ser ampliados em um processo interminável, nunca esgotado pelas aproximações constantes que as pesquisas científicas promovem. A cada novo movimento do conhecimento, reconfiguramos nossos conceitos, para aplicá-los cada vez melhor às situações de nossas vidas, para re-conhecermos. Neste trabalho foi explorada a utilização de filmes cinematográficos na construção dos conceitos científicos. Nossa hipótese é que os filmes são úteis, em particular quando se lida com dimensões muito amplas ou muito reduzidas de nossas realidades e se necessita de um objeto para o processo abstrativo. O filme cinematográfico seria então capaz de apresentar uma série de estímulos importantes, por exemplo, em conteúdos como a Biologia e a Antropologia, que lidam com esses conceitos científicos limites, que requerem alta capacidade de abstração. Além disso, ser capaz de reconhecer em um filme de cinema um conceito científico aprendido é uma forma de fixar esse conceito no espírito do estudante. A pesquisa realizada com estudantes de um curso de Pedagogia parece corroborar essa hipótese.

Palavras chave: Bachelard, Cinema, Educação, Epistemologia

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Abstract This research hunt understands the apprenticeship’s cognitive mechanism that using the cinema’s image in the development. We use to understand the mechanisms of the learning through the cinema images, the Gaston Bachelard´s epistêmic model minded in his thesis Ensais sur la connassance aprochée, from 1928. According to this model, the construction of the scientific knowledge is initiates in the daily acts. The contacts with the reality that would be extended in an interminable process, never depleted for the constant approaches that the scientific research promotes. To each new movement of the knowledge, we reconfigure our concepts, to apply them each better time to the situations of our lives, to recognize them. In this work the use of cinematographic films to the construction of the scientific concepts was explored. Our hypothesis is that they can useful in particular when we work with ample dimensions, very large or very reduced of our realities and we need an object for the abstractive process. The cinematographic film would be then capable to present a series of important stimulatons, for example, in contents as the Biology and the Anthropology, that relate with these scientific concepts limits, that require high capacity of abstraction. Moreover, to be capable to recognize in a cinema film a learned scientific concept is a form to fix this concept in the spirit of the student. The research carried with students of Pedagogy seems to corroborate this hypothesis.

Key words: Bachelard, Cinema, Education, Epistemology.

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Para Gorete

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Sumário 1 Introdução ............................................................................................................................... 06 2 A Epistemologia do Conhecimento Aproximado de Gaston Bachelard....................................................................................................................................... 2.1. A cinemática, a biologia e a imaginação humana .................................................................. 2.2. O conhecimento é aproximação? .......................................................................................... 2.3. A distância e o movimento I ................................................................................................. 2.4. A distância e o movimento II ................................................................................................ 2.5. O movimento de Aproximação .............................................................................................. 2.6. A dialética da aproximação ................................................................................................... 2.7. A linguagem como um objeto material ................................................................................. 2.8. Os pontos de referência do real ............................................................................................. 2.9. A inesgotabilidade do real ..................................................................................................... 2.10. As dimensões Surracionais da realidade ............................................................................. 2.11. As dimensões Surracionais da realidade II .......................................................................... 2.12. A microepistemologia da aproximação ............................................................................... 2.13. A integração dos movimentos ............................................................................................. 2.14. A Retificação......................................................................................................................... 2.15. Do dado bruto à assimilação funcional ................................................................................ 2.16. Assimilação intencional e o problema da linguagem ........................................................... 2.17. O Espírito ............................................................................................................................. 2.18. A Abstração .......................................................................................................................... 2.19. O microconhecimento e o macroconhecimento ................................................................... 2.20. O Pensamento ...................................................................................................................... 2.21. O contínuo da realidade ....................................................................................................... 2.22. O contínuo da realidade II ................................................................................................... 2.23. A montagem do movimento ................................................................................................ 2.24. Geometrizações imaginéticas .............................................................................................. 2.25. O Conceito ........................................................................................................................... 2.26. O conhecimento ficcional e o conhecimento científico ....................................................... 2.27. Uma epistemologia necessária .............................................................................................

10 11 15 16 19 20 21 22 24 25 26 27 28 30 31 32 35 37 37 38 39 41 42 43 44 45 45 51

3 Fundamentos Fisiológicos dos processos imaginativos ......................................................... 58 4 Pedagogia, Epistemologia e Cinema ...................................................................................... 4.1. Metodologia do trabalho com o cinema em sala de aula........................................................ 4.2. O cinema como recurso didático? .......................................................................................... 4.3. Pedagogia e cinema ............................................................................................................... 4.5. A abstração e os conceitos científicos ...................................................................................

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5 Conclusão.................................................................................................................................. 95 6 Referências ............................................................................................................................. 100

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1 Introdução A cada grande filme, cada vez mais cidadãos passam a fazer referência ao cinema como uma realidade onde respaldar suas opiniões e juízos. Na verdade parte das intenções da indústria cultural é gerar o mimetismo entre o filme e a vida cotidiana. É cada vez mais freqüente se referir a um filme para abordar um assunto ou tema, na vida das crianças e adolescentes. Filmes de grande impacto cultural como Matrix, Blade runner, Guerra nas Estrelas são filmes que muitos jovens chamam à memória para falar de valores, ou de imagens do futuro, ou de conflitos éticos. O cinema é cada vez mais uma referência para falarmos da realidade. Por que não compreender mais a relação pedagógica do cinema para nossa tarefa e compreensão objetiva dos fenômenos da realidade? O objetivo da presente dissertação é compreender os mecanismos cognitivos do aprendizado através das imagens de cinema, utilizando o modelo epistêmico desenvolvido por Gaston Bachelard em sua tese de doutorado de 1928, recorrendo-se portanto à história da ciência para entender um problema científico contemporâneo. Buscamos utilizar a descrição e a explicação contida nesse modelo bachelardiano para iluminar, a partir de agora, a relação das imagens cinematográficas com o aprendizado de ciência. Bachelard trata originalmente da teoria do conhecimento em os Ensaios sobre o conhecimento aproximado, um texto no qual afirma que o conceito que se tinha do Real estaria limitado. A indeterminação da realidade e as pesquisas sobre o cérebro humano, sobre o sistema nervoso, as contribuições da psicanálise e as manifestações artísticas do surrealismo formavam então um novo paradigma na cultura da França quando suas pesquisas estavam em curso. Foi nesse clima ideológico que Bachelard, em suas investigações epistemológicas, propôs um modelo de cognição que levasse em conta os novos elementos da cultura e as novas tarefas da ciência. A pergunta inicial proposta por ele é se conseguiríamos observar e descrever o movimento de aproximação do conhecimento sobre si mesmo. A tese de Bachelard parece ser um primeiro olhar conexionista na história da ciência, um conexionismo científico. O conexionismo é uma tendência, uma linha de pesquisa da Antropologia contemporânea e das neurociências que estabelece que o conhecimento acontece no momento do encontro do sujeito com o objeto. A relação de 6

conexão com o objeto se aperfeiçoa a cada novo encontro e, ergonomicamente, o sujeito aborda um objeto recorrente com maior eficiência e utilidade. Quando o objeto são as próprias descrições científicas, podemos dizer que: (...) o conexionismo descreve o aspecto cognitivo da representação mental do conhecimento de uma maneira assemiótica, pois, para o conexionismo, o conhecimento é representado mentalmente não na forma de signos icônicos ou simbólicos, mas na forma de processos de abstração, (...) 1

Entretanto, se no plano do microconhecimento Bachelard tem uma posição conexionista forte, ao tratar a assimilação mecânica do percepto e do índice único, na descrição do macroconhecimento, na ação do espírito, que realiza o conceito, sua posição é aberta: A assimilação funcional, que é o princípio mais indiscutível da evolução, (...) se desdobra em uma assimilação intencional, por uma escolha ativa. Ora, essa ação desejada sobrepuja, por sua vez, a ação automática. De uma só vez ela apresenta a idéia geral em total despojamento. Substitui os traços múltiplos e mal associados das ações reflexas pela linha verdadeiramente única e inteira da vontade, que parecem constituir os átomos indestrutíveis de um mundo lógico. 2

A ciência é uma atividade do espírito. O dado científico é uma formulação do espírito, pode ser a maneira de fixação no espírito de um tipo de abstração sobre as representações elementares, uma abstração que pode ser registrada em conceitos; o cognoscível é possível à razão, à atividade intelectual, passível de ser relatado através de descrições, descrições aproximadas, uma assimilação funcional. Por isso, para a ciência a descrição do mecanismo do conhecimento adquirido é fundamental, é a vida do mundo lógico. Para o docente, compreender de que maneira o conceito científico passa a tornar mais apta a vida de crianças e jovens é também fundamental. A descrição que a ciência possibilita alavanca novas aproximações. O conhecimento adquirido numa primeira aproximação, se fixado, leva a uma outra aproximação, que é chamada por Bachelard de reconhecimento. O objeto reconhecido em si se torna um novo dado para uma posterior e nova assimilação funcional. Nesse sentido, a ciência não é um conhecimento verdadeiro, literal, mas uma construção do ser humano, construção caracterizada pelas etapas do procedimento de investigação, pelo relato, pela descrição minuciosa e clara das representações do espírito dos pesquisadores sobre os dados, de seus 7

sentidos ou de seus aparatos técnicos, que também fornecem o real. Esse real pode ser verificado ou reconhecido através dos objetos tecnológicos contemporâneos: Não-platônica e não-kantiana, a filosofia de Bachelard considera a verdade como nosso produto, que não faz redundância com um modelo absoluto de verdade, mas que se volta para seu animador, levando-o a perceber seus próprios enunciados como obstáculos à compreensão. Porque os verdadeiros obstáculos da ciência não são os conhecimentos do senso-comum, mas os sistemas relativamente coerentes de pensamento generalizados abusivamente. Um pensamento científico não é um sistema acabado de dogmas evidentes, mas uma incerteza generalizada, (...) 3

Quais seriam então as distinções entre o conhecimento científico e a ficção científica? O conhecimento científico e o conhecimento ficcional se diferenciam pelas possíveis associações do espírito científico e filosófico. Reconhecemos a ficção, particularmente a ficção científica do cinema nos objetos tecnológicos, nas leis da Física que os filmes reproduzem, na estética que podemos compartilhar, nos problemas humanos que o filme pode retratar. Considerando a ficção como arte, podemos admiti-la como conhecimento também (em termos teóricos talvez mais para o velho do que para o jovem Bachelard). Os escritos sobre a ficção como conhecimento são posteriores na obra de Bachelard, inicialmente sua preocupação eram os modelos cognitivos. A arte é a expressão do reconhecimento do artista sobre a realidade, sobre suas próprias invenções, imaginações, objetos mentais e fantasias. A ficção científica do cinema compartilha com o conhecimento científico as descrições lógicas, e é considerada também como uma expressão artística pelo devaneio que está presente nas suas expressões. Após o Ensaio, Bachelard se voltou para o problema pedagógico do espírito científico e do espírito artístico, em livros como A Filosofia do não (1932), O novo espírito científico (1934). Constata que a educação pode ocorrer nos dois momentos do conhecimento, na assimilação funcional e na intencional; educar a percepção e educar o espírito, e que essa educação está voltada para que o sujeito seja capaz de realizar as aproximações que lhe tragam vida, mais vida, melhor vida. Assim ele forneceu com sua tese um argumento pedagógico: certos conceitos científicos precisariam de experiências culturais para ser melhor elaborados. Neste trabalho foi explorada a utilização de filmes cinematográficos na construção dos conceitos científicos. Nossa hipótese é que eles são úteis, em particular quando se lida 8

com dimensões muito amplas ou muito reduzidas de nossas realidades, e se necessita de um objeto para o processo abstrativo. O filme cinematográfico seria então capaz de apresentar uma série de estímulos importantes, por exemplo, em conteúdos como a Biologia e a Antropologia, que lidam com esses conceitos científicos limites, que requerem alta capacidade de abstração. Além disso, reconhecer em um filme de cinema o conceito científico aprendido é uma forma de fixá-lo no espírito do estudante. A dissertação está dividida em duas partes. A primeira parte, teórica, apresenta o modelo cognitivo de Bachelard, que serviu como conteúdo em minhas aulas para fundamentar o uso da imagem na construção do conceito de ethos. A parte teórica foi apresentada de uma maneira breve para os alunos ao longo do trabalho. A segunda parte, empírica, retrata a busca pelo próprio Bachelard e explora a aplicação do cinema em aulas de Antropologia da Educação, realizada com estudantes de Pedagogia nos anos de 2006 e 2007. Os resultados obtidos parecem corroborar a hipótese inicial.

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2 A Epistemologia do Conhecimento Aproximado de Gaston Bachelard

Gaston Bachelard (1884 – 1962) graduou-se em Filosofia em 1920, aos 36 anos. É considerado por ele mesmo um filósofo tardio. Mas desde sua primeira obra, o Ensaio, seguiram-se 24 outras, de grande densidade filosófica. Bachelard tratou de diversos assuntos em sua filosofia. Seus temas mais recorrentes foram a filosofia da ciência e da poesia. No mesmo ano em que se graduou em filosofia, Bachelard perdeu sua esposa, após seis anos de casamento. Ficou com uma filha da relação, Suzanne. Dedicou-se a aprimorar sua didática, e aos 40 anos inicia suas pesquisas para o doutorado. Após a defesa de sua tese de doutorado, Bachelard se muda para Dijon com sua pequena Suzanne e passa a lecionar filosofia na Universidade de Dijon (de 1930 a 1940). A tese de doutorado Essai sur la connaissance approchée (Ensaio sobre o conhecimento aproximado) foi defendida na universidade de Sorbonne, em Paris, a 23 de maio de 1927, e publicada em 1928. Os Orientadores de Gaston Bachelard foram o Prof. Abel Rey, professor titular da cadeira de filosofia e história da ciência dessa universidade, cargo que doze anos mais tarde Bachelard assumiu, de 1940 a 1955; e Leon Brunschvicg, que também era filósofo da ciência. Foi essa tese que lhe deu o direito de lecionar para o ensino superior de Dijon. Sua carreira de professor lhe trouxe uma série de elementos para que ele pensasse a pedagogia científica como um dos mais importantes objetivos da ciência. Essa pedagogia deve sempre estar relacionada com um modelo epistemológico: a compreensão por parte do educador. Sem compreender como se dão os processos de aprendizado dos estudantes, todo o edifício científico fica inacabado. Por esse motivo, a tese de doutorado, sua obra inicial, começa com explicações sobre a fundação, as bases da ciência, que é o conhecimento humano. A tese de Bachelard surge em um momento de mudança de paradigma nas ciências. É contemporânea do movimento Surrealista, assim como das pesquisas da Física Quântica e da teoria da Relatividade. Uma ebulição cultural entre duas grandes guerras, como um novo fôlego para as pesquisas na ciência: o conceito de realidade é seriamente transformado na França. A tese é dividida em quatro pequenos livrinhos, e uma curta conclusão. O primeiro e o quarto livrinhos da tese são dedicados aos problemas filosóficos do conhecimento aproximado. O segundo e o terceiro livros são dedicados ao conhecimento aproximado na 10

física e na matemática, sendo abordadas nesses dois capítulos questões e linguagens específicas dessas áreas. Bachelard inicia com o Ensaio uma vasta obra científica e poética, e nessa obra vamos encontrar desenvolvimento de temas, uma recorrência de assuntos, como suas reflexões sobre a racionalidade humana. Especificamente o tema do conhecimento aproximado retorna no livro Racionalismo aplicado, lançado vinte anos mais tarde, em 1949. O que é o conhecimento? O conhecimento é uma necessidade da espécie humana. Segundo Bachelard, a finalidade do conhecimento é a sobrevivência, a garantia de adaptação humana. O ser humano nasce sem a estrutura instintiva adequada à interação adaptativa fundamental que precisa estabelecer com o meio ambiente. Acredita-se que, para compensar a suposta falta de instintos adaptativos, o homem use a cognição como mediadora em seus vínculos com a natureza. Através do que se pode saber sobre a realidade, tornamo-nos aptos a transformar o meio em que vivemos em benefício da sobrevivência. Portanto o conhecimento tem uma grande importância na vida humana e, quando nossa intenção é transmitir conhecimento, ensinar mais do que saber que o conhecimento é fundamental para a vida, devemos compreender seus mecanismos. Pretendemos neste primeiro capítulo apresentar a descrição de Gaston Bachelard dos mecanismos do conhecimento humano em geral e de um tipo específico de conhecimento, que é o científico. Nessa descrição apresentada em sua tese de doutorado, em 1928, Bachelard relaciona mecanismos cognitivos humanos com imagens. A partir da descrição de Bachelard, desenvolveremos nossa hipótese sobre o trabalho de ensino de ciência que utiliza o cinema como instrumento. O conhecimento surge da possibilidade do ser humano, intencionalmente, se transformar materialmente. A estrutura viva no organismo humano integra todos os sistemas orgânicos do corpo: o sistema nervoso é flexível em seu formato e organização, de maneira que uma série de novos comportamentos podem ser constantemente estabelecidos na vida de uma pessoa. Chamamos a esses novos comportamentos de comportamentos aprendidos, e, portanto, consideramos o aprendizado como possível justamente porque o sistema nervoso não está pronto: ele pode se refazer de acordo com as dinâmicas de adaptação. O meio externo ao organismo oferece uma série de perturbações, de estímulos físicos, segundo a expressão de Bachelard. Esses estímulos, à superfície de contato dos 11

órgãos sensoriais, são progressivamente assimilados, de forma seletiva, e retificados de acordo com a sua utilidade ou não para a sobrevivência, de acordo com as conexões úteis para a vida do organismo. Uma visão geral dessa primeira descrição pode ser apresentada assim (principalmente em termos do conhecimento científico): A – O contato com as regularidades físicas do real gera um conjunto de pontos de referências habituais (ex. temperatura, formato, espectro luminoso, gravidade dos objetos, medidas de uma máquina, etc.). B – A descrição desses pontos de referência organiza o conhecimento inicial em dados. C – A organização dos pontos de referência em dados faz com que a descrição de um fenômeno do real possa ser incorporada em um sistema de explicação prévio (Que são as hipóteses e os sentidos, etc.). D – Propulsão = conhecer é descrever para reconhecer. O dado incorporado ao sistema de explicação possibilita um movimento revigorado de retorno ao real, de natureza mais objetiva que o primeiro movimento (A). Os dois modos do novo movimento de contato são a assimilação (aproximação em termos da distância do contato) e a utilização (aperfeiçoamento da descrição). A descrição do conhecimento acima apresentada está próxima das atuais pesquisas em neurobiologia. Há um grupo de pesquisadores que desenvolve estudos sobre a relação entre a linguagem humana e as conexões cerebrais, chamado de Escola de Santiago e seu principal expoente é Humberto Maturana, que descreve a aquisição e uso da linguagem humana como uma extensão adaptativa do funcionamento cerebral, onde conhecer é se estabelecer fisiologicamente através de laços lingüísticos. Portanto na história da filosofia e da ciência, a pergunta sobre o que é o conhecimento foi respondida de diversas maneiras, desde as referências à essência metafísica interior, até a anatomia das mais singelas células neuronais. Há diversas descrições sobre os processos cognitivos, e cada qual possui uma relação com um conjunto de pesquisas, em cada tempo histórico, e em cada cultura. Neste capítulo, pretende-se resgatar uma descrição do conhecimento e da cognição feita no início do século XX, e avaliar a pertinência dessa descrição abordando um problema contemporâneo. Isso é dificultado pela ausência de referências e estudos sobre a tese de Bachelard no Brasil, o que motivou a necessidade de se investigar na terra de Bachelard. A descrição no nosso caso é a que fez Gaston Bachelard em sua tese de doutorado 12

Essai sur la connaissance approchée, o Ensaio sobre o conhecimento aproximado, defendida em 1927 e publicada no ano seguinte, na qual ele apresenta seu estudo sobre a capacidade de conhecimento do ser humano. Bachelard justifica nesse livro a utilidade do conhecimento científico, considerado por ele como um conhecimento do tipo aproximado. O problema contemporâneo sobre o qual pretendemos falar baseando-nos no Ensaio é a profusão de imagens das sociedades atuais. Acreditamos que a idéia de uma evolução dos saberes humanos não deve desconsiderar as teses filosóficas do passado. Na filosofia, diferentemente de outras áreas, a palavra dos sábios ainda é objeto de reflexão. Inúmeros pensamentos do passado, alguns milenares, ainda hoje iluminam nossas ações, são fontes de sabedoria. Por isso recorremos a Bachelard, que foi um filósofo preocupado em compreender o conhecimento e a cognição das imagens.

2.1 A cinemática, a biologia e a imaginação humana Entre as ciências contemporâneas, a Biologia tem-se destacado como um domínio de conhecimento dos mais significativos para as respostas que procuramos sobre o fenômeno humano. O ensino da Biologia é atualmente um dos mais importantes para as novas gerações de seres humanos, um dos conhecimentos mais úteis, mas também é um dos mais complexos ideologicamente. Na época em que Bachelard escreveu sua tese, cabia à Física essa grande influência. Nos ano de 2001, foi traduzido para a língua portuguesa o recente trabalho do filósofo alemão Jürgen Habermas O futuro da natureza humana. Nesse texto, o filósofo trata da importância da ampliação do acesso das populações humanas a todas as informações sobre a biologia humana como uma forma de impedir que as lógicas de mercado manipulem o material genético humano inescrupulosamente. Num trecho do livro ele diz o seguinte: (...), as teorias científicas que se infiltram no mundo da vida deixam essencialmente intacto o âmbito do nosso saber quotidiano, o que dificulta nossa autocompreensão, enquanto seres capacitados para a linguagem e para a ação. Quando aprendemos algo novo sobre o mundo e sobre nós enquanto seres no mundo, o conteúdo da nossa autocompreensão se modifica. 4

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A biologia trata de entidades vivas dos mais variados tamanhos e tipos. No ensino de genética, por exemplo, o estudante deve se familiarizar com estruturas e processos microscópicos, fazendo uso de sua imaginação na maioria das vezes para compreender os fenômenos hereditários. O ser humano não tem acesso imediato a esses fenômenos: não é possível identificá-los em condições comuns de percepção. A biologia lida com a consciência crítica dos seres humanos, os saberes sobre a natureza. Os conhecimentos gerados e difundidos nesse domínio da ciência são cada vez mais eticamente necessários; são cada vez mais adaptativos para a espécie humana. Vivemos em um contexto sócio-cultural de intervenções sistemáticas do homem na biosfera, na existência dos organismos vivos e sistemas ecológicos; até em seu próprio material genético. Construir um conhecimento tão adaptativo e importante quanto o conhecimento biológico com estudantes no mundo inteiro é necessário, e pode ser um passo para novas possibilidades de relação entre o homem e a natureza. A questão é o grau de complexidade das pesquisas e resultados na biologia contemporânea. A linguagem biológica necessita de níveis maiores de abstração, exigidos para a compreensão e construção dos conceitos escolares sobre esses temas, o que é de grande dificuldade para alunos e professores de biologia. Sabemos que os conceitos biológicos ensinados na escola têm validade e pertinência fora dela. Mas a escola é o local da fixação desses conceitos na experiência cognitiva dos alunos, por esse motivo distinguimos aqui conceitos escolares. O conhecimento também é a estrutura relacional do homem com seu ambiente. A ignorância sobre os fatores naturais, motivada pela ganância de alguns grupos políticos têm colocado em risco a existência da vida. Isso é uma afirmação científica? Segundo o modelo bachelardiano o conhecimento é um tipo de relação entre um sujeito e um objeto, e o resultado do conhecimento, o produto do conhecimento é a aproximação. O progresso do conhecimento é a gradativa aproximação entre esse sujeito e esse objeto, e desde a civilização grega que é defendido e incentivado culturalmente, por ser uma das formas mais importantes do vínculo inacabado entre o homem e o universo.

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2.2 O conhecimento como Aproximação Na relação entre o sujeito e o objeto, acontece o fenômeno que chamamos de conhecimento. Essa relação aparentemente pode ser estática ou dinâmica. Habituar-se com um objeto cotidiano significa nesses termos um conhecimento estático. O objeto sempre nos parece o mesmo. A relação entre o sujeito e o objeto pode se aprofundar, se aperfeiçoar, e nesse caso se tornar dinâmica. O conhecimento aproximado tem o sentido inicial de uma medição inexata, aproximada, do objeto. Mas também tem o sentido de um movimento, de uma cinética. Como necessidade humana, conhecer é uma atitude de nos colocarmos mais próximos da realidade, mais presentes no fluxo dinâmico que constitui o real, nos movermos em sua busca. A maior familiaridade entre o sujeito e o objeto se converte em maior assimilação desse objeto nas experiências do sujeito e a conseqüente maior utilização desse objeto. Uma ergonomia positiva. O conceito de conhecimento aproximado deve ser inicialmente compreendido nos dois sentidos que a palavra aproximação possui. Ela indica dois movimentos: I) O movimento de diminuir uma distância, de ampliar a visão e o contato humanos com os fenômenos. Quando se diz, por exemplo; eu me aproximo de uma célula quando a vejo através de um microscópio e a manipulo. II) O movimento de partir de um estágio inicial de uma descrição científica para um estágio mais exato, mais refinado de uma nova descrição. Por exemplo, quando se diz: eu aproximo minhas descrições do que seja uma célula quando posso vê-la através de um microscópio. Gaston Bachelard, quando propõe uma teoria do conhecimento utilizando a aproximação como objetivo a ser atingido pela cognição humana, se refere a esses dois sentidos do termo. Além de ser um objetivo, a aproximação é quase um mecanismo. O saber científico, segundo Bachelard, vai se reforçar principalmente no segundo movimento, o movimento por uma maior exatidão: a aproximação como busca racional humana para reduzir as arestas na descrição dos objetos de suas investigações. 15

A exatidão pode nunca ser alcançada, pois o real, o objeto, está se constituindo em outras dinâmicas materiais diversas, tão microscópicas quanto os fenômenos biológicos. A exatidão do conhecimento parece estar ligada ao próprio principio de identidade do objeto. A distância se dá pela própria constituição física da realidade. Além disso, a matéria é fluida e inconstante2, rica em estágios. Outra causa dessa distância entre o sujeito e o objeto, que impede sempre o saber absoluto, é a própria constituição biológica da cognição humana.

2.3 A distância e o movimento I A distância também pode ser entendida como o intervalo entre o pensamento e a realidade, em termos do tempo. A distância deve ser reduzida pelo ato de conhecer, para uma melhor adaptação da vida humana ao universo, no manuseio dos objetos, na assimilação de suas qualidades: (...), no aproximacionalismo, não se atinge o objeto, foco imaginário da convergência das determinações, definem-se funções epistemológicas cada vez mais exatas que, em todos os níveis, podem substituir a função do real, desempenhar todas as funções do objeto. 5 A exatidão que Bachelard propõe como objetivo e nega como possibilidade é o alvo da aproximação do conhecimento. Ela pode ser buscada através do aperfeiçoamento das funções epistemológicas. A exatidão do conhecimento é um ponto de disputa histórica na filosofia, sobre o qual dois grupos de filósofos têm discutido ao longo do tempo. Um desses grupos defende a possibilidade de uma exatidão do conhecimento, o outro defende a impossibilidade do conhecimento exato e da própria busca por exatidão. Para um dos grupos, o chamado Realista, a realidade é um fenômeno independente do pensamento, possui uma identidade absoluta. O conhecedor deve descobrir a essência dessa realidade e então chegará à exatidão do real, sua objetividade. O outro grupo, chamado de Idealista, nega tanto o ideal de exatidão quanto o conhecimento aproximado. Para esse grupo, o pensamento tem acesso apenas a ele mesmo; o pensamento só encontra a si mesmo: a realidade em si, o objeto está fora de nossas possibilidades 6 . Esses dois domínios filosóficos, realismo e idealismo, propõem duas maneiras 16

opostas para tratar das relações entre o sujeito conhecedor e a realidade a ser conhecida. Na época em que Bachelard escrevia sua tese, eram dois domínios influentes na filosofia e na ciência. Bachelard ao longo do Ensaio apresenta suas criticas às duas posições. Ele propõe uma dialética entre os dois pontos de vista. Para sair do problema da possibilidade ou não de exatidão do conhecimento, Bachelard começou a estudar o papel do erro no conhecimento. O que ele significa? Que tipo de entendimento sobre o conhecimento podemos obter analisando o erro? Seria uma concepção de Bachelard que o que chamamos de realidade não é um estado independente de nossas capacidades de cognição? E nesse sentido poderíamos dizer que o erro, o cálculo equivocado, os absurdos conceituais, as ficções, também compõem legitimamente o conjunto de “fatos” do universo humano, uma vez que são realizações perceptivas? O que diferenciaria um conhecimento qualquer de um conhecimento científico, de acordo com essa reflexão? Podemos dizer que o conhecimento científico busca não se fixar como elemento constituinte de um universo de coisas e fatos a serem aceitos, mas que está envolvido em uma dialética da “aproximação”: um fato conquistado pela percepção pode possibilitar o aperfeiçoamento de uma nova percepção, indicar outro fato. A realidade começa a existir no momento da aproximação entre o sujeito e o objeto, sendo os equívocos do conhecimento uma parte da realidade. Os erros que cometemos ao julgar os objetos são formas possíveis de relação com estes objetos, são rotas. Podemos admitir que o conhecimento pressupõe indeterminações, mas qual o impacto disso nas representações que fazemos do mundo? Saber que há indeterminações no conhecimento não mais nos leva a um ceticismo. Bachelard é um filósofo que historicamente contribuiu para que o paradigma da indeterminação tivesse lugar na ciência mundial: (...), a obra de Bachelard é uma dupla revolução: uma visa a filosofia da descoberta; a outra, a filosofia da criação artística. Por seu Ensaio sobre o conhecimento aproximado (1928), ele funda a epistemologia como ciência respeitada, através do estudo sistemático do modo como os conceitos de verdade e de realidade deveriam receber um sentido novo. 7 Ao especular sobre o real, o observador se move em direção a ele. Se o pensador se equivoca na direção e no método dessa aproximação, as ações posteriores lhe demonstrarão. Para os filósofos pragmatistas, por exemplo, nas realizações técnicas, os equívocos são 17

demonstrados e evitados tendo em vista a utilidade do objeto que materializa o conhecimento. O funcionamento de uma mercadoria tecnológica deve ser positivo, demonstrar que o conhecimento sobre todos os processos estava correto. Portanto, realistas e idealistas, disputando sobre o que é a realidade, ou sobre o grau de certeza do conhecimento sobre o real, precisam, segundo Bachelard, admitir a inexatidão de suas próprias reflexões como sendo elas mesmas os momentos da aproximação do sujeito com o objeto. No caso dessa disputa, o objeto é o próprio conhecimento: É nessa perspectiva da incerteza do conhecimento que Bachelard admite o erro também como um tipo de conhecimento. Voltaremos mais tarde a refletir sobre o papel do erro, principalmente porque ele está sempre presente no processo de construção do conhecimento científico. A discordância de Bachelard com relação aos realistas e idealistas de sua época está no papel que a inexatidão tem para o movimento do conhecimento. (...) não faltam objeções a um estudo imediato do erro (...). Essas objeções não têm força de evidência que lhes é atribuída. Supõem postulados metafísicos que parecem necessários ao desenvolvimento de uma filosofia idealista. É possível suprimi-los sem cair, a nosso ver, no realismo. Por isso, tentamos deixar-nos levar inteiramente pelas oscilações do pensamento, sem nunca especificar, a não ser de modo figurado, um pólo atrativo, um termo estranho, um objeto em si que solicita, do exterior, o conhecimento. 8 Para todo aquele que diz que o conhecimento depende do sujeito conhecedor, Bachelard no Ensaio vai dizer que não apenas. Há uma estrutura física, material no mundo que nos rodeia, que possui suas próprias determinações. Para o outro grupo que afirma que o conhecimento não depende do sujeito, exatamente por que há um conjunto de outras determinações externas, do meio material, Bachelard vai dizer que o conhecimento humano é uma reelaboração. Para entender o alcance desta proposta teórica, vamos admitir como consistentes as categorias psíquicas com as quais Bachelard trabalha na sua tese: – O Pensamento surge com a linguagem e passa a reagir na presença dos objetos da realidade. O pensamento está sempre temporalmente no presente, mesmo que reaja aos dados da memória. É guiado pelo Espírito. – O Espírito é o local da vontade, faz a confrontação do dado com as estruturas 18

prévias. Realiza abstrações espaço-temporais e tem acesso à memória. - A Memória é uma inflexão do espírito, o conjunto de esquemas oriundos de outros conhecimentos anteriores e possui a função de ser o passado para o organismo. O sujeito, segundo Bachelard é dotado de espírito, pensamento e memória. O espírito é a sede do eu, a intencionalidade. O pensamento é o fluxo de impressões sobre a realidade, e alimenta o espírito com dados constantes sobre o presente do organismo. A memória é o conjunto de arquivos de representações celulares.

2.4 A distância e o movimento II Bachelard propõe a atenção ao movimento do conhecimento, para entendermos o processo de aproximação, sem que especifiquemos qual pólo é o determinante: se o pólo do sujeito ou o pólo do objeto. Sujeito e objeto são incongruentes, seu acoplamento é um movimento. Nem o sujeito é fixo, imóvel nem o real o é. Para os realistas, o conhecimento pode ser do tipo exato, pois a realidade externa ao pensamento é exata, imóvel, permanente, uma verdadeira essência, como nos disse Platão (427 – 347 a.C.) 9 . Já para os idealistas, a exatidão é o resultado dos esforços lógicos do pensamento que, ao atingir a coerência, a imobilidade do fim da dúvida, atinge a exatidão, como fala Kant (1724 – 1894). A descrição do duplo movimento de aproximação que Bachelard faz no Ensaio parece ser uma resposta individual a cada um desses domínios filosóficos em disputa. O ato de conhecer surge para encurtar as distâncias entre o homem e a realidade: (...) tentamos estabelecer o fracasso do pragmatismo diante do infinitamente pequeno. É um fracasso mais de princípios do que de fato, pois o infinitamente pequeno do ato não pode, por definição, ser analisado pelo ato. Somos incapazes de agir tanto sobre o microcosmo quanto sobre o sistema solar: é preciso contemplar. 10 No caso do ser humano, a bagagem celular não permite uma vida sem aprendizado, uma vida sem o conhecimento. Nascemos muito distantes da realidade, muito incapazes de estabelecer contatos. Conhecer é essa aproximação com os objetos que nos rodeiam, sejam eles objetos naturais, sejam culturais.

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Aproximação é ao mesmo tempo um ato de refinamento do próprio movimento, para torná-lo mais preciso. A linguagem humana, por exemplo, é um dos resultados do aprimoramento histórico dos signos e situações de aproximação humanas: (que encurtou distâncias) pela habilidade de manuseio dos objetos; como também a classificação deles por meio dos vários processos de descrição. Dentre as formas de registro do conhecimento, a mais fecunda para novos movimentos, no Ensaio, parece ser a descrição científica. No início do século XX, o Círculo de Viena, através de um de seus fundadores, Rudolf Carnap (1891 – 1970). Carnap lançou em 1928 o texto Pseudoproblemas na filosofia, onde aborda a questão. A solução que Carnap propõe é diferente da de Bachelard: para Carnap o problema está na linguagem da ciência, e não na epistemologia. O Bachelard do Ensaio se concentra no movimento do conhecimento, nos estímulos materiais que causam na percepção as imagens celulares. Atualmente tanto o paradigma realista quanto o idealista são questionados pelas pesquisas contemporâneas nas ciências biológicas, principalmente pelas pesquisas da chamada Escola de Santiago, os conexionistas, dos quais acredito ser Bachelard um dos primeiros a intuir as questões centrais; justamente o tema da conexão entre o sujeito e o objeto.

2.5 O movimento de aproximação Vamos fixar os dois sentidos do movimento de aproximação que Bachelard utiliza para descrever o conhecimento. Para Bachelard, o aproximacionalismo é um dos pilares da nova ciência. Pretendemos nesse primeiro capítulo dizer porque parece ter sido assim, e verificar como essa linha de pesquisa tem ganhado desdobramentos contemporâneos, em particular na Biologia. A aproximação é o vínculo móvel entre o sujeito e o objeto de conhecimento; ela possui dois sentidos, que mais uma vez expomos de maneira sintética: I– O conhecimento aproximado como um saber que se move para diminuir uma distância entre o sujeito e o objeto (figura 3) II– O conhecimento aproximado como um saber que se move em busca da exatidão de uma descrição.

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2.6 A Dialética da aproximação O movimento de aproximação do Conhecimento é em síntese a diminuição da distância entre o sujeito e o objeto. O movimento de aproximação tem dois sentidos; o contato com o real e a precisão do conhecimento. O primeiro contato entre o sujeito e o objeto tem o vetor inicial partindo do objeto, que estimula a estrutura perceptiva do sujeito através de seus atributos materiais. O segundo contato com o real, a partir da representação inicial é um momento novo para o sujeito. O real já não é com no início, é agora reconhecido, se a representação inicial foi satisfatória. O real se torna uma realidade para o sujeito quando os seus atributos materiais são organizados sistematicamente num sistema descritivo chamado de dados. O sujeito que pretende o conhecimento científico precisa manter o contato com o real, buscar sempre novos dados. Mas até um dado adquirido no esforço, descrito sistematicamente, pode estar mesmo assim equivocado, ou pode ser insuficiente para uma conduta objetiva do pesquisador na busca por outros dados. Por vários motivos não podemos deixar, segundo Bachelard, que o dado se cristalize. São duas as finalidades do conhecimento científico: a assimilação e a utilização. Assimilação no sentido de maior quantidade de informações sobre o real, com o máximo de minúcia e de clareza; Utilização no sentido que, de posse do dado, eu, um cientista, terei sempre uma finalidade concreta. Por exemplo, os saberes referentes à eletricidade tornaram possíveis os aparelhos elétricos; os dados sobre o funcionamento das células possibilitaram a fabricação de medicamentos para doenças. O grande objetivo do conhecimento em geral, a utilidade, é resultado do esforço do sujeito quando tenta aperfeiçoar suas ferramentas, seus utensílios, suas palavras. A assimilação e a utilidade são dois objetivos a serem alcançados pelo conhecimento científico, são dois princípios dentro do Ensaio. Elas formam na tese de Bachelard a dialética inicial, e cumprem uma função, que é: a própria adaptação do ser humano à sua realidade. A minúcia não pode ofuscar a clareza; o excesso de detalhes deve ser organizado sistematicamente, para que a informação científica seja clara. Essas duas características, minúcia e clareza, são o segundo par dialético.

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2.7 A linguagem como um objeto material A linguagem como um objeto, para a criança, é um conhecimento que deve ser assimilado, pois saber uma língua é útil para as experiências relacionais. Nesse caso, o idioma é o dado da realidade que deve ser conectado. Assimilar as características fundamentais de um idioma, na pronunciação, na escrita, nos sentidos, são objetivos de quem pretende conhecer uma língua, para utilizá-la. O excesso de detalhes do objeto é um dificultador, um obstáculo para o conhecimento. Por essa razão, os dados devem ser organizados a cada aproximação que o sujeito conhecedor faz. Na Etnografia antropológica, esse procedimento constitui o próprio método: (...), o conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas. Estou convencido de que esses sistemas não existem em número ilimitado, e que as sociedades humanas, assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos ou seus delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher certas combinações num repertório ideal que seria possível reconstituir. Fazendo o inventário de todos os costumes observados, de todos os imaginados nos mitos, destes também evocados nos jogos das crianças e dos adultos, nos sonhos dos indivíduos saudáveis ou doentes e nos comportamentos psicopatológicos, chegaríamos a elaborar uma espécie de quadro periódico como o dos elementos químicos, (...). 11 O registro escrito de uma língua, a gramática possível, é por esse motivo um objeto. Fonte de estímulos visuais para juízos do espírito, a descrição funciona como um outro lugar do estímulo físico microscópico, um lugar cultural. Para assimilar os dados do real e para utilizá-los, as culturas humanas têm desenvolvido uma série de procedimentos. A ciência é um deles, tipo de registro de conhecimento. Bachelard elogia a ciência, diferenciada em seus procedimentos de assimilação dos dados e de sua utilização. Segundo Bachelard, a maneira que os cientistas utilizam para assimilar os dados é a descrição. Segundo ele, na ciência, conhecer é descrever para reconhecer. Podemos dizer, além disso, que a descrição científica é a matéria prima do aprendizado de ciências escolares. No capítulo oitavo de sua tese, Bachelard apresenta a pesquisa científica como conceptualização, ou seja, o descobrimento, a investigação primária, inicial, baseada nas hipóteses dos cientistas, um verdadeiro processo de criação nas ciências. Outro processo é o 22

de conceitualização, que representa a descrição do fato em termos de um conceito, uma explicação. Considero que busca do cientista é pela conceptualização, de acordo com a distinção de Bachelard. Para ele há um momento que chamamos de conhecimento, e um momento posterior, chamado de reconhecimento.o reconhecimento está ligado ao grau de precisão do conhecimento. Se pensarmos a comunidade científica, como composta, tanto de cientistas, como de mestres e estudantes, observamos que cada sujeito participa dessa comunidade de maneiras diferentes. Estudantes e professores de ciências reconhecem conceitualmente o universo de fenômenos ao seu redor. A cada movimento de ampliação do conhecimento, a comunidade científica como um todo têm mais possibilidade de reconhecer o mundo. Ao professor e ao estudante de ciências, muitas vezes distantes de todos os mecanismos de descoberta e pesquisas científicas, percebo que o processo de conceituação, de gerar e discutir, empregar e rediscutir os conceitos científicos em sua experiência cotidiana cabem a esses dois sujeitos A assimilação e a utilização total dos dados do real são tarefas impossíveis para o conhecimento humano, ainda que devam permanecer como um projeto. A perfeição de um conhecimento não está no esgotamento do real, mas a dialética que a descrição deve ter entre a clareza e a minúcia. Na realização técnica, por exemplo, na construção dos aparelhos tecnológicos, a descrição científica dos mecanismos, em termos da clareza e minúcia é fundamental para o sucesso do artefato. A descrição será sempre parcial, pois o objeto sobre o qual ela se empenha em representar: os pontos referenciais do real, que constituem a realidade que se investiga, são essencialmente dinâmicos: (...), devemos conferir todo o sentido à descrição inicial e não esquecer que a descrição é a finalidade da ciência. É dela que se parte. É a ela que se volta. (...), a descrição exige uma técnica que inconscientemente conduz às vias tradicionais do progresso científico. (...), a organização dos pontos de referência, seja qual for o princípio que obedeça, leva fatalmente a um conhecimento que a descrição tende a desenvolver em direção à extensão máxima, (...). O dado acabará sendo percebido no interior de uma teoria. Logo, ao confiar no simples impulso de descrição, estamos fazendo com que o espírito humano aceite o sistema. 12

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2.8. Os pontos de referência do real A descrição das qualidades e quantidades dos pontos de referência do real forma um dado sobre o real (estende nossa percepção sobre a realidade). No caso do ser humano, as maneiras de registrar o real são desenvolvidas para maior adaptação e geração desses pontos de contato, da superfície, do saber constituído na cultura; que é transmitido às novas gerações institucionalmente, escolarmente. Na descrição científica, o dado surge como uma organização dos pontos de referência de outras descrições, das descrições iniciais; o dado é uma apreensão do conjunto. A forma da apreensão (o recorte): é um sistema lógico, que dá sentido ao dado. Por exemplo, um nome que é atribuído a um objeto. O nome constitui parte de um sistema lógico de descrição, e permite uma relação mais próxima do sujeito que nomeia com o objeto. Na ciência, essa forma de apreensão se dá pela descrição, e o núcleo da descrição é o conceito. O dado pode não apresentar utilidade ao sujeito conhecedor, pode conter erros, irracionalidade; pode também não se adequar ao conjunto lógico de outros dados já estabelecidos na memória do conhecedor. Se esse dado possui, entretanto, a utilidade, poderá promover uma propulsão, um novo movimento do sujeito conhecedor para novos pontos de referência no real. Para isso, o dado também deve representar o caráter de mobilidade e in-completude do real: (...), a ciência costuma postular uma realidade. A nosso ver, essa realidade, cujo conhecimento não pode ser esgotado, suscita uma pesquisa sem fim. A essência da realidade reside na resistência ao conhecimento. Vamos pois adotar como postulado da epistemologia o caráter sempre inacabado do conhecimento. (...), o traçado que nossa ação assinala em torno das coisas só define pontos de referências provisórios e artificiais. 13 O dado permanece sendo apenas a realidade postulada pelo conhecimento humano. Uma realidade que deve possuir conexões com o real, que permitam uma gradativa aproximação, quando se conseguem vencer as resistências naturais. A realidade sempre escapa às generalizações totalitárias, completas e definitivas. Ao menos é assim que deve proceder a ciência, tendo em vista que em outros domínios do conhecimento humano, metafísicos, políticos, econômicos, verdadeiras realidades definitivas são comumente estabelecidas. Para Bachelard, o conhecimento deve ser considerado em termos de uma 24

filosofia do inexato. Essa questão da indeterminação absoluta do real se contrapõe à idéia de uma inteligibilidade da substância das coisas. Para Platão, uma vez vencido a arbitrariedade da aparência, conseguiríamos encontrar a verdade inteligível do fenômeno (isso deveria ter acontecido logo após a invenção do microscópio, ou do telescópio, ...). Essa é a matéria de discussão do livro VII da República, onde Platão enuncia a analogia da Caverna (do cinema) para tratar do conhecimento humano. Para Bachelard, a inteligibilidade dos fenômenos está no esforço da aproximação, e não a priori no mundo. As descrições que a ciência organiza; esses pontos de referência (que podem ser quantitativos e qualitativos) são elaboradas em sistemas de explicação, realizando os objetivos que já enunciamos, a apreensão e a utilidade. A essência da realidade reside na resistência ao conhecimento humano. A incongruência entre o sujeito e o objeto é uma constante. A impossibilidade de se esgotar a conclusão de uma pesquisa, na ciência, faz com que o conhecimento seja sempre inacabado e a descrição seja sempre temporária. Bachelard usa esses dois elementos: a incompletude da reflexão e a historicidade das descrições para desenvolver uma filosofia da propulsão, que segundo ele está por trás do progresso do conhecimento. Ao conquistar um conhecimento, e tendo esse conhecimento realizado os objetivos dialéticos da minúcia e clareza, o saber fixado serve de impulso para um novo movimento, é uma base segura para um novo conhecimento. No Ensaio, a filosofia da propulsão é colocada ao lado da filosofia do inexato. Este é um terceiro par dialético que Bachelard usa para falar do conhecimento.

2.9. A Inesgotabilidade do real Há uma inesgotabilidade no real, e uma instabilidade na realidade. A realidade é um sistema de explicações humanas. Entretanto cada descrição que resulta do esforço de apreensão, e que apresenta uma utilidade para a existência humana pode servir de propulsão para uma nova tentativa de aproximação. No terceiro par dialético no texto de Bachelard, há contraposição entre as duas filosofias, que ele utilizará para abordar o conhecimento humano no Ensaio. Essas duas filosofias estão na base do movimento de aproximação. 25

O dado, após sua assimilação ao sistema explicativo, passa a ser um ponto de contato habitual com a coisa, o fenômeno, que é o fato científico; torna-se um conceito, cumprindo seu papel na utilização que dele podemos fazer. Entretanto o dado assimilado não é um momento pleno, é um momento provisório. A sensação de certeza que um conhecimento estabelecido conceitualmente pode dar é ilusória, principalmente nas ciências. As pesquisas científicas mudam de caráter quando consideramos previamente a impossibilidade de figuração absoluta do real em termos dos dados. Na filosofia, a polêmica dessa afirmação acontece no pensamento de Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951), que em uma obra de 1918, chamada Tractatus logicophilosophicus, relaciona nossas dificuldades de conhecimento com a própria lógica da linguagem. Esse argumento é utilizado pelo Círculo de Viena nas teses sobre a linguagem cientifica como o fator, o conhecimento objetivo. Bachelard não utiliza esse argumento. Para ele, a questão do conhecimento parece ser mais ontológica que lingüística. A cognição humana é limitada em sua natureza biológica. As razões dessa limitação fisiológica da cognição não são discutidas no Ensaio, talvez por serem de ordem metafísica (sobre o que não se pode falar, se deve calar?). Bachelard aborda a necessidade humana de ciência para lidar com a indeterminação do real e com a necessidade de sistematização dos dados apreendidos: a ciência como um instrumento humano na superação das limitações ontológicas. O conhecimento é uma necessidade humana. A retificação é o processo de fixação do dado na representação interna do sujeito conhecedor. É um momento provisório. A propulsão é o novo movimento de aproximação possibilitado pela retificação anterior. A realidade se altera no conteúdo do conhecimento quando novos dados são construídos mediante os estímulos do real. Na aproximação que o conhecimento faz, partimos de um estado de exatidão para outro ao ampliar o sistema de descrição.

2.10. As dimensões surracionais da realidade Os estados do real se apresentam em várias dimensões, de acordo com as características de sua estrutura material. Podem se dar qualitativamente, percebidos pela estrutura sensível através da estimulação dos órgãos perceptivos, ou quantitativamente, em sua extensão, também apreendidos pela estrutura perceptiva. Inicialmente formulamos a 26

pergunta: Apesar de serem apreendidos pela percepção, e, como veremos mais tarde, representados pelas células desses órgãos perceptivos, os fenômenos qualitativos e os fenômenos quantitativos são passíveis de uma descrição precisa?

2.11. As dimensões surracionais da realidade II Ao dizer que de alguma forma representamos esses fenômenos, uma vez que os percebemos, dizemos que eles são passíveis de uma aproximação, de uma descrição na linguagem usual. Esse é o primeiro momento da aproximação. Um segundo momento seria tentar explorar a descrição das minúcias do dado, sempre pensando no ideal de clareza, como nos recomenda Bachelard. Os fenômenos com os quais estamos habituados a lidar, os macrofenômenos do cotidiano e suas regularidades, cujo acesso temos pelas aproximações anteriores, são os dados que nos permitem configurar a realidade imediata. Eles parecem estáveis, ou logicamente estáveis. Bachelard nos chama a atenção no Ensaio para o fato de que consideramos reais inicialmente apenas aqueles aspectos do real que podemos formatar com nossa percepção: dimensões megascópicas e dimensões microscópicas não são percebidas naturalmente. A realidade dos objetos que possam existir nessas escalas, nesses espectros de tamanho, para além de minhas capacidades orgânicas; é motivo de dúvidas. (...) A matéria aparece portanto sob a forma de uma contingência como que folheada. Essa é a contingência em que a parte do sujeito é determinante – a necessidade em si, a contingência em si têm um sentido? Mas, assim mesmo, é uma contingência radical. Ela tem mil razões de diversidade. (...), nos são proibidas pelas barreiras intransponíveis das ordens de grandeza. (...); escapam à universalidade do controle, única maneira de provar a objetividade e a necessidade. O infinitamente pequeno é o centro geométrico do nosso assombro. Ele derruba todas as nossas previsões. 14 No Ensaio, Bachelard se pergunta pela legitimidade da aproximação que o conhecimento humano pode obter com os fenômenos que não podem ser apreendidos pelos órgãos usuais de percepção. O ser humano construiu mecanismos tecnológicos que facilitam o contato com esses outros fenômenos, como os eventos megascópicos e 27

microscópicos. Os elementos microscópicos do real questionam nossos instrumentos habituais de percepção, os órgãos do sentido, e até mesmo os instrumentos técnicos de medição. Na epistemologia do Ensaio, Bachelard descreve a cognição humana justamente para tentar falar do conhecimento dos fenômenos limites, tendo em vista a nova cosmogonia que a teoria da relatividade trouxe. Os fenômenos limites eram procurados e estudados intensamente pelos físicos e químicos no início do século XX na Europa. O mundo microscópico e irregular, o mundo macroscópico e a s enormes distâncias e ordens de grandeza dos fenômenos cósmicos. Essa era a fronteira da ciência no início do século. O homem e sua complexidade cognitiva também passou a ser considerado um fenômeno limite, principalmente pela Psicanálise, ciência que Bachelard irá se aproximar nos anos depois da publicação de sua tese. Sobre as fronteiras do conhecimento humano, sobre si e sobre o mundo, Bachelard nos diz: (...) a Inexatidão das determinações parece exigir apenas uma nova aplicação, em escala apropriada, das categorias que tinham fornecido uma primeira informação do real. Mas, numa nova tentativa de reduzir o erro, este se divide em fatores cada vez mais numerosos e, como já vimos no caso das medidas refinadas, longe de se generalizarem, os fenômenos se individualizam quando sua escala diminui. (...) Que a distribuição espacial das peculiaridades – objeto final de nosso conhecimento do universo – tenha a marca da contingência será sempre uma hipótese metafísica; mas é uma hipótese que epistemologicamente somos obrigados a formular. De fato, essas peculiaridades não podem ser conhecidas a uma distância arbitrária já que, como tentamos demonstrar, nos são proibidas pelas barreiras instransponíveis das ordens de grandeza. 15

2.12. A microepistemologia da aproximação Bachelard analisa a conexão entre o sujeito e o objeto desde o primeiro movimento: a estimulação dos órgãos perceptivos pelas quantidades e qualidades dos dados do real. Seguem-se outros movimentos; até o momento da retificação do espírito; a descrição científica. É dessa epistemologia que tratamos na presente pesquisa de mestrado; apresentando a descrição de Bachelard. Uma questão importante para a escolha da epistemologia do Ensaio para falar sobre 28

o ensino de ciências biológicas: é que duas estruturas necessárias de aprendizado são abordadas por Bachelard: a microdimensão dos fenômenos biológicos e a importância da abstração para o conhecimento científico. Bachelard apresenta a abstração como uma etapa do conhecimento científico. Ou seria para ele a abstração o próprio formato do conhecimento? As pretensões de objetividade da ciência, que negam a subjetividade do cientista, são criticadas por Bachelard. O ideal de objetividade, de neutralidade, não é uma característica primordial da nova ciência, do início do século XX. Bachelard procura alargar as fronteiras do conhecimento para o terreno da irracionalidade. A nova arte e a nova ciência podem ter em comum a defesa do imaginário, do não-ser. No campo das artes, no mesmo período, o Surrealismo; (...) Na França, particularmente, as modernas ciências humanas não perderam contato com o mundo da literatura e da arte, (...). Nas décadas de 20 e 30, como veremos, a etnografia e o surrealismo desenvolviam-se em intensa proximidade. Estou usando o termo surrealismo num sentido obviamente expandido, para circunscrever uma estética que valoriza fragmentos, coleções curiosas, inesperadas justaposições – que funciona para provocar a manifestação de realidades extraordinárias com base nos domínios do erótico, do exótico e do inconsciente. 16 A inexatidão dos fenômenos elementares faz com que o conhecimento desses fenômenos seja mais complexo. Porém é possível a tentativa da aproximação. Para tratar da epistemologia do conhecimento aproximado, Bachelard nos diz que o conhecimento fixado no conceito é a representação parcial de algo. E esse algo não é possível de ser conhecido por completo pela própria dinâmica material das microscópicas partículas que formam o fenômeno. Uma das hipóteses da filosofia do inexato: essa aproximação ocorre em um terreno duvidoso, com o esforço da razão: o sacrifício da pesquisa. No Primeiro capítulo do Ensaio, há mais um par dialético: o macroconhecimento e o microconhecimento. Nesse par, temos a composição do conhecimento como um todo. São duas dimensões que a epistemologia deve tratar didaticamente. Para que uma descrição científica seja precisa, necessita separar as duas dimensões de análise, o macro e o micro.

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2.13. A integração dos movimentos Sobre o macroconhecimento, Bachelard fala dos processos de retificação dos conceitos no espírito humano. No microconhecimento, vai ao nível celular para discutir a retificação e representação do estímulo do dado do real no aparelho perceptivo. A integração entre os dois momentos do conhecimento é fundamental. Enquanto no nível do microconhecimento o organismo é alimentado pelos elementos materiais da realidade (os impulsos físico-químicos), no macroconhecimento acontece uma reelaboração racional, nas formulações que a capacidade abstrativa do sujeito realiza. Poderíamos dizer, sem a autorização de Bachelard, que no momento de descrever o microconhecimento ele se coloca como realista, e no momento da descrição do macroconhecimento ele se porta como um idealista. É claro que isso é apenas uma provocação, mas é também uma imagem. Até agora tratamos de um macroconhecimento, mas quando nos aproximamos de dimensões menores do que os aparelhos perceptivos podem captar, as dificuldades cognitivas são de caráter de extensão. E é nesse plano que uma série de fenômenos acontecem, nas células desses aparelhos perceptivos, que fazem com que haja a conexão. Talvez a microanálise da estrutura fisiológica do indivíduo tenha sido a origem da linha de pesquisa que os conexionistas contemporâneos defendem como base da epistemologia científica válida. Na época em que Bachelard escreveu o Ensaio, as análises da biologia do conhecimento tentavam responder as seguintes questões: (...) medir a atividade elétrica de uma fibra neurossensorial isolada. Essa atividade continha toda a informação transmitida de um receptor no músculo torácico de uma rã para o resto do seu sistema nervoso. (...), se pudéssemos estimular um único receptor visual, ou encontrar um animal em que cada receptor esteja ligado à sua própria fibra neuro-óptica, seríamos capazes de obter um registro dessa fibra isolada e medir a reação do receptor à luz. 17 O conhecimento sobre os microfenômenos envolvidos nos processos de conhecimento é necessário para uma descrição satisfatória da cognição. Com o avanço das medições da estrutura bio-química da matéria, novos entes filosóficos são gerados para o imaginário popular, disseminados pela escolarização em massa, dos países industrializados no início do século XX, também na França, sedimentados na cultura, como as expressões DNA, embrião, ácidos ribonucléica etc. Ainda assim, Bachelard utiliza o termo espírito 30

para designar o órgão responsável por se apropriar do conteúdo do pensamento. Espírito não é uma palavra que os biólogos gostavam de usar. O Espírito reorganiza a memória, e é a sede da vontade do indivíduo. Não seria espírito uma categoria muito metafísica para a pesquisa científica na França e nos países influenciados culturalmente por ela, como o Brasil?

2.14. A Retificação (...) vimos que a filosofia ficara reduzida, ou quase, à teoria do conhecimento. Assim se intitulava a maioria dos livros filosóficos publicados entre 1860 e 1920. E notava eu o fato demasiado surpreendente de que nesses livros assim intitulados não se encontrasse jamais formulada a sério esta questão: ‘Que é conhecimento?’. 18 Os fenômenos elementares, que não são visíveis, são possíveis de uma descrição precisa? Bachelard vai responder a essa pergunta descrevendo o próprio conhecimento, que também é constituído por fatos invisíveis, ao nível das células, em seu fenômeno elementar. A ciência na época de Bachelard avançava até os níveis invisíveis, com aparelhos tecnológicos de medição do átomo e de visualização das células e suas estruturas, mas os instrumentos eram limitados. A observação científica dos fenômenos microscópicos era ainda precária se comparada aos modernos laboratórios de hoje. A questão começa a ser esclarecida no Ensaio com a suposição de que tanto a nível celular quanto no nível do espírito ocorrem processos de representação. No nível celular a representação, ou retificação, acontece nas próprias células envolvidas na percepção e na transmissão do impulso até os centros nervosos. Nesse momento ocorre uma segunda retificação, que é a representação feita pelo espírito, com a ação do pensamento, armazenando o dado na memória. Esse processo é uma forma de fixação do conhecimento, na dinâmica do organismo conhecedor, iniciandose nas células e terminando na descrição, tarefa do espírito, e principalmente do espírito científico, numa espécie de impressão objetiva da realidade. No início do Ensaio, a sensação que temos é de que: a objetividade não está no universo externo. Também não está no conhecimento elaborado e apresentado na linguagem, no universo interno. A objetividade está na conexão do indivíduo com o objeto.

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2.15. Do dado bruto à assimilação funcional O ser humano é composto por diversos grupos de células diferenciadas pelo formato e funcionalidade, como ocorre com quase todos os seres vivos. A dinâmica de funcionamento dessas células, as reações químicas que se processam a todo instante, geradas em seu conjunto, constitui a vida do organismo. Dentre essas células temos as células nervosas, que são aquelas capazes de sensações perceptivas. Essas células, localizadas também nos órgãos sensores, como os olhos, recebem o dado bruto da realidade, o conjunto irracional de estímulos físicos, químicos ou motores. O dado bruto assim descrito é toda coleção dos objetos possíveis de serem percebidos pelo limite dos órgãos perceptivos. O dado bruto são es estímulos físicos, químicos e motores do ambiente, s pontos de referência no momento iniciado conhecimento. Esses pontos ainda não estão representados pelo sujeito, é o inominável. Ao percebe-los, não necessariamente se conhece (para Bachelard, conhecer é reconhecer para descrever). O conjunto de células receptoras se localiza nos vários órgãos do corpo que podem estabelecer contato com o meio externo ao organismo. Seja pela pele, olhos, ouvidos, etc. Essas células são sensíveis à presença do dado bruto, a idéia contemporânea que elas se alteram morfologicamente na presença do estímulo. O impulso do estímulo se apresenta às células em um movimento, e a depender da interatividade entre os dois pólos é gerada uma reação, que deve corresponder a um índice único.a célula que reage positivamente ao estímulo,se altera estruturalmente e transmite a alteração para outras, gerando um movimento que é a percepção do sujeito. No entanto, o dado bruto não tem em si um valor representativo, segundo Bachelard. Não tem um significado 19 . Bachelard não deixa claro em sua tese quais são os tipos e modalidades de encontro entre as células perceptivas e os dados brutos: se o contato do dado bruto com as células nervosas responsáveis pela percepção é do tipo de uma fagocitose, ou se trata de uma estimulação sem contato, a distância. Sem interação, não há estimulação. Mas de que maneira Bachelard propõe esse contato entre o objeto estimulador e os órgãos da percepção? Vamos ver um trecho em que ele aborda o problema: Já se reconheceu que o conhecimento representativo implica uma corrente exterior de intermediários físicos ou mentais que ligam o pensamento ao objeto, mas não se reviveu a dinâmica desse encadeamento. A dificuldade é sem dúvida insuperável porque não 32

temos a intuição do movimento intelectual, e o contato espírito-objeto supõe uma impossibilidade idêntica ao contato de dois pontos. Se eles se tocarem, se absorvem, ou melhor, se aniquilam na mesma unidade 20 A impossibilidade de se traçar o momento do encontro entre a percepção e o objeto nos faz pensar que há um vínculo entre as duas partes, metafísico ou não. O que Bachelard nos diz mais adiante no texto é que, se descermos a níveis microscópicos da percepção e do conhecimento, encontraremos a reação da célula diante do dado bruto, que determina o início do conhecimento, reação que penso ser do tipo físico-químicas. Segundo Bachelard, a célula perceptiva opera com uma reação de índice único. Essa expressão é utilizada por Bachelard para tratar a relação entre a célula e o dado bruto como um fenômeno binário: uma reação de 0 e 1. Um índice negativo, um índice zero significa uma não-reação, o índice único significa uma reação positiva. A célula perceptiva permanece inalterada se o índice for negativo, ou zero. E se altera se o índice for positivo, ou um. Ou a célula reage ou não-reage. Em caso de reação ao dado bruto, essa reação surge como uma alteração da própria estrutura da célula. Para a percepção, o dado surge como uma existência. O que não-existe para a percepção não pode ser representado pelas células. Quando um dado é percebido com regularidade, a alteração do formato das células perceptivas é recorrente. Essa recorrência modela o formato das células perceptivas, para facilitar novos encontros com o dado. Para que haja o valor de representação na célula, causado pelo estímulo do real, é necessário que as reações celulares provocadas pelo dado, no momento inicial, possam se repetir diante do mesmo estímulo, o que possibilitará sua assimilação. Dessa maneira, o conjunto das percepções dá ao organismo a impressão de continuidade e constância do espaço. Essa impressão é chamada de realidade: (...) esse valor representativo reside, a nosso ver, inteiramente no fato de a reação celular ser uma reação de índice único. As barreiras que um dado bruto deve transpor para mostrar-se ao espírito são tão diversas, os pontos de vistas eletivos são tão heterogêneos (físico, químico, motor) que tudo se esvai diante do último esforço do processo sensível, diante do movimento nascente que desperta – ou que constrói – a célula nervosa. (...), todo valor representativo do abstrato está nessa correspondência matemática superfície-ponto. 21 A alteração da célula nervosa é a primeira representação do real, a origem sensível do conhecimento. A primeira realidade. Essa alteração inicial é denominada por Bachelard de “Assimilação Funcional”. A assimilação funcional envolve o conjunto de células 33

perceptoras, e é possível porque essas células podem, segundo o filósofo, acumular, de experiências desses contatos, uma certa memória mecânica: (...) esse abstrato elementar, por mais que sua unidade e seu papel de sinal lhe ofereçam estabilidade, vai necessariamente transformar-se, depurar-se pela simples força de assimilação funcional. De fato, essa assimilação funcional nem sempre é uma assimilação rigorosa, e só tem sentido se retificar a substância nervosa para obriga-la a receber sempre melhor as impressões do real. 22 A cada novo contato temos uma aproximação maior, no sentido da acuidade, da precisão, da rapidez de resposta da célula a cada novo estímulo, até o momento de uma habituação. Bachelard chama esse registro celular de retificação. O estímulo é retificado na célula. Os impulsos elementares seguem vias fisiológicas desde o momento da percepção inicial até se tornar um elemento para o espírito, responsável pela abstração. Através da ação do pensamento, o espírito incorpora o resultado das retificações celulares. Bachelard chega a chamar de conceitos menores essas retificações celulares; (...) na raiz do conceito há uma vida flexível, capaz de conservar e apta a conquistar. O conhecimento considerado em sua dinâmica inferior já implica uma aproximação em vias de aperfeiçoamento. 23 Entretanto, a assimilação funcional não é obra do espírito, não é um ato livre do pensamento ou da vontade, ela é toda reflexa, automática. A ação do espírito sobre o dado, a intencionalidade, que é o fator fundamental da elaboração do conhecimento é chamada por Bachelard de assimilação intencional. Este é o quarto par dialético apresentado por Bachelard; assimilação funcional e assimilação intencional. Uma vez incorporado o estímulo, a impressão do real fica disponível para o estado de consciência. Ainda num grau microscópico, ainda um abstrato elementar. Mas é uma representação, antes de qualquer juízo ou noção do espírito. Bachelard aponta esse momento como o início de um processo, que vai possibilitar a descrição, o conhecimento. Outra expressão utilizada pelo mestre para esse instante é o de conceptualização passiva, fazendo referência ao automatismo e à inconsciência do processo de representação celular.

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2.16. Assimilação intencional e o problema da linguagem O conjunto de células retificadas no encontro com os dados brutos passa a ser um objeto para a ação intencional do pensamento. As retificações passam a ser pontos de referência do pensamento; ficam disponíveis para os estados de consciência, de onde surgirá a coordenação dos saberes e atitudes importantes sobre o real. Lembramos que conhecer é sobreviver. O processo celular que ocorre nas células dos olhos humanos desde o nascimento vai se aperfeiçoando de maneira que o estímulo é cada vez melhor assimilado; até atingir um nível da linguagem, onde os dados luminosos se tornam realidade visual. O ser humano não nasce com os olhos aptos a ver e nem com ouvidos capazes de distinguir e significar os sons. Os órgãos perceptivos são estruturas sensíveis que se formam ao longo de nossas experiências. Na segunda metade do século XX, o filósofo Wittgenstein (1889-1951), apresentou uma pesquisa chamada Investigações filosóficas, publicada postumamente. Segundo ele, a linguagem que cada cultura disponibiliza aos seus membros, nossos universos semióticos, onde estamos inseridos, fornece a estimulação necessária para que os indivíduos se aperfeiçoem nos jogos de linguagem da cultura: aperfeiçoem seus órgãos perceptivos, pela constante estimulação que esses jogos permitem 24 . Porém a linguagem não é, nas palavras de Bachelard, determinante no momento da assimilação funcional. A assimilação funcional é um mecanismo biológico primário, que o ser humano partilha com os demais seres vivos, não há cultura, o conhecimento nesse início é a simples ação mecânica dos órgãos de percepção. A linguagem faz parte do outro momento: ela é fundamental para o processo de assimilação intencional. Permita o leitor que apresentemos uma citação um pouco longa, mas acreditamos ser mais clara que uma interpretação: (...) não se tem nenhum critério para determinar as características suficientes ao reconhecimento do objeto; nem mesmo se definiu a maior ou menor acuidade desse reconhecimento. Se o reconhecimento é a pedra de toque que determina o valor do conceito, será necessário considerar dois pólos para centralizar a acuidade da percepção: as coisas com suas diferenças mais ou menos visíveis e o espírito com seu poder de discriminação; no fim, o vencedor será o espírito. Nosso acordo não dependerá tanto da similitude dos objetos, e sim da maneira uniforme como lhes reagiremos quando se apresentarem. A conceptualização será um esforço de objetividade mas, tudo 35

bem considerado, ela vai desenvolver-se em sentido inesperado, pois para a depuração do conceito não é o objeto que chama – suas exigências seriam sempre mínimas, já que bastaria uma característica para designá-lo -, mas é o espírito que projeta esquemas multiplicados, uma geometria, um método de construção e até um método de retificação. 25 Duas questões são explicitadas nesse trecho. A primeira é o re-conhecimento. Se o objeto não for reconhecido num segundo contato significa que a representação não teve energia psíquica; ou que a representação não foi utilitária ao estado consciente; ou mesmo não pôde ser um elemento para um juízo sobre o objeto. Se o objeto puder ser reconhecido, significa que a representação do estímulo foi assimilada pelo espírito. Muitas representações celulares não são utilizadas imediatamente. A segunda questão que o trecho apresenta é a fundamentação da assimilação intencional; a ação do espírito. A forma como o espírito se apropriará da representação celular do objeto. Essa representação tem um caráter de objetividade; instante da materialidade. Diante da representação celular, o espírito surge como um juízo de correspondência, é ele quem vai reconhecer, desejando que o dado representado represente alguma; tateando ao redor em busca do objeto, que ele saberá quando reencontrá-lo! Nessa busca, outras representações guardadas na memória são revisitadas. Com a arte e com a linguagem escrita, as culturas humanas puderam fazer evoluir a quantidade de conhecimentos da espécie, sobre o meio e sobre si mesma. As crianças humanas a cada geração recebem das gerações anteriores o legado de pesquisas e criações. O acúmulo do conhecimento e do reconhecimento, patamares de buscas que não precisam ser reiniciados completamente, mas que podem ser continuados. Principalmente em termos do conhecimento científico, que tem uma finalidade cultural mais profunda, de ampliação das possibilidades humanas de adaptação. (...) A aproximação é a objetivação inacabada, mas é a objetivação prudente, fecunda, verdadeiramente racional, pois é ao mesmo tempo consciente de sua insuficiência e de seu progresso. 26 Ao espírito cabe a função de abstrair a representação inicial. O espírito deforma o dado representado, e o projeta em esquemas multiplicados conforme a riqueza de recurso que a memória pode fornecer.

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2.17. O Espírito Bachelard utiliza a categoria de Espírito como sendo o epicentro da consciência; a energia psíquica do sujeito; uma força intelectual. A cognição possui três estruturas. São elas o Espírito, o Pensamento e a Memória. Não há detalhes dessas fisiologias, ou lugares no cérebro onde possam se situar. Há um trecho da tese na qual Bachelard apresenta os argumentos para não resolver questões ontológicas. Ele diz: Alguém vai decerto perguntar de que modo já se conhece. Mas por que exigir mais do epistemólogo que do físico? O epistemólogo, tanto quanto o físico, não pode eximir-se das questões de origem? Se nos for dada uma nebulosa, já é tarefa difícil descrever sua condensação. 27

2.18. A Abstração A abstração é uma associação livre, é o sentido inesperado. É através da abstração que a representação inicial das células perceptivas é fixada como conteúdo no próprio espírito. Os conceitos de abstração e de espírito trazem um conteúdo filosófico histórico conflituoso, tratado como questão metafísica. Vamos tentar esclarecer que tipo de espírito Bachelard está tratando em sua tese. A nossa intuição é de que ele aborda um ente material: talvez ele admita o espírito como uma fisiologia: um funcionamento de órgãos do sistema nervoso. Entretanto ele atribui ao espírito a capacidade de livre associação, o que nos leva a não considerar seriamente o determinismo biológico que vê apenas ações e reações celulares como base do funcionamento do organismo. O espírito é responsável pela abstração. O princípio forte desse materialismo parece ser o presente das estruturas do pensamento. O pensamento deve resistir à louca tentação de sair de si mesmo 28 . Com essa frase, Bachelard parece dizer que a objetividade do espírito está nesse esforço do contato com o real. Mais uma vez, não temos uma resposta ontológica sobre o que é o espírito. É uma fisiologia do corpo que se ocupa de conectar o indivíduo com o momento da realidade. A abstração do espírito é o método de construção do segundo momento do conhecimento, o macroconhecimento.

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2.19. O Microconhecimento e o Macroconhecimento O pensamento alimenta o espírito constantemente com novas representações celulares, colhidas dos constantes contatos com o meio, e também com representações já fixadas, de forma que a realidade nos aparece como um contínuo: uma imagem contínua em movimento. O pensamento busca o presente, o instante. Cada órgão perceptivo lida com um aspecto do real, e esse real aparece como unificado no tempo pela ação do pensamento, a energia psíquica. O

tônus

psicológico

possibilita

que

os

microconhecimentos

e

os

microconhecimentos surjam de maneira contínua e simultânea. O início de um novo conhecimento não interrompe outros que já estão em registro no organismo, os que estão em andamento, e nem as abstrações que o espírito faz para ampliar sua aproximação. A apresentação dessa impressão imediata do real à consciência é já o uso da linguagem. A linguagem humana é um instrumento eficiente da consciência, uma forma de se apresentar a si mesma. A linguagem científica é útil na elaboração das descrições e a linguagem técnica é uma tentativa de representação objetal dos mecanismos cinéticos do universo. Microconhecimento se refere ao ato perceptivo inicial. O Macronhecimento é a ação do intelecto, do pensamento. Tônus Psicológico (Assimilação funcional – Assimilação intencional) A – Dado bruto, o contato com o real. B – transmissão do impulso através do índice único; as células sensíveis alteramse e suas regiões periféricas servem de estímulo a outras células, numa reação em cadeia. C - Abstrato elementar. O conjunto de representações das células retificadas dos órgãos perceptivos. D – Pensamento. “(...) O pensamento só começa com a linguagem, é contemporâneo da junção dos conceitos”. O pensamento situa o organismo no presente, ele possibilita um contínuo da realidade, possibilita que o mundo se mostre em movimento para a consciência. E – Memória. É o conjunto de representações fixado anteriormente. F - A partir de sua capacidade de síntese, o espírito funde a nova representação às antigas.

Segundo Bachelard nos diz que não há pensamento sem linguagem, logo entendemos que a abstração não é um processo automático, mecânico, mas intencional. A criança não está ainda totalmente imersa no mundo lingüístico de sua cultura; nela há o acúmulo de assimilações funcionais sem as posteriores assimilações intencionais, 38

intermediadas pelo idioma e pelos sentido sociais dos objetos. A ação do espírito, sem a linguagem, não se completa. O ato de reflexão sem a linguagem é infrutífero. A identificação do objeto retificado na estrutura celular é o sucesso da assimilação mecânica e o sucesso da assimilação intencional. Bachelard considera o momento do reconhecimento como o de uma constatação do fenômeno. O poder de discriminação, a capacidade de classificação, o costume com os objetos são realizações do espírito, auxiliado pela possibilidade de nomear que a linguagem dá. A finalidade de toda linguagem humana é: ser o elo entre a assimilação funcional e assimilação intencional.

2.20. O Pensamento Segundo Bachelard, há um fator de ordenação na própria percepção. Fico pensando nos seres vivos que compartilham conosco o mesmo ambiente, mas que possuem acessos aos dados desse ambiente de maneiras diferentes, de acordo com as suas especificidades perceptivas e assimilativas próprias: (...) Assim, o som é o complexo da altura, do timbre e da intensidade, mas essas qualidades são nitidamente separáveis e a altura, por exemplo, determina uma escala sem arborescência. (...), os dados relacionados à visão: o tom das cores, a saturação e a clareza formam um esquema complicado (Ebbinghaus) se quisermos preservar a unidade da impressão. Uma análise imediata destacará multiplicidades lineares independentes. 29 O espírito é identificado como a própria consciência do indivíduo: sua intencionalidade; onde lhe ocorrem os juízos e noções; centro da vontade. A memória está ligada ao espírito, ela é precisa ao reconhecer um dado representado anteriormente. Já o pensamento do sujeito é o estado de presença: é o acesso ao presente dos fenômenos.

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Jardins de Dijon 05/01/07

Multiplicidade de dados elementares da sensação. A percepção em seu princípio de ordenação opera como um Prisma para desfragmentar e captaras qualidades das multiplicidades lineares independentes. Instante da passagem da assimilação funcional à assimilação intencional. A – Índice único positivo B – Assimilação funcional. Princípio da ordenação da percepção, que isola os elementos múltiplos das várias percepções. C – Assimilação intencional. Desfragmentação da multiplicidade. D – dados retificados em suas múltiplas dimensões, arquivados na memória.

O pensamento não é uma estrutura pré-existente, a priori, no sujeito. Bachelard diz que o pensamento precisa de um registro abstrato, de objetos intermediários, também retificados na fisiologia do sujeito, que são os objetos da linguagem. A alfabetização, por exemplo, é um longo processo de aproximação de um tipo de objeto que são os símbolos gráficos de uma cultura. O processo de alfabetização inicia-se com procedimentos de estimulação, para a assimilação funcional dos símbolos. Depois temos a assimilação intencional, utilizando livres associações que o espírito pode fazer. Essa é a vida cultural do pensamento.

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2.21. O contínuo da realidade Os dados impressos nas representações celulares da percepção seriam caóticos, ou simplesmente associações mecânicas se a linguagem não interviesse com sua categorização típica da matemática e lógica. Um som é composto de altura, timbre e intensidade, mas essas categorias não estão presentes no som. O som nos surge como um contínuo, uma temporalidade. A fragmentação da unidade do real nos permite perceber outras dimensões que compõem o contínuo. Raios ultravioletas ou infravermelhos, por exemplo, escapam de nosso espectro de visão; não sensibilizam as células perceptivas dos olhos; não temos células capazes de sofrer alterações perceptivas diante desses estímulos, por isso não podemos vê-los. Se a estrutura orgânica não localiza o estímulo, não acontece a percepção. Entretanto o ser humano construiu instrumentos tecnológicos capazes de detectá-los. O nome de uma cor, por exemplo, é um conhecimento que é aplicado na tentativa de reconhecer os objetos coloridos: habilidade conquistada após o letramento do indivíduo, nos processos em que ele aprende a relacionar uma imagem gráfica a um objeto. Mesmo que no microconhecimento o nome da cor não interfira. No momento da assimilação intencional, os registros simbólicos, e as experiências anteriores de reconhecimento têm sua importância para se saber a cor de um objeto e nomeá-lo. Dessa forma a realidade é objetável progressivamente pelos esforços de aproximação do sujeito conhecedor, tendo em vista sua adaptação ao ambiente: para solucionar suas obrigações materiais de vida. Animais que possuem instintos comportamentais que controlam comportamentos a priori, diante da estimulação de certos comprimentos de onda, de cores, por exemplo, não necessitam saber ou aplicar um nome para a cor. Mas para nós humanos, a linguagem faz com que seja possível interromper o movimento das imagens, para dar nomes e construir conceitos. A fixação das representações se dá pelo próprio formato das células nervosas. Em animais instintivos o formato desses neurônios já possui uma adequação para o contato com o estímulo. Em geral a célula formatada apresenta grau de flexibilidade menor do que as células nervosas humanas. Essa flexibilidade do sistema nervoso humano, isso de não surgir fixo, com comportamentos estruturados, ou representações celulares demarcadas; é que nos auxilia na busca de adaptação a infinidades de situações e contextos ambientais e culturais. Por isso um animal não precisa saber o nome das cores para se relacionar com objetos coloridos; como dissemos, o ser humano depende da linguagem. 41

A aproximação é a progressiva capacitação das células perceptivas, que possuem a função de direcionar o impulso recebido pelo meio. Também há uma evolução do espírito em aplicar juízos: tomar decisões sobre as situações de vida, sobre as informações necessárias para a ação. A aproximação mais uma vez, nessa argumentação, deve responder aos critérios de utilidade. A diferença entre um estado de consciência inicial e o novo estado de consciência é que depois da assimilação intencional o objeto retificado começa a compor o mundo do sujeito: suas significações. A retificação é uma etapa do movimento do conhecimento em direção ao real. É algo surpreendente, pois são as impressões objetivas do contato, comprovando suspeitas de um realismo mitigado de que há uma possível realidade. A retificação é questionada na perspectiva dos céticos (para os quais não há um conhecimento possível). O elemento re-conhecido nesse segundo encontro pode não ressurgir. O elemento pode não ser distinguido da somatória de objetos que compõem o contínuo de coisas. Nesse caso não houve a representação; podemos dizer que não conhecíamos o objeto procurado.

2.22. O contínuo da realidade II Distinguimos conceitualmente dois tipos de fenômenos: a velocidade do estímulo em percorrer o sistema orgânico até atingir os órgãos sensoriais e encontrar a retificação no espírito, e a velocidade da percepção, a velocidade com a qual o organismo percebe o estímulo depois de ser atingido por ele. Esta última velocidade é aumentada culturalmente, pois o sujeito desenvolve seus órgãos sensoriais ao longo da vida. Se há o reconhecimento de um elemento no meio externo, somos levados a concordar que sua impressão foi fixada, mesmo que com pouca precisão. Há sempre uma imprecisão na retificação. Principalmente com relação aos objetos culturais. Entre a coleção de objetos do real, uma série deles pertence exclusivamente ao universo cultural humano. O exemplo que Bachelard comenta é do objeto técnico. O objeto técnico é cultural, e é intencionalmente construído para reproduzir mecanismos que

homem e

mulheres abstraíram de suas aproximações com o real. Dessa forma o objeto técnico é o objeto que oferece o maior índice de assimilação e utilidade. No objeto estilizado, o espírito reconhece sua marca tradicional. (...), essa graça esquemática que os objetos 42

manufaturados apresentam. 30 Já vimos nos primeiros tópicos desse capítulo que o primeiro movimento do conhecimento é o contato do sujeito com o dado bruto. Esse dado é objetivado na representação celular, que Bachelard chama de assimilação funcional. Após esse momento, segue-se a ação do pensamento sobre a representação, disponibilizando-a recorrentemente ao espírito. O espírito é responsável pelas abstrações e utilização da memória. São todos movimentos simultâneos: O pensamento transforma em objeto da consciência as representações das células sensoras, espalhadas por todo o corpo. As representações celulares ficam disponíveis para os estados de consciência; o pensamento coloca-as no presente do indivíduo, em velocidades diferenciadas, de modo que sejam conhecimentos úteis para as ações de sobreviver.

2.23. A montagem do Movimento A audição do som e a contemplação de uma figura têm velocidades de percepção diferentes, pela própria natureza do som e da imagem (da luz). O sincronismo das percepções não parece, no texto de Bachelard, uma função das células, mas do espírito humano, que para viver gera uma realidade tempo-espacial. Os órgãos perceptivos possuem estruturas diversas de conexão com os dados reais, mas quando vemos um filme no cinema, o som e a imagem parecem ter uma mesma velocidade; parecem ser captados em um mesmo contínuo, de uma maneira única; tanto o som contendo imagens, quanto às imagens contendo sons. Ambos em movimento. Por que temos essa sensação, mesmo sabendo que a imagem cinematográfica é uma montagem, um engodo da percepção? Como explicar a sensação de simultaneidade que os objetos possuem? As representações celulares possuem velocidades diferentes. Há uma diferença pequena de tempo, que não é percebida imediatamente. Segundo Bachelard, enquanto a experiência nos põe em contato atributos, o espírito liga um sujeito a um conjunto mais ou menos articulado; esse conjunto é então considerado como efetivamente pensado. 31 Um processo de unificação, de geração de um contínuo, de uma constância da realidade é tarefa do espírito, de forma que a realidade apareça como algo ininterrupto para a consciência. Ocorre-me serem simultâneos o som e as imagens, pois essa é uma 43

necessidade adaptativa. É a modalidade humana de conhecer: a unidade tempo espacial do presente. O espírito unifica todas as representações, de velocidades e estímulos diferentes, flexibiliza, deforma, abstrai ao máximo, utilizando suas várias faculdades, seus vários juízos, e também utilizando as representações celulares elementares, (que são milhares por todo o corpo humano). Juízos são faculdades, habilidades e maneiras de agir.

2.24. Geometrizações imaginéticas A geometrização dos dados retificados é possível por dois motivos: pelas próprias qualidades dos dados, e pela natureza da impressão desses dados na superfície das células perceptoras. Podemos citar como exemplo as alterações morfológicas das células dos olhos no momento de contato destes com as imagens, com a luz em movimento. A seqüência linear positiva de índice único organiza as alterações celulares. Essas representações organizadas são utilizadas pelo espírito. Elas são transmitidas pelo corpo através de cadeias de perturbações morfológicas, e de impulsos nervosos, até as centrais fisiológicas, cerebrais principalmente: onde as associações acontecem. As unidades da representação celular são possíveis de serem convertidas em imagens. O espírito percorre os limites dessas representações, através dos juízos (figura 8). Não percebemos no Ensaio uma concordância com Immanuel Kant sobre os juízos a priori. Para Kant, haveria um conjunto estruturado de ações, disponíveis ao espírito, que seriam anteriores a qualquer experiência. Para Bachelard, a vida do espírito tem uma relação com o surgimento da linguagem, por isso os juízos necessitam passar por uma vida cultural, necessariamente. Outra diferença de Bachelard para Kant é a admissão de Kant de que há uma metafísica no espírito, o que explicaria o apriorismo de certos comportamentos. Bachelard cita os juízos de dedução, o juízo de intercalação, o juízo sintético, o juízo analítico, o juízo de negação e o juízo de aproximação. Esses juízos compõem a faculdade de abstração.

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2.25. O Conceito O conceito pode ser considerado como uma deformação intencional do conteúdo das representações celulares, lançando mão do nível de desenvolvimento sociolingüístico de cada espírito. (...) o elemento distinguido é muitas vezes fixado de um modo pouco preciso, (...). É preciso que o espírito esteja sempre consciente dos limites que impedem o desenvolvimento qualitativo ou quantitativo do fenômeno. 32 A imagem entra na vida do indivíduo desde o início, logo no ato de representação celular dos estímulos externos, que formam as primeiras imagens, a imagem do dado bruto. Não apenas isso, mas o movimento dessa imagem. O que vemos, o que tocamos, o que percebemos, são instantes do real; momentos do movimento. Segundo Bachelard, para se encontrar a raiz do real, a causa, seria preciso ir até o cerne da experiência. Mas nossas células não são capazes de ir até esse ponto. Anteriormente falamos do espectro de comprimento de luz, a possibilidade das cores, e dissemos que nossos olhos não são sensibilizados por todos os comprimentos. Esse centro nos é proibido: sempre veremos o fenômeno de fora, em sua cinemática, nunca em sua dinâmica. 33

2.26. O conhecimento Ficcional e o conhecimento científico O conhecimento descrito por Bachelard até aqui deve ser considerado em seus dois momentos; a retificação celular e a retificação do espírito, resultados de dois processos: a assimilação funcional e a assimilação intencional. Dito assim, acreditomos ter resumido em grande parte um esquema de compreensão da epistemologia do Ensaio. O conhecimento é um ato, não está em um início, a priori, está após uma etapa fisiológica de registro. O conhecimento é o reconhecimento do que foi fixado no espírito, uma necessidade humana de adaptação e evolução. O movimento de aproximação do conhecimento, tema central da tese de 1928, em seus dois sentidos, ocorre nas duas retificações. Tanto no nível celular nos aproximamos do objeto pelo aperfeiçoamento das células, a acuidade das superfícies, quanto no nível do espírito nos aproximamos do objeto em uma espécie de desenvolvimento 45

ergonômico, onde a convivência com os dados do real possibilita novos comportamentos, novos comportamentos inclusive de pesquisa, de estudo. Dessa forma os dois sentidos da aproximação se realizam. No nível celular, a distância com relação ao objeto percebido diminui, em termos da velocidade da distinção, quando conseguimos situar tudo com o máximo de rapidez. O outro sentido do conhecimento no nível da retificação da célula é um aperfeiçoamento progressivo da captação do impulso, como dissemos, de maneira que o esforço de objetividade na classificação das qualidades aumenta, aumenta a captação das nuanças e detalhes do real. O conhecimento na representação celular, o microconhecimento é resultado de mecanismos biológicos, reflexos, do indivíduo. Entretanto eles podem ser educados. Para admitir que esse microconhecimento se mantenha e contitua o conhecer total do indivíduo, sua capacidade cognitiva, devemos pressupor que há nessa tese uma idéia de descontinuidade do real e de continuidade do espírito. A multiplicidade de elementos que compõe o real é percebida de acordo com a peculiaridade do estímulo, seja físico, químico, motor, os estímulos são multidimensionais, ou seja, partem de uma série de fontes históricas ao indivíduo, descontínuas. O indívíduo possui vários órgãos distintos de percepção, e como são fenômenos de ordem de qualidade distintos, as representações celulares também são distintas. O fenômeno externo ao indivíduo é captado na sua descontinuidade, portanto. O juízo sintético do espírito faz a sincronização das representações. O reconhecimento da realidade percebida não é uma nova percepção da descontinuidade, mas demonstra a fixação dos conceitos básicos à imagem e ao som (representações celulares) e os conceitos elaborados (os predicados lingüísticos como nome das cores, nome das formas, nome da música, etc). Numa cultura, a acuidade visual, que é o progressivo aperfeiçoamento da percepção visual é estimulada nas crianças desde o seu nascimento, de maneira que um adulto nessa cultura distingue em uma grande soma de objetos aqueles a que o sujeito pode fazer referências. Com as imagens parece ocorrer o mesmo, o que pressentimos como um habituar é na verdade um aperfeiçoamento de nossas percepções com relação aos objetos recorrentes. Essa perspectiva surge como um argumento do Ensaio, e é retomada pela neurobiologia, que nos diz que a habituação é na verdade uma conexão entre o sujeito e o objeto, conexão que altera a estrutura do sujeito, estrutura neuronal, de maneira que a cada 46

aproximação, essa nova estrutura é reafirmada, retificada. No nível do espírito, a retificação da representação também acompanha uma progressão aproximativa, segundo Bachelard, nos dois sentidos dialéticos da aproximação, aperfeiçoamento e velocidade. O tempo de reconhecimento é uma maneira de encarar o conhecimento conquistado, uma vez que ele é o tempo da assimilação, e também o tempo da emissão de um juízo sintético ou dedutivo. A aproximação acontece no espírito na expressão do aperfeiçoamento e velocidade de julgamento de seus juízos. Após um período de aprendizado, por exemplo, um profissional de vinhos consegue distinguir, com um enorme poder de precisão na identificação, uma grande variedade de tipos, demonstrando a aproximação. A estrutura perceptiva desse indivíduo, e os juízos de seu espírito, são capazes de reconhecer muitos objetos referentes a esse recorte do real. Podemos chamar de conhecimento o saber sobre o vinho, nos termos que Bachelard descreve o conhecimento, portanto. A tarefa da epistemologia do Ensaio é apresentada ao leitor desde o início: acompanhar o conhecimento em sua tarefa de refinamento, precisão e clareza. 34 A operação de assimilação funcional, primeiro estágio do conhecimento, ocorre involuntariamente mesmo após o condicionamento cultural, mesmo após a atividade do espírito, é uma ação bioneuromecânica. Mas a assimilação intencional tem a marca da subjetividade do sujeito, portanto os dados representados nas células perceptivas são material utilizado para as representações da consciência, são remodelados de acordo com a utilidade para o ser. A assimilação funcional remodela as representações celulares, tem o peso da história da vida do sujeito. (...), é preciso sempre fazer uma grande diferença entre o início do conhecimento e a vida dele. A tal ponto que não se pode atribuir um papel de informação à sensação primeira. Ela é apenas um sinal, um convite, o pretexto da atenção e da reflexão. 35 Parte dessa história é marcada pela cultura que fornece os dados e elementos, formas de julgar e de agir, um ethos, comportamentos lingüísticos. A cultura se inicia com a ação do homem junto ao arbitrário, ao real, à aproximação que o conhecimento humano realiza, ao longo da filogênese de suas sociedades, é acumulada para que o indivíduo que nasce possa ter acesso a esse vocabulário, e a partir dele fazer suas aproximações cognitivas, para sua sobrevivência:

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(...) O detalhe, ao contrário, não fere: em seu exame, encontra-se como elemento afetivo o mero prazer da curiosidade. Esse sentimento é o mínimo de afetividade necessário para dar impulso à energia nervosa do conhecimento. 36 Após a descrição do modelo bachelardiano, de seu tônus psicológico, vamos tentar responder como Bachelard a preciosa pergunta: como podemos saber se nosso conhecimento corresponde realmente aos dados do real? Poderíamos imaginar que nossos sistemas perceptivos agem arbitrariamente, e a coincidência de que algumas ações realizadas a partir desse arbitrário, dissimuladas pela cultura, resolvam nossos problemas de sobrevivência, sem a possibilidade de sabermos se estamos realmente conhecendo o real ou fabricando realidades úteis. Na verdade esse argumento pertence ao céticos na filosofia. Bachelard não nos deixa esperanças quanto ao conhecimento exato do real, e nem nos ajuda a defender uma exatidão lógica do pensamento. Ele diz inclusive que o erro, o ilógico, o inexato, são etapas necessárias de um conhecimento. Se para Bachelard o conhecimento exato não é possível, a proposição de um conhecimento aproximado é a forma de responder à pergunta sobre a possibilidade da correspondência do conhecimento com relação ao real. O que nós sabemos são aproximações que podemos fazer, aproximações que são úteis na vida humana, e, além disso, aproximações que permitem descrições eficientes da cinemática do real, de tal forma que o ser humano foi capaz de realizar o objeto técnico, réplica e criação. O espírito lida com a representação dos dados reais, e também com as representações e abstrações do próprio espírito, suas criações, seus objetos imaginários. Portanto não podemos tratar do real apenas como algo externo ao sujeito. Uma série de novas realidades é gerada subjetivamente, sem que por isso possam ser chamadas de menos objetivas do que o real. Além disso, no ato da assimilação funcional, podem ser apresentadas às estruturas de percepção dos indivíduos estímulos materiais oriundos de mecanismos tecnológicos, como as imagens do cinema. Como a assimilação funcional não trabalha no plano da linguagem, tanto a distinção semântica de um estímulo material natural, como o estímulo artificial não é possível. O devaneio de realidade que as imagens cinematográficas possuem é ocasionado inicialmente por essa indistinção. Mitos e lendas, transformados em imagem e sons, em impulsos, reagem como dados reais. Essa é uma das idéias da trilogia cinematográfica Matrix, de Larry e Andy 48

Wachowski aborda essa questão; a semelhança entre os estímulos artificiais, no caso é gerada por computadores, e os estímulos naturais, de forma que no filme eles são indistinguíveis, aprisionando os seres humanos em uma realidade virtual. Se os mitos e lendas high tech, imagem e som, em termos do dado bruto dessas estimulações são assimilados e processados funcionalmente sem distinção lingüística, não são classificados na fonte perceptiva como ficção ou verdade. É no espírito que isso pode ocorrer, o estabelecimento do critério de realidade, ao dar predicados, emitir juízos, atentar para nuanças, classificar, ordenar e transformar os dados imediatos. A ficção de um filme, por exemplo, é transformada no momento do contato elementar entre o sujeito e o objeto em representações celulares como se esses dados correspondessem a um dado real. No nível do microconhecimento, não há distinção entre a ficção e o real. Esse é um dos exemplos de erro que podem ocorrer em nossa aproximação. Um erro não moral, um equívoco necessário, e até importante. (...), seria um erro confundir o primordial com o imediato. O que é imediato para uns não o é para outros. O dado é relativo à cultura, está necessariamente inserido numa construção. Se não tivesse nenhuma forma, se fosse um puro e irremediável caos, a reflexão não teria nenhum poder sobre ele. Mas, inversamente, se o espírito não tivesse nenhuma categoria, nenhum hábito, a função dado, na acepção exata do termo, não teria sentido. É preciso que um dado seja recebido. 37 As perturbações psicológicas, como os estados psicóticos ou esquizóides nos dão uma demonstração de como um espírito, no caso um espírito atribulado rearranja os dados das representações celulares, dados habituais em torno de manifestações psicológicas de outro caráter. Poderíamos dizer que no microconhecimento a ficção é um conhecimento? Sim, de acordo com o Ensaio, sim. A ficção pode se tornar, no caso da ficção cinematográfica um tipo de conhecimento se, e somente se, houver um reconhecimento posterior dos elementos iniciais. Por esse motivo, pela não constância desse reencontro com os dados, a ficção permanece conhecimento apenas no nível da assimilação funcional, não na retificação do espírito. Posteriormente Bachelard, influenciado pela psicanálise, vai aprofundar seus estudos sobre a ação do espírito sobre a representação celular:

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(...) visando definir quais são as condições dessa objetividade e a primeira condição, válida para toda e qualquer ciência, é a de não tomar a imagem pelo objeto. No entanto, se o Bachelardepistemólogo aceita esse princípio, o Bachelard-poeta ultrapassa-o graças à sua concepção da imaginação deformadora. Não atingindo a objetividade, a imaginação, por definição, é sobretudo a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de nos libertar das imagens primeiras, de mudar as imagens. 38 A aproximação progressiva do conhecimento sobre o dado no nível celular é quem vai desencadear de alguma forma a diferença entre a ficção e a realidade, mas é no laboratório da imaginação, da ação do espírito, que essa distinção é fixada. No Ensaio, Bachelard não apresenta uma reflexão sobre a imaginação. Sabemos que ele vai desenvolver uma teoria densa sobre essa capacidade humana nas obras posteriores. Como nossa intenção é explorar o ensaio, vamos utilizar o que ele nos disponibilizou em termos de argumento. Nos limitaremos a considerar a imaginação como uma modalidade de abstração do espírito sobre os dados representados pela assimilação funcional, a abstração que é a característica citada por Bachelard como referente à assimilação intencional, ou seja realizada pela força da consciência do sujeito. Tão pouco nós temos o conceito de inconsciente no Ensaio, portanto, atribuiremos à memória seu papel, que é o de armazenar as representações que chegam ao espírito. Como resultado do conhecimento, percebemos em Bachelard uma preocupação ética. Pois na construção do conhecimento científico, a sensibilização da percepção pode ser feita mediante o cinema, filmes e debates sobre a imagem dos objetos tecnológicos e dilemas existenciais que eles provocam. No momento da elaboração do conceito científico, na assimilação intencional, a ficção científica também pode servir de geradora de imagens e dados, e principalmente, geradora de estruturas de descrição. Podemos admitir também a ficção científica como uma forma de apresentação de certos conhecimentos científicos, maneira de descrever o saber científico, principalmente nos filmes que assumidamente buscam fazer a propaganda da ciência como os filmes de ficção científica dura. 39 (...) o antropomorfismo é atualmente nosso único método de expressão para o aspecto pormenorizado do real. (...). Dar vida à Realidade inteira é fazer da representação a representação de uma entidade. (...) a tarefa de conhecimento e a tarefa de criação seguem um mesmo plano, e ambas estão inacabadas. Mas, enquanto o 50

inacabamento do conhecimento humano é visível e doloroso, atravessado por perturbações, a retificação do real se efetua num plano de refinamento que respeita todas as conquistas. 40 Voltando ao microconhecimento, a dificuldade de distinção entre o objeto ficcional e o objeto real se dá pela quantidade de variáveis microscópicas e arbitrariedades dos fenômenos da luz e do som, componentes da imagem e do movimento quando se apresentam aos órgãos perceptivos: (...) na microepistemologia, as variáveis tornam-se tão numerosas, tão sensíveis, tão irregulares que, experimentalmente falando, sua atuação assume o aspecto da contingência. 41

2.27. Uma epistemologia necessária O mais importante da relação entre a tese de Bachelard e o cinema é a necessidade de que o professor de biologia deve desenvolver uma epistemologia. Segundo a filosofia oriental do Aikido (BULL, 2003), professores e alunos têm que entender que o “como aprendemos” é mais importante do que o “o que aprendemos”. Semelhante a esse ensinamento, pensava Bachelard que a relação entre as duas ações é cronológica, no caso da ciência: primeiro desenvolvemos o como da aprendizagem, após isso realizamos o conteúdo. Da mesma forma, é necessário ao cientista e ao estudante uma epistemologia básica antes de passarmos ao conteúdo. Responder ao como aprendemos resulta em vantagens quando passamos ao o que aprendemos. A questão passou a ser, durante a investigação do mestrado, como estudar Gaston Bachelard? Um teórico que demonstrou ser um pensador de vários momentos, não pela mudança de fundamentos, mas pela mudança dos objetos. Do conteúdo da Física (termodinâmica) para a própria Epistemologia, e depois dessa para a Poesia e por fim a Psicanálise. Como parte da investigação sobre a figura de Gaston Bachelard, e também para entender melhor a relação entre o cinema e a educação, estive em Dijon, cidade francesa para onde Bachelard se dirigiu em 1930 para lecionar filosofia da ciência na Universidade da Borgonha. Ele estava nesse período exercitando e observando seus estudantes a partir do 51

prisma adotado em sua tese de Doutorado sobre o conhecimento aproximado de 1927. Minha pesquisa etnográfica, parte que considero importante para minha compreensão da epistemologia do Ensaio se concentraram em três locais: a biblioteca municipal de Dijon, a biblioteca da faculdade de ciências humanas da Universidade da Borgonha e o cinema Eldorado. Minha pesquisa em Dijon ocorreu de 07/12/06 a 22/01/07. Na Biblioteca Municipal de Dijon (Figura abaixo) encontrei a obra do filósofo e referências históricas sobre o contexto histórico do período em que Bachelard esteve morando em Dijon, que possui uma avenida com o nome do filósofo. Meu objeto de pesquisa ali foi a tese de Bachelard, que tive acesso em Francês e todo comentário sobre essa obra, sua repercussão filosófica e o comentário de estudiosos de Bachelard na França como Georges Cangluien e André Parinaud. Também foi importante para entender que lugar a tese ocupa dentro da obra de Bachelard, um filósofo profícuo que escreveu 25 livros sobre filosofia. Na biblioteca municipal foi possível ver microfilmes de jornais que registraram acontecimentos da vida de Bachelard.

A Biblioteca Municipal de Dijon – 20/12/07

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Na biblioteca da Universidade da Borgonha encontrei ensaios fotográficos, literatura e mais dados sobre a relação entre cinema e educação. A biblioteca tem um eficiente sistema de busca e de cópias, o que dá ao estudante suporte para a pesquisa.

Gaston Bachelard (1884 – 1962)

No Cine Eldorado, um cinema tradicional de Dijon, presente desde a década de 50 do século XX na cidade e que hoje enfrenta dificuldades pela postura da Prefeitura de Dijon e dos chamados cinemas de shoppings. Uma pouco mais sobre a história do velho Cine Eldorado podem ser encontrado no site cineldo.com.fr. Nesse cinema tive a oportunidade de assistir a dez seções de filmes; sete produções e três vezes voltei para ver novamente o mesmo filme. A proposta do cine Eldô é a de apresentar filmes de várias partes do mundo, em programações que mudam quinzenalmente ao longo do ano. Essa rotatividade permite que o cinespectador tenha acesso a uma variedade muito grande de filmes, ao contrário do cinema de shopping, comuns a nós belorizontinos. Os cinemas dentro de shopping tem objetivos com grandes públicos e filmes de apenas alguns setores da produção cinematográfica. A relação com o cinespectador é de respeito. Não está o sujeito bombardeado de consumo como é a ida ao cinema em Belo Horizonte. As seções começam às 12:00hs, diariamente e se prolongam até as 23:00hs, cumprindo o papel cultural do cinema na vida da comunidade, que pode ser a proposição constante de imagens e temas para a reflexão sobre o ethos das várias culturas do mundo. 53

No ano de 2006, ano cultural do Brasil na França, em vários cinemas como o Eldô, o cinema brasileiro foi apresentado. Para uma cultura que lê, estuda e pensa sobre as fronteiras culturais, a quantidade de dados para a construção de conceitos em antropologia que o indivíduo tem à sua disposição é maior. Durante minha estadia em Dijon, na França, pude observar uma relação interessante entre a escola e o cinema. Crianças de uma escola vizinha vão juntas ao cinema em horário de aulas. Abordagens que tratam da relação do cinema com a escola falam do uso didático dos filmes em sala de aula. Mas uma ação pedagógica eu percebi na prática de levar a criança ao cinema durante as aulas. A primeira questão é que os grupos de crianças eram levados, guiados pelo professor, e eram grupos pequenos. Uma das dificuldades alegadas geralmente nas escolas públicas de Minas Gerais para essa prática são as turmas muito grandes de alunos. Em Dijon as turmas que eu vi no cinema me pareceram pequenas, ou pequenos grupos de estudantes. Ele foram ao cinema com seus professores. Uma das funções que a relação entre o cinema e escola pode ter é a formação para a participação no espaço público, além dos benefícios que um filme de cinema no cinema pode trazer em termos da concentração do estudante no enredo e nas várias artes que compõem um filme, como a fotografia, a representação, o roteiro, etc. a participação no espaço público é uma das funções da escola no processo de socialização do indivíduo. Na minha observação do cinema eldorado, foi em uma seção de cinema pela tarde, em um dia de semana que me deparei com o grupo de estudantes. Há várias escolas próximas ao cinema, o que favorece a ida dos grupos. A programação infantil do cinema é constante, chamada de cine-momes. Durante minha estadia em Dijon, na França, pude observar uma relação interessante entre a escola e o cinema. Crianças de uma escola vizinha vão juntas ao cinema em horário de aulas. Ao apresentar Gaston Bachelard e seu modelo epistêmico, pretendo dizer que, tanto dentro de sala, da escola, ou fora da escola, a experiência da construção do conceito científico pode ser estimulada, aperfeiçoada, aproximada com o uso das imagens do cinema. A dissertação analisa o uso do cinema dentro das instituições de ensino, necessitaríamos de uma pesquisa complementar para investigar como a ida ao cinema interfere no conhecimento construído. Entretanto é possível perceber que o contato com a tela grande é uma forma diferente de experiência. Segundo XXX, a questão das dimensões 54

da tela do cinema são significativas. Por esse motivo entendemos que a TV e o Cinema são modos de exibição dos filmes, modos de estimulação diferentes. Durante minha estadia em Dijon freqüentei o cinema Eldo. Assisti às atrações da semana de 08/01/07 a 17/01/07. Nesse período assisti a dez filmes, de várias nacionalidades apresentados diariamente com preços de 3,5 euros cada filme. O cinema tem uma programação quinzenal com temas e assuntos variados.

Bachelard quando lecionava em Dijon (1930 – 1940)

Para a viagem a Dijon levei uma bibliografia básica para a pesquisa em Língua Portuguesa. Fiz algumas leituras enquanto freqüentava as seções, e algumas observações. O cinema na França é uma instituição cultural antiga e prestigiada, um hábito praticado por todas as idades. No período da defesa da tese, Bachelard provavelmente convivia com o cinema. A imagem cinemática era um fenômeno que a física e a matemática, ciências em promoção no início do século XX haviam ajudado a construir. Ao aprofundar minhas leituras sobre Gaston Bachelard e sua tese, e sobre o uso do cinema na Educação senti necessidade de conhecer mais uma experiência diferente do sujeito com o cinema, diferente da que temos aqui. E a quantidade de material acadêmico sobre a relação entre cinema e educação nas bibliotecas de Dijon é grande, e eu também trouxe cópia de alguns textos. Essa grande produção me fez entender que há uma relação histórica de uma sociedade com as imagens que ela mesma produz. No caso da sociedade da França o cinema é uma fonte de informação sobre as questões humanas mais importantes, que grande parte da população freqüenta regularmente. 55

Desde o início do século XX, a quantidade de filmes produzidos anualmente dentro e fora da França crescia Segundo Robet Sklar (SKLAR, 1975), Os franceses tinham sido outrora a primeira nação produtora de filmes do mundo e, quando falaram no começo de 1928, assumiram a surpreendente posição de que a melhor defesa é um bom ataque. A política francesa, proposta por uma comissão especialmente aprovada depois disso pelo governo, era esta: para cada sete filmes estrangeiros que entrassem na França, um filme francês teria de ser comprado e exibido no exterior. A importação dos filmes estrangeiros seria dividida, cabendo quatro filmes norte-americanos, dois aos alemães e um aos ingleses. Nessas condições, as companhias cinematográficas ianques teriam de comprar um filme francês para cada quatro de seus filmes exibidos na França. Em 1926, 444 filmes norteamericanos tinham sido importados pela França e, em 1927, 368. 42 Na Biblioteca municipal de Dijon e na Biblioteca da Universidade da Borgonha encontrei material abundante sobre Gaston Bachelard. Não foi possível acesso ao acervo do Centro Gaston Bachelard de pesquisas sobre o imaginário e a ciência, que funciona na Pós-graduação de Filosofia da Universidade. Há uma revista periódica que o centro Bachelard imprime e divulga pela internet, e que possui como um número exclusivo dedicado à repercussão do pensamento de Gaston Bachelard no Brasil. Recolhi cópias xerografadas de dezenas de livros e revistas sobre Gaston Bachelard, e de trechos de obras ainda não traduzidas para o português, entre elas uma outra tese de doutorado de Bachelard defendida no mesmo período e que é uma pesquisa sobre a vida científica na França nos séculos XVIII e XIX, apresentando a contribuição das pesquisas de A. Comte e do positivismo à Física moderna.

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Universidade da Borgonha

Dijon 18/01/07

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3. Fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos

Neste capítulo procuraremos aprofundar a descrição dos mecanismos perceptivos da imagem, abordaremos a estrutura perceptiva do indivíduo e buscaremos acrescentar novos elementos ao modelos apresentado por Bachelard, como antigas abordagens filosóficas gregas sobre o tema e as teorias da escola conexionista, também conhecida como escola de santiago (A. Damásio, D. Dennett, H. Maturana, F. Varela, H. Atlan) O modelo epistemológico de Gaston Bachelard descrito no Ensaio apresenta o conhecimento como uma cadeia de movimentos que envolvem o sujeito conhecedor e o objeto em vários níveis de interação que se iniciam na representação celular, nas estruturas perceptivas até chegar na elaboração do conceito, atividade do espírito. O Espírito humano é o centro da vontade e local das abstrações. Esse papel de reelaborar as impressões celulares básicas do fenômeno percebido, atualizar esse fenômeno e reelaborá-lo internamente utilizando os dados da memória é a base do processo imaginativo. A constante reelaboração da percepção é o pensamento. No Ensaio, sua obra inicial, não há uma descrição densa dos processos imaginativos, questão na qual Bachelard irá se especializar nas obras futuras. Mas há algumas indicações importantes. A pretensão desse capítulo é apresentar o problema epistemológico da caverna de Platão, a oposição que Bachelard apresenta no Ensaio e a teoria do imaginário de ambos. Temos uma pergunta inicial; qual a importância dos processos imaginativos para a construção do conhecimento científico? Sabemos que a imaginação é um dos recursos mais importantes para o conhecimento humano, e a imaginação surge exatamente da relação que o ser humano pode traçar entre a imagem da realidade que ele percebe e as causas dos fenômenos que geram tais imagens. Imaginação pode ser tomada como sinônimo de criatividade, e nesse sentido a ciência é ricamente imaginativa, pois é criativa e fecunda em termos de resoluções, novos temas, mecanismos diferentes, abordagens, linhas de pesquisa. Imaginação também pode ser entendida como a faculdade de gerar imagens, imaginar como sintetizar impressões. Essa tentativa de explicar os fenômenos do mundo interpelando sua imagem e gerando internamente novas e abstratas imagens desse fenômeno é característica do ser humano e constitui um dos elos da aproximação que os conceitos científicos, sempre 58

imaginéticos, possuem. Trata-se da mesma aposta grega de que o exercício da razão poderia levar ao melhoramento do ethos. Mas para Bachelard os meios para isso parecem ser mais variados do que para Platão. A técnica que gerou o avanço tecnológico da informática de silício estava apenas começando no tempo de Bachelard, mas a idéia de virtualidade já era discutida em idiomas como o francês e o alemão. O conceito de imagem é diferente nas duas filosofias. Na filosofia de Platão, pelo que sabemos, a imagem é um arbitrário estético de uma outra condição de ser, a essência, o motor. Na Filosofia de Bachelard, a imagem é a forma como os mecanismos do mundo se apresentam, e a relação entre o sujeito do conhecimento com os objetos móveis no universo de coisas e fenômenos é determinante. Mas isso merece uma investigação mais apurada, se estamos falando da história da filosofia do conhecimento, e mesmo da filosofia da ciência. Falando sobre Platão, um filósofo diz: (...) no curso de uma pesquisa construtiva, a Imagem pode se desenvolver em uma progressão contínua e ascendente. Nas outras partes, o método dialético liga as hipóteses, aqui ele se apóia nas opiniões correntes, tradicionais, e nas imagens. 43 Por esse motivo, a reflexão filosófica deve voltar sempre às disposições naturais dos cães de guarda. Uma metáfora para falar da concentração, do esforço do pensamento objetivo. É como se Platão sugerisse que é necessário se fazer, antes de qualquer decisão política, uma epistemologia. O instrutor deve saber quais são os caminhos do conhecimento. Para que educar não seja simplesmente uma ação robótica, mas que amplie o espírito humano: (...) Uma imagem, a dos cães de guarda, guia a seqüência do estudo. É preciso examinar em primeiro lugar as disposições naturais dos guardiões, depois a sua educação. Esta educação, de acordo com a tradição, se divide em música e ginástica, as quais, por sua vez, comportam subdivisões tradicionais. 44 O que Platão entendia por conhecimento? Se seus ensinamentos tão antigos ainda podem ser redescobertos, uma das coisas mais importantes é o argumento sobre o conhecimento. Por que a epistemologia foi a grande descoberta da filosofia diante dos políticos retóricos, dos advogados. Um filósofo deve saber alguma coisa sobre os 59

mecanismos do conhecimento para ter uma boa filosofia, essa é a recomendação. E Bachelard parece concordar, pois sua primeira obra é um texto de epistemologia, só depois surgem os textos poéticos. Temos então duas idéias de conhecimento, que se levadas a sério vão gerar duas idéias sobre os fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos. Se um professor pretende utilizar o cinema como um veículo, ou como conteúdo de alguma discussão, ele necessita, como obrigação de sua função, compreender e defender alguma epistemologia para seu trabalho? É legítimo perguntarmos isso? Dotados dessa epistemologia, podemos propor os momentos e etapas de um processo educacional, para a compreensão de algum enunciado científico ou a aquisição de algum hábito cultural? Duas epistemologias não se rivalizam, mas apresentam dois modelos diferentes. Ao discutí-los, vamos nos aproximarmos de uma visão mais minuciosa da educação e da mediação da imagem na educação. Vamos observar a epistemologia de Platão. O trecho mais importante é a riqueza da analogia entre a capacidade humana de conhecer e o estado de estar em uma caverna. Estruturalmente, o corpo humano não é o local absoluto do conhecimento, da capacidade de conhecer: (...) a maioria dos homens modernos aceita como coisa assente que o conhecimento empírico depende ou se deriva da percepção. Há, no entanto, em Platão, e nos filósofos de outras escolas, uma doutrina muito diferente, isto é, que não há nada digno de chamar-se “conhecimento” que se derive dos sentidos, e que o único conhecimento real diz respeito aos sentidos. Assim, 2 + 2 = 4 é um conhecimento genuíno, mas a afirmação de que a neve é branca é tão cheia de ambigüidade e de incerteza que não pode encontrar lugar entre as verdades do filósofo. 45 O ser humano materialmente se compara a uma caverna. Há outras dimensões do universo, coisas que não podemos ver, por causa da precariedade de nossa capacidade de pensar. Temos acesso mais às sombras do que ao fenômeno em si. Isso representa a crítica ao empirismo. O que podemos saber com os órgãos do corpo é muito pouco. Apenas saídos da caverna é que podemos contemplar as duas coisas mais importantes: nossa própria episteme, e a finalidade ética da sabedoria, que é a educação. Essa é a teoria conspiratória que compõe o filme Matrix. O corpo como simulacro da caverna tecnológica contemporânea. 60

A verdade da descoberta de Platão ignorou historicamente as descobertas sobre a microbiologia que os cientistas da década de 90 do século XX, nos Estados Unidos e América Latina realizaram e polemizaram. A verdade de Platão é antiga, possível de ser redescoberta por qualquer filósofo de língua grega, ou também das línguas derivadas, por conter raciocínios matemáticos. A matemática que era a ciência filosófica mais importante na sua época. Ainda para Bachelard, a matemática é a ciência mais ilimitada, pelas inúmeras possibilidades de quantificação e classificação que a matéria pode ter. Essa questão está diretamente ligada com outra, apresentada por Bachelard no Ensaio. A matematização da realidade não acontece apenas no espírito, na raiz do processo de abstração. Essa matematização acontece nas células que compõem os órgãos de percepção. Na experiência empírica. Ao menos essas operações podem ser medidas com cada vez mais precisão. E a medição é um dos critérios de materialidade possível, de objetividade. O cinema é a prova concreta de que o homem pode matematizar a imagem e transforma-la em informação digital, em uma série de outros formatos eletrônicos, simulacros tecnológicos que uma vez alimentados de energia abrem as janelas e florecem. Para um Platão digital, podemos dizer que a imagem é matematizável, ainda que a paisagem não o seja. A paisagem é o engano, são as sombras, a estética é instável. Diríamos então que uma primeira diferença dessas duas epistemologias é a de que, na de Platão os processos matemáticos tinham origem no espírito. Já para Bachelard, esses processos são celulares também. Bachelard com uma certa vantagem de já possuir considerável volume de conhecimento oriundo das pesquisas na biologia e no cinema. Segundo Bachelard, (...) depois de escolhida a unidade de medida e de serem medidos os objetos, é possível fazer com os símbolos que substituíram os objetos todas as operações aritméticas diretas (soma, multiplicação, potenciação) em qualquer ordem e qualquer número que seja; nunca as conclusões estarão erradas e a experiência de controle sempre legitimará o cálculo. 46 O ser humano só tem acesso ao cinema dos objetos, ao cinema da vida social, uma vez que não temos acesso direto à dinâmica constitutiva dos fenômenos, pelas limitações de nossa capacidade cognitiva. Bachelard não parece concordar com o Platão do texto A República, quando o mestre grego fala da distância entre a imagem e a sua causa, a 61

essência. A distância para Platão é transponível pelo exercício da filosofia: o próprio procedimento filosófico de investigar é o conteúdo de um saber sobre as causas. Para Bachelard, esse encontro não é possível, pela distância que o real está de nossas capacidades cognitivas 47 . Platão despreza a imagem, que são apenas sombras, engano dos sentidos. Para Bachelard as imagens são a porta para os mecanismos; meio caminho para uma impossível viagem de encontro ao real; uma aposta humana de melhoria de vida, buscar a aproximação imperfeita. É claro que o Cinema é uma montagem. O cinema é uma realidade falsificada, elaborada com uma intenção particular. O real para Bachelard é um grande arbitrário irracional, que pode ser parcialmente decodificado pelo esforço intelectual humano. Mas tanto no cinema da cultura, quanto na cinemática das imagens da natureza, do mundo, a compreensão de como a percepção capta esse movimento é fundamental. A velocidade da luz é diferente da velocidade do som; dessa forma, são dois veículos diferentes, e chegam ao organismo em tempos diferentes; o que nos leva a pensar que o organismo, o ser humano, ao ver uma imagem de cinema, recebe em tempos diferentes as ondas sonoras e as fractais luminosas. Mas o que realmente acontece? A resposta a essa pergunta é dada hoje por biólogos. Em tempos passados ela era dada pelos filósofos. A biologia tem melhores argumentos para responder às perguntas sobre o conhecimento. Entretanto as religiões também oferecem formas de se entender as coisas, argumentos políticos, argumentos econômicos, argumentos eclesiais. Os gregos começaram a filosofar em língua grega sobre a necessidade de se retirar do discurso filosófico todas as formas de totalitarismo, todas as formas de argumentos únicos. A discórdia entre Heráclito e Lísias é característica. No livro Fedro, Platão apresenta a disputa. Heráclito era um filósofo amargurado e solitário, dado à bebida, como discípulo de Dionísio. Lísias era um sofista, um psicólogo do comportamento, que encantava os jovens e era muito popular em Atenas. O Sofista Lísias defendia a estética como a ciência mais necessária. Já Heráclito ensinava seus discípulos a observação da cultura. A diferença entre os dois está no fato de que para Lísias havia sempre uma maneira fixa de tratar os comportamentos humanos, como o amor. Para Heráclito as culturas humanas eram sempre instáveis, e com elas o conhecimento;

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(...) a doutrina do fluxo perpétuo, tal como a ensinou Heráclito, é dolorosa, e a ciência, como vimos, nada pode fazer para refutala. Uma das principais ambições dos filósofos foi reviver esperanças que a ciência parecia haver matado. Os filósofos, portanto, procuram, com grande persistência, algo que não esteja sujeito ao império do tempo. 48 A biologia hoje, nos dias de hoje, teria mesmo o direito de filosofar sobre o conhecimento? Não é possível saber. As explicações biológicas da vida não têm ajudado a espécie humana a impedir as tragédias populacionais, como a extinção maciça de seres vivos nas sociedades biotecnocapitalistas. Entretanto, na análise da imagem, do conhecimento, da visão, do aprendizado, em todas essas áreas, a ciência tem oferecido boas respostas. O que podemos dizer é que os inventores da filosofia não tinham acesso a uma série de dados que os atuais aparelhos tecnológicos podem oferecer. A medição possível pelos aparatos tecnológicos possibilita fragmentar em laboratórios as gamas da realidade, e compreender seus mecanismos, elementos, e todas as estruturas que a compõem. Os gregos tinham suas suposições, mas foi apenas em Aristóteles que a biologia funcionou como uma estrutura de linguagem, de descrições principalmente. Segundo Aristóteles (...) Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, (...) a visão é de todos os sentidos a que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre, (...) os outros animais vivem de imagens e recordações, e de experiência pouco possuem, (...) a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência, (...). 49 O vocabulário biologicista de Aristóteles é semelhante ao discurso científico atual, por causa das palavras que ele usa, por causa da sua descrição naturalística das funções das idéias. Quando a capacidade de conhecimento do ser humano pode ser investigada pela biologia, ela deveria ser, dizem muitos hoje. Mesmo que nenhum fundamento ético seja discutido. Podemos citar o filósofo Habermas como um bom filósofo preocupado com a biologia. Segundo ele, nossa ética, nossos princípios públicos, que chamamos de democrático, devem se voltar para nossas relações com a natureza, com a ecologia. Toda essa epistemologia inicial é necessária para que compreendamos, como Bachelard, que as percepções que temos do mundo à nossa volta são reelaboradas por uma entidade central, um ente que é quase metafísico. Esse ente é o responsável pela unificação 63

dos tempos da imagem e do som, para que não os percebêssemos dessincronizados, como nas dublabens podemos perceber. No caso das dublagens, a montagem é feita sobrepondo a imagem ao som. Podemos relacionar a epistemologia de Bachelard com a compreensão do engodo que a montagem cinematográfica causa em nós. A caverna de Platão é na verdade a própria ilusão que a imagem em movimento nos causa. Seria interessante associar a descrição que Platão faz da caverna ao cinema, à estética do cinema: (...) agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles, (...)? 50 O que ele fala de sombras é na verdade a ilusão. Uma ilusão que o olho humano aceita. Sabemos que a imagem do cinema parece ser um contínuo, mas são vinte e quatro quadros por segundo apresentados em uma seqüência. A velocidade com que os quadros são trocados um pelo outro dá a impressão ao cinespectador de que se trata de uma realidade, de que o movimento não poderia estar interrompido, quando na verdade está. Ora, o que Platão fala é que os órgãos da percepção podem ser enganados, desde a infância, como na verdade são; no filme matrix, é apresentado o extremo dessa ilusão; não só os olhos podem ser enganados, mas todo o sistema nervoso, todo o organismo. Uma vez que o corpo humano não funciona sem uma mente, e todos os órgãos que fazem funcionar essa mente são possíveis de serem enganados, como são enganáveis os olhos, então a mente pode ser uma ficção sobre o nada. A dublagem dos filmes estrangeiros é uma forma singela dessa possibilidade de 64

ilusão a que estamos sujeitos. Vendo um filme norte-americano dublado temos a impressão de que se trata de uma correspondência simples entre o som e a imagem. O que podemos dizer é que no mínimo isso é ideológico. O problema ético da ideologia, do exercício do poder de uma forma dissimulada em naturalidade. Ainda que acessemos a língua original do filme, se Inglês ou Francês, que compreendamos originalmente, não ultrapassaremos um certo nível de simulação. Por esse motivo estamos condenados a um simulacro. Para Platão o simulacro é a caverna, o engodo. Por isso filosoficamente não temos como saber se o filme matrix é uma possibilidade real ou não: como nos diz Platão, os que estão dentro da caverna não têm consciência disso. Segundo as previsões mais otimistas, as previsões da Ficção científica, o homem só sairá da caverna no ano 2204. De acordo com os mesmos tipos de previsões, o grande colapso da humanidade ocorrerá no ano de 2019, quando as máquinas de alta biotecnologia e inteligência artificial decidirem cobrar seus direitos junto à comunidade humana 51 . Se a linguagem é uma extensão da fisiologia do indivíduo, e por ela criamos a ficção, essa última é uma parte da realidade em que o indivíduo opera, mesmo as ficções que apontam para distopias, como as que citamos. Utilizar a ficção no ensino de ciência é, portanto, não uma obrigação do professor, mas um instrumental de operações sobre realidades possíveis, um recurso simulatório de situações, de referências ligadas ao cotidiano pelas imagens, pela linguagem. O mundo real pode não ser controlado por máquinas inteligentes, mas muitas máquinas inteligentes estão ao nosso redor, e fantasiar essa nova relação do homem com suas criações pode ser útil para ensinar a ciência, os modelos científicos, as teorias importantes. O ensino de ciência muitas vezes é uma realidade estática, conceitual, é apresentada aos estudantes. Quando o olhar se volta para o grande dinamismo do mundo, da sociedade, esse dinamismo permanece incompreensível. A idéia de que o conhecimento é uma aproximação, e que é na cinética do mundo, na irregularidade, nos erros, no inexato que ele deve se aprofundar, rejeitando a imobilidade do saber faz com que o ensino necessite trazer ao estudante esses elementos dinâmicos. A razão da abstração do espírito sobre a representação celular é a geração de imagens de realidade onde o organismo possa operar. Por esse motivo, os conceitos lingüísticos, as descrições científicas, evocam imagens. Pena que às vezes sejam imóveis estáticas de um mundo que não se comporta. O estudo de biologia, por exemplo, que trata com uma série de entidades móveis, vivas, microscópicas, irracionais que existem no limite de nossas capacidades perceptivas, deve 65

ser capaz de possibilitar a abstração, novas atividade do espírito dos estudantes em buscas de ampliar sua superfície de contato, sua compreensão e aproximação: (...) As propriedades finitas, tanto na ordem da quantidade como na ordem da qualidade, são apenas um instantâneo tirado por nós, arbitrariamente, do fenômeno móvel. 52 Bachelard diz que o real é descontínuo, a continuidade é uma realidade gerada pelas representações dinâmicas que no conhecimento podemos fazer. Por esse motivo o mundo nos surge quase sem lacunas para os níveis normais de percepção, o que não ocorre quando tratamos entidades microscópicas, ou cósmicas, de dimensões muito inferiores ou muito superiores. O sincronismo entre a imagem e o som, é uma construção do sujeito conhecedor? Esse sincronismo não existe no universo? Provavelmente as pesquisas sobre a relatividade do tempo e do espaço geraram essa perspectiva. De alguma forma, quando fazemos como Bachelard nos pede, voltamos para a percepção e a observamos melhor, podemos encontrar nela o princípio de objetividade. A primeira tentativa de limitar a subjetividade consiste num retorno à percepção. A objetivação individual ganha uma expressão cultural na linguagem do indivíduo, que tem o poder de nomear, adjetivar, criar predicados para os objetos, dados e estímulo, fazer surgir nossa realidade: (...) como é pura impossibilidade cair, mesmo que por acaso, no conhecimento exato de uma realidade, já que a coincidência entre pensamento e realidade é um verdadeiro monstro epistemológico, é indispensável que o espírito se mobilize para refletir as diversas multiplicidades que qualificam o fenômeno estudado, (...). Os limites de um fenômeno e de uma nuança são imprecisos. 53 Se não fôssemos capazes de um sincronismo para o som e para a imagem, não perceberíamos o movimento, a cinética da realidade. No Cinema, pela técnica, que reproduz alguns mecanismos da realidade, temos também a dissociação e a montagem das duas coisas, som e imagem, como um grande organismo, um grande espírito bachelardiano, as máquinas cinematográficas representam certas realidades. Se internamente não tivéssemos essa capacidade de assimilação de dois tipos de representações de natureza diferente, veríamos as pessoas conversando como ventríloquos, 66

percebendo o som chegar sempre um pouco mais tarde, como nas transmissões ao vivo, via satélite de imagens e somos em aparelhos antiquados, que sempre apresentavam certo ventriloquismo. Para Bachelard, o real é descontínuo e caótico, passível de ser parcialmente matematizado, geometrizado, quando muito, mas um campo aberto para inumeráveis movimentos de aproximação do conhecimento humano. Os espíritos do homem e da mulher têm a capacidade de objetivar certos movimentos do real, transforma-lo em realidade, uma realidade provisória, pois os novos contatos da aproximação gerarão, mesmo através dos erros, novas realidades. (...) O conhecimento, em termos absolutos, é portanto marcado por um fracasso irremediável. Mas o ritmo de seu aprimoramento é prelúdio do real. A realidade é o pólo da verificação aproximada, e, em essência, o limite de um processo de conhecimento, e só podemos defini-la corretamente como o termo de uma aproximação. 54 O homem precisa do conhecimento sobre o seu meio externo para que posteriormente esse conhecimento seja utilizado na obtenção de informações sobre a própria consciência. A primeira conseqüência positiva do conhecimento para a vida do sujeito é o aperfeiçoamento de sua estrutura perceptiva. São órgãos que possuem estados alterados quando se situam diante da fonte emissora de impulsos materiais que cada estrutura pode decompor e registrar (retificar). Num desses momentos de registro, de memória, surge na teoria de Bachelard a figura do espírito. O que seria Espírito? Como já apresentamos no capítulo um, o espírito é o tônus psicológico. Não é possível um registro mecânico do dado assimilado. O espírito utiliza a abstração, o remodelamento das impressões do dado, a imaginação, para criar a memória e a emoção correspondente a esse objeto. Portanto a imaginação é uma etapa da construção do conhecimento, é o momento de representar o dado que o sujeito imagino, que ele como sujeito conhecedor constrói uma imagem para o objeto. Uma imagem orgânica é sempre uma mudança biológica no corpo do pesquisador. Vamos localizar a imaginação como uma etapa mais adiantada do processo; primeiro temos que ter estruturas conectivas operando, reativas com o ambiente. A cultura de uma comunidade humana é responsável por possibilitar formas de registro das conexões, formando uma grande variedade de comportamentos aceitáveis e possíveis. Em algum momento da descrição científica, a imagem esteve presente. Primeiro 67

como estímulo material que os órgãos perceptivos assimilam, e depois como uma estrutura de reconhecimento, de re-apresentação, uma maneira em que o pensamento aponta para o objeto. A imagem se apresenta ao conhecimento científico no próprio mecanismo, no próprio fenômeno. Se nos portarmos como Isaac Newton, rejeitando as formas substanciais e as qualidades ocultas, temos muito a conhecer pela observação do movimento dos objetos, da vida em movimento. O que significa deixar as qualidades ocultas do fenômeno? Significa não perguntar, como os primeiros acadêmicos, sobre as razões de existência dos fenômenos, e sim nos dedicar a encontrar maneiras de descrevê-los e reproduzi-los para finalidades culturais. Foi com essa tradição que a ciência chegou a Bachelard, que nos diz: não abordar a fenomenologia dos eventos científicos não é a solução para melhorar nossa compreensão do universo. Temos que filosofar sobre o inexato. Aquilo que não medimos, o que não alcançamos com nossos instrumentos técnicos e nossos procedimentos lógicomatemáticos, e que só conseguimos pela abstração. A imaginação é um estado de abstração, de devaneio, necessário para a descrição científica. Um procedimento que não tem razão de ser medido, ou avaliado sistematicamente pelas instituições educacionais da cultura. Não tem essa necessidade por que é uma estrutura, e não algo que possa ser evitado. Em síntese, o que Bachelard nos faz pensar é que imaginar é uma etapa necessária materialmente para o conhecimento. A imaginação está ligado ao mecanismo de retificação, a palavra que Bachelard usa para representação.

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4. Pedagogia, Epistemologia e Cinema

Baseando-se na proposta teórica de Bachelard de que o conceito científico é um elo de aproximação do sujeito com a realidade onde ele atua, e que a construção desse conceito, a resolução desse objetivo de descrever um fato ou fenômeno real também se dá por aproximações, descrições que se aperfeiçoam ao longo da pesquisa, buscamos incorporar o cinema como uma realidade onde o conceito científico pudesse se aperfeiçoar e levar o sujeito conhecedor, o estudante a reconhecer nas posteriores leituras do filme, ou em fatos que remetessem ao filme o conceito científico. Para Bachelard quando o estudante se familiariza com o conhecimento científico ele passa a tratar os fatos da sua realidade utilizando as possibilidades descritivas desse conceito. Por exemplo ao vermos um arco-iris uma série de fruições existenciais podem ser provocadas, mas após estudarmos a ótica de Newton, ou lermos um romance de Vitor Hugo, o mesmo arco-iris se torna mais amplo de perspectivas, de indagações, de idéias e de conclusões. Mas esse reencontro com o arco-iris depois de estudos e literaturas é apenas um movimento de aproximação. O que Bachelard quer nos mostrar é que esse movimento não termina nunca, pois a distância entre o que sabemos e a realidade permanece grande. Quando o desafio é educar um grupo de estudantes para se preparar profissionalmente, como é o caso de um curso de pedagogia, uma série de conceitos científicos, dos campos da psicologia, da antropologia, da história da educação e da filosofia são primordiais para o sucesso profissional e para a realização das utopias pedagógicas. O desafio de trazer o saber da ciência para estudantes de pedagogia tem o objetivo de tornar suas práticas mais eficientes, mais amplas de perspectivas, uma vez que a prática educativa não pode estar hermética a poucos conjuntos de atividades, uma vez que o publico da educação é composto de uma série de culturas e condições político-sociais diferentes. O desafio empírico foi o de ensinar certos conceitos científicos, na área de antropologia a grupos de estudantes de pedagogia. Esses conceitos foram estudados e trabalhados em aulas expositivas, e foi escolhido o cinema como a realidade onde testaríamos a aproximação ou não desses conceitos. O objetivo era o de verificar o grau de reconhecimento do conceito diante das imagens que o cinema proporcionava. Escolhemos um filme futurístico (não tão futurístico assim, pois retrata uma realidade em 2019). 69

Utilizamos a tese de Bachelard para iluminar os passos e compreender qual era a malhor estratégia para provocar a aproximação do conceito para om a realidade. Em alguns grupos estudamos o conceito primeiro e vimos o filme depois. Em outro grupo fizemos o contrário. Ao final buscamos observar qual grupo realizou melhor a aproximação, ou seja, qual grupo reconheceu nas imagens e no enredo do filme os debates e questões da teoria. Partimos do pressuposto que o cinema, o filme, com é uma realidade aberta, acolhe uma série de interpretações, o que poderia favorecer o movimento do saber. Em um determinado momento do filme Blade Runner (USA, 1982), um robô inteligente se volta para um ser humano e lhe responde como Descartes: penso, logo existo. Indagação até agora só possível de ser feita por um ser humano. O universo tecnologizado do filme se passa em uma das megalópolis mundiais desérticas e nebulosas do ano de 2019. O enredo nos provoca questões epistemológicas importantes, como por exemplo a relação entre a Memória e a personalidade, a memória e o conhecimento. A extraordinária capacidade de simular um ser humano, realizada por uma biomáquina, faz o ser humano encontrar um novo espelho para se ver. O conflito existencial da máquina reproduz o que acontece ao próprio homem. O filme Blade Runner apresenta três humanidades; a humanidade humana, as máquinas humanóides e a natureza antropomorfizada (no caso, o cimento, o aço, o asfalto e a destruição ambiental). Nas três formas de ser humano, foi a ação da ciência que acarretou a tragédia. As três humanidades do futuro entrarão em guerra; o ethos humano, triplicado, mesmo assim não evitará o conflito. Na verdade a trindade será o próprio inferno. Inicialmente, temos uma visão negativa do impacto social da ciência no futuro.

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A mercantilização de órgãos humanos, produzidos em laboratório, pode ser a solução contemporânea para uma série de problemas, como as intermináveis filas de pacientes aguardando transplantes e as polêmicas sobre a doação e comercialização de órgãos. Com a tecnologia de transplantes de órgãos, acelerada desde a década de 80 do século XX, o paradigma futuro daquelas técnicas parece ter influenciado os produtores do filme, de 1982. Em 2019, para a ficção, não apenas será possível gerar órgãos em laboratório, como também será possível comercializá-los sem impedimentos éticos ou morais. O filósofo Habermas afirma que este já é o problema de nosso presente. A comercialização de órgãos eugenicamente tratados desloca algumas razões. A profissão de desenhista genético, por exemplo, apresentada no filme, também já é uma realidade. Outra projeção da ficção é a construção de órgãos complexos como o cérebro em laboratório, que nos leva a pensar sobre a divisão entre corpo e mente, e outras polêmicas. A construção de um cérebro em laboratório, por técnicas de desenvolvimento de células tronco, por exemplo, poderia evoluir a tal ponto. Atualmente os cientistas já conseguem desenvolver tecidos e órgãos menos complexos como orelhas e epiderme. Desenvolver um cérebro fora de um corpo pode ser a utopia, mas será que isso, associado ao desenvolvimento da inteligência artificial e de organismos robóticos, gerará um mundo parecido ao de Blade Runner? Tratados como mercadoria, produto tecnológico, e empregados em tarefas de imigrantes, como acontece nos países industrializados com relação a estrangeiros humanos, surge uma nova forma de escravidão, os escravos robôs. A escravidão é um hábito antigo da humanidade, e com as máquinas inteligentes acontecerá o mesmo, no sentido de que a própria subjetividade não lhes pertencerá. Uma máquina pensante não deve existir para si. Ou deve?. O desenvolvimento da robótica e dos transplantes de órgãos da década de oitenta parecem ter sido pontos de referência para as projeções de Blade Runner. Também a acelerada destruição ambiental e o agravamento das relações do homem com seu meio. Os Princípios éticos da humanidade podem ser partilhados com as criações tecnológicas inteligentes? O problema da existência humana no filme começa a ser tratado na forma de diálogos, o homem e a máquina falando sobre problemas tipicamente 71

humanos.

Veja o exemplo de diálogo em que a existência humana é abordada no filme:

Contexto: um robô entra no quarto do empresário responsável pela sua criação, surpreendendo-o: --- é difícil encontrar o criador. (robô) --- em que Ele poderia ajudá-lo? (homem) --- o criador conserta o que faz? --- você quer ser modificado? 72

--- pensei em algo mais radical. --- qual é o problema? --- morte. --- temo que esteja fora de minha jurisdição. --- quero viver mais..., pai! --- coisas da vida, ... alterar a evolução de um sistema orgânico é fatal. Uma seqüência codificada não pode ser alterada. --- por que não? --- no segundo dia de incubação, as células que sofreram mutações atávicas originam colônias atávicas, como ratos abandonando um navio. E o navio naufraga... --- e recombinação ESM? --- já tentamos. O etil-metano sulfonado é um poderoso mutagênico; gera um vírus tão letal que a cobaia morreu na mesa... --- e uma proteína regressora que bloqueie a célula? --- não impede a duplicação, mas causa um erro na mesma, e a nova célula de DNA formada contem uma mutação e novamente o vírus. Mas tudo tão acadêmico... Fizemos o melhor com você, ... --- mas não pra durar. --- a luz que brilha demais, consome-se rápido! E você brilhou muito. Olhe só; o filho pródigo. Você é uma obra e tanto. (...) A orfandade que o indivíduo humano sente diante de sua morte pode ser experimentada pela inteligência artificial? Ou a angústia da existência deve ser suprimida totalmente do conjunto de códigos que compõem os softwares responsáveis pela inteligência artificial? Se dissermos que o temor pela morte poderá ser retirado do funcionamento do intelecto de uma máquina inteligente, então o estado de nirvana e a suposta felicidade com a vida em sua curta existência poderão ser alcançadas por uma consciência artificial (humana?). Entretanto, no filme a condição de escravos com que as novas consciências se deparam levam-nas a perceber não terem vivido totalmente suas vidas, pois exerciam trabalhos de assassinos a prostitutas, tudo para humanos filhos de homens. O curto espaço de libertação, quando um grupo de robôs foge das colônias e volta para a terra, é o momento das reflexões filosóficas certas para resolver o problema crucial: 73

a vida curta, a vida perdida. Assistimos ao filme e pautamos os debates pelas questões que expusemos acima. Adimitimos o filme como uma realidade que se abria para nós e que nos dizia algo. As impressões imediatas que tínhamos das cenas e da história correspondiam ao primeiro movimento de aproximação de Bachelard. Imaginamos que a teorização poderia nos impulsionar a reconhecer nas imagens nosso conhecimento sobre o tema. O tema em questão era a Ética, matéria do curso de antropologia ministrado aos estudantes de pedagogia. Um estudo científico da ética e do ethos humano. Para aprofundar o tema e relacionar o cinema com uma realidade a ser investigada com a ajuda da teoria, a pergunta inicial foi: qual é o valor de vida de se utilizar um filme como uma aproximação para o ensino de ciências?

4.1.

A Metodologia do trabalho com o cinema

Todas as salas de aula da FAE/UEMG possuem uma televisão e conexão para VHS e DVD. A Faculdade de Educação da UEMG também possui um acervo com cerca de 100 produções dos mais variados tipos. A faculdade incorporou o uso regular dessas mídias nos processos de ensino-aprendizado. O trabalho com o cinema e os conceitos científicos teve dois momentos: um é o do discurso e o outro o da imagem. O paralelo entre a imagem e o discurso deve acontecer para que haja um contínuo. A imagem como um prolongamento do discurso e vice versa. Quando o aluno aprende a se apropriar das imagens com um discurso cinematográfico, ele se aproxima de entender a ilusão que é o cinema, e entender que há um conteúdo da ilusão. É nesse conteúdo que estão os estímulos que vão proporcionar a abstração sobre o objeto da ciência. O conceito de Ethos se refere às características universais, aos comportamentos e atitudes mais difundidas entre os grupos humanos das várias sociedades históricas. Esse princípio originou a busca da formalização desses pontos de igualdade, que chamamos de Ética. Apresentei o filme Blade runner nas três modalidades:

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a. Discutir o conceito antes e apresentar o filme de cinema depois Nessa modalidade o aluno ao assistir ao filme já tem uma bagagem teórica para reconhecer nas imagens os traços do conceito. O filme passa ser a simulação onde o estudante pode observar o contexto do conceito. O conceito funciona como um instrumento de leitura das imagens, e ao mesmo tempo é fixado. Foram utilizadas duas a três aulas de 2hs para desenvolver o conceito de Ethos nessas turmas, busquei argumentos estruturalistas e fenomenologistas para descrever os comportamentos essenciais do ser humano, aqueles comportamentos que são observados em todas as culturas e que nos levam a dizer que há um ethos humano e que por isso uma ética é possível. Nesse sentido ética é um conjunto de valores mais amplos, compartilhado por todos os grupos humanos. Ao final da discussão teórica apresentei o filme e disse aos alunos que ali se apresentava uma situação limite, ficcional, para a existência de uma ética. No filme, esses comportamentos universais estão em declínio. As várias humanidades abandonaram os princípios comuns. Os estudantes puderam ver o filme depois do trabalho teórico e utilizaram as cenas do filme para observar os limites da ética humana. Esse trabalho é recomendado para grupos mais adultos, capazes de maior abstração. Essa modalidade foi aplicada para estudantes do IV núcleo formativo, alunos que há dois anos estão estudando já a pedagogia e a antropologia. b. Apresentar o filme de cinema antes e discutir o conceito depois Para estudantes de segundo grau e dos anos iniciais do curso superior, vejo vantagens em apresentar primeiro o filme e depois discutir o conceito científico, por que podemos usar as imagens do filme para provocar as abstrações iniciais, pelo menos propor imagens gerais, contexto em que desenvolveremos o assunto. Antes de tratarmos dos comportamentos mais comuns da humanidade (nosso objetivo no debate sobre a ética), apresentei o filme Blade runner. O que não é ética está retratado ali através da ruptura e inconciliação entre duas comunidades humanas, os homens e as máquinas inteligentes, ao ponto de um grupo caçar o outro violentamente. c. Desenvolver o conceito ao longo da apresentação do filme de cinema Essa modalidade é específica para a situação-tv. Nela o filme é parado, ou se 75

apresenta apenas uma cena, ou algumas cenas. Importantes são certas imagens para a ilustração do assunto. Certos filmes são propícios para isso, como é o caso de Dogville, que é capitulado. Uma forma de trabalhar o conceito ao longo da apresentação dos filmes é na forma de dinâmicas de grupo. Uma das turmas em que trabalhei cinema e conceito desenvolveu atividades em torno dos filmes na forma de dinâmicas de grupo. Foi uma maneira divertida e descontraída de discutir um conceito científico e utilizar o filme. No primeiro semestre de 2007, voltei a trabalhar o conteúdo de Antropologia II no IV núcleo formativo. Como eu já tinha sido professor de Antropologia dessa turma, o IVA (01 sem/07), iniciamos o conteúdo de antropologia do cinema. Depois de apresentar a parte teórica do tema, usando alguns conceitos de Massimo Canevacci (1975) e a análise que Bachelard faz do microconhecimento e do macroconhecimento. Ao utilizar a epistemologia de Bachelard para falar do uso dos filmes de cinema na construção do conhecimento, pretendi descrever alguns mecanismos da cognição da imagem. A imagem do filme funciona como uma realidade para os sentidos humanos. O juízo sobre a ficcionalidade ou não da imagem ocorre em um outro momento, pela ação do pensamento. Por isso o sujeito ao ver um filme usa sua capacidade de julgar as informações que a imagem provocou. Após a teorização, iniciamos um trabalho com filmes populares, com o objetivo de estudar o filme e representar através do roteiro e das imagens aquelas estruturas teóricas que tínhamos falado. Ao longo do semestre letivo, cumprimos três etapas, que descrevo a seguir. Percebi que ao longo do trabalho com as alunas que a teoria inicial era curta, por isso ao longo de nossas atividades, sempre que necessário busquei dar esclarecimentos teóricos. Apresentamos o projeto de trabalharmos com filmes e análises teóricas para o grupo de alunas em março de 2007. Levamos o grupo de alunas ao Edifício Maleta, no centro de Belo Horizonte. Nesse local funcionam várias lojas de vendas de fitas VHS e DVD, com preços e gostos populares. Eram 26 alunas. Dividi o grupo em 13 duplas, e com um recurso conseguido disponibilizei dez reais para que cada dupla escolhesse um filme de seu agrado. Antes de chegarmos ao Edifício Maleta esclareci que se tratava de um trabalho de análise teórica e apresentação dinâmica dessa análise para o grupo maior. Cada dupla teria 3 h/a para apresentar o filme e suas conclusões, foi o que combinamos. Escolhemos uma aluna como relatora para registrar as atividades de cada dupla. As alunas escolheram livremente 76

os filmes. Em anexo à minha pesquisa de dissertação apresento um texto mais aprofundado feito por uma das alunas do curso de Pedagogia que participou das atividades com os filmes. Os filmes que são nitidamente divididos em episódios são mais adequados para a exibição em sala de aula. Fora os filmes explicitamente feitos para serem exibidos nas TVs, um filme de cinema em geral é um contínuo. DogVille é um filme norte-americano, filme lançado em 2003 e dirigido por Lars von Trier. Apresentei o filme DogVille a alunas do segundo semestre de 2007. O contexto novamente foi o conceito de Ethos. A pergunta inicial para as alunas foi: Porque nos mitos de origem da civilização ocidental, o gênero masculino aparece como centro? (os exemplos dados foram Adão, Jesus, Maomé, Buda, etc.). Propus para as alunas que o filme retratava uma personagem feminina que era colocada no centro de uma trama semelhante à que tinha envolvido a divindade de Jesus, ou seja, estávamos analisando o problema do gênero humano. A sociedade ocidental fundada no privilégio masculino apresenta seus ícones humanos na figura dos homens. Fui coletando as impressões dos estudantes ao longo da exibição dos nove capítulos do filme. Apresentava alguns capítulos e parava a exibição para comentários e para um complemento teórico sobre o conceito de Ethos. Essa modalidade é a mais rica para a situação-tv em minha opinião. A seguir observemos a evolução da reflexão das alunas. Apresentei uma questão para respondermos em sala, e apresentei os capítulos do filme, solicitando que as alunas escrevessem um parágrafo sobre a questão antes e após a exibição do trecho do filme. Os seres humanos possuem independentemente da cultura em que vivem, elementos e identidades comuns. É isso que nos diz a posição estruturalista na antropologia. Como podemos descrever as experiências comuns da humanidade? (resposta antes do filme) Sabe-se que embora as teorias estruturalistas assegurem a existência de elementos comuns entre a humanidade, não se deve entender no sentido pleno de igualdade de manifestação. Pressupõe-se que seja ritos e rituais que se assemelham pelos objetivos que os levam a ser manifestados. Por exemplo, a língua como veículo de comunicação, todas detém essa peculiaridade, entretanto cada qual com suas subjetividades. IVA (2º/2007) 77

(resposta após o filme) Partindo do pressuposto abordado no filme Dogville pode-se refrescar a resposta anteriormente dita, no que tange ao ponto comum existente entre as culturas, entretanto cada grupo social manifesta de uma forma a partir do que é nato à sua cultura. A vida humana é uma representação de algo já percebido? É possível fazer escolhas? Ou se escolhe a partir de uma influência? Para esta aluna, o filme gerou uma indagação. Aparentemente suas certezas iniciais começaram a ficar relativizadas. A aluna termina uma reposta com uma pergunta. Vejamos uma outra reflexão dos estudantes: (resposta antes do filme) As identidades e os elementos comuns que são encontrados entre os grupos humanos de diferentes culturas, segundo o estruturalismo é devido a estrutura de pensamento comum a todos os homens, ou seja, o caminho que o homem percorre na construção de seus conhecimentos. (...), portanto a experiência comum da humanidade é devida a tal estrutura de pensamento, que é comum. IVA (2º/2007) (resposta durante exibição do filme) A realidade é aquilo em que todos acreditam. Não existe uma realidade em si, e por si só verdadeira, acima do bem e do mal. Tudo que acreditamos é invenção humana. Mas é interiorizado de tal forma, que é impossível pensar que não é concreto no qual acreditamos. Esse segundo exemplo também revela que o filme gera uma certa perturbação nas concepções anteriores do estudante. A particularidade do filme DogVille é a de que há apenas um cenário, e ele é dividido apenas imaginariamente. O diretor reconstrói numa atmosfera de teatro as relações fundamentais humanas, que são as que o Estruturalismo admite como universais. O estudante percebe que há sim problemas e soluções universais da espécie humana para os dilemas individuais como amor, ódio, ciúme e dor. A variação de comportamentos com relação a essas emoções e pensamentos humanos é que é o motor da especificidade de cada grupo social. No instante de discutirmos a teoria, diferenciamos 78

os comportamentos universais humanos como Ethos, e s comportamentos particulares de cada grupo como Habitus. O curso de Pedagogia tem a finalidade de formar o profissional da pedagogia, o Pedagogo, que tem como uma de suas atribuições profissionais a gestão de processos de ensino e o debate sobre a Ética na educação. Para além da ética na educação, a intenção da fixação do conceito de ethos também deve levar o estudante a reformular as análises da própria cultura onde ele está inserido. Alguns alunos apresentaram suas conclusões após o trabalho com os filmes. Apresento alguns comentários que para mim representam essas análises amadurecidas pelo conceito científico discutido nas imagens do filme Blade Runner: (...), assim somos nós, colocamos na memória do computador apenas o que queremos ou julgamos ser importante. A cultura nos ensina que não precisamos do outro homem. Hoje as pessoas se relacionam mais com a máquina do que entre si. O homem é projetado para viver em uma sociedade capitalista. Este homem passa a desenvolver tarefas maquinadas para suprir sua necessidade de consumo. Começa a viver como manda a sociedade, passa a viver manipulado pela mídia. O homem construiu a máquina para que a mesma fizesse seu trabalho. No novo ethos capitalista o homem tem que ter o controle. Porém a criatura consegue superar o criador. A máquina supera o homem e o deixa dependente da mesma. Hoje é a máquina que tem o poder de controle sobre o homem. IIE (2º/2006) (...) O Ethos dessa sociedade se caracteriza pela pobreza que se encontrava a população; pelas constantes propagandas em telões no centro da cidade incentivando o consumismo e consequentemente promovendo a alienação dos indivíduos, (...) IIB (2º/2006) (...). É mostrado três tipos de discurso no filme: a verdade absoluta, o discurso científico e o discurso da religiosidade. Os blade runners acreditam (a verdade absoluta) que os replicantes não tem sentimentos, sendo uma ameaça a vida. Já o discurso científico Afirma que os replicantes foram criados para serem perfeitos, e os que adquiriram algum defeito (não querer mais ser escravo) eram eliminados. E o discurso da religiosidade (tudo é muito maior do que o homem pode imaginar) é a crença de que o replicante pode desenvolver um sentimento a partir das imagens que ele vai memorizando (passado). IIB (2º/2006) 79

4.2.

O cinema como recurso didático?

A situação-tv é a mais comum para a exibição de filmes na escola e na academia. Ela tem a vantagem de que o material do filme pode ser apresentado em recortes. O professor pode parar o filme, apresentar apenas uma cena, etc. A situação-cinema é a ideal para se ver filmes. A simulação do olho humano que a sala de cinema cria é ideal para provocar os estímulos perceptivos. O clima de atenção e de tensão que o escuro provoca e o tamanho da tela são os ingredientes mais importantes do cinema. A maioria dos filmes foi feita para a exibição em salas de cinema. O filme feito exclusivamente para o cinema tinha de sofre uma série de adaptações, de cortes, feitos para conter spots da propaganda. Essa adaptação do filme de cinema para as televisões passou a transformar a própria estrutura dos filmes, no momento de sua produção. Desde a década de 50, a indústria cinematográfica passou a dividir suas produções entre filmes comerciais e filmes não-comerciais. Os filmes comerciais são aqueles que se adequam às fragmentações necessárias em sua formatação. Os filmes nãocomerciais ficaram conhecidos como filmes de arte. A situação-TV é a simbiose entre o devaneio que o princípio de realidade do filme nos dá associado ao simulacro da caverna platônica. A situação-TV é a que os professores mais utilizam nas escolas e universidades para utilizarem o cinema como recurso. Mesmo quando utilizamos um filme, com a mínima luminosidade, em sala de aula há um certo desconforto e uma formalidade. Porém, em sala de aula o filme pode ser estudado, e isso é uma vantagem. A produção cinematográfica mudou ao longo da história. Com as pesquisas científicas sobre o comportamento da luz, as pesquisas industriais sobre a tecnologia e o impacto cultural das inovações o cinema se aperfeiçoou e a Televisão, o cinema individual. A representação da realidade desde o início da década de 50, nos países mais industrializados tem na TV e no cinema um importante fator de registro da cultura. Em 1946, primeiro ano inteiro de paz, o cinema norte-americano atingiu o mais alto nível de atração popular em seu meio século de existência. A freqüência semanal total ascendeu a quase três quartos de expectadores potenciais – isto é, o cálculo feito pela indústria cinematográfica de todas as pessoas no país capazes de chegar a uma bilheteria, (...). Depois de 1946, a freqüência e as 80

receitas das bilheterias principiaram a cair, antes mesmo que a televisão produzisse seu significativo impacto por volta de 1949 e 1950. Em 1953, quando se calculava que 46,2% das famílias norte-americanas possuíam televisores, a assistência dos cinemas caíra para quase exatamente a metade do nível mais alto de 1946. Mais tarde, quando a televisão emergiu triunfante da competição entre os dois, a venda ou o aluguel dos direitos de televisão tornou-se uma fonte principal de renda para os produtores de cinema. 55

4.3. Pedagogia e Cinema Um dos assuntos mais polêmicos da educação é a Ética. A disciplina de Antropologia do curso de Pedagogia tem a finalidade de provocar o debate sobre o conteúdo da ética profissional e seus limites. Entre outras questões está a relação entre a conduta ética na formação escolar. Para isso estudamos o conceito de Ethos na disciplina de Antropologia. O filme Blade Runner apresenta um conflito humano que evidencia o limite dos conceitos e pré-conceitos que os grupos sociais possuem sobre outros grupos culturais. O Etnocentrismo e a Etnofobia são problemas concretos no avançar das sociedades humanas. Há uma série de formas de se utilizar o cinema na pedagogia. Na disciplina de Antropologia do curso de Pedagogia da UEMG, a ementa possibilita pesquisas e atividades sobre Antropologia da comunicação visual. A relação entre o cinema e a pedagogia foi discutida com turmas de pedagogia entre 2006 e 2007, como uma forma de apresentar a cinemática dos conceitos. As turmas onde o filme Blade Runner foi trabalhado são: -- IIE, turma do segundo núcleo formativo de Pedagogia, disciplina de Antropologia da Educação I. (2º/2006) -- IE, turma do primeiro núcleo formativo de Pedagogia, disciplina de História da Educação I. (1º/2007) -- IIB, turma do segundo núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação I. (2º/2006) -- IVC, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2006) -- IVF, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2006) -- IVA, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (1º/2007) -- IVA, turma do quarto núcleo formativo de Pedagogia, disciplina Antropologia da Educação II. (2º/2007)

O objetivo do uso do filme na disciplina de Antropologia foi a retificação do conceito de Ethos. Na disciplina de História, o objetivo era a retificação do conceito de 81

memória. Em todas as turmas, nos perguntamos sobre as possibilidades didáticas e cognitivas do cinema, e discutimos sobre o filme Blade Runner, empregando a fundamentação teórica para analisar o filme. Apresentamos de uma maneira geral a importância do cinema para a pedagogia usando um trecho da epistemologia de Bachelard para nos iluminar; a relação entre o micro e o macroconhecimento. O trabalho com o cinema na disciplina de história teve um objetivo simples. Para tratar em brevidade o conceito de memória, apresentei aos alunos as imagens da função da memória na experiência da consciência, mostrada a nós no filme Blade Runner. Na Antropologia, seguiu duas diretrizes. I.

abordagem conceitual: Ethos e Sociedade

II. abordagem literária. Aplicação dos esquemas conceituais ao filme. Nas cinco turmas, iniciamos o trabalho com a dimensão conceitual. O objetivo do projeto de cinema e pedagogia era também o de exercitar com os alunos o referencial teórico da Antropologia (Estruturalismo, Fenomenologia e Conexionismo). Os grupos de alunos da FAE/UEMG são formados em sua maioria por mulheres, entre 20 e 35 anos. Cada turma possui em média 30 alunas. É um grupo que não tem muita freqüência ao cinema, preferindo a situação-TV, em casa, para assistir filmes. Ao contrário do trabalho come estudantes do Ensino Médio, na Universidade não há o problema com a censura aos filmes. Nas leituras das imagens do filme, temos uma verdadeira Simulação, que o cinema gera. Uma reflexão importante no trabalho com o cinema é a afirmação de que no cinema, tudo é cinema. Isso leva o estudante a se relacionar com o filme sem uma certa mística que leva a crer na indubitabilidade da imagem, efeito que acontece ao telespectador quando assiste a um jornal de notícias cotidianas. No cinema, como na TV, há processos de montagem da imagem e do som. Infelizmente na apresentação do filme para as alunas não contamos com a situaçãocinema, que chamamos de Simulacro. A caverna do cinema gera um estado psicológico específico. Entre a situação-tv e a situação-cinema, esta última é mais favorável para gerar imagens para a ciência na escola e na universidade. Por dois motivos, inicialmente: pelo nível de atenção e de percepção que o aluno pode alcançar, e pelo hábito político-cultural de freqüentar o cinema, que pode possibilitar uma reflexão entre o cinema e a sociedade, nossa vida cotidiana com as imagens do cinema. 82

O simulacro possibilita ao Espírito uma situação virtual específica, onde se reproduz materialmente a condição simulada. Um simulacro é onde podemos agir a partir de nossas simulações. O ambiente escuro do cinema é um simulacro, que potencializa a força das simulações do cinema. E o cinema é um reservatório das memórias da humanidade, uma nova forma de registro que a espécie humana realiza para si. Um reservatório de estímulos culturais para as novas gerações de seres humanos, que incorporam o cinema e a televisão em suas vidas cotidianas, a situação de cinespectador e telespectador como um ethos. A exibição do filme para as alunas não aconteceu na situação-cinema, foram apresentados em sala. O laboratório realizado com o filme será melhor detalhado adiante. O que foi dito às turmas no início do trabalho foi que as sociedades humanas são formadas por uma série de comunidades pedagógicas, que educam seus membros para modos de vidas particulares e históricos. As comunidades humanas geram imagens de si mesmas, um ethos. O antropólogo Lévi-Strauss desevolve a linha de pesquisa denominada de Estruturalismo,

e

em

seus

estudos

sobre

as

culturas

busca

observar

mas

pormenorizadamente os elementos comuns entre os vários ethos das várias sociedades humanas que podemos visitar e conhecer. A Fenomenologia é a linha de pesquisa antropológica que faz uma psicanálise do momento cultural do indivíduo; o indivíduo é o resultado da resolução das demandas pela sobrevivência. O ethos de uma comunidade surge para esse indivíduo como um complexo de adequação-inadequação. O ethos é o acúmulo de tentativas humanas que uma cultura registra. Conexionismo é a referência que fazemos aos vários processos educativos necessários para que a biologia do ser humano seja realizada. Os ethos são aquelas formas de utilizar a linguagem, que aprendemos para as trocas e intercâmbios (MATURANA, 1995). A partir dessas três concepções de ethos, apresentei o filme Blade Runner, para

observar a hipótese de Bachelard, segundo a qual os conceitos científicos, como o conceito de ethos, podem ser somente constituídos se certas imagens forem retificadas na percepção. Uma das alunas que participou do projeto Cinema e Pedagogia declarou em seu trabalho de conclusão da disciplina que: (...) O ethos do filme pode ser identificado no desenvolvimento acentuado da ciência, amparada nos ramos da biotecnologia e 83

genética. Dessa forma o homem atingiu um grau de desenvolvimento tão elevado no filme que foi capaz de habitar outros mundos e criar andróides capazes não apenas de substituir eles em tarefas perigosas como também de substituí-los em todas as atividades indispensáveis à sobrevivência humana. IIB (2º/2006) As imagens do filme Blade Runner nos apresentam uma possível e futurística forma social humana, sustentada em suas bases por uma cultura tecnológica. A relação entre o homem e suas máquinas leva a humanidade a se confrontar com outros padrões de comportamento inteligentes, outros entes humanóides, resultado da própria capacidade técnica do ser humano. Tudo isso acontece com uma progressiva destruição ambiental, a metamorfose autofágica que as grandes linhas de produção industrial espalhadas pelo mundo realizam: parcelas do meio ambiente em troca de objetos industrializados. Na verdade os animais e vegetais, no filme, são mercadorias geneticamente fabricadas. Essas imagens, e os conceitos da Antropologia foram chocados, no que, segundo Bachelard, pode ser um momento de sobreposição dos juízos humanos, alimentados pela constante exposição das células perceptivas aos estímulos do ambiente de aprendizado. No caso de um filme, são estímulos visuais e sonoros, combinados em uma montagem lógica, em si inalcançável, mas reconstituída pelo pensamento do cinespectador. Dessa forma temos tomado o filme como uma realidade enquanto o assistimos. Para apresentar o filme, foram necessários 2h/a, o tempo de duração da película e os comentários. Ao final do filme, solicitamos que o aluno escrevesse um parágrafo utilizando os instrumentos teóricos da Antropologia, de maneira a tentar explicar o filme, como poderia ser feito ao aplicar esse referencial na descrição de algum fenômeno cultural. Para o Pedagogo, como profissional, a interpretação dos momentos de uma cultura é tão importante quanto a percepção dos momentos cognitivos. Os cineclubes foram realizados como parte das atividades das disciplinas de Antropologia e História, ambas com um total de 80h/a. Apresento a seguir conclusões mais comuns dos alunos a respeito do conceito de ethos no filme Blade Runner. Foram cerca de 130 comentários. Esse conceito pode ser encontrado na definição ou na abordagem de outros dois termos: Humano e Robô. Esses comentários, como já disse anteriormente representam a avaliação do trabalho cinema e pedagogia na disciplina de Antropologia; o Portifólio de filmes. 84

Como forma de avaliar o resultado do trabalho utilizando os filmes para compreender o conceito científico no curso de Antropologia, e também sensibilizar os alunos para olharem para os filmes de cinema de uma outra maneira, com um olhar menos passivo, foi solicitado de cada aluno um Portifólio, um álbum de anotações e recortes sobre uma lista de filmes de cinema. Sugeri um conjunto de filmes de acordo com as três linhas de pesquisa da antropologia. O objetivo do trabalho foi apresentado da seguinte forma Análise de filmes de acordo com esquemas antropológicos. Faz-se necessário a verificação de conceitos como ethos, habitus, fantasmático, fenomenológico, ipseítico, dentre outros da antropologia. IIE (2º/2006) Apresentei inicialmente aos alunos os esquemas teóricos da Antropologia e propus para cada esquema um conjunto de quatro filmes. O objetivo foi interpretar as imagens, o enredo, a fantasia dos filmes de acordo com cada um dos três instrumentos antropológicos. Com isso eu pretendi verificar se aquele conhecimento virtualmente conquistado poderia ser aplicado em uma operação tão cotidiana que é a de assistir TV, ver cinema. O portifólio representou uma atividade avaliativa para cada estudante. Alguns alunos comentaram o próprio portifólio, interpretando meus objetivos como professor ao usar o cinema para discutir as questões da Antropologia Tudo no cinema é apenas cinema. No cinema a realidade é resultado da fantasia, são as possibilidades computacionais, a música, o roteiro, os atores. A uma fábrica de ficções. Esse dado é importante para que Oe estudante não tome a imagem e os acontecimentos do cinema como realidade última. Diante da ficção, são as conexões que individualmente podemos fazer é que contam. Nosso julgamento, nossos juízos. As impressões objetivas que as imagens e o som nos trazem realizam o que Bachelard pressupõe: para a retificação da impressão é necessário estímulos variados, e o filme é um estímulo multidimensional, possível de ser explorado, uma vez que é resultado de um conjunto de atividades artísticas humanas. Além disso, os filmes de ficção científica trazem elementos que retratam o trabalho de pesquisa dos pensadores e as realizações sociotécnicas da civilização. Devemos tratar a imagem como uma imagem montada no plano do juízo. Esse desencantamento com relação ao grau de realidade de um filme é necessário. Mas essa 85

posição cética poderia invalidar qualquer utilidade de um filme, posto que todo filme é uma farsa. Mas isso não acontece. A cinemática é tomada como realidade, truques de câmeras e efeitos especiais são levados a sério pelos órgãos perceptivos. É o que podemos dizer a partir de Bachelard. A realidade externa permanece sem juízos a priori, sem análise em si mesma ou abordagem consciente até que o pensamento se aperfeiçoe, os olhos registram as impressões do movimento, e esse fenômeno é um elo entre o sujeito e os objetos físicos ao redor até que a linguagem organize as representações possíveis desses objetos. As abordagens mais comuns apresentada pelos alunos e alunas das cinco turmas observadas: (...) em 2019, uma grande corporação desenvolveu robôs que são muito fortes, ágeis, e sua inteligência se equipara a dos seres humanos. Conhecidos como replicantes, esses robôs são utilizados como escravos na colonização e na exploração de outros planetas. Em cada robô foi implantada uma memória artificial. Eles não tinham emoções, mas poderiam desenvolver ódio, amor, raiva e inveja com o passar dos anos. Os replicantes tinham fotos que relembravam momentos. Em suas memórias artificiais ficaram lembranças de momentos talvez nunca vividos por eles. IVC (2º/2006) (...), no início do século 21 uma grande corporação desenvolve um andróide mais forte e mais ágil que o ser humano e que se equipara em inteligência. São conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na colonização e exploração de outros planetas. IIB (2º/2006) Esses foram os comentários mais comuns sobre o filme. Entretanto o enfoque é menos antropológico e mais histórico. Mostra que o conceito antropológico não foi a ferramenta a mais uitilizada, pelo menos a princípio da aproximação, para analisar o filme. Concluo que boa parte dos estudantes não realizou a experiência do conceito de ethos, no grupo pesquisado, ou pelo menos não utilizando as palavras centrais da discussão teórica realizada antes de assistirmos ao filme. Um outro grande grupo de alunos desenvolveu comentários que para mim correspondem ao objetivo de relacionar os conceitos com as imagens, apresentando uma intencionalidade em utilizar uma linguagem específica para tratar as imagens. O que corresponde à tese de Bachelard é o fato de que as possibilidades de abstração que a obra cinematográfica nos traz terem um papel de especificar uma 86

fisiologia. Uma fisiologia para um reconhecimento, uma capacidade de reconhecer, que é o objetivo imediato do conhecimento. A descrição científica tem uma finalidade; se por meio dela tornaram o sujeito capaz de um outro contato, mais aproximado, com o objeto da descrição. Isso não representa um aprendizado efetivo do tema, pois a aproximação não tem um ideal de se concluir. A capacidade de medição do infinitamente pequeno como no caso da genética, e do infinitamente complexo, como no caso do ethos deixam as pesquisas sempre em aberto. Mas se a finalidade da descrição científica for alcançada, ou seja, se houver uma aproximação, e esta for fecunda ao espírito, então teremos um novo conhecimento. Acredito que então boa parte da turma, esse outro volume de 50% de pessoas que realizaram a tarefa de análise e comentário do filme se aproximaram do conceito. Uma outra questão que surge paralela a essa é a de que as condições de se fazer ciência e se estudar ciência são diferentes, e até divergentes. Não percebi na tese de Bachelard uma diferenciação. Epistemologicamente a diferença não existe, é esse o ensinamento, a linguagem do cientista é que difere da linguagem do estudante; a primeira é mais específica e utiliza conceitos, favorece novos juízos do espírito, como o juízo de negação. Em nossa pesquisa bibliográfica, encontramos o seguinte comentário de um professor de Biologia: Sem dúvida alguma a forma do cientista criar teorias não difere, quanto à estrutura básica, da forma de elaboração dos conhecimentos dos alunos (ou não cientistas), a qual é fortemente influenciada por valores, crenças, dados observados, fatores culturais, meio social em que está imerso, grupo político 56 a que pertence, etc. Classifiquei as descrições que se aproximaram das imagens através dos conceitos que tínhamos discutido.

Abordagens Estruturalistas: (...) a máquina e o homem, ethos – robôs querem conhecer seu criador e prolongar seus dias. – o criador impôs um habitus – máquinas com vida limitada. Os robôs tentam quebrar esse habitus e prolongar suas vidas, impossível, são vencidos pela minoria majoritária. IVC (2º/2006) 87

(...). o filme blade runner descreve habitus estabelecidos através de relações conflituosas e/ou afetivas entre humanóides e robôs evoluídos, contrastando duas etnias (habitus humanos e robóticos) no planeta terra. São os conhecidos como replicantes e escravizados para colonizar outros planetas que retornaram em busca de um tempo maior de vida. Querem de seu criador mais do que os simplórios quatro anos de existência. Além disso, resgatam sua memória através de fotografias, pois esta é mais uma limitação deste grupo. IIE (2º/2006) (...) neste filme o homem cria robôs a sua imagem e semelhança, são tão reais que expressam sentimentos. A tecnologia e a ciência são avançadas, tudo é muito futurista. O ethos deste filme pode ser a forma com que o homem usa a ciência, em especial a genética para gerar um grau tão alto de desenvolvimento a procura de dominação e poder. IIB (2º/2006) (...) o homem cria a máquinas quase humanas para destina-las ao trabalho e a à exploração. A estas máquinas o homem introduz uma memória de passado, o que desperta neles sentimentos que para os homens são universais. Uma vez que começam a sentir as máquinas também passam a desejar. IIB (2º/2006) (...) o filme retrata claramente a humanização da máquina e a maquinização do homem, pois o homem perde sentimento e deixa que a máquina domine o mundo. IVC (2º/2006) (...), podemos relacionar as cenas do filme ao estruturalismo, por ele também mostrar um esforço pela sobrevivência, “no caso dos robôs”, tendo vida, também tentam se igualar à vida humana, se adaptam inteligentemente a cada lugar, tem padrões de etnia parecidos com o homem. IVC (2º/2006) (...) por volta do ano 2000, o planeta terra está em total decadência. Os poucos habitantes vivem aglomerados em gigantescos arranha-céus. A engenharia genética se tornou uma das maiores industrias, criando os replicantes, criaturas dotadas de extraordinária força e inteligência, 88

praticamente indistinguíveis dos humanos. IVF (2º/2006) Abordagens fenomenológicas (...) no ano de 2019, um ex-policial é obrigado a descobrir a eliminar andróides, que retornam à terra para cobrar vida mais longa ao seu criador. IIE (2º/2006) (...) a presença do diferente é proibida, no caso do filme, a presença dos replicantes. Claro que os replicantes, pela suas vidas, se tornam agressivos. IIB (2º/2006) (...) numa terra destruída, um novo ethos se estabelece. Robôs incorporam como seus, comportamentos que até agora só faziam parte da etnia humana. A necessidade de se conhecer a origem, a busca da longevidade, sentimentos, emoções, e a mistura entre memória e lembranças. Máquinas adquirindo habitus humanos e homens se perdendo, perdendo na busca constante do controle total das máquinas. IIB (2º/2006)

Abordagens mais conexionistas (...) ao mostrar a fixação dos robôs por fotografia, mostra como são humanos precisamos de nossa história para diariamente mantermos nossas resoluções filosóficas sem que o organismo inteiro seja ameaçado de desintegração. IVF (2º/2006) (...), replicantes (andróides que se assemelham aos seres humanos). Os replicantes são robôs construídos pelos homens, sendo que esses são escravizados pelos mesmos. IIB (2º/2006) Os trabalhos das turmas de antropologia foram apresentados para todo o público da 89

faculdade de educação no dia 6 de dezembro no II Seminário de Antropologia, em que grupos formados em cada turma apresentaram suas reflexões entre cinema e educação. Todos os quatro textos em anexo no presente trabalho foram trabalhados ao longo do semestre e constituem parte da formação instrumental para a análise do filme Blade Runner. Os textos foram lidos e comentados em sala antes da apresentação do filme.

4.4. A Abstração e os Conceitos científicos A idéia de trabalhar o cinema no conteúdo de antropologia foi resultado do sucesso de uma experiência anterior com o cinema em sala de aula que tive quando era professor de Biologia para o ensino médio. Ao trabalhar com adolescentes descobri que a imaginação é fundamental para que eles compreendam a importância dos conceitos científicos. A abstração é uma atividade do espírito humano que é gerada a partir dos dados elementares da percepção. Para Bachelard a abstração possui uma base material, que é o dado retificado nas centenas de milhares de células perceptivas que alimentam o cérebro com as impressões do real, do mundo exterior e interior. Portanto, a ficção científica pode fornecer os elementos que, na imaginação do estudante gerará imagens possíveis para os fenômenos. No esforço de descrever cientificamente, objetivamente a realidade biológica, os alunos lançam mão da imaginação. Principalmente por que as entidades com as quais opera a biologia são diminutas demais, como no caso das células, ou processuais demais como os ecossistemas. Não objetos de pesquisa e estudo que estão para além das condições normais de percepção. A ciência com seu esforço de medição, de aproximação, atingiu a escala nanômetra. O alargamento de nossa consciência de mundo a partir disso está materializado nas experiências eugênicas. A manipulação do DNA, através da nanobiotecnologia, com a construção de ferramentas de registro que podiam gerar imagens, gráficas e eletrônicas, parece demonstrar que o estudo da biologia é uma necessidade atual das sociedades humanas, e também uma esperança. Não apenas o microcosmo está sendo investigado, mas os processos biológicos mais extensos, como os que envolvem as plantas e os rios. Esse alargamento vertical nas células e temporal no espaço traz necessidades novas para o ensino e aprendizado de Biologia. Segundo Habermas 57 em seu recente livro sobre a natureza humana, o ensino de biologia é 90

a cada dia uma necessidade política da humanidade, pela forma com que a vida cotidiana está sendo influenciada pelas experiências dos seres humanos. Os estudantes do segundo grau, que estudam durante três anos a disciplina de Biologia num total de 270 h/a, ao desenvolver para si e para a comunidade escolar, os conceitos biológicos, nem sempre possuem o estímulo material suficiente para abstrair, para se aproximar do fenômeno que estudam. No ano de 1997, na Escola Estadual Ernesto Carneiro Santiago estabeleci uma primeira relação entre a construção do conceito científico em biologia (ensino médio, biologia I, II, III) e o cinema. A disciplina era Biologia II, fisiologia humana (segundo ano do ensino Médio). O conceito era o de Hormônio, e o filme apresentado foi O óleo de Lorenzo. A referida escola adota desde essa data uma certa freqüência do uso do cinema no ensino, para tanto há uma sala na escola disponibilizada apenas para seções de cinema, com banquinhos.

Para se ter uma idéia das dimensões envolvidas na escala nano basta pensar que um fio de cabelo tem entre 50 e 100 micra de diâmetro e que a escala nanométrica é mil vezes menor, ou seja, as dimensões envolvidas são normalmente mil vezes menores que as passíveis de se observar com um microscópio ótico comum.

A dificuldade inicial de quantidade de cinespectadores pode ser resolvida com uma dinâmica de trabalho em sala de aula. Realizei no ano de 2007, nos meses de maio e junho, uma visita à referida Escola. A Escola Estadual Ernesto Carneiro Santiago, localizada em Sarzedo, possui uma sala de cinema, onde os alunos são encaminhados por professores de todas as disciplinas quando algum filme de cinema ou programa de televisão é necessário para o desenvolvimento das disciplinas. Há uma inscrição prévia do professor para a utilização da sala. A escola tem o uso do cinema incorporado às atividades de ciências Biológicas, no trabalho atual dos professores Júlio, Clever e Vinícius. Propus uma dinâmica em torno do 91

filme Blade Runner, seguindo a metodologia que empreguei no Curso de Pedagogia, na disciplina de Antropologia. A metodologia é a apresentação de um conceito, ou de uma problemática teórica da ciência biológica, depois a apresentação do filme, ou de imagens recolhidas de um filme, e uma posterior conversa para observar o desenvolvimento do que Bachelard chama de Juízos. Segundo Bachelard, esses juízos são a maneira do espírito humano representar o conhecimento para o ato da descrição, ou seja, a formulação de um conceito científico como Hormônio passa pelo momento de um reconhecimento do que significa hormônio na experiência visual. O tema proposto é o conceito de Genes Atávicos, mencionados no filme Blade Runner, no seguinte comentário: --- coisas da vida, ... alterar a evolução de um sistema orgânico é fatal. Uma seqüência codificada não pode ser alterada. (homem) --- por que não? (robô) --- no segundo dia de incubação, as células que sofreram mutações atávicas originam colônias atávicas, como ratos abandonando um navio. E o navio naufraga... (Homem) Para os estudantes do ensino médio, a dificuldade epistemológica de dizer ou entender 58 o que genes atávicos, ou mutações atávicas. (...), as concepções dos alunos explicitam uma gama de situações com a mesma e complexa estrutura conceitual, enquanto que as atividades didáticas, normalmente, entram em conflito com apenas uma parte do sistema conceitual do aluno, não sendo fortes o suficiente, naquele momento, para mudar a representação de mundo do estudante. Essa concepção alternativa não aceita pela ciência ou distante da explicação científica somente será substituída por outra quando ela não foi mais capaz de responder muitas das questões que se apresentam para estudante. 59 A educação escolar é uma das funções da sociedade, para moldar novas populações de seres humanos que surgem nas estruturas familiares. Lévi-Strauss dizia que o aprendizado mais importante que as escolas ministravam era como fazer uma família. Por trás de todo objetivo científico da educação, está a finalidade cultural da aprendizagem, ou seja, sobreviver. Constituir relações humanas com outras pessoas para realizar as trocas simbólicas que nos possibilitam adquirir alimento e outros determinantes. O que 92

consideramos humano, o que consideramos ecológico, todos os conhecimentos que vamos elaborando em nossas interações com os outros e com o mundo, aquilo que nos estimula a fazer certas representações que por fim chamamos de realidade. Ao longo das leituras que fiz no início do curso de mestrado no CEFETMG fui realizando vários laboratórios com meus alunos do curso de Pedagogia, utilizando os filmes para fundamentar vários conceitos. O filme possibilita uma ilustração necessária para a construção

dos

conceitos

porque,

de

acordo

com

a

tese

de

Bachelard,

o

microconhecimento, ou seja, o contato com as impressões do real, sendo fundamental para que o espírito elabore uma fixação na percepção que levará o sujeito a reconhecer o objeto e se inteirar mais aprofundadamente com ele, ou, mais aproximado a ele. O formato da pesquisa empírica inicialmente era o de um laboratório com turmas diferentes em situações de apresentação de filmes de formas diferentes, ou seja, apresentar a construção do conceito em uma turma utilizando o filme e em outra não utilizando o filme, e ao final investigar quais foram os resultados obtidos. Esse laboratório é interessante e pode ser experimentado. Entretanto optei por uma outra forma de investigar o filme na elaboração do conceito. Apresentei o filme em várias modalidades; apresentei o filme antes, durante e depois de desenvolver com os grupos o conceito. Em uma turma apresentei o filme primeiro e depois desenvolvi o conceito. Em uma outra turma apresentei o conceito, depois o filme e depois continuei a desenvolver o conceito. E por fim, em outras turmas apresentei o filme ao final do conceito. Minha preocupação foi a de compreender minha própria prática de uso do cinema na educação, em sala de aula e fora dela. Meu interesse sincero foi o de despertar um gosto pelo cinema, um hábito nos alunos de freqüentar o cinema como um hábito da cultura, e fazer ciência a partir desse hábito cultural, não apenas levar o filme para a sala de aula. A situação cinema é mais rica em devaneio do que a situação-tv. Esta última tem a vantagem de permitir a quebra do filme para análise. Utilizei filmes de cinema em situação-tv para desenvolver o conceito de Fisiologia no ensino médio (utilizei na época o filme o óleo de Lorenzo) e de Ethos no curso superior (filme Blade runner). O filme pode ser usado antes, durante ou depois da construção do conceito o primeiro momento é a vinculação do filme com o tema. Em todas as modalidades de utilização do filme, o mais importante é tratar o filme como filme, e não como uma realidade. Se entendi o que Bachelard disse ao afirmar que no microconhecimento o aspecto cognitivo não é lingüístico, a maior quantidade de 93

informações e de estimulações sensoriais que o estudante tiver com relação ao que ele está pesquisando será útil na confecção do conceito científico. No caso de Blade runner, a relação entre os humanos retratada no filme apresenta uma simulação de um conflito que está presente entre os próprios grupos humanos em sua busca por sobrevivência e identidade. Essa simulação traz dados que não são experimentados no cotidiano do estudante, ou explicita estruturas que não estão presentes. Para o antropólogo etnógrafo, que vive o limite do conflito entre dois grupos culturais o conceito de Ethos, de comportamentos universais humanos, pode ser observado. Para o estudante de Pedagogia que não tem a prática da Etnografia fica difícil reconhecer o conflito que nos ajuda a compreender o sentido da ética humana. Parece que um grupo social não aceita os valores de outro simplesmente por questões políticas e econômicas. O filme Blade Runner mostra a questão estrutural das diferentes humanidades. Os seres humanos e, no caso as máquinas humanas inteligentes, se diferenciam estruturalmente, mas estão ao mesmo tempo irmanadas pela capacidade de linguagem, pela capacidade de sentimentos e de inteligência. Compartilham a forma humanóide. O robô e o homem participam de um mesmo Ethos, por esse motivo, pelo fato dessas universalidades e da convivência comum, poderiam estabelecer uma mesma ética. A ética são os códigos de conduta que não levam em conta os comportamentos particulares das diversas sociedades humanas, mas as semelhanças existenciais de todos os homens e mulheres. A ética tem uma raiz na biologia humana.

94

5. Conclusão O conhecimento cotidiano é uma fonte de pontos referência com o qual construímos nossos comportamentos sociais. Aparentemente a busca pelo conhecimento é saudável também para a estrutura cognitiva do indivíduo. A busca em si. Ao tentar explicar o mecanismo do conhecimento admitimos que ele ocorre em duas dimensões, uma realista, que é a aproximação física do objeto, uma ergonomia, e outra dimensão idealista em que a aproximação significa uma retificação. Ao falarmos de conhecimento científico na escola estamos falando nas duas dimensões desse tipo de conhecimento? Assuntos como ecologia, ao serem discutidos com estudantes trazem, no planejamento do professor, a intenção de fixar alguns conceitos, que se supõem serem não apenas conceitos, mas comportamentos empíricos, que no caso da ecologia levem inclusive a uma certa prática. A retificação do conceito científico, ou seja, o aprendizado do conceito, sua inclusão no vocabulário e nos pensamentos do aluno, é um momento propulsor para novos conhecimentos. A retificação, a fixação daquilo que é formulado como sendo um conceito científico deve ser capaz de aproximar o estudante do objeto sobre o qual ele passou a pensar sistematicamente. O que ocorre é que num plano imperceptível pela totalidade dos pensamentos, nos órgãos da percepção que capturam e sofrem o estímulo externo, nessmo momento sem linguágem, a quantidade de retificações deve ser sempre em quantidade grande para que o indivíduo possa acompanhar a cinemática da realidade. Que tipo de estímulos são suficiuentes para que certos problemas abordados pelas ciências ecológicas sejam compreendidos pelo estudante? Essa pergunta pode ser inicial quando pretendemos utilizar os filmes de cinema na educação científica. Por exemplo a Simulação que o filme Blade Runner nos apresenta, de um futuro onde a natureza vegetal e inumana será devastada em sua quase totalidade e controlada em bancos genéticos, tratadaa vida como uma mercadoria como outra. Não é necessário que o aluno esteja vivendo a situação social do filme, entretanto a teatralização do conflito entre o homem e a natureza, na imagem do cinema, fornece uma série de estímulos para que o estudante no mínio estabeleça sua emoção com relação ao tema,um dos passos para que uma nova aproximação com os objetos envolvidos na representação do conceito aconteça. Uma nova aproximação com outras dimensões do objeto partirão do 95

reconhecimento que o conhecedor fará a partir do que já está fixado nas sua estrutura perceptiva e em seu epírito: a percepção do conteúdo do conhecimento como um fato pertencente à história das representações do indivíduo. O cinema com uma simulação de uma realidade, que não é uma realidade caótica, segue uma estrutura temporal e principalmente lógica. O filme de cinema é um objeto que contém uma densidade tão fantástica quanto a realidade cotidiana. A diferença do cotidiano para o filme fundamentalmente é o tempo. O filme é uma realidade atemporal, ou com uma temporalidade fluida. O estudante pode adentrar essa temporalidade, repeti-la, corta-la. Esse caráter flexível dessa realidade permite ao estudante penetra-la, testar suas leis. Bachelard nos ensina que a quantidade de estímulos da realidade é infinita, mas a capacidade de percepção humana é limitada. Mas restrita é a capacidade de julgar. Bachelard nos propõem uma evolução de nosso conhecimento da realidade através de um processo de aproximação contínua, ou seja, quanto mais direcionarmos nossa percepção para os objetos da realidade mais nos aperfeiçoamos no reconhecimento desses objetos e melhor será nossa adaptação e nossa intervenção diante dele. Esse processo de aproximação ele chama de conhecimento. Portanto o conhecimento para Bachelard é sempre um estado transitório, depende do grau de aproximação que um indivíduo pode fazer com a realidade. Essa aproximação é representada através da construção do conceito científico ferramentas para o avanço do conhecimento, pontos transitórios de onde novas pesquisas podem partir. No caso do estudante o conceito científico tem outra finalidade, não a de projetar novas pesquisas, mas de ser útil para sua interação social. Aprende-se ciência nas escolas por que temos ainda a aposta de Platão de que a verdade, o conhecimento, nos torna mais humanos, amplia nosso Ethos, nossa ética. Os objetos tradicionais da ciência, desde o início do século XX foram sendo diversificados, também os instrumentos de medição e investigação se aperfeiçoaram. A natureza ampliada pelos fenômenos sócio-culturais se torna mais complexa, e por isso, para uma visão de maior profundidade, e no caso do estudante de ciência, para uma maior capacitação para compreender e intervir temos que buscar todas as fontes de esclarecimento, inclusive a arte. A relação entre a arte e a ciência é próxima, íntima, e a ficção científica é uma materialização dessa relação. Muitos filmes de ficção científica projetam as relações futuras do homem com o conhecimento científico, que nesse filmes são cada vez mais avançados. Ensinar ciência é também construir os conceitos científicos, auxiliar o estudante a construir representações e hipóteses sobre a vida e a 96

sociedade. O Simulacro de uma sala de cinema, onde a caverna platônica é reproduzida é um fenômeno social possibilitado pelos aperfeiçoamentos tecnológicos, e o trabalho com o cinema na formação científica não é apenas de utilizar o cinema, mas de discutir a montagem da imagem na sociedade atual. O que é filme e o que é ficção? As tramas sociais nas quais o estudante está envolvido são inicialmente obscuras para o entendimento. Os fenômenos não se apresentam desnudos. A realidade não se oferece gratuitamente para o conhecimento, como diz Bachelard. Cada indivíduo humano passa por um processo cognitivo onde aprende e organiza sua capacidade de apreender e julgar a realidade, e conseqüentemente agir para sua adaptação e sobrevivência. Esse esforço ativo de conhecer a realidade, de se aproximar, de elaborar o olhar é um objetivo da ciência em seu caráter humanista. A ciência é uma ferramenta para a humanização do ser humano. A caverna cinemática, a sala de cinema é freqüentada por grandes grupos humanos desde há 100 anos, transformando a maneira de representar a vida. As novas gerações recebem o cinema em suas vidas e aprendem a conviver com as ondas contínuas de assuntos, polêmicas, estímulos. Isso pode ser aproveitado para a construção do saber viver. Para o Professor e o Pedagogo essa iniciação ao cinema precisa ser pensada em três termos. O primeiro é a necessidade de um modelo epistemológico que relacione o conhecimento gerado pela percepção das imagens. Em que nível está a relação fundamental entre ver uma imagem e elaborar uma hipótese, um conceito? Bachelard nos apresenta esse modelo e coloca a cognição das imagens em dois momentos, o momento da percepção do estímulo que a imagem produz (estímulo sonoro e visual), e o segundo momento é o julgamento da objetividade dessa imagem. O segundo termo dessa relação pedagógico-didática do cinema na educação é a desmontagem da imagem em seu sentido político. O cinema é uma fábrica de fantasias e a partir de sua análise podemos chegar a uma crítica da cultura. O filme Blade runner apresentado no curso de Antropologia auxiliou na construção do conceito de Ethos e na polêmica que nossa sociedade atualmente possui com relação à ética. Como os comportamentos humanos são característicos, e as criações humanas carregam esses comportamentos. A natureza antropomorfizada também carrega traços das sociedades humanas. O filme projeta uma situação limite, de guerra e caos, provocada por conflitos entre as humanidades, e essa simulação é muito rica em situações onde podemos evidenciar 97

o ethos humano, entre outros momentos está o da busca pelo sentido da vida. Pelo filme podemos notar que as criações humanas, no caso os robôs inteligentes, também possuem a busca do ser humano pela razão da sua existência. Definimos com os alunos que a busca do sentido da vida é uma busca ética, pois nos remete ao núcleo comum das aspirações humanas. O filme Blede runner foi precioso para gerar uma simulação de realidade onde o conflito ético se expressa de maneira absurdamente forte, ao ponto de percebermos que se não o resolvermos, a natureza, as criações humanas e o próprio homem estarão ameaçados. O terceiro termo é a variação das modalidades do uso do cinema na sala de aula e o incentivo à situação-cinema. O filme pode ser utilizado de várias maneiras, sempre associado a um procedimento pedagógico que paralelamente seja o de construir uma visão objetiva e mensurável da realidade. Podendo ser utilizado nas várias etapas da construção do conceito científico, seja como um estímulo inicial ou final para a abstração do estudante. Aliado a isso há também o incentivo à freqüência nos cinemas, como uma forma do estudante estar diante das polêmicas do seu tempo, que são apresentadas constantemente nos cinemas. O cinema é um instrumento de compreensão da sociedade, mas não pode ser assistido ingenuamente, principalmente por que ele é uma grande fonte de estímulos e de abstração para os estudantes de ciências. A utilização do cinema na educação é uma ação constante, como foi relatado anteriormente, e a hipótese desta dissertação é de que essa utilização será melhor aproveitada se puder ser problematizada pelo professor através de uma base teórica filosófica. A escolha por Bachelard tem uma razão em seu trabalho como docente. Ele foi um brilhante cientista, filósofo e também um professor. Não obtive muitas referências sobre sua excelência como docente, entretanto seus textos trazem uma preocupação didática, de construção elaborada dos conceitos, a demonstração. Sua tese sobre a aproximação faz pensar no lento trabalho do ensino conceitual, na preocupação de que o conhecimento construído possa ser reconhecido nas experiências cotidianas, e também na gradual melhoria da condição perceptiva do sujeito. O uso do cinema na situação de ensino tem a finalidade de povoar o imaginário dos alunos com elementos para incitar sua abstração, e ao mesmo tempo possibilitar de tratar o próprio cinema como uma construção humana, possibilitando a formação de um olhar crítico. Uma terceira importância do uso do cinema é a de que ele enquanto filme é um objeto flexível a uma série de possibilidades metodológicas. Citamos três possibilidades que se diferenciam pelo momento em que o 98

filme é utilizado e o momento em que a construção do conceito é utilizada. Apresentar o filme primeiro e depois construir o conceito leva a um tipo de reconhecimento, e a cada forma em que a construção do conceito se relaciona com o tempo do filme novas possibilidades de conhecimento são geradas. Portanto o uso do cinema pode se dar de forma diferente de acordo com a finalidade e utilidade da elaboração do conceito. O método é sempre a situação de apresentação do filme, que exige concentração e atenção dos estudantes, levando a escola ou a universidade a reproduzir sempre que possível a situaçãocinema. A cultura cinematográfica é importante na sociedade da informação, onde uma série de conteúdos é emitida através da iconografia. O próprio filme Blade Runner gerou uma série de arquétipos, incorporados, copiados, remodelados na própria história do cinema. Portanto, essa utilização lúdica do cinema, intuitiva, pode ser direcionada para efeitos mais amplos, geração do conhecimento, na tomada ficcional e também na tomada crítica das imagens em construção. O momento de teorizar, de conceituar, de fixar os argumentos lógicos, de se fazer ciência, seja realizado anterior ou posteriormente às apresentações cinematográficas tem um sentido de ser o momento da aproximação, da reunião dos estímulos, das sobras estéticas, das impressões que as imagens podem causar, em favor de uma sistematização para a finalidade maior do conhecimento científico, que segundo o Bachelard do Ensaio é o reconhecimento, a contemplação consciente da realidade, a cada vez mais nítida e mais familiar, a um olhar cada vez mais crítico e cirúrgico, quando se exige argumentar, justificar ou explicar os fenômenos sociais, naturais e artísticos. A partir dessa reflexão quero propor o acoplamento do uso do cinema nas práticas de ensino da ciência.

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Notas Introdução 1

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Epistemologia do conhecimento aproximado de Gaston Bachelard 4

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.140-141. BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 247. 6 Apresentei um histórico do debate filosófico entre as duas correntes no terreno da epistemologia em minha pesquisa de mestrado anterior (linha da filosofia da ciência, UFMG); A superação da oposição entre idealismo e realismo no pensamento de Humberto Maturana. 7 JAPIASSU, Hilton. Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro. F. Alves, 1991. p.70. 8 BACHELARD,Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.246. 9 RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Livro Primeiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. capítulos sobre Platão e Kant. 5

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10

BACHELARD,Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.282. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.167 12 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p.14-15. 13 Idem. p.17. 14 Idem. p.286. 15 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 254-284. 16 CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p.133. Zahar Editores 17 TEITELBAUM, Philip. Psicologia fisiológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. Citando E. D. Adrian e Ymgve Zotterman, de 1926. p. 16-17 18 ORTEGA Y GASSET, José. Que é Filosofia?. Rio de Janeiro, Livro Ibero-americano, 1971. 3757. 19 O dado científico já é resultado de uma antropomorfização pelos cientistas e pesquisadores que conseguiram formulá-lo. O dado descrito cientificamente pode fazer sentido ou não de acordo com a teoria, o sistema racional de explicação em que se insere, o dado científico faz sentido por estar logicamente localizado no sistema explicativo. O dado bruto é o ponto de referência no real. 20 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 259. 21 Idem.p.23. 22 Idem. p.22 23 Idem.p.23. 24 Quando Bachelard trata da representação cultural de um conhecimento, ele fala da linguagem científica, que parece ser uma forma de registro mais precisa. Como comentamos anteriormente, esse problema foi melhor investigado pelos membros do Circulo de Viena. ARAUJO, Inês Lacerda. Introdução à Filosofia da ciência. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1998. 25 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 27. 26 Idem. p.300. 27 Idem. p.19. 28 Idem. p.247. 29 Idem. p.38. 30 Idem. p.159. 31 Idem. p.29. 32 Idem. p.46. 33 Idem. p.130. 34 Idem. p.8. 35 Idem. p.250. 36 Idem. p.249. 37 Idem. p.18. 38 FELÍCIO, Vera Lúcia. A imaginação simbólica nos quatro elementos bachelardianos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p.43. 39 Ficção científica 'hard', ou FC hard, é um sub-gênero da ficção científica caracterizado por seu interesse no detalhe ou na precisão científica. Todavia, há muita discordância entre leitores e escritores sobre o que exatamente constitui este interesse no detalhe científico. Muitas histórias de FC 'hard' se concentram no desenvolvimento tecnológico e biológico, mas muitas outros deixam a tecnologia em segundo plano. Outros argumentam que se a tecnologia é colocada em segundo plano, isto seria um exemplo de ficção científica 'soft'. 28/02/07. http://pt.wikipedia.org. 40 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p.293-294. 41 Idem. p.281. 11

103

Fundamentos fisiológicos dos processos imaginativos 42

43

SKLAR, Robert. História social do Cinema Americano. São Paulo: Editora Cultrix, 1975. p.259

GOLDSCHMIDT, Vitor. Os diálogos de Platão, estrutura e método dialético. São Paulo: Edições Loyola. 2002. p.260-261. 44 Ibdem. 45 RUSSELL, Bertrand. História da filosofia Ocidental. Livro primeiro. Cap. XVIII – conhecimento e percepção em Platão. p. 173. 46 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p. 51. 47 (...) como nosso conhecimento aproximado do real pára após um pequeno número de tentativas com respeito a uma única propriedade, não é possível apoiar-se nas determinações insuficientemente numerosas para ultrapassar seu movimento. Estamos condenados a uma transcendência maciça, obscura, constituída inteiramente por nossa ignorância. (...), no entanto, por mais imperfeita que seja nossa tarefa de aprofundamento experimental, convém reconhecer que ai está uma direção com certa fecundidade filosófica. Mesmo que nessa via de pensamento não chegue à objetividade, é inegável que a primeira tentativa de limitar a subjetividade consiste num retorno à percepção, numa retificação. BACHELARD, 2004. 48 RUSSELL, Bertrand. História da filosofia ocidental. Vol. I. 1969. 49 Atistóteles, livro I da metafísica. Editora Abril, coleção Os pensadores. 50 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi, São Paulo, Martins Fontes, 2000. também em PLATÃO. A República. Tradução Enrico Corvisieri, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, 1987. formulação de Claudia Bavagnoli, USP/SP. 51 Filme Blade Runner. Ridley Scott. 1982. 52 BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p. 31. 53 Idem. p.45-46. 54 Idem. p.278.

Pedagogia, epistemologia e cinema 55 56

57 58

BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. p.313. JUNIOR, José Trivelato. Um obstáculo à aprendizagem de conceitos em Biologia. In: NARDI, Roberto. Questões atuais no ensino de ciência. São Paulo: Escrituras, 1998. p.77

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p15.

Sobre o problema do conceito de Entendimento, apêndice 2. 59 JUNIOR, José Trivelato. Um obstáculo à aprendizagem de conceitos em Biologia. In: NARDI, Roberto. Questões atuais no ensino de ciência. São Paulo: Escrituras, 1998. p.77.

104

Mesmo assim, Estavam todos contentes Por se verem livres Do perigo que haviam corrido O caso da borboleta Atíria

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