A importancia de uma reflexao ontologica sobre o passado para a escrita da Historia introducao provisoria

Share Embed


Descrição do Produto

A importância de uma reflexão ontológica sobre o passado para a escrita da História* A relação entre a ciência histórica é por demais evidente e, talvez, por isso mesmo, permaneceu, ao longo da prática da disciplina, irrefletida. Com o que podemos chamar de "crise do historicismo", o memory boom e a necessidade de tratamento de passados traumáticos, a posição dos historiador com a sociedade e com o passado alterou-se sobremaneira, bem como as reivindicações que se faz sobre a disciplina. Dentre essas transformações, a reflexão sobre o tempo consta entre as das mais significativas e valorosas. A contribuição que pretendo dar, com esse trabalho, é fazer um mapeamento, ainda que bastante simples e didático, sobre como a questão da temporalidade foi ignorada pelos historiadores e como refletir sobre como o historiador e a sua ciência estão, já de saída, imersos em uma temporalidade essencial, desde sempre, ainda que de forma inconsciente – isso num primeiro momento para, em seguida, fazer uma refçexão sobre o estatuto ontológico do passado. A pretensão da segunda parte será responder a questões como: o passado ainda existe no presente ou seria uma completa ausência? Estaria ele disponível para tornar-se matéria de uma ciência? Se o passado, de fato, existe, seria ele imutável ou passível de ser transformado? Qual a relação entre a representação historiadora e esse passado – qual o seu sentido? A primeira parte do texto serivrá para demonstrar como nós, historiadores, permanecemos ignorantes em relação à reflexões sobre a natureza do tempo, muito embora a questão seja tratada com sofisticação em disciplinas da Psicologia mas, especialmente, na Filosofia. Ainda falta um tratamento propriamente histórico daquilo que é a razão de ser da nossa própria ciência. Em um segundo momento, bebendo na Filosofia, apoiado, especialmente, nas fenomenologias de Heidegger e David Carr, lançarei as bases para se pensar o passado como um certo tipo de presença. A terceira parte e final se baseará em estudos recentes de Ankersmit, refletindo sobre a ontologia daquilo que o historiador representa e interpreta. A premissa deste trabalho é demonstrar que as duas fases – representação e interpretação –, apesar de dependentes e indissociáveis, são inteiramente dsitintas e trabalham o passado de forma distinta; assim, se eu obtiver sucesso em demonstrar como o passado atua como presença, permitindo, portanto, que seja representável, argumentarei que a tarefa do historiador não se limita apenas em recolocar o passado, mas também de explicá-lo e interpretá-lo. Apesar de tangível e presente, o passado é não é suficientemente claro e necessita ser *

Rascunho da introdução de um artigo ampliado

trabalhado para se tornar inteligível – e esta é a tarefa do historiador. Ao cumpri-la, o passado, matéria original do trabalho do historiador, é alterado, torna-se compreensível, ganha novos significados e transforma-se em outra coisa. Por fim, lançada as bases da premissa e uma vez ela explicitada, pergunto como o trauma, enquanto uma instância temporal diferenciada, desafia a representação histórica e dá-se à interpretação – seria possível interpretá-lo, transformá-lo? Pode-se entender esse peça, também, como um manifesto por uma virada ontológica, mais do que necessária, a meu ver, nos estudos teóricos sobre História, que muitas vezes se concentra em aspectos epistemológicos, estéticos e éticos. I É lugar comum e incontestável, entre os historiadores – e até mesmo para o vulgo –, que sua disciplina trata do tempo. Na expressão consagrada pelo idolatrado March Bloch: ""Ciência dos homens", dissemos. É ainda vago demais. É preciso acrescentar: "dos homens no tempo" (BLOCH, 2002: 55), talvez, o que maior polêmica tenha ensejado é descrever nosso ofício como científico. E enquanto polêmicas muitas estéreis ainda se levantam em torno desse aspecto, pouco ou quase nada tem se dito sobre o caráter temporal da nossa disciplina – este, acredito, potencialmente muito mais frutífero para estabelecer novos e importantes debates. Ainda que a afirmação esteja de acordo entre as partes, e que, em nossa disciplina e afazeres diário o tempo se faça presente de forma evidente, só muito recentemente a relação entre Tempo e História passou a ser questionada, permanecendo por longo tempo enquanto categoria inquestionável. A pergunta pela natureza do tempo permaneceu velada e protegida pelo senso comum, este garantido pela imediaticidade com a qual tratávamos dele, não apenas profissionalmente, mas cotidianamente. O "ser do tempo" permaneceu inquestionado por acharmos que, se a pergunta não fosse ridícula, para além de desnecessária, a resposta seria evidente. Assim, apesar de imprescindível e essencial para o pensamento histórico, o tempo permaneceu como matéria invisível, da mesma maneira como o oxigênio do ar que respiramos, irrefletidamente, quando cuidamos da nossa vida e nos preocupamos com as tarefas diárias – e, de resto, todas como todas as coisas que nos são vitais. Sim, a História estuda os homens no tempo, e isso é tão mais verdadeiro quando, em meados do século XVIII começa a dissolver-se o velho topos ciceroniano da historia

magistra vitae (KOSELLECK, 2006) e emerge, no homem ocidental, o que Gadamer chama de consciência histórica: O aparecimento de uma tomada de consciência histórica constitui provavelmente a mais importante revolução pela qual passamos desde o início da época moderna. O seu alcance espiritual provavelmente ultrapassa aquele que reconhecemos nas aplicações das ciências da natureza, que tão visivelmente transformaram a face de nosso planeta. A consciência histórica que caracteriza o homem contemporâneo é um privilégio, tavez mesmo um fardo q eu jamais se impôs a nenhuma geração anterior. A consciência que hoje temos da história difere fundamentalmente do modo pelo qual anteriormente o passado se apresentava a um povo ou a uma época. Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo o presente e da relatividade de toda opinião (GADAMER, 1998: 17)

Nestes termos expostos, a consciência histórica seria a certeza de que o homem, as sociedades e as nações são constituídas historicamente; que o horizonte histórico no qual nos situamos é composto por um passado que se difere desse presente ao mesmo tempo em que lhe determina os atributos; e que, a frente desse tempo, há um futuro que será diferente. Portanto, a forma como nos organizamos, agirmos, pensando, todas as nossas convicções, são assombradas por um relativismo que nos impede de chegar a verdades que independam do tempo, posto que a história é um fluxo temporal em que tudo está em permanente mudança, sendo o que era ontem já não vale mais, assim como o que vale hoje é passível se demonstrar equivocado num futuro próximo – e cada vez mais próximo, chegando cada vez com mais velocidade, tornando o presente e suas convicções meros pontos de transição. O princípio último do historicismo é que a história é processo e evolução. A revolução, a que se refere Gadamer, que significou a tomada de consciência histórica pelo homem significa a emergência do historicismo como a weltanschauung do homem moderno. Karl Mannheim, em seu ensaio sobre o Historicismo, define-o com brilhantismo: Historicism is therefore neither a mere fad nor a fashion; it is not even na intelelectual current, but the very basis on wich we construct our observations of the socio-cultural reality. It is not something artificially contrieved, something like a programme, but a organic developed basic pattern, the Weltanschauung itself, wich came into being after the religiously determined medieval picture of the world had desintegrated and when the subsequent Enlightenment, with its dominant idea of a supra-temporal Reason, had destroyed itself (MANNHEIM, 1952: 84-85)

Sendo uma weltanschauung, o historicismo faz parte do desenvolvimento cultural do Ocidente, não se reduzindo a uma sistema filosófico artificial, nem a simples princípio epistemológico ordenador do mundo; o historicismo é uma ontologia do mundo e das coisas, na qual a identidade do ser é dada pela sua história sempre em

desenvolvimento e mutante, diferente de uma ontologia concebida no interior Aufklärung, especialmente na filosofia kantiana. Nesse sentido, não podemos separar as consequências dessa ontologia que tem em sua base a temporalização do homem e do mundo tanto na Filosofia da História quanto na metodologia da História. O comportamento do historiador e seu desprezo em relação à reflexão sobre o papel do tempo em seus afazeres derivam, igualmente, das duas práticas. "Historicism (...) is the view that the nature of a thing lies in its history" (ANKERSMIT, 2012: pos. 81), nenhum conhecimento adequado pode ser formulado sem levar em consideração sua origem e desenvolvimento, e o ser de um fenômeno é a sua própria história. Para Ankesrmit, "no historian can avoid subscribing to historicism", pois, de outra maneira, não haveria sentido em fazer incursões ao passado para compreender qualquer fenômeno – bastaria, para um conhecimento adequado, observá-lo no presente. Para entender, em linhas gerais, o impacto do historicismo na percepção do historiador do tempo como matéria natural de seu ofício, é interessante notar que a influência se dá em forma, talvez, de um paradoxo. Apesar do que afirma Ankersmit, com o que estou de pleno acordo, também não creio ser possível discordar de Mannheim quando este observa, outra vez, que ohistoricismo não é uma criação teórica, mas sim uma revolução cultural na forma do homem perceber o mundo e as coisas. Ou seja, mesmo o passado humano sendo objeto de reflexão há bastante tempo e o gênero de escrita histórica existir autonomamente pelo menos desde Heródoto, não é a historiografia a responsável por essa mudança de percepção; pelo contrário, a forma como ela existe e é praticada altera-se profundamente desde o advento do historicismo e da emergência da consciência histórica moderna: "We have historicism only when history itself is written from the historicist Weltanschauung" (MANNHEIM, 1952: 85). Mas qual o por que deste paradoxo? Pois o historicismo instaura uma espécie específica de relação com o tempo, pautada pela noção de progresso e evolução, e tanto a Filosofia da História historicista quanto a prática historiadora se dá pelo gesto ritualístico da cisão, da separação, do recorte – entre presente/passado, eu/outros, civilização/barbárie. Michel de Certeau é preciso e bastante feliz em suas observações: A história moderna ocidental começa efetivamente com a diferenciação entre o presente e o passado (...) Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porém, repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compõe de "períodos" (por eexmplo Idade Média, História Moderna, História Contemporânea) entre os quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que havia sido até então (o Renascimento, a Revolução). Por sua vez, cada tempo "Novo" deu lugar a um discurso que considera "morto" aquilo que o precedeu, recebendo um "passado" já

marcado pelas rupturas anteriores. Logo, o corte é o postulado da interpretação (que se constrói a partir de um presente) e seu objeto (as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este corte é voluntarista. (CERTEAU, 2006: 14-16)

Esse ato constante de assinalar rupturas entre o presente e o passado é ao mesmo tempo parte da metodologia do historiador historicista e de uma Filosofia da História que ainda não criticou devidamente o estatuto do tempo dado na esteira da metafísica da presença. A metafisica da presença é o erro fundamental da ontologia clássica, identificado por Heidegger, na qual o presente goza de um privilégio ontológico em relação àquilo que já foi e ao que ainda está porvir; ela dá-se, sempre, pelo par opositivo entre presença e ausência, que se repete de múltiplas formas na esfera esfera da vida humana em nas disciplinas científicas. A metafísica da presença, portanto, desconsidera as delicadas relações entre o ser e o tempo e as formas como passado, presente e futuro dialogam entre si, entendendo-os como permanentemente separados. No tempo historicista, identificamos esse erro ontológico na noção de evolução – muito embora ela possa variar bastante entre os autores, permanece como marca dessa concepção de mundo a idéia de afastamento contínuo entre presente e passado, de uma distância temporal cada vez maior – e é do abismo que se cria entre um e outro que nasce a possibilidade de uma ciência confiável sobre o passado. Para se ter um conhecimento preciso e verdadeiro sobre o que aconteceu antes, é necessário que este passado esteja morto, seja um outro, seja incapaz de nos comunicar com por sua própria voz, sendo necessário um especialista falar em seu lugar. Nos termos de Certeau, é preciso que este corpo (o passado) se cale para que ele possa falar através da voz do historiador. A escrita da História, numa concepção historicista do tempo, seria a um só tempo marcado pela arrogância e hipocrisia, na qual para o presente em seu esforço para se reconhecer no passado, para forjar sua identidade, ele escolhe aquilo que lhe convém, os elementos que são de sua preferência, e esse reconhecimento dá-se-ia no intuito de manifestar a inconteste superioridade do presente sobre o passado – mais uma vez deixando transparecer o espírito do progresso, patente das Filosofias da História historicistas, que argumentam em favor do crescimento do espírito, das formas culturais. Koselleck apontava a relação entre a concepção de tempo historicista e a metodologia da História, conforme a citação que, em breve se seguirá, atesta; a distância temporal e a objetividade, no historicismo, funcionariam como na metáfora de Louis Mink sobre o historicismo – de um ponto privilegiado, vendo o rio, ao longe, como que se fluísse tanto para a nascente quanto para a foz, já não mais em sua torrente agressiva que nos

leva, a cada vez, para um ponto diferente, quando nele navegamos. Segue-se a citação prometida: "Temporal differentiation and concomitant claims about the 'otherness' of the past allowed historiography to present itself as na autonomous discipline that required methods of its own. Although the idea of the absence of the past has often been presented (usually by empiricists) as a challenge to the epistemological credentials of historiography, historians were able to use the idea of na ever-increasing temporal 'distance' to their advantage. They did so by presenting distance as an indispensable condition for attaining 'impartiality' and 'objectivity'. (LORENZ; BEVERNAGE, 2013: 14)

A cronosofia historicista, porém, não deve ser tomada como algo natural e inegável, pois ela mesma é apenas uma forma cultural de se interpretar o tempo. Outras culturas e o próprio Ocidente têm outros "regimes de historicidade" que não este, portanto, mantend uma relação diversa com o tempo; a própria argumentação que desenvolvi anteriormente, a respeito da emergência do historicismo e a temporalização do mundo, exige como contraparte que antes dessa revolução cultural, mesmo no Ocidente a maneira de se lidar com a temporalidiade fosse outra que não pautada pela evolução e orientada para o futuro. Em um primeiro momento é necessário demolir a concepção de tempo, não apenas historicista, mas toda ela que se vincule à nefasta metafísica da presença – afinal, ela remonta à ontologia grega, que não comungava de nosso tempo historicizado. Para isso devemos nos servir dos avanços que tais reflexões alcançaram na Filosofia, Antropologia, Sociologia e Psicologia – romper o alheamento. Em um segundo momento, devemos internalizá-la, fazê-la no interior do nosso próprio lar, torná-la não apenas um visitante, mas um coabitante de nossas casas; a omissão do questionamento da natureza do tempo no interior da Teoria da História torna-se admissível quando entendemos que "cultures and societies have fixed, and still fix, the boundaries between past, present and future in quiet different ways" (LORENZ; BEVERNAGE, 2013: 9). E sendo patente que nossa disciplina é desafiada pelas necessidades de nosso presente, para dar conta de atender as demandas sociais, é preciso reformar conceptualmente a disciplina. A "distância temporal", fortaleza segura do objetivismo cientificista, tem cada vez menos sentido quando falamos de experiências pós-traumáticas, de políticas de reconciliação com o passado, quando os discursos da memória e dos testemunhos coexistem com o trabalho do historiador. A noção de de distância e imparcialidade é desafiada pela figura do historiador-engajado que, através do seu ofício, procura intervir na realidade histórica. Nas palavras de John Torpey, "the distance that normally separetes us from the past has been strongly challenged in favour of na insistence that the past is constantly, urgently present as part of our everyday

experience" (LORENZ; BEVERNAGE, 2013: 16). A própria noção de experência traumática é incompatível com uma temporalidade que separa radical e rigidamente o presente do passado e do futuro, pois, nas palavras de Cathy Caruth: "trauma is not located in (..) original event in a individual's past, but in the way that its very unassimilated nature", ele é experimentado "too soon, too unexpectedly, to be fullt known and is therefore not avaiable to consciousness until imposes itself again, repeatedly..." (CARUTH, 1996: 4).

Referência bibliográfica

ANKERSMIT, F. R. Meaning, truth, and reference in historical representation [Versão Kindle]. Ithaca: Cornell University Press, 2012. BLOCH, Marc. Apologia da História. Jorge Zahar Editor, 2002. CARUTH, Cathy. Unclaimed experience trauma, narrative, and history [Versão Kindle]. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. GADAMER, Hans-George. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Campinas e Petrópolis: Unicamp e Vozes, 2012. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contrinuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2006. LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber. Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013. MALERBA, Jurandir (org). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contextoed. 2006. MANNHEIM, Karl. Historicism. In: (org.). Essays on the Sociology of Knowlodge. London: Routledge & Kegan Paul, 1952.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.