A importancia do conceito de grupo vulneravel aplicada ao direito das mulheres

June 5, 2017 | Autor: T. Marini de Souza | Categoria: Jurisprudence, Feminist Theory, International Law, Human Rights, Feminism, Inter-American Human Rights System
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THAÍS MARIA RIBEIRO MARINI DE SOUZA Nº USP: 7633242

A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE GRUPO VULNERÁVEL PARA A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES: UMA ANÁLISE À LUZ DO CASO GONZÁLEZ E OUTRAS ("CAMPO ALGODONERO") VS. MÉXICO

Tese de Láurea apresentada ao Curso de Direito da Universidade de São Paulo, como requisito para obtenção do título de bacharela em Direito. Orientador: André de Carvalho Ramos

São Paulo 2015

"- Tenho saudades de minha casa, lá na Itália. - Também eu gostava de ter um lugarzinho meu, onde pudesse chegar e me aconchegar. - Não tem, Ana? - Não tenho? Não temos, todas nós, as mulheres. - Como não? - Vocês, homens, vêm para casa. Nós somos a casa" O último voo do Flamingo, Mia Couto.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelas grandes e pequenas demonstrações diárias de Sua presença; A Valéria, minha mãe, pelo amor, carinho, paciência e devoção incondicionais; A João Batista, meu pai, pelos ensinamentos e debates acadêmicos intermináveis; A Fernando, que eu adoro cada vez mais; A Eunice e Geraldo, meus avós, meus primeiros professores, e a todos os meus professores e professoras, pelo ato de amor que é ensinar; A Laura e Ana Luiza, pela presença desde sempre e para sempre; A Beatriz Bonach, pela inspiração; Aos amigos Larissa Lino, Luana, Patrícia e Willian, por andarem ao meu lado nesses cinco anos – e nunca desistirem de mim; A Dra. Janice Ascari, Flavio, Rodrigo, Renata, Fabiane, Nathalia e Adriana, pelo melhor ambiente de trabalho que eu poderia ter pedido – e por me aceitarem como sou; A Mariana, pelas conversas intermináveis sobre feminismo, autoconhecimento, amores, pelos chás e pela paciência com as minhas lágrimas nos momentos de cansaço; Ao meu orientador, prof. André, e a Helisane, Daniela, Camila e Rafael, pelo apoio, direcionamento, orientação e ensinamentos; A todos, família, amigos e colegas, que de alguma forma tornaram-me o que sou hoje.

ÍNDICE DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Art.

Artigo

CADH

Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica

CBDP

Convenção de Belém do Pará

CIDH

Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CLADEM CtIDH

Comitê Latino Americano Para a Defesa dos Direitos das Mulheres Corte Interamericana de Direitos Humanos

ONU

Organização das Nações Unidas

OEA

Organização dos Estados Americanos

Par. SIDH

Parágrafo Sistema Interamericano de Direitos Humanos

SUMÁRIO I) ELEMENTOS PROCESSUAIS 1.1 O Sistema Bifásico da Convenção Americana: contexto histórico e surgimento 1.2 Função contenciosa 1.2.1. O procedimento perante a Comissão 1.2.2. O procedimento perante a Corte 1.3. Medidas de Urgência II) ELEMENTOS TEÓRICOS 2.1. Alguns comentários sobre demanda estrutural 2.2. Reconhecimento dos direitos de gênero no sistema regional de proteção dos direitos humanos 2.3. Teorias Feministas 2.3.1. Antecedentes Históricos 2.3.2. A Primeira Onda 2.3.3. A Segunda Onda 2.3.4. A Terceira Onda 2.4. Gênero III) O CASO 3.1. A situação econômico-cultural de Ciudad Juarez e as relações familiares 3.2. As mortes das jovens González, Herrera e Ramos 3.3. A legitimidade da Corte IDH para avaliar violações relativas à Convenção de Belém do Pará 3.4. Sentença da CtIDH 3.5. Cumprimento de sentença IV) O CONCEITO 4.1. Responsabilidade estatal por atos de terceiro particular 4.2. Violência em razão de gênero e feminicídio 4.3. Grupo Vulnerável 4.3.1. Importância da definição de "Grupo Vulnerável" para os direitos de gênero V) DISPOSIÇÕES FINAIS

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I) ELEMENTOS PROCESSUAIS Os mecanismos internacionais de monitoramento dos tratados de direitos humanos têm evoluído consideravelmente em muitos sentidos - dos pontos de vista institucional, normativo, procedimental, teórico - ao ponto de verificar-se atualmente a existência de um verdadeiro Processo Internacional de Direitos Humanos, enquanto disciplina jurídica dotada de complexidade própria. Assim, já não é possível a nenhum estudo de Direito Internacional dos Direitos Humanos ignorar ou passar ao largo dos elementos processuais da matéria. Em especial no presente capítulo, este estudo procura se debruçar sobre de que modo os elementos processuais têm um papel a desempenhar na compreensão e dimensionamento dos direitos essenciais em geral e, particularmente, no segmento dos direitos de gênero.

1.1 O Sistema Bifásico da Convenção Americana: contexto histórico e surgimento

O primeiro documento de que se tem notícia nas Américas tratando do tema dos Direitos Humanos surge no Congresso do Panamá, realizado em 1826 com o escopo de estudar a criação de uma Confederação Latino-Americana de Estados. Até o advento da Segunda Guerra Mundial, várias resoluções sobre o tema foram sendo produzidas nessas conferências, culminando na aprovação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, em 19481. A mesma conferência que gerou a Declaração Americana também fez nascer a Organização dos Estados Americanos, diferentemente do que ocorreu no Sistema Universal de Direitos Humanos, no qual a ONU foi criada antes da Declaração Universal ser redigida2. O objetivo inicial a ser alcançado com a aprovação destes dois textos era muito semelhante ao das Nações Unidas, ou seja, a manutenção e garantia da paz em âmbito internacional. A Carta da OEA trazia dispositivos relacionados a direitos humanos já em seu preâmbulo e em alguns artigos, porém suas disposições eram genéricas e somente contemplavam os direitos civis e políticos, sem fazer menção aos direitos econômicos, sociais e culturais3. 1

WEIS, Carlos. Direitos Humanos Contemporâneos. 3ª Ed. rev. e aum. São Paulo, Malheiros, 2014. idem, pp. 144 3 CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos.1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2014. pp. 247-249 2

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É preciso ressaltar a existência de uma certa tradição constitucional no continente latino-americano no sentido de que as colônias, no processo de independência, adotaram constituições marcadas pela garantia de direitos. Tal fato, aliado ao ideário liberal de matriz iluminista dos líderes regionais, contribuiu para que aqui fosse gestada a primeira declaração internacional de direitos humanos, considerada o marco inicial do sistema. Os Estados, diante da força do princípio da não-intervenção na época, da contundência da soberania estatal, optaram por não assumir obrigações vinculantes. Conforme Bicudo4, O continente americano nos dá o segundo exemplo de regionalização dos Direitos Humanos, no âmbito da OEA e da cooperação interamericana, ao instituir um mecanismo de proteção sofisticado, fortemente inspirado no modelo europeu. A qualidade do discurso de proclamação contrasta – deve-se afirmar – singularmente, com a situação real dos Direitos Humanos na América Central ou na América do Sul.

Entretanto, atualmente a Declaração é tida como interpretação autêntica da expressão “Direitos Humanos” contida na Carta da OEA, adquirindo força normativa5. A partir de então, a promoção e a proteção dos direitos humanos nas Américas desenvolveram-se gradualmente, sendo o primeiro passo a criação de um órgão que fosse especializado nestas matérias e que pudesse analisar violações de direitos humanos dentro dos Estados-partes e emitir recomendações a estes. O continente carecia de discussões de problemas sócio-políticos. Porém, no contexto da revolução cubana, observou-se a necessidade da criação de um mecanismo que investigasse a alegada violação maciça de direitos na ilha, em um processo que culminou em 1959 com a criação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão recebeu, durante os anos iniciais, muitas denúncias e petições individuais, mas não pôde processá-las até que adquiriu expressa competência para tanto em 1965. A CIDH era inicialmente órgão provisório da OEA, até a adoção do Protocolo de Buenos Aires em 1967, responsável por sua inclusão formal na Carta da OEA como órgão principal da Organização dos Estados Americanos. Tal protocolo continha já a previsão de que os Estados deveriam formular um tratado de direitos humanos de âmbito regional. Este projeto foi concretizado por meio de uma conferência especializada em 1969, época na qual a América Latina vivia sob o domínio de inúmeras ditaduras, que daria origem ao Pacto de San José da Costa Rica.

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BICUDO, Helio. Defesa dos Direitos Humanos: Sistemas Regionais. Estudos Avançados 17 (47), 2003 Opinião Consultiva sobre a interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (OC/01), 1989, § 45. 5

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A partir da aprovação do Pacto, a Comissão passou a ter papel dúplice: ao mesmo tempo, era órgão principal da OEA, guardião dos direitos constantes da Carta da OEA e da Declaração Americana e também órgão da Convenção Americana de Direitos Humanos, com a responsabilidade de analisar petições individuais e propor ação de responsabilidade internacional de um Estado perante a Corte. A CADH é uma convenção enxuta, com apenas 82 artigos, divididos em três partes - categorias de direitos e deveres; mecanismos de apuração de violação de direitos humanos; e disposições gerais e transitórias.6 Foi aprovada em assembleia em 1969, porém entrou em vigor somente em 1978, quando atingiu o número mínimo de 11 ratificações7. Falar em Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos é referir-se aos mecanismos de apuração de violações de direitos humanos previstos na segunda parte da Convenção. Portanto, é no próprio texto da Convenção que se encontra o ponto de partida para a análise dos elementos processuais neste capítulo. O primeiro ponto a se destacar a respeito dos elementos processuais no Sistema Interamericano é que se trata de procedimento bifásico, ou seja, de um procedimento dividido em duas etapas distintas. Isso porque há uma primeira etapa - dita prévia ou obrigatória perante a Comissão e uma segunda etapa perante a Corte. É essa a estrutura geral do mecanismo previsto na Convenção para apreciação tanto das petições individuais quanto das demandas interestatais para apuração de violações cometidas pelos Estados - único sujeito passivo permitido.8 O SIDH é um verdadeiro mecanismo de responsabilização internacional do Estado por violação de direitos humanos, cujo procedimento este capítulo se propõe a descrever brevemente. Mais adiante, este estudo se volta à análise de que modo, por meio de suas decisões, a CtIDH amplia o conteúdo dos direitos protegidos no rol internacional, fruto da interpretação internacionalista, e afasta a realidade da Corte dos objetivos inicialmente estabelecidos para ela na CADH, ampliando o alcance de direitos já protegidos por esta e criando novos direitos, por meio de interpretações analógicas e equitativas. Por ora, cabe a explicitação do caminho percorrido por uma demanda que segue no Sistema Interamericano. 6

CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2012. pp.201-204. 7 Art. 74.2 da CADH. 8 CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2012. pp. 204-240.

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1.2. Função Contenciosa

1.2.1. O Procedimento perante a Comissão

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é órgão autônomo da OEA, cuja função primordial é promover a observância, a defesa e a promoção dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da OEA sobre a matéria. Além disso, possui as atribuições constantes no artigo 41 da CADH9. A Comissão tem, portanto, função dúplice, atuando tanto no âmbito da OEA, quanto no SIDH. De qualquer modo, em nenhum dos dois sistemas possui função jurisdicional. Quando um indivíduo sofre uma violação de direitos humanos, ele próprio ou qualquer pessoa10 pode noticiar o fato à Comissão por meio de uma petição individual. É muito comum que a petição individual seja elaborada por uma ONG de atuação local ou regional, por conta dos altos custos da proposição de uma demanda perante o sistema. A petição para a CIDH também pode ser feita por um Estado em desfavor de outro - demanda interestatal -, mecanismo que, embora previsto, ainda não foi utilizado na prática. As petições são analisadas com base nos requisitos de admissibilidade da Comissão11, a saber: esgotamento dos recursos internos, ausência de decurso do prazo de seis meses para representação, ausência de litispendência internacional e de coisa julgada internacional. Para preencher o requisito do esgotamento dos recursos internos, o peticionante deve demonstrar ter buscado recursos aptos a solucionar a suposta violação utilizando-se dos mecanismos administrativos e/ou judiciais do Estado, de forma a resguardar o caráter 9

Artigo 41 - A Comissão tem a função principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e, no exercício do seu mandato, tem as seguintes funções e atribuições: a. estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b. formular recomendações aos governos dos Estados membros, quando o considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c. preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d. solicitar aos governos dos Estados membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos; e. atender às consultas que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, lhe formularem os Estados membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que eles lhe solicitarem; f. atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos artigos 44 a 51 desta Convenção; g. apresentar um relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. 10 Art. 44 da CADH e art. 23 do Regulamento da Comissão 11 art. 46 da CADH e arts. 28, 31 e 32 do Regulamento da Comissão

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subsidiário da jurisdição internacional. A Comissão, contudo, tem relativizado este conceito nas seguintes situações, explicitadas por Carvalho Ramos12: (I) não existir o devido processo legal para a proteção do direito violado; (II) não se houver permitido à vítima o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; (III) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos. A jurisprudência da Corte também traz três relativizações do requisito, a saber: (I) o recurso disponível for inidôneo; (II) o recurso for inútil; (III) inexistência de defensores ou barreiras no acesso à justiça. Para preencher o segundo requisito, a apresentação da demanda antes do decurso do prazo, a petição individual deve ser encaminhada em até seis meses após a decisão final (trânsito em julgado). Ou seja, o prazo decadencial está intimamente ligado ao requisito do esgotamento dos recursos internos. Além disso, a prova do decurso do prazo é de responsabilidade do Estado e deve ser abordada em sua defesa13. O terceiro e quarto requisitos, por sua vez, visam proteger a segurança jurídica e a coerência entre as decisões, evitando a prolação de decisões contemporâneas e conflitantes sobre o mesmo caso. Uma vez preenchidos os requisitos, passa-se à fase conciliatória ou da solução amistosa14. Nesta fase, a Comissão insta as partes a buscarem um acordo. Obtido o acordo, é elaborado relatório contendo os fatos e termos alcançados, o qual é remetido ao peticionário, aos Estados e ao Secretário-Geral da OEA. A Comissão tem o poder, a partir do novo Regulamento de 2009, de adotar medidas cautelares para prevenir danos irreparáveis ou perecimento de direito, ou solicitar medidas provisórias à Corte. Ambas as figuras serão melhor explicadas no ponto 1.3 deste mesmo capítulo. A não obtenção de acordo apto a dirimir a questão de forma satisfatória resulta na elaboração do chamado Primeiro Informe ou Informe Preliminar15, emitido pela Comissão. Este Primeiro Informe é sigiloso e contém recomendações para o Estado de forma a promover a cessação imediata da violação. Caso o Estado não cumpra as recomendações da Comissão no prazo de 03 (três) meses, esta poderá levar o caso à Corte, desde que o Estado tenha reconhecido a jurisdição obrigatória da Corte e a Comissão entenda que tal medida é 12

CARVALHO RAMOS, André. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 210. 13 CIDH, Caso Neira Alegría e outros, Exceções Preliminares, sentença de 11.12.1991, Série C, nº13, §30. 14 Artigo 48.1 - A Comissão, ao receber uma petição ou comunicação na qual se alegue violação de qualquer dos direitos consagrados nesta Convenção, procederá da seguinte maneira: (...) f. pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos humanos reconhecidos nesta Convenção. 15 Art. 50 da CADH

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cabível ao caso. Para os Estados que não aceitaram a jurisdição da Corte, a Comissão é o único órgão de controle. O reconhecimento da jurisdição obrigatória está previsto no artigo 62 da CADH, que dispõe: 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada ao Secretário Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma a outros Estados-membros da Organização e ao Secretário da Corte”. 3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso, relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, que lhe seja submetido, desde que os Estados-partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como preveem os incisos anteriores, seja por convenção especial.

A Convenção traz a possibilidade de a Comissão fazer inspeção in loco para averiguar a veracidade das denúncias, conforme art. 39 do Regulamento. Ante a situação de o Estado não ter reconhecido a jurisdição obrigatória da Corte nos termos do artigo 62, ou tenha reconhecido a jurisdição com limitação temporal que não abarque a violação em análise, a Comissão emite o chamado Segundo Informe. Este Segundo Informe, por sua vez, é público e elaborado somente na ausência de procedimento perante a Corte, contendo recomendações ao Estado, com prazo para realização das medidas.

1.2.2. O Procedimento perante a Corte

A Corte Interamericana é instituição judicial autônoma da Convenção Americana de Direitos Humanos, desvinculada da OEA. Possui tanto função contenciosa quanto consultiva. Como já visto no ponto anterior, o procedimento contencioso perante a CtIDH se inicia com o envio do Primeiro Informe. Tal documento deve ser extremamente detalhado, trazendo qualificação completa das vítimas e seus representantes, exposição de motivos da Comissão para apresentar a demanda, cópia de todas as provas recebidas, indicação de quais delas já foram submetidas a contraditório e indicação de peritos16.

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CARVALHO RAMOS, André. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2012, pp.227-228.

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A partir deste ponto, por força das reformas no Regulamento em 2009, a vítima assume papel protagonista da demanda contra o Estado-réu, enquanto a Comissão atua no papel de fiscal (custos legis). A demanda passa, na sequência, pela análise dos requisitos de admissibilidade da Corte, seguindo as fases postulatória, de exceções preliminares, probatória e disposições finais. Na fase postulatória, a vítima apresenta suas alegações por meio de “escrito de petições, argumentos e provas”, nos termos fixados pela Comissão no Primeiro Informe. Após, o Estado apresenta sua contestação, na qual pode reconhecer sua responsabilidade internacional ou impugnar tanto as alegações do Primeiro Informe quanto a petição da vítima, indicar provas e opor exceções preliminares, que são impedimentos à atividade da Corte no caso. Finda esta fase, a Corte pode se pronunciar a respeito das exceções preliminares e, caso estas sejam acolhidas, arquivar o caso - ou dar seguimento e analisá-las em uma única decisão, junto ao mérito da demanda. A fase probatória é essencialmente oral e determina-se a realização de audiências para tomada de depoimento das vítimas, testemunhas e peritos. Por força do novo artigo 51.11 do Regulamento, há a possibilidade de inquirição por videoconferência. A Corte pode admitir uma nova prova em audiência, desde que demonstrada a impossibilidade de sua apresentação em momento oportuno anterior ou caso a prova se refira a fato ocorrido posteriormente, e também solicitar a produção de provas não requeridas pelas partes, mas que sejam pertinentes ao esclarecimento dos fatos. É permitido pela Corte a figura do amicus curiae, terceiro que não faz parte de nenhum dos polos da demanda, mas que a integra com o objetivo de oferecer perspectiva diversa ao órgão julgador, trazendo novos argumentos ou algum tipo de conhecimento especializado, de forma a auxiliar na tomada da decisão mais adequada à demanda. A petição do amicus curiae pode ser apresentada a qualquer momento, desde que respeitado o prazo de até 15 (quinze) dias após a realização da audiência, ou de igual prazo após a intimação das partes para apresentação de alegações finais. A Corte pode, neste contexto, tomar as chamadas medidas provisionales ou medidas de natureza cautelar17, de forma a cessar uma violação de direitos humanos

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Art. 63 da CADH.

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rapidamente e evitar a consolidação de dano irreparável às vítimas. Estas medidas serão melhor explicitadas no item 1.1.3 deste trabalho. Por fim, a decisão da Corte na ação de responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos deve se debruçar sobre as exceções preliminares - caso ainda não o tenha feito -, mérito, reparações e custas processuais e pode ser de procedência ou improcedência. Estas reparações podem abarcar prestações pecuniárias a título de indenização, além de condutas de reparação e garantias de não-repetição, abrangendo obrigações positivas e negativas. É importante ressaltar que o ponto mais importante da decisão da Corte são as obrigações de fazer e não fazer, haja vista serem o pilar da proteção dos direitos humanos. As decisões exaradas pela Corte são vinculantes e a Comissão acompanha seu cumprimento por parte dos Estados por meio de relatórios e audiências. 1.3. Medidas de Urgência

Medida de urgência é o gênero dos institutos previstos no Sistema Interamericano cujas espécies são as medidas cautelares e as medidas provisórias. As medidas cautelares são adotadas pela Comissão e estão previstas no artigo 25 do Regulamento. Podem ser requeridas para prevenir danos irreparáveis às pessoas ou ao objeto do processo relativo a uma petição ou caso pendente, ou ainda para prevenir danos irreparáveis a qualquer indivíduo sob jurisdição da Comissão, independente de petição. Tais medidas também podem ser coletivas, de forma a proteger um grupo determinado ou determinável. A avaliação da Comissão deve passar pelo binômio necessidade/urgência e potencial lesivo em questão ao decidir sobre as medidas. Além do binômio, a Comissão também deve ter em conta três requisitos. O primeiro deles é se a situação de risco foi denunciada perante as autoridades competentes ou os motivos pelos quais isto não pôde ser feito. O segundo, por sua vez, é a identificação individual dos potenciais beneficiários das medidas cautelares ou a determinação do grupo ao qual pertencem. O terceiro, por fim, requer a explícita concordância dos potenciais beneficiários quando o pedido for apresentado à Comissão por terceiros, exceto em situações nas quais a ausência do consentimento esteja justificada. Além disso, a decisão sobre as medidas cautelares deve ser precedida de prazo para manifestação do Estado, a não ser nos casos de violações muito flagrantes, que

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imponham respostas urgentes, justificando a adoção das medidas de imediato, sem manifestação prévia. Deverá haver monitoramento apto a demonstrar a pertinência na manutenção das medidas cautelares outorgadas. A Comissão poderá requerer às partes interessadas informações relevantes sobre qualquer assunto relativo à outorga, cumprimento e vigência das medidas cautelares. A qualquer tempo, o Estado poderá apresentar um pedido devidamente fundamentado para que a Comissão faça cessar os efeitos do pedido de adoção de medidas cautelares. A Comissão solicitará observações aos beneficiários ou aos seus representantes antes de decidir sobre o pedido. Por fim, a outorga destas medidas e sua adoção pelo Estado não constitui préjulgamento sobre a violação dos direitos protegidos pela Convenção Americana e outros instrumentos aplicáveis. Importante ressaltar que as medidas cautelares não possuem grande força vinculativa, pois estão previstas apenas no Regulamento da Comissão. A prática deixa transparecer que muitos Estados não cumprem com tais determinações, tornando-as um mecanismo de pouca efetividade dentro do sistema. Por sua vez, as medidas provisórias estão previstas no artigo 63.2 da CADH, que dispõe: Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes. Se se tratar de assuntos que ainda não estiverem submetidos ao seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Comissão.

Percebe-se, assim, serem as medidas provisórias instituto coercitivo, dotado de maior efetividade em comparação com as medidas cautelares, posto que dispostas em documento vinculante, ratificado pelos Estados. A CtIDH pode impor as medidas que considerar pertinentes a requerimento da Comissão, na hipótese em que o caso ainda não tenha sido levado à Corte, ou ex officio ou a requerimento das vítimas ou representantes, na hipótese de demanda já sob sua análise. Ao Estado, incumbe a tarefa de cumprir o disposto pela Corte nas medidas provisórias e apresentar relatório periódico de seu cumprimento. Tanto as medidas propostas quanto o relatório de cumprimento elaborado pelos Estados são juntados ao relatório anual que a Corte envia à Assembleia da OEA.

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Caso as medidas estejam sendo descumpridas, ou não estejam sendo cumpridas de maneira satisfatória, a Corte formula em seu relatório as medidas que entender pertinentes para forçar seu cumprimento.

II) ELEMENTOS TEÓRICOS 2.1. Alguns comentários sobre demanda estrutural

Demanda estrutural ou demanda paradigmática, do ponto de vista do julgador, litígio estratégico ou litígio de impacto do ponto de vista do litigante. Todos esses termos são utilizados para definir uma demanda cujo centro não é a satisfação de um interesse individual, mas sim a busca de uma mudança social. Assim, o objetivo de uma demanda estrutural é gerar um precedente, atrair visibilidade para a questão, gerando pressão internacional, provocar uma mudança de comportamento, orientar políticas públicas, influenciar mudanças legislativas. A prática do litígio estratégico está presente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos desde seu surgimento. Nas palavras de Evorah Cardoso18, O sistema interamericano teve um papel fundamental na denúncia de violação de direitos humanos nos regimes autoritários na América Latina. Especialmente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CmIDH), que produzia e divulgava relatórios sobre a situação de direitos humanos nos países da região. Ante a ausência de mecanismos domésticos de pressão, as ONGs e ativistas domésticos conseguiam desencadear internacionalmente uma coalizão de atores para exercício de pressão sobre seus governos. A mobilização era pontual, em torno de determinados casos/questões e o objetivo era a denúncia/publicização e ao fim a mudança da política doméstica.

Pode-se afirmar que, na época, a Comissão Interamericana foi um importante local de denúncia e informação das violações cometidas dentro dos países submetidos a regimes anti-democráticos, cujas questões eram levadas por organizações civis. Com a redemocratização dos Estados integrantes do sistema, o perfil dessas organizações civis muda radicalmente. Emerge a chamada advocacia policy oriented, uma maneira de litigar visando o avanço jurídico em determinado tema. Tais entidades são organizadas de acordo com uma agenda temática e abordam questões de interesse público, intimamente ligado ao direito dos grupos marginalizados discriminação racial, meio ambiente, direitos indígenas, direito das mulheres, liberdade de 18 CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Ciclo de Vida do Litígio Estratégico No Sistema Interamericano De Direitos Humanos: Dificuldades E Oportunidades Para Atores Não Estatais. Revista Electrónica del Instituto de Investigaciones "Ambrosio L. Gioja". Ano V, Número Especial, 2011.

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expressão, etc. Na medida em que a maioria esmagadora destas entidades sofre com o problema da escassez de recursos - os custos de uma demanda proposta na CtIDH envolvem não só as custas processuais, mas também a juntada e envio de documentos, a pesquisa, o transporte e estadia de testemunhas e advogados até a sede da Comissão em Washington, posteriormente até a sede da Corte, em San José da Costa Rica -, é feito um raciocínio de custo-benefício da demanda e de recorte temático. Por isso, a (boa) escolha do caso é sempre algo primordial para o sucesso de uma demanda estrutural. As entidades de advocacia policy oriented, portanto, costumam ter um trabalho preliminar de escolha do caso, optando por aqueles que gerem o máximo de impacto dentro dos objetivos traçados pela entidade e beneficie uma coletividade ampla. Importante ressaltar que a decisão judicial favorável não é o fim último do litígio estratégico, conforme explicita Evorah Cardoso19: por conta de seu fim último, a transformação e o impacto social, o litígio estratégico, apesar de se dar em cortes, tem como endereçados não apenas os órgãos judiciais, mas também os tomadores de decisão (decision makers), os formuladores de políticas públicas (policy makers) e a sociedade em geral. Por essa razão, o litígio estratégico não se limita ao trâmite do caso no judiciário. Ele combina uma série de técnicas legais, políticas e sociais desde o início do caso (ou mesmo antes de configurar-se em um caso, quando ainda é apenas um problema) até o seu término, que não é dado pela decisão judicial “favorável”, mas pela sua real implementação.

Mesmo uma decisão judicial desfavorável, num primeiro, momento, pode trazer resultados positivos para o direito pleiteado. Por meio da divulgação do caso, pode-se gerar a chamada power of shaming ou mobilization de la honte, que é a pressão internacional sobre a questão, fazendo com que se promova a discussão no âmbito interno e aquele direito entre na pauta das políticas públicas. Da mesma forma, a CIDH utiliza o critério da demanda estrutural na análise dos casos recebidos, enviando à Corte IDH apenas aqueles que possam gerar o maior impacto possível para os países do Sistema Interamericano. Importante ressaltar que as decisões da Corte são vinculantes a todos os países signatários da CADH e que aceitaram a jurisdição obrigatória da Corte, e não apenas para o Estado condenado pela sentença20.

2.2. Reconhecimento dos direitos de gênero no sistema regional de proteção dos Direitos Humanos

19 CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Litigio estratégico e sistema interamericano de direitos humanos. Coleção Fórum Direitos Humanos. vol. 4. Belo Horizonte, Fórum, 2012, p. 56. 20 CtIDH. Caso Almonacid Arellano vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 26.09.2006. § 124.

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A temática da proteção dos direitos de gênero na América Latina é anterior à adoção da CBDP (1994). A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotada em 1979, resultado da reivindicação de movimentos feministas a partir da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no ano de 1975, no México. Embora tenha sido ratificada pelo número impressionante de 186 Estados, é a Convenção que mais reservas recebeu por parte de seus signatários, em especial com relação à igualdade entre homens e mulheres no âmbito familiar. Essa informação reforça a ideia de que a implementação dos direitos de gênero está condicionada à abolição da dicotomia entre os espaços público e privado, isto é, à superação do velho paradigma que confina a mulher ao âmbito doméstico. Esta Convenção deu origem a um Comitê de monitoramento dos direitos de gênero (CEDAW), órgão permanente das Nações Unidas. Por meio de recomendações gerais, o Comitê acompanha a situação das mulheres tanto no espaço público como no privado, fornecendo estratégias para a promoção da igualdade material entre os gêneros. Anos mais tarde, no âmbito da Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), foi editada a Declaração de Viena, que traz explicitamente em seu programa de ação: 18.Os Direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena e igual das mulheres na vida política, civil, econômica, social e cultural, a nível nacional, regional e internacional, e a irradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional. A violência com base no gênero da pessoa e todas as formas de assédio e exploração sexual, incluindo as resultantes de preconceitos culturais e tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Tal pode ser alcançado através de medidas de caráter legal e da ação nacional e da cooperação internacional em áreas tais como o desenvolvimento socioeconômico, a educação, a maternidade e os cuidados de saúde, e assistência social. Os Direitos humanos das mulheres deverão constituir parte integrante das atividades das Nações Unidas no domínio dos direitos humanos, incluindo a promoção de todos os instrumentos de Direitos humanos relacionados com as mulheres. A Conferência Mundial sobre Direitos humanos insta os Governos, as instituições e as organizações intergovernamentais e não governamentais a intensificarem os seus esforços com vista à proteção e ao fomento dos Direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino.

Influenciada pelas ações da organização global, foi editada em âmbito regional a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ou Convenção de Belém do Pará, em 1993. Esta será objeto de estudo mais minucioso no ponto 3.3.1. Por ora, faz-se necessário explicitar em que contexto se inicia o movimento de luta pelos direitos de gênero e, mais importante ainda, como se constrói o conceito de gênero.

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Neste ponto, a presente pesquisa teve o cuidado de basear-se apenas em obras escritas por mulheres, pois "[...]antes de tentar dar a resposta à pergunta "O que é uma mulher?", deve-se deixálas falar para que nos digam quem são ou quem eram. E isso não só porque às mulheres foram impostos o silêncio e a exclusão, mas também porque a construção do gênero é ao mesmo tempo resultado de um processo de representação e de autorrepresentação"21.

2.3. Teorias Feministas

A expressão feminismo começou a ser utilizada em 1911, nos Estados Unidos, embora a temática dos direitos das mulheres fosse uma constante desde o século XIX. Até aquele momento, os estudiosos utilizavam expressões como "movimento das mulheres" ou "movimento pelos problemas das mulheres". Atualmente, feminismo é uma expressão marginalizada, que não é vista com bons olhos pela Academia, cujos estudiosos preferem utilizar expressões como "perspectiva de gênero" ou "enfoque de gênero". O feminismo não é orgânico. Afirma Garcia que "segundo a época e a realidade de cada país existiram e coexistiram muitos tipos de feminismo com um nexo comum: lutar pelo reconhecimento de direitos e oportunidades para as mulheres e, com isso, pela igualdade de todos os seres humanos"22. Assim, o feminismo seria ao mesmo tempo filosofia política e movimento social, sendo definido como "a tomada de consciência das mulheres como coletivo humano, da opressão, dominação e exploração de que foram e são objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases históricas". O movimento adota a cor lilás em homenagem às 129 mulheres mortas durante uma greve em 08 de março de 1857 na cidade de Nova York. Diz a história de que essa era a cor da fumaça que saía da chaminé da tecelagem enquanto esta pegava fogo com as operárias dentro. A data ficou marcada como o dia internacional da luta pelos direitos das mulheres e é reconhecida pela ONU desde 1977. A teoria feminista se utiliza de quatro conceitos-chave, quais sejam, androcentrismo, patriarcado, sexismo e gênero, como instrumentos de análise da realidade. A partir desta análise, busca-se conhecer as causas da exclusão e da desigualdade, propondo soluções para os casos concretos.

21 GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. Coleção Saber de Tudo. São Paulo, Claridade, 2011, p. 22. 22 idem, p. 12.

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Androcentrismo é a visão de mundo dentro de uma perspectiva masculina. A perspectiva utilizada gera distorções e lacunas dentro daquilo que é pesquisado ou explicado, o que é amplamente visto nos meios de comunicação atuais. Patriarcado, por sua vez, é definido como um sistema político, que surge “da tomada de poder histórico por parte dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodução das mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma ordem simbólica por meio dos mitos e da religião que o perpetuam como única estrutura possível”23. A percepção de que o patriarcado abrange todas as esferas de convivência – as relações familiares, sexuais, laborais – é primordial para entender o fenômeno da violência de gênero. Sexismo é a aplicação prática do patriarcado, ou seja, a ideologia que defende a subordinação das mulheres e o conjunto de técnicas utilizadas para perpetuar essa relação hierarquizada. O conceito de gênero, mais complexo, será tratado no final deste capítulo.

2.3.1. Antecedentes Históricos Até o Renascimento, acreditava-se que a mulher era cognitiva e intelectualmente inferior. Comumente as mulheres eram retratadas como causadoras de discórdia, faladoras, fúteis e outros adjetivos inferiorizantes. Pouquíssimas tinham acesso à educação e somente podiam sair de casa para ir à Igreja, e desde que acompanhadas por uma mulher mais velha. A produção com enfoque de gênero, portanto, era escassa. Porém, considerada a primeira escritora profissional, ainda na Idade Média, Christine de Pizan publica seu livro “A Cidade das Mulheres” (1405), utopia que reivindica às mulheres o primeiro direito do qual derivam todos os outros, o do reconhecimento da condição de sujeito. O Renascimento traz um novo paradigma sobre o humano, mas este é androcêntrico. Todo o incentivo ao humanismo, à ciência e ao conhecimento não se estende às mulheres. Tal situação desencadeia um movimento que ficou conhecido como querelle des femmes, ou “movimento das filhas dos homens cultos”, considerado a célula-mater do feminismo. A querelle possuía três características principais: a oposição dialética à misoginia; o embasamento desta oposição na ideia contemporânea de gênero; a possibilidade de universalizar a questão e transcender os valores de seu tempo, apresentando uma autêntica concepção geral de humanidade. 23

REGUANT, Dolores. La mujer no existe. Bilbao, Maite Canal, 1996, p.20. In: Victoria Sau. Diccionario Ideologico Feminista, vol. III. Barcelona, Icaria, 2001.

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Com a Reforma Protestante, surge a possibilidade de questionamento da autoridade, exercida pelo Rei e/ou por Deus. Inúmeras correntes, então, propuseram-se a buscar uma nova autoridade para substituir aquelas vistas como ultrapassadas. A corrente protestante unitarista, que pregava a liberdade de cada ser humano para buscar a sua própria verdade e crescimento espiritual sem a necessidade de uma religião específica, abriu as portas para a existência de mulheres pregadoras e admitiu inclusive que o Espírito Santo poderia expressar-se por meio delas, levando-as a se libertar do poder do marido ou induzi-las ao celibato. Porém, paradoxalmente, o Protestantismo acabou por sufocar as lutas por igualdade e emancipação, substituindo a figura de poder do Rei e/ou de Deus pela figura do patriarca, pastor e pai. O Antigo Regime, considerado a época de ouro das artes e das humanidades, tinha sua estrutura social toda organizada ao redor das mulheres. Os salões franceses eram espaços públicos organizados por mulheres ricas, solteiras e independentes, que tinham um caráter profundamente intelectual de mercado de ideias. O salão mais conhecido era o da Marquesa de Rambouillet, cujas reuniões contribuíram para modificar ainda que parcialmente a atitude masculina da época. Na segunda metade do século, um grupo de literatas francesas ficaram conhecidas como preciosas. Segundo Badinter24, consideradas as primeiras feministas - mulheres da aristocracia e alta burguesia, solteiras, independentes economicamente -, defendiam a igualdade entre os sexos, o direito ao amor e ao prazer sexual, o acesso à mesma educação intelectual dada aos homens. Questionando a instituição casamento e os papéis de esposa e mãe como destino da mulher, elas inverteram os valores sociais da época. Apesar de seus opositores, elas conseguiram algumas mudanças.

As preciosas revitalizaram a língua francesa e impuseram novos estilos amorosos. Graças a elas, a polêmica feminista deixa de ser uma discussão privada entre teólogos e moralistas e passa a ser um tema de opinião pública. Por sua influência nos salões e seu interesse pelas artes e pelas palavras, o movimento inspirou a edição do Dicionário da Academia Francesa. Porém, por basear-se somente na estrutura social da Corte, o preciosismo é o que se convenciona chamar de protofeminismo, pois não era capaz de entender a opressão como um fenômeno ao mesmo tempo global e particular conforme as segmentações sociais.

2.3.2. A Primeira Onda

A Primeira Onda do feminismo teve origem na Revolução Francesa. Influenciadas pelos ideais de igualdade, reivindicavam o direito das mulheres à educação, ao trabalho, o fim 24

BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p.12.

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dos casamentos arranjados e o direito ao voto. Também reivindicavam que a prostituição fosse abolida, bem como a proibição aos maus-tratos e os abusos dentro do casamento25. Para estas mulheres, a radicalização dos ideais se fazia necessária, na medida em que não parecia plausível que os homens lutassem para extinguir os privilégios dos nobres e tornar a todos iguais perante a lei, mas manter as mulheres sem direitos civis e políticos. Os nomes mais importantes da Primeira Onda são Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft. Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze, era uma mulher do povo que vivia em Paris escrevendo roteiros para o teatro. É responsável pela redação da declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã26 (1791), a qual dedicou à rainha Maria Antonieta. Nela, afirmava que a mulher nascia livre e igual ao homem, possuindo os mesmos direitos à liberdade, propriedade e resistência à opressão, além do direito de participar da formação das leis tanto diretamente quanto elegendo representantes. Ou seja: Se poderia responder que estando demonstrado, e com razão, que um nobre não pode representar um nobre, do mesmo modo, um homem não poderia, com maior equidade, representar uma mulher, posto que os representantes devem ter absolutamente os mesmos interesses que os representados: as mulheres não poderiam, pois, estar representadas senão por mulheres.27

Mary Wollstonecraft era inglesa. Não recebeu educação formal e aprendeu a ler apenas aos catorze anos, sendo autodidata. É autora dos livros Reflexões Sobre a Educação de Filhas (1786) e A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1790), sua obra mais importante. Influenciada pelos ideais protestantes de um grupo radical anglicano chamado Dissidentes Racionais, defende o igualitarismo entre homens e mulheres, a independência econômica e a participação política direta e indireta e o direito à educação formal, a qual acreditava ser o instrumento do progresso da sociedade como um todo. Além disso, em seu conto “Maria”, ilustra os perigos do casamento para as mulheres. A militância de Wollstonecraft trouxe três contribuições importantes. A primeira, o reconhecimento de que o poder exercido pelos homens sobre as mulheres não é natural, advindo de um mandamento da natureza, e sim considerado um privilégio histórico-social. A segunda são as raízes da ideia moderna de gênero, ou seja, de que aquilo que por muito tempo foi considerado natural, intrínseco às mulheres, nada mais é do que uma construção social, fruto da educação e da repressão. A terceira é a ideia de discriminação positiva ou ação

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Não existia, até então, a previsão do divórcio, tampouco da punição do marido que estuprasse a esposa. disponível em: http://www.philo5.com/Mes%20lectures/GougesOlympeDe-DeclarationDroitsFemme.htm 27 CUTRUFELLI, Maria Rosa. La Ciudadania. ob. cit. Olympe de Gouges, La Mujer que vivió por un sueño. Barcelona, Aribau, 2007, pp. 45. 26

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afirmativa, mecanismo pelo qual se busca compensar as desigualdades históricas entre os sujeitos, para que atinjam o patamar real de igualdade. Vários clubes de mulheres surgiram nesse período, representando espaços de resistência e de troca de experiências e ideais. Porém, a Revolução Francesa trouxe uma amarga derrota para a Primeira Onda. Os clubes foram fechados e a presença das mulheres foi explicitamente proibida pelos jacobinos em qualquer tipo de atividade política. Muitas feministas foram guilhotinadas - Olympe de Gouges, inclusive, no mesmo dia de Maria Antonieta -, enquanto a imprensa noticiava suas condenações por "infringirem as leis da natureza, abdicando de seu destino de esposas e mães, querendo ser "homens de Estado"". A derrota final veio com a aprovação do Código Napoleão, que dividia os indivíduos em duas categorias, os capazes – homens maiores de 25 anos com propriedades – e os incapazes – homens menores de 25 ou sem propriedades e todas as mulheres. 2.3.3. A Segunda Onda

O movimento feminista aparece, aqui, como um movimento social de âmbito internacional, com identidade autônoma e caráter organizativo. O tom do período era o igualitarismo entre os sexos e a emancipação jurídica e econômica da mulher, tanto no movimento burguês-capitalista quanto no socialista - embora esse último se preocupasse mais com a igualdade social e econômica do que com os direitos civis e políticos. De qualquer modo, as principais reivindicações do período eram a liberdade de pensamento, de associação, pela abolição da escravatura, da prostituição e pela paz. A Segunda Onda tem início no Século XIX, mais acentuadamente nos Estados Unidos, com o movimento sufragista. Os EUA, por conta da tradição protestante – sobretudo das correntes unitaristas e dos quackers, que estimulavam a paridade entre homens e mulheres dentro da religião – ostentava uma das menores taxas de analfabetismo feminino do globo. Tal situação foi fundamental para a tomada de consciência e organização das mulheres em favor de seus direitos. As sufragistas compunham-se majoritariamente de mulheres de classe média, formalmente educadas, primeiramente organizadas sob a pauta abolicionista. Ao lutar contra a escravidão, adquiriram experiência na luta civil, na oratória, e a consciência de sua própria

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condição. O movimento foi iniciado em 1848 com a Declaração de Seneca Falls, de Elizabeth Stanton. Sobre a Declaração, afirma Garcia28: A Declaração questionava as restrições políticas: não poder votar, nem ser candidata, não poder ocupar cargos políticos ou assistir a reuniões políticas. Também se colocavam contra as restrições econômicas: a proibição de ter propriedades, uma vez que os bens eram transferidos ao marido; a proibição de dedicarem-se ao comércio, ou terem seu negócio próprio ou abrirem contas correntes em bancos. Em resumo: a Declaração se colocava - e de maneira muito direta - contra a negação dos direitos civis e jurídicos às mulheres.

A aprovação da 14ª Emenda à Constituição Americana garantiu aos negros libertos o direito ao voto, mas negou-o expressamente às mulheres. Sem apoio do movimento abolicionista, o qual ajudou a organizar, as sufragistas radicalizaram sua estratégia. Muitas foram presas e mortas e seus esforços ridicularizados. Em 1868, Elizabeth Stanton fundou a Associação Nacional Pelo Sufrágio da Mulher (NWSA), que conseguiu a aprovação da emenda pelo direito ao compartilhamento de bens de Nova York. Ou seja, por meio dessa emenda, as mulheres conquistavam o direito à divisão das propriedades, ganhos e heranças do marido, além da custódia dos filhos e do direito a recurso perante um Tribunal de Justiça. O voto feminino somente foi aprovado em 1918, com a 19ª Emenda à Constituição, depois de muita articulação e união dos movimentos feministas, das moderadas às mais radicais. Foram necessários oitenta anos - e três gerações de mulheres - para a conquista do direito à participação política. As sufragistas são responsáveis por duas importantes conquistas: a primeira é a ideia de solidariedade, em oposição à fraternidade, que significa “irmão homem”. A segunda, mais importante, os métodos atuais de luta cívica. Por conta de sua atuação “de dentro para fora” e de vocação pacífica, o movimento criou várias formas de protesto, tais como as marchas, a interrupção de oradores mediante perguntas sistemáticas e a greve de fome, que posteriormente foram utilizadas por movimentos sindicalistas e outros movimentos em prol dos direitos civis. Na medida em que o feminismo se consolida como movimento permanente, internacional e organizado, há a cisão em inúmeras correntes. Na Segunda Onda, pode-se citar o surgimento das correntes interseccional, socialista utópica, marxista e anarquista. O feminismo interseccional surge em meados do século XIX buscando abarcar os recortes de raça e de classe (e atualmente de orientação sexual) em intersecção com o recorte de gênero. É o que se convenciona chamar opressão qualificada. O principal nome dessa época era o de Soujourner Truth, a primeira mulher negra a assistir à Primeira Convenção 28

GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. 3ª Ed. São Paulo, Claridade, 2015. pp. 55.

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Nacional dos Direitos das Mulheres em 1850. Em seu discurso na Convenção de Akron, um ano depois, demonstra que a suposta debilidade natural das mulheres ou suas incapacidades para alguns trabalhos ou responsabilidades eram absurdas ou convenientes29: Creio que com esta união dos negros do sul e das mulheres do norte, todos falando de direitos, os homens brancos estariam com grandes problemas bem rapidamente. Este homem diz que as mulheres necessitam de ajuda dos homens para subirem nas carruagens, cruzar as ruas, e que devem ter o melhor lugar em todas as partes. Mas a mim ninguém me ajuda a subir em carruagens, nem me deixam o melhor lugar. Por acaso ou não sou uma mulher? Olhem-me! Olhem meus braços! Eu arei e plantei e colhi e nenhum homem era melhor do que eu! E por acaso eu não sou uma mulher?

O socialismo utópico foi a primeira corrente de pensamento a abordar a temática de gênero, na medida em que seu objetivo era abordar e expor todas as mazelas que envolviam a classe trabalhadora. Esta corrente tem como base a fragmentação da sociedade em pequenas comunidades sob o regime de autogestão e, segundo seu maior teórico, a situação das mulheres na sociedade era o indicador-chave do nível de progresso desta. Dentre as feministas filiadas a esta corrente pode-se citar Anne Wheeler, Frances Whight, Frances Morrison e Flora Tristán. Esta última, bisavó do grande pintor Paul Gaugin, era filha de um espanhol e uma francesa, casou-se muito cedo e durante 20 anos sofreu todo tipo de maus-tratos por parte do marido. Após ser baleada por ele, consegue a anulação do matrimônio, enquanto que o ex-marido foi condenado a 20 anos de trabalhos forçados. Após o divórcio, dedica-se à carreira de escritora, viajando por países como o Peru e a Inglaterra. Sua obra mais importante é União Operária (1843), na qual expõe a situação dos operários dentro do sistema capitalista e, mais especificamente, a situação da mulher operária, sustentando que “todas as desgraças do mundo provêm do esquecimento e do desprezo que até hoje se teve sobre os direitos naturais e imprescritíveis do ser mulher”30. O socialismo utópico abre as portas para o surgimento do marxismo. Para Marx, a opressão da mulher é econômica e não social. Engels, utilizando-se de conceitos publicados por Flora Tristán31, defende que a sujeição da mulher não se funda em causas biológicas, mas sim sociais, ou seja, o remédio para a igualdade se encontra na inserção das mulheres no processo produtivo, com sua consequente independência econômica. Os marxistas acreditavam que o importante era a revolução do proletariado e, superado esse obstáculo, a das mulheres seria uma consequência natural.

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SCHEINER, Miriam. Feminism, the essential historical writings. Nova York, Vintage Books, 1972, pp. 94. TRISTÁN, Flora. Unión Obrera. Cidade do México, Fontamara, 1993. pp. 39. 31 Friedrich Engels expõe e difunde a obra de Flora Tristán tanto em seu livro “A Sagrada Família” (1844) quanto em “Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (1844). 30

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Mesmo dentro do movimento, as feministas eram marginalizadas: não se sentiam perfeitamente contempladas dentro do socialismo, mas também não se alinhavam às reivindicações burguesas das sufragistas, pelo direito ao voto, liberdade no casamento e educação. Dentro desta corrente, o nome mais importante com certeza é o de Alexandra Kollontai. Bolchevique, feminista radical, defendia o amor livre, salários iguais para homens e mulheres, a legalização do aborto e a socialização do trabalho doméstico e do cuidado com as crianças. O anarquismo não se posicionava tanto quanto o marxismo em relação às mulheres. Entretanto, por defender a liberdade irrestrita, propiciou o surgimento das chamadas “mulheres livres”, que se rebelavam contra a hierarquização e a autoridade – o que ia de encontro ao movimento sufragista – e também contra a regulação por parte do Estado da procriação, da educação e do cuidado com as crianças – contrário ao ideal comunista. Aqui, o nome que se sobressai é o de Emma Goldman. Operária, fugiu da Rússia para os Estados Unidos para escapar de um casamento arranjado e foi presa, por ser mulher e anarquista, mais vezes do que se pode documentar. Defendia que a Revolução deveria vir por iniciativa das próprias mulheres, em busca de liberdade em relação aos preconceitos e às tradições, centrando sua análise na questão sexual. Ficou conhecida por ter explicado pela primeira vez como utilizar um contraceptivo na frente de 600 pessoas em Nova York, no ano de 1915. 2.3.4. A Terceira Onda

Após a Segunda Guerra Mundial, dizia-se que o feminismo havia acabado. Na maioria dos países desenvolvidos e nas ex-colônias o movimento sufragista havia vencido e o voto feminino já era uma realidade. Além disso, muitas mulheres, especialmente nos Estados Unidos, ganharam o mercado de trabalho para suprir a falta dos homens que lutavam na guerra. A Terceira Onda do feminismo se inicia nesse contexto, com Simone de Beauvoir e seu mundialmente famoso livro “O Segundo Sexo” (1949). A própria autora admite que se “converteu” ao feminismo somente após publicar seu livro e vê-lo lido e aclamado por feministas no mundo todo, após ser traduzido em mais de 16 idiomas. Segundo ela mesma, “nunca havia tido sentimentos de inferioridade, a feminilidade nunca havia sido um peso para mim”. O livro, escrito em dois volumes, é o estudo mais completo sobre a condição feminina escrito até aquele momento.

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O primeiro volume é mais conceitual e se propõe a explicitar as razões históricas da inferioridade da mulher. A resposta é o conceito de heterodesignação. Desde os primórdios da humanidade, trata-se aquilo que é diferente como “o outro”, numa relação recíproca de alteridade. No caso das relações de gênero, o homem é o centro, a medida e a autoridade. E as mulheres não se reconhecem senão na medida da projeção que eles fazem de seus desejos. Ou seja, a mulher é tratada como “a outra”, mas em nenhum momento o homem é tratado como “o outro” e sim como a regra, o parâmetro. O segundo volume, que inicia com a célebre frase “não se nasce mulher; tornase”, conclui que não há nada de biológico ou natural que explique a subordinação feminina, lançando as bases da teoria do gênero contemporânea. A temática do segundo volume é a separação entre natureza e cultura, já iniciada por Wollstonecraft, aprofundando a ideia de que gênero é uma construção social. Em 1963, Betty Friedan publica seu livro “A mística feminina”, cujo escopo era analisar a profunda insatisfação das mulheres norte-americanas do período e o aumento considerável dos casos de depressão, alcoolismo e transtornos de ansiedade. Dizia-se que o problema das mulheres “não tinha nome”, cabendo às teóricas da Terceira Onda a tarefa de identificá-lo e nomeá-lo. O livro centrava suas pesquisas nas mulheres norte-americanas de classe média, sem teorizar sobre o patriarcado. Essas mulheres ganharam o mercado de trabalho no período das Grandes Guerras e mantiveram o país funcionando enquanto seus maridos e filhos lutavam nos exércitos. Porém, com o término dos combates, foram novamente empurradas para o ambiente doméstico e forçadas ao consumismo e ao estereótipo da dona de casa e mãe de família. Escrito em linguagem clara e simples e centrado nas questões cotidianas, o livro conduziu a um processo de conscientização, que acabou culminando na corrente liberal. O feminismo liberal não trata de opressão ou de exploração, mas de desigualdade, e postula a reforma do sistema até que se atinja a igualdade entre os sexos. Defende a entrada da mulher na esfera pública e a realização de reformas relacionadas a sua inclusão no mercado de trabalho. Esta corrente perdeu força nas décadas de 60 e 70, no auge do feminismo radical, mas voltou a crescer nos anos 80. O feminismo radical surge com o desmoronamento do “sonho americano”. A sociedade que em teoria é igualitária, na prática é racista, classista, imperialista e patriarcal e favorece a formação da chamada Nova Esquerda e dos movimentos de contracultura. Dentre as teóricas radicais, pode-se citar Kate Millet e Shulamith Firestone.

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Embora seja bastante heterogênea, esta corrente desenvolveu conceitos fundamentais como o de patriarcado, gênero e “casta sexual”. Para as radicais, não bastava ter acesso ao espaço público, também era necessário transformar o espaço privado. Consideravam que todos os homens recebiam benefícios econômicos, sexuais e psicológicos do sistema patriarcal, colocando ênfase na questão psicológica. Além de revolucionar a teoria política e feminista, com seu slogan “o pessoal é político”, as radicais fizeram três grandes contribuições: os grandes protestos públicos; o desenvolvimento de grupos de autoconsciência; a criação de centros alternativos de ajuda e de autoajuda. Os protestos públicos sobre autonomia do corpo, direitos sexuais e reprodutivos, tiveram um grande impacto na opinião pública, convertendo em político o que era relacionado à subordinação. Eram mobilizações aparentemente espontâneas, mas meticulosamente calculadas, simbólicas e subversivas. Os grupos de autoconsciência buscavam fazer com que as mulheres se expressassem a respeito da opressão sofrida, retomando o controle de suas vidas. Os centros de ajuda e autoajuda ofereciam creches, abrigos para mulheres espancadas e centros de defesa pessoal. O declínio do feminismo radical se deu por sua própria falta de auto-organização: na ânsia de não hierarquizar as mulheres dentro do movimento, muitas líderes acabaram malvistas e expulsas dos próprios centros que criaram, o que gerou desgastes internos. Atualmente, já não se pode mais caracterizar o feminismo como um fenômeno singular, pois se desenvolve em cada sociedade de acordo com suas características, tempos e necessidades próprias. Já não é capaz de gerar grandes mobilizações sociais, mas ganhou terreno no âmbito acadêmico e tem suas demandas discutidas tanto dentro do movimento quanto fora dele. Importante ressaltar que todas as grandes fases do movimento foram seguidas de duras reações repressivas. Atualmente, a criação da mídia da imagem da “supermulher” impõe um ideal inatingível de excelente profissional, mãe exemplar, ótima dona de casa, esposa, amiga, amante, sempre bonita, arrumada, simpática e acolhedora, como forma de desencorajar as mulheres a se aventurar no espaço público. A esse respeito, afirma Álvarez32: A última reação antifeminista não foi desencadeada porque as mulheres conseguiram a plena igualdade com os homens mas porque parecia possível que estivessem a ponto de conseguir.

32

ÁLVAREZ, Ana de Miguel. Alejandra Kollontai (1872-1953). Madrid, Edición Del Horto, Biblioteca de Mujeres, 2001, pp. 150.

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No século XXI, a violência de gênero ainda é bastante comum, bem como a diferenciação salarial ou a discriminação sexista e/ou racista nos ambientes acadêmicos e corporativos, cujos cargos mais altos ainda são ocupados por homens brancos. No Brasil, a temática da violência de gênero é uma constante dentre as feministas. Primeiramente, precisamos explicitar qual o conceito de gênero para, posteriormente, caracterizarmos o que se considera violência de gênero.

2.4. Gênero

Como já visto, o conceito de gênero surge na querelle des femmes. Porém, a utilização do conceito de gênero como base para o estudo das ciências humanas e biológicas é bem mais recente, conforme afirma Scott33: Most recently – too recently to find its way into dictionaries or the Encyclopedia of the Social Sciences – feminists have in a more literal and serious vein begun to use ‘gender’ as a way of referring to the social organization of the relationship between the sexes. The connection to grammar is both explicit and full of unexamined possibilities.34

Para os estudos de gênero, não existe uma determinação natural dos comportamentos de homens e mulheres, apesar das inúmeras regras sociais calcadas numa suposta determinação biológica diferencial dos sexos. As identidades humanas são entendidas como “não-fixas” e passíveis de resignificação constante. As pesquisas de gênero se dedicam, pois, ao estudo dos sistemas culturais, ou seja, dos contextos específicos nos quais o sistema sexo/gênero operacionaliza relações de poder. A investigação dos estereótipos de gênero se beneficiou das técnicas da história social e das perguntas formuladas pelas teóricas feministas. Nos últimos vinte e cinco anos ocorreu a convergência de várias linhas de investigação acadêmica, com o consequente entendimento mais complexo do gênero como fenômeno cultural. Vê-se, atualmente, que as fronteiras sociais estabelecidas pelos padrões de gênero sofrem variações históricas e culturais, bem como são componentes fundamentais de qualquer sistema social35.

33

SCOTT, Joan W. Gender as useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press. 1989. 34 Mais recentemente – recentemente demais para que possa encontrar seu caminho nos dicionários ou na enciclopédia das ciências sociais – as feministas começaram a utilizar a palavra “gênero” mais seriamente, no sentido mais literal, como uma maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos. A relação com a gramática é ao mesmo tempo explícita e cheia de possibilidades inexploradas (tradução livre) 35 CONWAY, Jill K.; BOURQUE, Susan C.; SCOTT, Joan W. Introduction: The concept of gender. Daedalus, p. XXI-XXX, 1987.

24

As divisões de gênero, assim como as de classe, existem para servir a uma variedade de funções políticas, econômicas e sociais. Tais divisões na maioria dos casos são mutáveis e negociáveis e não operam somente na base material de uma cultura, mas também no mundo imaginário da arte, criando um sistema de regras. Tais sistemas, não importa qual período histórico se analisa, são binários e opõem o masculino ao feminino, em geral, em termos hierárquicos. Para Scott, o gênero é um conceito complexo: é elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e também uma forma primeira de significar as relações de poder. Quanto à primeira parte, o gênero implica em quatro elementos: símbolos culturalmente disponíveis que provocam representações múltiplas e frequentemente contraditórias36; conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que tentam limitar ou conter sua possibilidade metafórica; desvinculação do ambiente privado e familiar, para incluir o mercado de trabalho, a educação e o sistema político; a formação de uma identidade subjetiva. Ou seja37, Gender, then, provides a way to decode meaning and to understand the complex connections among various forms of human interaction. When historians look for the ways in which the concept of gender legitimizes and constructs social relationships, they develop insight into the reciprocal nature of gender and society and into the particular and contextually specific ways in which politics constructs gender and gender constructs politics38

Quanto à segunda parte, Scott39 faz referência ao código de conduta nas guerras: emergent rulers have legitimized domination, strength, central authority, and ruling power as masculine (enemies, outsiders, subversives, weakness as feminine) and made that code literal in laws (forbidding women’s political participation, outlawing abortion, prohibiting wage earning by mothers, imposing female dress codes) that put women in their place40.

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“Eve and Mary as symbols of woman, for example, in the Western Christian tradition, but also, myths of light and dark, purification and pollution, innocence and corruption” 37 SCOTT, Joan W. Gender as useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press. 1989. 38 O gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana. Quando os(as) historiadores(as) procuram encontrar as maneiras como o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais, eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da sociedade e das formas particulares, situadas em contextos específicos, como a política constrói o gênero e o gênero constrói a política (tradução livre) 39 idem, ibidem. 40 os dirigentes que se afirmavam, legitimavam a dominação, a força, a autoridade central e o poder soberano identificando-os ao masculino (os inimigos, os “outsiders”, os subversivos e a fraqueza eram identificados ao feminino), e traduziram literalmente esse código em leis que colocam as mulheres no seu lugar proibindo sua participação na vida política, tornando o aborto ilegal, proibindo o trabalho assalariado das mães, impondo códigos de vestuário às mulheres (tradução livre)

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Na evolução da história, as percepções populares a respeito do temperamento masculino e do feminino sofreram mudanças substantivas, acompanhadas de um novo mapa de fronteiras sociais. Analisar estas mudanças significa explorar de forma mais ampla as relações entre homens e mulheres, bem como examinar de forma geral as atitudes culturais e as práticas políticas de cada grupo. Ou seja, analisar como as mulheres foram tratadas, o que pensavam e como se comportavam dentro das normas daquela sociedade. As normas de gênero nem sempre se expressam de forma explícita: normalmente são transmitidas de maneira implícita, através dos usos da linguagem e de outros símbolos. Assim como a especificidade de gênero na língua exerce influência sobre como se pensam ou se dizem as coisas, a frequente escolha do protagonista masculino influi na forma como se contam as histórias sobre mulheres. Para Lacan, é através da linguagem que se constrói a identidade de gênero. A relação da criança com a lei – a metáfora do falo, que representa ao mesmo tempo o poder e a punição – depende da sua diferença sexual, da sua identificação com a masculinidade ou a feminilidade. Assim, a imposição das regras de interação social é inerente e especificamente de gênero, sendo a relação feminina com o falo completamente distinta da masculina. O pensamento de Lacan influenciou uma nova escola psicanalítica, associada ao pós-estruturalismo, que sustenta que as identidades de gênero não são fixadas na primeira infância e a integridade do eu é uma ficção que deve ser constantemente reafirmada e redefinida conforme distintos contextos. Ou seja, sugere que a identidade de gênero não tem raízes biológicas, mas deve ser constantemente praticada tanto no contexto privado quanto no público. No âmbito privado ou familiar, a discussão gira em torno dos papéis do homem provedor e da mulher responsável pelo serviço doméstico e pela criação e educação das crianças, de forma integral e solitária. No âmbito público, as principais questões propostas pelos estudiosos de gênero se debruçam sobre como e por que gastos similares de energia humana têm recebido, historicamente, recompensas distintas conforme o sexo do trabalhador. Os estudos sobre gênero e trabalho costumam se concentrar em como e por que se configuram as relações entre homens e mulheres com a tecnologia e porque um mercado de trabalho binário é tão resistente a mudanças. Um investimento distinto em educação ou a existência de níveis distintos de participação no trabalho já não são vistos como motivos adequados a explicar a persistente diferença entre a remuneração recebida por mulheres e homens que possuam níveis similares de educação e de capacitação.

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O fato é que desde a Revolução Industrial as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, acumulando as funções que já exerciam e que eram consideradas exclusivamente femininas com as funções, hoje neutras, que eram entendidas como tipicamente masculinas. Enfrentando todo tipo de discriminação – no cerne das presunções de gênero nos Estados unidos está a crença de que nem a sociedade nem o empregador estão interessados nas responsabilidades que tem a trabalhadora para com seus filhos, responsabilidade entendida como somente da mulher –, as mulheres seguem buscando a igualdade, muitas vezes sem o amparo da lei. A teoria de gênero já é bastante conhecida e consolidada no campo das ciências sociais e da antropologia, mas é pouco difundida no mundo jurídico, embora o afete de forma substancial. Dentro do campo normativo, as teóricas do patriarcado são as que fizeram maior progresso, concentrando sua atenção na subordinação das mulheres e na necessidade de dominação do homem. Segundo MacKinnon41, a lei age como uma ferramenta que reforça o sistema de subordinação das mulheres em relação aos homens. O Estado, através da lei, institucionaliza o poder do homem sobre a mulher por meio da aplicação de seu ponto de vista na lei. O primeiro ato do Estado é ver a mulher do ponto de vista da dominação machista; seu próximo passo é tratá-las desta maneira. Isso explica como o ponto de vista machista torna-se referência para como a sociedade em geral aborda as questões de gênero e como esse ponto de vista vai determinar o conteúdo do que é considerado objetivo. A lei é considerada objetiva e neutra, mas na verdade reflete a visão masculina, que é predominante na sociedade. “In male supremacist societies, the male standpoint dominates civil society in the form of the objective standard – that standpoint which, because it dominates in the world, does not appear to function as a standpoint at all. […] The state incorporates these facts of social power in and as law. Two things happen: law becomes legitimate, and social dominance becomes invisible. Liberal legalism is thus a medium for making male dominance both invisible and legitimate by adopting the male point of view in law at the same time as it enforces that view on society”.42

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MACKINNON, Catharine. Toward a feminist theory of the state. Nova York, Harvard University Press, 1989, p 169. 42 “Em sociedades patriarcais, o ponto de vista masculino domina a sociedade civil na forma de standard objetivo - esse ponto de vista, na medida em que é dominante no mundo, não parece funcionar como um ponto de vista [...] O estado incorpora esses fatos de poder social como lei. Duas coisas acontecem: a lei se torna legítima, e a dominância social se torna invisível. O legalismo liberal é, então, um meio de fazer a dominância masculina ao mesmo tempo invisível e legítima, adotando o ponto de vista masculino ao mesmo tempo que reforça essa visão na sociedade.” (tradução livre)

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Para MacKinnon, a sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: o que pertence mais ao sujeito e, ao mesmo tempo, é mais alienado. A objetificação sexual é o processo primário de sujeição das mulheres ao patriarcado. Por esse motivo, os crimes sexuais não são, para ela, uma questão de desejo, mas sim uma expressão de poder. É importante ter tal conceito em mente para a análise do caso Campo Algodonero, no próximo capítulo.

III) O CASO Dada a complexidade do fenômeno endêmico de violência na região metropolitana de Ciudad Juarez, faz-se necessária uma breve explicação sobre a formação do Estado do México, de suas estruturas sociais e suas influências culturais. Em seguida, um breve resumo dos fatos, a sentença proferida pela Corte IDH e algumas considerações sobre o cumprimento desta pelo Estado Mexicano. Segundo Monárrez Fragoso43, perita indicada pela CIDH para atuar no caso, “El asesinato de mujeres, sexualidad y muerte, es un fenómeno social que requiere, más que analizar las flaquezas individuales de la condición humana, un análisis científico que permita conocer las causas culturales y estructurales que subyacen para que un grupo genericamente construido, en este caso los hombres, mate a otro grupo también genericamente definido, las mujeres. Por eso, un inventario de los asesinatos en contra de mujeres y niñas en Ciudad Juárez que no tome en cuenta la mirada de género y la política de desequilibrio entre los géneros haría ininteligible lo sucedido en esta ciudad.” (grifamos)

Desta forma, este capítulo procura explicitar alguns dos fatores que levaram à morte das jovens González, Herrera e Ramos e de tantas outras nos últimos vinte e cinco anos.

3.1. A situação econômico-cultural de Ciudad Juarez e as relações familiares

O Estado do México é uma antiga colônia da Espanha, tendo obtido sua independência em 1821. Como é comum em muitos países de tradição colonial, um dos métodos mais utilizados para aculturar a população local e adaptá-la aos costumes da metrópole era a imposição da religião do país de origem. Assim, o México é um Estado majoritariamente cristão-católico, apresentando importantes manifestações religiosas44, tais como o Día de Los Muertos e o culto à Virgem de 43

MONÁRREZ FRAGOSO, Julia Estela. La cultura del feminicidio en Ciudad Juárez, 1993-1999. México, Frontera Norte, 2000.

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Guadalupe45. Neste país a tradição religiosa é ainda mais evidente na medida em que a luta por sua independência foi iniciada pelo padre Miguel Hidalgo y Costilla em 181046. A tradição sociocultural muito ligada ao aspecto religioso, especialmente nas camadas mais pobres da população, reflete drasticamente nas relações familiares, empregatícias e especialmente nas relações sociais entre os gêneros. Em muitos estados mexicanos, o índice de mulheres alfabetizadas, com curso superior e que trabalham fora é bem inferior ao dos homens, e estas recebem salário muito menor para desempenhar o mesmo serviço47. Uma das cidades onde essa diferença é escancarada é Ciudad Juarez. Juarez é uma metrópole regional de aproximadamente dois milhões de habitantes, localizada no estado de Chihuahua, norte do México. Do outro lado da fronteira, temos a cidade de El Paso, Texas, nos Estados Unidos. De acordo com ranking divulgado em 201548, é a 27ª cidade mais violenta do mundo. Nos anos de 2008 e 2009, porém, ocupava o primeiro lugar49. Uma série de fatores é digna de nota na cidade: há uma grande desigualdade social, o que, numa cidade próxima à fronteira, favorece o crescimento do crime organizado, notadamente o tráfico de drogas, armas, tráfico e exploração de pessoas e lavagem de dinheiro, o que aumenta os níveis de insegurança e violência na região50. A base da economia da cidade advém das maquiladoras, fábricas de produtos manufaturados que recebem matéria prima importada, sem incidência de tributos, para serem montados, de forma que tenham preço competitivo em outros mercados. As maquiladoras começaram a ser abertas ao longo da fronteira entre o México e os Estados Unidos na década de 1960, de forma a tentar resolver o problema do desemprego acentuado nessa região e da expansão do tráfico de entorpecentes, armas e pessoas na fronteira.

44

HAGENE, Turid. Diversidad cultural y democracia en la Ciudad de México: el caso de un pueblo originario. Anales de Antropología, vol. 41-I, 2007 45 http://www.ellitoral.com/index.php/id_um/112179-comienzan-los-preparativos-para-la-116-fiesta-de-lavirgen-de-guadalupe - acesso em 17.04.2015 46 CABALLERO, Romeo R. Flores. La Contrarrevolución en la Independencia: los españoles en la vida política, social y económica de México, 1804-1838. México, 1969. 47 FLACSO (Org.). Mujeres latinoamericanas en cifras: México. Flacso, Mexico, 1995. 48 Pesquisa do Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal A.C. – disponível em: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/biblioteca/prensa/summary/5-prensa/198-las-50-ciudades-masviolentas-del-mundo-2014 (acesso em 31.01.2015) 49 Disponível em: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/sala-de-prensa/58-cd-juarez-por-segundo-anoconsecutivo-la-ciudad-mas-violenta-del-mundo (acesso em 31.01.2015) 50 HERNÁNDEZ, Myrna Limas. Crisis en Ciudad Juárez, Chihuahua: desórdenes y repercusiones en el desarrollo desde una perspectiva de género. Publicação do observatório de violencia social e de gênero da Universidad Autónoma de Ciudad Juárez. 2011.

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Em meados dos anos 1980 já ocupava o segundo lugar dentre as indústrias mais lucrativas do México, atrás apenas do petróleo. Nos anos 1990, as maquiladoras não mais se concentravam apenas na região de fronteira, tendo se espalhado pelo território mexicano. Nesta época, para tornar o custo dos produtos mais atrativos, as fábricas da região fronteiriça mudaram seu perfil de contratação, passando a preferir mulheres jovens, às quais suportavam uma jornada de trabalho maior por um salário inferior e são “mais pacientes e delicadas” para o serviço51. A partir do momento de entrada em vigor do TLCAN/NAFTA - Tratado de Livre Comércio da América do Norte - em janeiro de 1994, quando Barrio Terrazas assume o governo do estado, o número de maquiladoras se amplia assustadoramente na região. Estimase que haja atualmente em torno de 320 (trezentas e vinte) fábricas na região metropolitana de Juarez. Com a expansão das indústrias, há um intenso fluxo migratório de mulheres jovens e pobres de todas as regiões do país, buscando melhores condições de vida através do emprego nas maquiladoras. Porém, a situação é precária: as jornadas são extensas, muitas vezes atravessando a madrugada, e o salário é inferior à média nacional - algumas vezes descrito como “somente para cobrir o valor do ônibus”, ou ¼ do necessário para a sobrevivência. Apesar de tais condições, a inserção destas mulheres notadamente sem perspectiva dá a elas a impressão de liberdade, independência e autonomia, pois, ainda que recebam um salário muito baixo, sentem-se capazes de manter a si e à família por meio de seu trabalho. Esta mudança no perfil de contratação das fábricas, base da economia juarense, começa neste momento a gerar um desemprego crescente entre os homens da região, com mudança no paradigma estrutural das relações familiares. Ou seja, os homens, que sempre trabalharam fora para custear a casa passam a não possuir condições – lícitas, ao menos –, de prover o sustento de suas famílias. Ao mesmo tempo, as mulheres que sempre tiveram papel de cuidadoras do lar e dos filhos, ganham autonomia para trabalhar e serem as provedoras de suas casas. É evidente que essa inversão drástica nos papéis de gênero não foi recebida de forma pacífica por uma sociedade estruturada neste tipo de opressão silenciosa. É um fato notório que desestabiliza a posição do homem como provedor, dentro de um sistema social patriarcal, o que se traduz em reações violentas em cenários familiares, sociais e nas relações 51

Segundo dados do "Censo General de Población y Vivienda", em 1990, 86.691 mulheres possuíam trabalho em Juarez. Em 2000, este número sobe para 163.577.

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de trabalho, haja vista a incapacidade dos homens em digerir e aceitar a nova situação. Este sentimento de mudança que vem com a conquista de certa autonomia por parte das mulheres pode gerar uma frustração, traduzida em violência, objetivando a manutenção das relações de controle e dominância que são próprias do patriarcado. A partir do crescimento no número de mulheres trabalhadoras em Juarez, começou a ocorrer uma onda de violência que ultrapassava o âmbito familiar. Não era mais apenas violência doméstica. Muitas mulheres desapareciam e posteriormente eram encontradas violentadas, torturadas e mortas. Há um aumento significativo nos casos de homicídio contra mulheres naquele estado mexicano desde 1993, que cresceu duas vezes mais do que os homicídios praticados contra homens. Desnecessário afirmar que esta reação patriarcal não é o único fator apto a explicar o estado calamitoso de Juarez no que diz respeito à violência de gênero. Trata-se de uma combinação de fatores, a saber: a reação patriarcal, o crescimento do narcotráfico e a inércia estatal na repressão de tais crimes. A inércia estatal em investigar, apurar, processar e punir os responsáveis por homicídios de mulheres desde o início da década de 90 até atualmente é grande, mantendo uma alta taxa de impunidade principalmente em casos que possuem violência sexual. Durante os últimos quinze anos, o México se nega a admitir que as mortes de mulheres ocorridas em Ciudad Juarez, Chihuahua, possuam um padrão que possa indicar uma violação sistemática de direitos humanos. O Estado Mexicano caracteriza os eventos como "tristes" ou "graves", mas os trata como "casos isolados". É a situação na qual as mulheres foram categorizadas como sub-humanas e a violência e a exploração tornaram-se hábitos em vez de crimes.

3.2. As mortes das jovens González, Herrera e Ramos

Os homicídios de mulheres começaram a ganhar relevância a partir da década de 1990, quando organizações civis de mulheres começaram a criar registros privados destes casos. Num contexto de violência generalizada e também específica de gênero, tais assassinatos foram objeto de uma série de informes, recomendações e motivaram visitas de diversas instâncias do sistema ONU, interamericano e até europeu de direitos humanos. Um desses casos de homicídio, tortura e violência de mulheres, com posterior inércia estatal na investigação e punição dos responsáveis, é conhecido pelo nome de Caso Campo Algodonero, local onde foram encontrados 08 (oito) corpos de mulheres. O caso foi

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registrado no Sistema Interamericano como “González, Herrera y Ramos vs. México” e avalia a responsabilidade do Estado pela morte de uma mulher e duas adolescentes. As demais vítimas não haviam sido identificadas até o momento da declaração de admissibilidade da demanda por problemas na perícia realizada pelo Estado Mexicano, motivo pelo qual não foram consideradas vítimas para fins de resguardo da segurança jurídica. Claudia Ivette González tinha vinte anos e trabalhava em uma maquiladora. No dia 10 de outubro de 2001, chegou dois minutos atrasada para o trabalho e não a deixaram entrar no prédio, tendo desaparecido no caminho de volta52. Esmeralda Herrera Monreal tinha quinze anos, era migrante interna e trabalhava como empregada doméstica. Desapareceu no dia 29 de outubro de 2001, no caminho entre seu local de trabalho e sua residência. Laura Berenice Ramos Monárrez tinha dezessete anos, era estudante e trabalhava como garçonete em um restaurante. No dia 21 de setembro de 2001 simplesmente não voltou para casa53. As famílias se encaminharam às autoridades de Chihuaua logo em seguida ao desaparecimento delas, porém a polícia não se preocupou em tomar os testemunhos e nem em dar início às buscas. A mãe de Esmeralda, por exemplo, foi informada ao tentar reportar o desaparecimento que a ocorrência somente poderia ser lavrada após 72 horas, e que muito provavelmente a adolescente teria fugido com um namorado54. Os corpos das três jovens foram encontrados em um campo de algodão entre 06 e 07 de novembro de 2001, com indícios de violência sexual, tortura e ferimentos que indicavam uso excessivo da força física. A falta de plena identificação das vítimas – embora tenham sido coletadas inúmeras amostras de material genético de familiares – gerou uma situação de insegurança e incerteza muito danosa para as famílias. A questão só foi completamente aclarada com o parecer da Equipe Argentina de Antropologia Forense em 2007, convidada a atuar no caso por pressão dos familiares das vítimas, em especial suas mães. Quatro dias após a descoberta dos corpos das três vítimas indicadas acima e de mais outras cinco - que por conta da extensão das lesões e de problemas na realização das perícias não puderam ser identificadas –, o Procurador Arturo González apresentou dois

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Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe nº 16/05 Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe nº 18/05 54 Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Informe nº 17/05 53

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jovens, Víctor García e Gustavo González, como sendo responsáveis pelos oito assassinados. Porém, apurou-se posteriormente que suas confissões eram falsas e foram obtidas por meio de tortura. Um deles faleceu na prisão três meses depois. O outro chegou a ser condenado a 50 anos de reclusão, mas foi absolvido em sede recursal em 2005, por falta de lastro probatório para a condenação. Ao mesmo tempo, a Procuradoria Geral da República seguiu linha de investigação paralela, cujo escopo era determinar se os crimes possuíam ligação com o crime organizado. Após três anos de investigações, a PGR devolveu a documentação ao órgão estadual responsável, concluindo não haver ligação entre os assassinatos e o crime organizado. O fato é que, durante seis anos, o Estado Mexicano afirmou às famílias das vítimas que realizava investigações, mas até o momento não se tem certeza de quem são os responsáveis por tais assassinatos. Tampouco se investigou ou puniu os indivíduos que, no exercício da função pública, incorreram em faltas e delitos por ações e omissões no processo. Importante ressaltar também que, nos casos de desaparecimentos e assassinatos de mulheres em Juarez, ameaças e violências praticadas contra as mães e demais familiares das vítimas são uma constante. No caso Campo Algodonero, a violência foi estendida também aos advogados e defensores de Direitos Humanos ligados ao caso, que receberam ameaças diretas e diversas ações intimidadoras. Em 2002, as mães das três vítimas ingressaram com petições individuais perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio de representação da Red Ciudadana de No Violencia y Dignidad Humana (RED). No ano de 2005, mais três organizações se somaram à RED no apoio ao caso: Centro para el Desarollo Integral de la Mujer (CEDIMAC), Asociación Nacional de Abogados Democráticos (ANAD) e Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos de la Mujer (CLADEM). As demandas foram unificadas para julgamento conjunto. A demanda perante a Comissão se fundava nos seguintes dispositivos: da Convenção Americana de Direitos Humanos, foram alegadas violações aos artigos 4 (direito à vida), artigo 5 (direito à integridade pessoal), artigo 7 (direito à liberdade pessoal), artigo 8.1 (garantias judiciais), artigo 11 (direito à dignidade e à honra), artigo 19 (direito da criança e do adolescente, em relação às vítimas Herrera e Ramos) e artigo 25 (proteção judicial, em relação aos familiares das vítimas), todos em relação aos artigos 1.1 (dever de respeitar os direitos) e 2 (adequação da legislação interna às disposições internacionais); da Convenção de Belém do Pará, foram alegadas violações aos artigos 7, 8 e 9, porém a Comissão somente levou à apreciação da Corte a violação ao artigo 7 (obrigação de adotar, por todos os meios

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apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher). 3.3. A legitimidade da CtIDH para avaliar violações relativas à Convenção de Belém do Pará Segundo Piovesan55, a CBDP “é o primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer, de forma enfática, a violência contra as mulheres como um fenômeno generalizado, que alcança, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, um elevado número de mulheres”. Esta convenção compõe o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, assim como a CADH, o Protocolo de San Salvador sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Sobre Tortura, entre outras. A primeira vez que a Comissão Interamericana se debruçou sobre o âmbito de aplicação e os deveres impostos aos Estados pela CBDP foi no Caso Maria da Penha vs. Brasil. Na oportunidade, a Comissão afirmou que a aplicação da norma56 refere-se pois a situações definidas por duas condições: primeiro, que tenha havido violência contra a mulher conforme se descreve nas alíneas a e b; e segundo, que essa violência seja perpetrada ou tolerada pelo Estado. A CVM protege, entre outros, os seguintes direitos da mulher violados pela existência dessa violência: o direito a uma vida livre de violência (artigo 3), a que seja respeitada sua vida, sua integridade física, psíquica e moral e sua segurança pessoal, sua dignidade pessoal e igual proteção perante a lei e da lei; e a recurso simples e rápido perante os tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos (artigo 4,a,b,c,d,e,f,g e os conseqüentes deveres do Estado estabelecidos no artigo 7 desse instrumento.

Na linha da responsabilidade estatal por atos de terceiro particular, é importante ressaltar que a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará traz, em seu artigo 7º, um reforço ao dever de vigilância imposto aos Estados pela CADH. No Caso González y otras vs. México, o Estado Mexicano alegou incompetência da Corte IDH para analisar violações à CBDP, alegando ser necessária uma declaração expressa de outorga de competência à Corte57. Asseverou, na oportunidade, que o artigo 12 da CBDP menciona expressa e exclusivamente a Comissão como órgão encarregado de proteger

55 PIOVESAN, Flávia. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos das Mulheres.R.EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n.57 (Edição Especial), p. 70-89, jan.-mar. 2012 56 CIDH, Informe de admissibilidade nº 54/01: Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil. Parágrafo 54. 57 CtIDH, Caso González y otras vs. México (“Campo Algodonero”), fondo, reparaciones y costas. 2009. §37.

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os dispositivos da convenção, não fazendo menção expressa e, portanto, excluindo a atuação da Corte. A Corte, então, afirma primeiramente que já se pronunciou a respeito da possibilidade de exercer função contenciosa em relação a outros tratados que compõem o Sistema Interamericano além da CADH58. Em seguida, analisa literalmente o disposto no artigo 12 da CBDP: Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou qualquer entidade não-governamental juridicamente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, poderá apresentar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos petições referentes a denúncias ou queixas de violação do artigo 7 desta Convenção por um Estado Parte, devendo a Comissão considerar tais petições de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para a apresentação e consideração de petições.

O dispositivo, na opinião da Corte, não deixa dúvidas de que a Comissão Interamericana tem competência para receber as petições individuais e, então, de acordo com os artigos 44 a 51 do Pacto de San José, combinados com o artigo 44 do Regulamento da Comissão, encaminhar o caso à Corte quando há descumprimento total ou parcial do Primeiro Informe. Para não deixar dúvidas a respeito da questão, a Corte segue interpretando o dispositivo segundo a regra de interpretação do artigo 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados59. A partir de uma interpretação sistemática, a redação do artigo 12 da CBDP não aponta nenhuma proibição ao fato da Comissão aplicar o artigo 51 da CADH, submetendo a petição individual à Corte. Ao contrário, faz menção expressa às disposições que permitem a submissão do caso. É certo que o envio da demanda à Corte é um ato de vontade da Comissão, caso entenda estarem presentes todos os requisitos, mas também é certo que nenhuma norma da CADH, tampouco o artigo 12 da CBDP, trazem uma proibição ao envio caso seja esta a vontade da Comissão. Além disso, a jurisprudência da Corte se afirma no sentido da garantia da integridade institucional do Sistema Interamericano60. 58

CtIDH. Caso Las Palmeras vs. Colombia. Excepciones Preliminares. 2000. 1.Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade. (...) 3. Serão levados em consideração, juntamente com o contexto: a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo à interpretação do tratado ou à aplicação de suas disposições; b) qualquer prática seguida posteriormente na aplicação do tratado, pela qual se estabeleça o acordo das partes relativo à sua interpretação; c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicáveis às relações entre as partes. 60 Caso Acevedo Jaramillo y otros Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de febrero de 2006. Serie C No. 144, párr. 174. 59

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Da mesma forma, a partir de uma interpretação teleológica, ou seja, utilizando-se do chamado “princípio do efeito útil”, não se pode afirmar que o texto do artigo 12 exclui a competência da Corte IDH para a análise das violações. A CBDP tem como objetivo garantir a eliminação total da violência contra a mulher, refletindo uma preocupação uniforme em todo o continente sobre a gravidade do problema da violência contra a mulher, sua relação com a histórica discriminação sofrida e a necessidade de se adotar estratégias específicas para prevenir e erradicar tais situações. Assim, o sistema de petições individuais tem como escopo garantir a maior proteção judicial possível, respeitando, para tanto, o aceite da jurisdição obrigatória da Corte por parte dos Estados. Subsidiariamente, a Corte analisou os trabalhos preparatórios à elaboração da CBDP, na busca do sentido imaginado pelos Estados quando da elaboração do artigo 12. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados dispõe que o recurso aos trabalhos preparatórios somente pode ser feito de forma subsidiária aos critérios dispostos no artigo 31 e, por isso, a análise dos trabalhos preparatórios foi feita no caso apenas para refutar o argumento do Estado Mexicano de que a competência da Corte para exercer função contenciosa foi expressamente excluída com relação à CBDP. Em outubro de 1993, foi convocada uma reunião de especialistas para revisar o projeto do que viria a ser a CBDP. No texto aprovado por maioria nesta reunião, havia o seguinte dispositivo: Artículo 15. Todo Estado Parte puede, en cualquier momento y de acuerdo con las normas y los procedimientos estipulados en la Convención Americana sobre Derechos Humanos, declarar que reconoce como obligatoria de pleno derecho y sin convención especial, la competencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos sobre todos los casos relativos a la interpretación o aplicación de la presente Convención61.

Referido artigo foi votado em assembleia, recebendo 16 votos a favor, um contra e 04 abstenções, não sendo aprovado porque o quórum mínimo requerido era de 18 aprovações62. Porém, diante de tal informação, resta patente que esta era a vontade da maioria dos Estados e que o texto não foi aprovado somente por uma questão formal. Por fim, a Corte asseverou que em outros três casos já declarou sua competência para conhecer e analisar violações à CBDP. Nos casos Ríos y otros vs. Venezuela e Perozo y

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Comisión Interamericana de Mujeres, VI Asamblea Extraordinaria de Delegadas, Texto Preliminar Inicial y La Última Versión de Proyecto de Texto para la Convención Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia Contra la Mujer (Punto 1 del Temario), OEA/Ser.L/II.3.6 CIM/doc.9/94, 13.04.94, p. 16. 62 Comisión Interamericana de Mujeres, VI Asamblea Extraordinaria de Delegadas, Acta Resumida de la Segunda Sesión Plenaria, OEA/Ser.L/II.3.6 CIM/doc.24/94, rev.1, 06.06.1994.

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otros vs. Venezuela, ainda que tenha entendido não estar caracterizada a violência de gênero no caso concreto e, portanto, excluído o caso da esfera protetiva da CBDP, fez-se necessária a análise de tal Convenção por parte da Corte para se chegar ao entendimento do que é violência de gênero. No caso da Prisão Miguel Castro-Castro vs. Peru, por sua vez, no qual a Corte reconheceu violações ao artigo 7º da CBDP, não foi realizada análise exaustiva da competência da Corte para conhecer das violações visto que tratava-se de caso extremamente complexo e a questão da competência não foi levantada como ponto controvertido pelo Estado Peruano, motivo pelo qual a afirmação da competência não era ponto relevante a ser discutido no julgamento. Dessa forma, não há dúvidas sobre a possibilidade do envio de petições individuais e de sua apreciação na Corte IDH. 3.4. Sentença da Corte IDH

Importante assinalar, desde já, que a Corte considerou, desde o início do procedimento, o envolvimento dos familiares das jovens (na qualidade de vítimas), tendo definido por resolução aqueles que formalmente seriam partes na demanda. A Corte também, no momento oportuno, ensejou a participação de diversas entidades (na qualidade de amici curiae) ligada à defesa das mulheres e dos direitos humanos em geral. Também participaram do procedimento os representantes que haviam conduzido o caso à Comissão (as associações denunciantes), que se manifestaram sempre que diretamente instados pela Corte. Fixados os limites objetivos e subjetivos da causa, a Corte passa a analisar as questões trazidas na defesa do Estado Mexicano. O México arguiu um reconhecimento parcial de responsabilidade internacional, admitindo a presença de irregularidades nas investigações especificamente nas etapas iniciais, entre os anos de 2001 e 2003. A Corte levou em consideração tal reconhecimento enquanto contribuição positiva. Entretanto, deu seguimento à avaliação de todo o conjunto fáticoprobatório, isso porque, em sua defesa, o Estado tentou contradizer fatos supostamente abrangidos pelo reconhecimento parcial de responsabilidade. O México apresentou também exceção preliminar de incompetência da Corte em razão da matéria, ou seja, sustentou não ser possível a análise de violações à Convenção de Belém do Pará. Tal exceção foi rejeitada pela Corte, que reafirmou a amplitude de sua competência material, conforme explicitado no ponto anterior.

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Quanto aos requisitos formais de competência, o México é Estado-Parte na CADH e reconheceu a competência contenciosa da Corte em 1998. Além disso, ratificou a Convenção de Belém do Pará no mesmo ano. Foi colhida extensa prova testemunhal, dentre depoimentos de pessoas que tomaram contato com as investigações ou com as vítimas, membros da estrutura governamental e especialistas em violência de gênero e políticas públicas relacionadas. Os familiares das vítimas registraram suas declarações. A prova pericial foi apresentada de forma robusta e ostentou caráter interdisciplinar, envolvendo tanto aspectos de criminalística e medicina forense quanto de ciências sociais, antropologia e toxicologia. Com base em tal acervo probatório, a Corte reconheceu violações a diversos direitos previstos na CADH, em especial o direito à vida, à liberdade pessoal e à proteção judicial e também ao direito da criança e do adolescente, uma vez que duas das vítimas eram menores de 18 anos. Como foi o próprio Estado o violador desses direitos, há ainda o descumprimento do dever geral de respeitar os direitos essenciais. De especial importância o reconhecimento de violação ao artigo 7º da CBDP, que dispõe sobre o dever geral de prevenir, sancionar e adotar medidas vocacionadas a erradicar a violência contra a mulher. A Corte passou, então, a analisar o contexto em que as violações ocorreram. Trata-se de um contexto marcado pelo crescimento exponencial e anômalo de homicídios e desaparecimentos de mulheres na região metropolitana de Ciudad Juarez. Esse contexto veio a se configurar no início da década de 1990. O perfil dos crimes é similar quanto ao modo de cometimento – homicídio precedido de violência sexual – e quanto às vítimas – mulheres jovens, trabalhadoras ou estudantes –, permite qualificá-los como violência de gênero. Nesse sentido, tais crimes podem ser qualificados como feminicídio. Insiste que tais violações a direitos humanos correspondem a condutas que causaram morte, dano e sofrimento físico, sexual e psicológico de mulheres, tanto na esfera pública como na privada em Ciudad Juarez e em todo o Estado Mexicano. Trata-se de atos de violência contra as mulheres que impedem e anulam o exercício pleno de seus direitos e que, como tais, constituem grave violação de direitos humanos. Parte significativa da conduta ilícita do México nesse caso é constituída pelas irregularidades nas investigações dos crimes. Os relatos dão conta de diversas e reiteradas atitudes discriminatórias por parte das autoridades policiais, bem como a perpetuação da

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impunidade. Há casos de demora no início das investigações ou inatividade destas, negligência e irregularidades na coleta e análise de provas e na identificação das vítimas, perda de informações importantes, extravio de partes dos corpos, como ossos, que estavam sob custódia do Ministério Público, além da falta de reconhecimento da violência contra as mulheres como um fenômeno endêmico e interligado. A impunidade dos agentes estatais é tão acentuada que não se sabe ao certo quantas mulheres desapareceram em Juarez, quantas foram localizadas e quantas ainda estão pendentes de localizar: En cuanto a las desapariciones de mujeres, según informes del 2003 del CEDAW y Amnistía Internacional, las ONGs nacionales mencionan alrededor de 400, entre los años 1993 y 2003, mientras que según el Informe de la Relatora de la CIDH, para el año 2002 no se había encontrado el paradero de 257 mujeres declaradas como desaparecidas entre 1993 y 2002. Por otra parte, la Fiscalía Especial para la Atención de Delitos Relacionados con los Homicidios de Mujeres en el Municipio de Juárez (en adelante la “Fiscalía Especial”) estableció que en el período entre 1993 y 2005 hubo 4.456 reportes de mujeres desaparecidas y el 31 de diciembre de 2005 había 34 mujeres pendientes de localizar63

O que se vê é um cenário de impunidade no qual os agentes estatais são cúmplices, por não darem a devida atenção ao problema: Distintas pruebas señalaron que funcionarios del estado de Chihuahua y del municipio de Juárez minimizaban el problema y llegaron a culpar a las propias víctimas de su suerte, fuera por su forma de vestir, por el lugar en que trabajaban, por su conducta, por andar solas o por falta de cuidado de los padres64

A desigualdade estrutural afeta também as mulheres, sendo que muitas irregularidades nas investigações também foram cometidas por funcionárias do sexo feminino: “La Corte constata que, sin justificación alguna, las investigaciones estuvieron paralizadas durante casi ocho meses ante la conducta omisiva de la Titular de la Fiscalía Mixta para la Atención de Homicidios de Mujeres en Ciudad Juárez”65. A Corte entendeu que o Estado Mexicano era responsável pela violação à integridade pessoal e pela morte das três jovens na medida em que, sabendo do risco que corriam no momento de seu desaparecimento, nada fizeram para encontrá-las com vida. A atuação do Estado deve ser entendida como obrigação de meio e não de fim, o que significa o dever de atuar imediatamente das autoridades policiais, judiciais e do Ministério Público na busca exaustiva das vítimas, ordenando as medidas necessárias à localização destas. Além disso, devem existir mecanismos adequados para as denúncias, que

63 CorteIDH, Caso Gonzalez y otras vs México (“Campo Algodonero”). Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009. § 119. 64 Idem, § 154. 65 Idem, § 350.

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levem à adoção de procedimentos efetivos de investigação logo nas primeiras horas após o desaparecimento. Posteriormente, o Estado Mexicano falhou em investigar e encontrar os culpados pelo ocorrido com as três jovens e em dar o tratamento adequado a suas famílias, desrespeitando o luto e o direito à verdade e à justiça destes. O fenômeno de Juarez somente pode ser compreendido no contexto de uma desigualdade de gênero arraigada na sociedade, cujo machismo reage violentamente à inserção das mulheres no mercado de trabalho, o que gera independência econômica e a mudanças nos papeis tradicionais de provedor e de cuidadora do lar. A esse respeito, a Corte assevera que uma cultura fortemente arraigada em estereótipos, cuja pedra angular é a suposta inferioridade das mulheres, não muda da noite para o dia. Por isso, o estímulo da mudança de paradigmas por meio da educação e de cursos de capacitação em questões de gênero foi uma das obrigações impostas ao Estado. Com isso, a Corte busca evitar tanto que novos crimes ocorram, quanto que os crimes já cometidos e aqueles que podem vir a ocorrer permaneçam impunes: La estrategia de prevención debe ser integral, es decir, debe prevenir los factores de riesgo y a la vez fortalecer las instituciones para que puedan proporcionar una respuesta efectiva a los casos de violencia contra la mujer. Asimismo, los Estados deben adoptar medidas preventivas en casos específicos en los que es evidente que determinadas mujeres y niñas pueden ser víctimas de violencia. Todo esto debe tomar en cuenta que en casos de violencia contra la mujer, los Estados tienen, además de las obligaciones genéricas contenidas en la Convención Americana, una obligación reforzada a partir de la Convención Belém do Pará66.

Assim, a Corte IDH condenou o Estado Mexicano pela violação dos artigos 4.1, 5.1, 5.2, 7.1, 8.1 e 25.1, em relação aos artigos 1.1 e 2, todos da Convenção Americana de Direitos Humanos, e em relação ao artigo 7 da Convenção de Belém do Pará.

3.5. Cumprimento de sentença O Caso Campo Algodonero se encontra atualmente em fase de supervisão de cumprimento67. A sentença proferida prevê, entre uma série de obrigações, a criação de uma base de dados que contenha informação pessoal e genética de todas as mulheres e meninas desaparecidas, informação de seus familiares, bem como informação sobre todos os corpos de mulheres ou meninas não identificadas no Estado de Chihuahua, e a instituição de protocolos de ação em casos de desaparecimento de mulheres e meninas.

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Idem, § 255. Corte IDH, de 21 de mayo de 2013, Caso González y otras “Campo algodonero” Vs. México. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. 67

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Além disso, determinou-se o pagamento de indenizações, o reconhecimento público de responsabilidade por parte do Estado Mexicano, a publicação da sentença integral no Diário Oficial da Federação ou em outro meio de comunicação de grande acesso e a investigação, processo e punição dos responsáveis pelas mortes e também dos agentes públicos que cometeram irregularidades. Com relação à investigação das mortes das jovens González, Herrera e Ramos, El Estado informó en su tercer informe que “[d]entro de las acciones emprendidas para dar cumplimiento a este resolutivo, el gobierno de[l] estado de Chihuahua creó la Fiscalía Especializada en Atención a Mujeres Víctimas del Delito por Razones de Género”, la cual “fue instaurada para realizar acciones de prevención, investigación, persecución y atención de los delitos cometidos contra mujeres” e “inició sus funciones operativas el 29 de febrero de” 2012. Asimismo, aseguró que la “Fiscalía está integrada a los Centros de Justicia para las Mujeres del estado de Chihuahua a fin [de] agilizar la atención integral y multidisciplinaria que debe proporcionarse a las mujeres que [son] víctimas de delitos de género”68.

Porém, ao apresentar relatórios individualizados dos casos das três jovens, os resultados são inconclusivos. A linha de investigação no caso Ramos é a de que a jovem foi assassinada porque estava envolvida com a “máfia dos cartões de créditos” e a polícia do estado de Chihuahua não avançou porque espera dados vindos de outro estado69. No caso Herrera, a Comissão assinalou sua insatisfação ao saber que a principal linha de investigação policial tinha a ver com a vida amorosa da jovem assassinada70. O caso González é o que menos apresenta evolução, não tendo sequer uma linha de investigação definida71. A Comissão se manifestou a respeito, afirmando que el Estado no estaría adoptando providencias para verificar si los homicidios de las tres jóvenes se relacionan con el contexto [de violencia contra la mujer] y de qué forma se estarían retroalimentando las investigaciones de los casos de Campo Algodonero para establecer si existe algún tipo de relación entre éstos72.

Além disso, a Comissão afirmou que não se realizou uma inclusão de perspectiva de gênero para a análise dos casos, tampouco foi detalhado pelo Estado de que maneira estão sendo implementados os protocolos e manuais sobre a questão. Ainda, asseverou que o Estado continua a não fornecer dados concretos sobre os efeitos e os avanços obtidos nas investigações, limitando-se a fornecer expedientes policiais sem maiores explicações sobre as linhas investigativas, detalhes e informações adicionais. Por fim, ressalta que não há nos informes documentação alguma que ateste a capacidade dos funcionários e servidores para atender casos e vítimas de discriminação de 68

idem. Ponto 2, § 11. idem. Ponto 2, § 15. 70 idem. Ponto 2, § 19. 71 idem. Ponto 2, § 22. 72 idem. Ponto 2, § 25. 69

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gênero, muito menos da forma que estariam sendo utilizados procedimentos que cumpram com os standards estabelecidos na sentença, na qual a Corte afirmou73: las jóvenes González, Ramos y Herrera fueron víctimas de violencia contra la mujer según la Convención Americana y la Convención Belém do Pará. Por los mismos motivos, el Tribunal consider[ó] que los homicidios de las víctimas fueron por razones de género y est[aban] enmarcados dentro de un reconocido contexto de violencia contra la mujer en Ciudad Juárez

Com relação à responsabilização de funcionários e servidores que cometeram irregularidades na investigação das mortes, o Estado não apresentou nenhuma informação que permita concluir que as irregularidades cometidas nos casos das três vítimas tenham sido investigadas e seus responsáveis punidos. Por isso, a Corte considera que tal ponto resolutivo continua em aberto, pendente de cumprimento. Com relação à investigação e punição aos responsáveis pelas ameaças aos familiares das vítimas e defensores de direitos humanos relacionados ao caso, o Estado afirmou não ter podido avançar por conta da “falta de denúncia por parte dos familiares”. É certo que entre os documentos que instruíram a demanda perante a Corte, a família Ramos Monárrez juntou o processo de concessão de asilo político nos Estados Unidos em virtude das ameaças sofridas no território mexicano. Igualmente, o senhor Adrian Herrera Monreal também possui asilo concedido e vive nos Estados Unidos. Dessa forma, a Corte argumentou que não se pode culpar as vítimas pela falta de denúncia, haja vista a própria demanda ter sido instruída com provas robustas de sua ocorrência. Com relação à instituição do protocolo Alba, ou outro mecanismo nacional de operação e busca de mulheres e meninas desaparecidas, o Estado Mexicano alega que este foi implantado e se encontra ativo, sendo utilizado em 10 (dez) casos de desaparecimento, nos quais foi possível encontrar 03 (três) pessoas. Os representantes, por sua vez, afirmaram que o protocolo possui caráter discricionário, pois cabe à autoridade definir o que seria um caso de alto risco avaliando somente as circunstâncias subjetivas, baseadas em estereótipos, e que somente foi ativado em 33% dos casos de desaparecimento. A Corte neste ponto afirma que a busca e localização de desaparecidas é uma obrigação de meio e não de resultado e que o Estado não forneceu dados concretos da implementação e da efetividade do protocolo. Quanto à prestação de atendimento aos familiares das vítimas a Corte observou que, de acordo com as informações prestadas pelo Estado, o plano de atendimento integral e multidisciplinar aos familiares das vítimas ainda se encontra na fase de planejamento, não se

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Caso González y Otras (“Campo Algodonero”) Vs. México. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 16 de noviembre de 2009, § 231

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tendo informação sobre sua efetiva implementação, os serviços oferecidos e a efetiva melhora da saúde física e psicológica dos atendidos. Em resumo, até o momento, o Estado cumpriu as obrigações de reconhecimento público de responsabilidade, divulgação da decisão e pagamento de indenizações. Ainda estão pendentes de cumprimento a investigação e a punição, por meio do devido processo, dos responsáveis pelas mortes das vítimas, dos servidores públicos que cometeram irregularidades nas investigações, dos responsáveis pelas ameaças dirigidas aos familiares das vítimas, da instituição do protocolo de ação em casos de desaparecimento e a prestação de atendimento médico, psicológico e psiquiátrico aos familiares das vítimas. A esse respeito, importante ressaltar que a maioria dos Estados-parte cumprem com as obrigações de reparação de caráter pecuniário, porém não necessariamente apresentam a mesma boa vontade com relação às obrigações de caráter não-pecuniário, em especial àquelas que versam sobre a investigação efetiva dos fatos que originaram as violações, identificação e punição dos responsáveis, atos imprescindíveis para por fim à impunidade.

IV) O CONCEITO 4.1. Responsabilidade Estatal Por Atos de Terceiro Particular Segundo Slaughter74, a diferença básica entre disputa internacional e litígio transnacional é a paridade dos atores. Enquanto que a disputa internacional se dá entre dois entes soberanos, ou seja, entre dois Estados, o litígio transnacional toma forma na disputa entre um particular e um Estado, que sofre um certo afrouxamento em sua soberania, ou entre dois particulares situados em Estados distintos. Tal afrouxamento na soberania dos Estados é importante no contexto dos sistemas regionais de direitos humanos para garantir que as violações não restem impunes, pelo fato de serem consideradas assuntos exclusivamente domésticos. Assim, afirma Carvalho Ramos75 que [...]a responsabilidade internacional do Estado ganha importância aos olhos dos estudiosos, na exata medida da adesão a mecanismos judiciais internacionais de sua aferição, uma vez que os países, finalmente, responderão pelos compromissos

74 SLAUGHTER, Anne-Marie, “A Global Community Of Courts”. Harvard International Law Journal, Vol. 44, n. 1, Winter 2003 75 CARVALHO RAMOS, André de. “Responsabilidade Internacional do Estado Por Violação de Direitos Humanos”. Revista CEJ, Brasília, n. 29, p. 53-63, abr./jun. 2005, p. 54.

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internacionais válidos, mas violados, devendo reparar os danos causados às vítimas ou sofrer sanções de coerção.

É importante a adesão dos Estados a tais mecanismos judiciais de monitoramento, prevenção, investigação e repressão de violações de direitos humanos. A vocação universal desses direitos possui ética própria, pautada no mínimo essencial necessário a uma vida digna. A esse respeito, afirma Piovesan76: Sob este prisma, a ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano.

O conceito de igualdade começa a se consolidar no período das transições democráticas latino americanas, desde um conceito de igualdade formal até alcançar um conceito de igualdade substantiva, quando a temática da discriminação estrutural e os direitos dos grupos discriminados se apresentam com mais força nos casos admitidos e analisados pelo Sistema Interamericano. Isto é, a igualdade antes entendida como sinônimo de “não discriminação”, o que implica uma abstenção ou neutralidade por parte do Estado, passa a ser substituída pela ideia de proteção de certos grupos subordinados que padecem de processos históricos estruturais de discriminação77. Entre os setores mencionados como merecedores de atenção especial para a CIDH estão, em primeiro lugar os povos indígenas, além dos povos tribais, remanescentes de quilombos, afrodescendentes, LGBT’s e as mulheres em relação ao exercício de certos direitos, como a participação política e proteção frente à violência. O primeiro caso referente a direitos de gênero no Sistema Interamericano de Direitos Humanos recebeu o nome de Prisão Miguel Castro-Castro vs. Peru78, e trata de um massacre ocorrido dentro de um estabelecimento prisional de segurança máxima na cidade de Lima, entre 06 e 09 de maio de 1992. Foi realizada uma operação conjunta entre a polícia e o exército denominada "Transferência 1", cujo objetivo era a remoção de cerca de 90 mulheres detidas na prisão "Miguel Castro-Castro" para presídios femininos. Parte do muro exterior do pavilhão foi demolido por meio do uso de explosivos. Simultaneamente, a polícia abriu buracos no telhado, a partir dos quais tiros foram disparados com pistolas. Foram utilizadas armas de guerra, explosivos, bombas de gás lacrimogêneo e choque contra os presos, além de artilharia de guerra e granadas lançadas de helicópteros. 76

PIOVESAN, Flávia. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos das Mulheres.R.EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n.57 (Edição Especial), p. 70-89, jan.-mar. 2012 77 ABRAMOVICH, Victor. “Responsabilidad estatal por violencia de género: comentarios sobre el caso “Campo Algodonero” en la Corte Interamericana de Derechos Humanos”. Anuario de Derechos Humanos n. 6, 2010. 78 Penal Miguel Castro-Castro vs. Peru, Fondo, Reparaciones y Costas, 25 de noviembre de 2006

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A operação levou à morte de dezenas de encarcerados. Os sobreviventes foram submetidos a espancamentos e agressões. Muitos dos feridos foram mantidos sem atendimento médico por vários dias e os que foram levados ao hospital não receberam nenhuma medicação ou cuidados médicos de que precisavam. Cerca de 135 mulheres e 450 homens foram vítimas dos acontecimentos. Devido ao timing do ataque, as famílias tiveram que identificar os corpos dos/das mortos/as durante o Dia das Mães. Além disso, durante os quatro dias de ataque, os presos foram mantidos em condições degradantes, como nudez forçada. Muitas mulheres foram sexualmente abusadas e estupradas. Importante ressaltar que algumas das presas encontravam-se em estágio avançado de gravidez. Conforme depoimento juntado aos autos, constante no parágrafo 19 da decisão, “[...]importante resaltar que “fue un ataque originalmente dirigido contra las prisioneras[, …] entre las que habría mujeres embarazadas”, y que “en la denuncia presentada […] se especific[ó] que a la cabeza de los responsables directos por los hechos figura […] Alberto Fujimori Fujimori[,] quien ordenó el ataque y las ejecuciones extrajudiciales de prisioneros del 6 [al] 9 de mayo[,] así como el régimen que se les aplicó a los sobrevivientes posterior a la masacre”.

A Corte Interamericana declarou a violação, por parte do estado peruano, dos artigos 4, 5(1), 5(2), 8(1) e 25 da CADH, em relação ao artigo 1.1 do mesmo tratado, artigos 1, 6 e 8 da Convenção Americana Para Punir e Erradicar a Tortura e artigo 7 da CBDP, determinando a investigação e a punição dos responsáveis pelas mortes, atos de violência e tortura, além da devolução dos corpos às famílias e tratamento físico e psicológico gratuito às vítimas sobreviventes e seus familiares. Este é um caso claro de responsabilidade estatal por atos do Poder Executivo. A responsabilidade estatal por violação de direitos humanos está baseada em três premissas básicas, quais sejam, a prática de um ato ou abstenção por um Estado que seja considerado ilícito internacional; a existência de uma violação de direitos humanos sofrida por um indivíduo ou grupo determinado, e o nexo de causalidade entre tal ato ou abstenção e o dano sofrido79. Os atos do executivo, por sua vez, são aqueles praticados pela administração pública, na forma comissiva ou omissiva, cujo escopo é organizar e determinar o funcionamento do Estado. Tais atos constituem violação de direitos humanos nas ocasiões em que, no exercício de suas funções, os agentes públicos cometam ações que impliquem em violação dos direitos de um indivíduo ou grupo de indivíduos, ou quando forem omissos na 79

CARVALHO RAMOS, André de. “Responsabilidade Internacional do Estado Por Violação de Direitos Humanos”. Revista CEJ, Brasília, n. 29, p. 53-63, abr./jun. 2005

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prevenção, investigação e repressão de atos praticados por particulares. Essa segunda categoria é caracterizada pela ocorrência de um ato praticado por um particular, cuja responsabilidade é imputada ao Estado ante uma omissão injustificada de seus agentes públicos, derivada de um dever de prevenção ou de punição. Segundo Abramovich80, existem três doutrinas aptas a explicar a responsabilidade estatal por atos de terceiro particular: a doutrina do risco previsível e evitável, a da cumplicidade e a do risco criado. A doutrina do risco previsível e evitável cria para o Estado uma responsabilidade indireta pela violação. Para estar caracterizada, precisa conter pelo menos uma de quatro características: (i) existência de uma situação de risco real ou imediato que ameace direitos e que surja de um ato de particular81; (ii) que esse risco real ou imediato ameace um indivíduo ou grupo de indivíduos determinado, ou seja, que o risco seja particularizado; (iii) o conhecimento do risco, por parte do Estado, ou sua previsibilidade, dentro dos limites do razoável; (iv) possibilidade, dentro dos limites do razoável, de o Estado prevenir ou evitar a materialização do risco. Quanto ao conhecimento do risco ou sua previsibilidade, há um dever de vigilância que o Estado assume perante a CADH, que é reforçado por outros tratados como por exemplo a CBDP. Existem riscos que ameaçam grupos particularizados que são previsíveis por sua envergadura, sua extensão no tempo, ou porque obedecem a padrões sistemáticos que tornam impossível seu desconhecimento por parte das autoridades. A possibilidade do Estado de evitar a consumação do risco é um elemento ainda pouco desenvolvido dentro da doutrina, porém é pacífico o entendimento de que o Estado não poderá invocar a impossibilidade de prevenir a consumação de um risco se a ele contribuir em virtude da não adoção de medidas de garantia estabelecidas nos próprios tratados de direitos humanos, tais como a CADH e a CBDP. A doutrina da cumplicidade, por sua vez, gera uma responsabilidade direta do Estado pelas violações, na medida em que não são, em geral, sujeitos passivos que tentam atenuar riscos sociais aos quais são alheios, mas contribuem com suas ações, políticas, práticas e omissões para a criação, configuração ou consolidação de situações de risco social, ainda que a situação provenha de condutas criminosas por particulares. Esta teoria, portanto, 80

ABRAMOVICH, Victor. “Responsabilidad estatal por violencia de género: comentarios sobre el caso “Campo Algodonero” en la Corte Interamericana de Derechos Humanos”. Anuario de Derechos Humanos n. 6, 2010. 81 Segundo decidiu a Corte IDH no caso Ríos e outros vs. Venezuela e caso Perozo e outros vs. Venezuela, o risco não pode ser meramente hipotético ou eventual e deve existir a possibilidade concreta de que se materialize num futuro próximo.

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busca estabelecer uma responsabilidade direta do Estado por ações de tolerância, aquiescência ou apoio de agentes públicos aos crimes cometidos por atores não-estatais. Por fim, a doutrina do risco criado é intermediária entre as duas anteriormente expostas. Isso significa que, de acordo com esta teoria, o Estado tem o dever de proteção ante um risco que ele mesmo tenha criado e tem o dever de desativar a situação de risco que diretamente engendrou. A aplicação de qualquer uma destas doutrinas deve levar em conta o grau de contribuição estatal para a existência ou a persistência, que será um fator decisivo para avaliar os requisitos de evitabilidade e previsibilidade do risco em uma determinada situação.

4.2. Violência em razão de gênero e feminicídio

O Comitê da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Comitê CEDAW), em sua Recomendação n.19/92, dispõe que: 6. The Convention in article 1 defines discrimination against women. The definition of discrimination includes gender-based violence, that is, violence that is directed against a woman because she is a woman or that affects women disproportionately. It includes acts that inflict physical, mental or sexual harm or suffering, threats of such acts, coercion and other deprivations of liberty. Gender-based violence may breach specific provisions of the Convention, regardless of whether those provisions expressly mention violence. 7. Gender-based violence, which impairs or nullifies the enjoyment by women of human rights and fundamental freedoms under general international law or under human rights conventions, is discrimination within the meaning of article 1 of the Convention.

Igualmente, a CBDP define, em seu artigo 1º, que violência contra a mulher é “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na privada”. MacDowell dos Santos e Izumino apresentam três correntes aptas a conceituar a violência de gênero82: a primeira, que denominamos de dominação masculina, define violência contra as mulheres como expressão de dominação da mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como “vítima” quanto como “cúmplice” da dominação masculina; a segunda corrente, que chamamos de dominação patriarcal, é influenciada pela perspectiva feminista e marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino; a terceira corrente, que nomeamos de relacional, relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina, concebendo violência como uma forma de comunicação e um jogo do qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice”.

82

MACDOWELL DOS SANTOS, Cecília e IZUMINO, Wânia Pazinato. Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. E.I.A.L., Vol. 16 – No 1 (2005)

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Chauí83, por sua vez, afirma que da ideologia de dominação masculina, reproduzida tanto por homens quanto por mulheres, resulta a violência de gênero. Por meio dessa ideologia, o homem vê a mulher como objeto e não como sujeito, tornando-a um ser passivo, dependente e silenciado. Analisando a violência de gênero pela perspectiva marxista, a construção do patriarcado não se resume ao âmbito social, mas também ao econômico. Nas palavras de Saffioti84, o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico.

A violência baseada no gênero, portanto, reflete relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres, em todos os aspectos da vida pública e da vida particular. A prática de violência de gênero é um produto do sistema patriarcal e compreende o abuso emocional, psicológico, os insultos, o esbulho patrimonial, a tortura, o estupro, a prostituição forçada, infanticídio de meninas, mutilações genitais, violência doméstica, maternidade forçada, pornografia. Pode ser praticado sob a justificativa do ódio, da busca do prazer, da ira, da maldade, dos ciúmes, a sensação de posse da mulher e da necessidade de exterminar aquela que já foi dominada85. Os crimes cometidos contra mulheres não são fatos isolados, nem produto de distúrbios patológicos individuais, muito menos fruto de instintos primitivos que retiram do agente a capacidade de refletir sobre seus atos. Trata-se somente de homens violentos, crentes de que possuem todo o direito de matar uma mulher86. De acordo com dados do CLADEM87 e da RED Ciudadana de No Violencia y por la Dignidad Humana, duas ONGs atuantes na região e responsáveis pela mobilização do caso até a Comissão Interamericana, o perfil das vítimas de Ciudad Juarez é do sexo feminino, com idades entre 13 e 25 anos – embora haja registro de casos incluindo crianças de 8 a 13 anos – e de classes sociais menos abastadas. 83

Chauí, Marilena. “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”. In: Franchetto, Bruna, Cavalcanti, Maria Laura V. C. e Heilborn, Maria Luiza (org.). Perspectivas Antropológicas da Mulher 4, São Paulo, Zahar Editores, 1985. 84 Saffioti, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo, Moderna, 1987. 85 RADFORD, Jill e RUSSEL, Diana E. H. Femicide. The Politics of Woman Killing. New York, Twayne Publishers, 1992, pp. 11-21. 86 MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. United States of America. First Harvard University Press. 1991. 87 http://www.cladem.org/programas/litigio/litigios-internacionales/12-litigios-internacionales-oea/22-casocampo-algodonero-mexico-femicidio-feminicidio

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O perfil das lesões envolve estupro, sodomia, mutilações genitais e dos seios, marcas de imobilização nos pulsos e tornozelos, queimaduras, infecção por produtos tóxicos e radioativos e um uso desmedido da força física aplicada às torturas - como por exemplo atropelamentos por veículos grandes, como caminhões. Na região, além dos assassinatos, há um número muito grande de casos de estupros coletivos, especialmente dentro dos ônibus municipais, no trajeto das mulheres entre as maquiladoras e suas residências. Igualmente, são muitos os casos de mulheres vítimas de violência física, verbal e psicológica praticadas por um parceiro ou um membro próximo da família, como um pai ou um irmão. Assim, pode-se concluir que os casos de Juarez estão conectados e que podem ser considerados violência de gênero e, em sua manifestação mais violenta, feminicídio. Falar em feminicídio não é apenas fazer uma flexão da palavra “homicídio”. Neste caso, o gênero da vítima é importante, porque é esta característica o que torna aquele indivíduo passível de sofrer violência. As primeiras teóricas a tratar do tema da violência de gênero foram as feministas Dianna Russell e Jill Radford, em 199288. Estas definem feminicídio como the misogynous killing of women by men89, sendo este often condoned, if not sponsored, by the state and/or by religious institutions90. Esta conivência silenciosa por parte do Estado ou das instituições religiosas cria uma atmosfera de impunidade com relação às consequências de se praticar um ato de violência contra a mulher, o que encoraja a ocorrência de novos crimes seguindo o mesmo padrão. Por conta desta conivência silenciosa, percebe-se um forte padrão de culpabilização da vítima nos casos. As próprias autoridades do estado de Chihuahua, México, já se referiram às vítimas da seguinte forma: Importante hacer notar que la conducta de algunas de las víctimas no concuerda con esos lineamientos del orden moral toda vez que se ha desbordado una frecuencia de asistir a altas horas de la noche a centros de diversión no aptos para su edad en algunos casos, así como la falta de atención y descuido por el núcleo familiar en que han convivido.91

88

RADFORD, Jill e RUSSEL, Diana E. H. Femicide. The Politics of Woman Killing. New York, Twayne Publishers, 1992. 89 A matança misógina de mulheres por homens (tradução livre). 90 A violência é comumente tolerada, quando não patrocinada, pelo Estado e/ou por instituições religiosas (tradução livre) 91 Informe de Homicidios en perjuicio de mujeres en Ciudad Juárez, Chihuahua. 1993-1998.

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Esta conivência silenciosa é o que faz o problema ser ainda mais grave. Homens e mulheres são imersos na cultura patriarcal desde o nascimento e a reproduzem no campo econômico, social, psicológico, sexual, na vida pública e na vida privada. As próprias mulheres, vítimas desta hierarquização, reproduzem seus conceitos e culpabilizam a si mesmas e a outras mulheres pelos atos de violência sofridos.

4.3. Grupo Vulnerável

Segundo as 100 regras de Brasília sobre acesso à justiça a indivíduos em condição de vulnerabilidade, Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e econômico.

No tópico específico de gênero, o texto continua afirmando que: A discriminação que a mulher sofre em determinados âmbitos pressupõe um obstáculo no acesso à justiça, que se vê agravado naqueles casos nos quais concorra alguma outra causa de vulnerabilidade. Entende-se por discriminação contra a mulher toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, sobre a base da igualdade do homem e a mulher, dos direitos humanos e as liberdades fundamentais nas esferas política, económica, social, cultural e civil ou em qualquer outra esfera. Considerase violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no seu gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado, mediante o emprego da violência física ou psíquica.

A Corte Interamericana começou a cunhar o conceito de grupo vulnerável em casos envolvendo direitos de comunidades indígenas – na opinião da Corte, o maior exemplo de grupo vulnerável da América. Assim, no Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguay é afirmado: En lo que respecta a pueblos indígenas, es indispensable que los Estados otorguen una protección efectiva que tome en cuenta sus particularidades propias, sus características económicas y sociales, así como su situación de especial vulnerabilidad, su derecho consuetudinario, valores, usos y costumbres (…)92

92

Caso de la Comunidad Indígena Yakye Axa vs. Paraguay. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 17 de junio de 2005. § 63.

50

Esta reconhece que a vulnerabilidade se dá tanto por questões de direito – como, por exemplo, as diferenças entre nacionais e estrangeiros – quanto em questões de fato, advindas de desigualdades históricas entre determinados grupos, que geram consequências quanto ao acesso aos recursos públicos – em especial o acesso à justiça93. A vulnerabilidade é uma consequência prática de que os direitos e obrigações não se distribuem por igual entre todos os indivíduos. Ainda que o Estado afirme prestar tratamento igualitário a todos os seus cidadãos, o acesso aos recursos depende de fatores sociais e econômicos, dentre os quais se inclui o gênero, a etnia, a condição física e mental, a idade. Muitas vezes, as condições de vulnerabilidade se entrelaçam, criando cada vez mais restrições ao indivíduo no gozo de seus direitos. Um bom exemplo de opressão qualificada é o caso Rosendo Cantu vs. México. Valentina Rosendo Cantu tinha dezessete anos e estava, numa tarde, lavando roupa na beira de um rio próximo à comunidade indígena em que vivia, quando foi abordada por um grupo de oito soldados do exército mexicano. Por não saber falar espanhol muito bem e não ter conseguido prestar as informações que eles precisavam, foi estuprada e ameaçada. Após, não recebeu os devidos cuidados no serviço público de saúde. Ao buscar justiça pelo ocorrido, o caso foi encaminhado à competência da Justiça Militar – sendo inegavelmente de competência da Justiça Comum – e sua família foi ameaçada para que não insistisse em denunciar o ocorrido. Até o momento da sentença, o caso continuava sem resolução na Justiça Militar. A Corte ressaltou que houve falha na prestação de atendimento à vítima quanto a la administración de justicia y los servicios de salud, particularmente, por no hablar español y no contar con intérpretes, por la falta de recursos económicos para acceder a un abogado, trasladarse a centros de salud o a los órganos judiciales y también por ser víctimas de prácticas abusivas o violatorias del debido proceso94

Percebe-se que a vítima era mulher, indígena e de classe social menos abastada. A sentença leva em consideração a forte presença militar no estado de Guerrero, onde ocorreram os fatos, e a marginalização das comunidades indígenas que habitam a região. Por esse motivo se afirma, utilizando-se de conceito do feminismo interseccional, que a opressão não é sentida por todas as mulheres da mesma forma e perceber tais particularidades é o primeiro passo para a implementação de ações afirmativas voltadas aos grupos vulneráveis.

93

Opinião Consultiva nª 18, de 17 de setembro de 2003, § 112. Caso Rosendo Cantú y otra vs. Mexico. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 31 de agosto de 2010, § 70

94

51

4.3.1. Importância da definição de "Grupo Vulnerável" para os direitos de gênero

Pelo exposto, é inegável a importância de se considerar as mulheres como grupo vulnerável e, nesse sentido, aplicar o conceito de feminicídio para a ampliação e salvaguarda dos direitos das mulheres, não só em âmbito regional, como também no âmbito doméstico. Enquanto se reconhece que o número de casos de gênero examinados pelo SIDH é muito pequeno em comparação com os demais sistemas de proteção de direitos humanos, também se percebe que, nos casos que envolvem questões de gênero, a Corte falhou em analisá-los da maneira correta. Tanto a falta de casos, quanto a análise imperfeita dos julgados podem ser explicados pela dominação naturalizada da visão masculina de sociedade, bem como uma demonstração do modo como a lei lida com as questões femininas95. Até o ano de 2006, a Corte afirmava sua competência para reconhecer violações à CADH, a dois artigos do Protocolo de San Salvador, à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e à Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. Somente após 2006 a Corte passou a analisar violações à CBDP. Importante ressaltar que a Comissão funciona como um filtro prévio à análise da Corte, o que também pode explicar o fato de poucos casos envolvendo direitos de gênero terem sido levados a julgamento. Até o ano de 2001, os membros da Comissão deveriam votar a respeito do envio de casos à Corte. Atualmente, todos os casos declarados admissíveis, cujas recomendações previstas no Primeiro Informe forem descumpridas pelo Estado, devem ser levados automaticamente à Corte, a não ser que o Estado não tenha aceitado a jurisdição da Corte ou, se por meio do voto fundamentado da maioria dos membros da Comissão, esta decidir não encaminhá-lo. A jurisprudência da Corte é uma ferramenta importante para defensores dos direitos humanos, ONG's e acadêmicos no continente americano porque, diferentemente de outros mecanismos de solução de controvérsias em matéria de Direitos Humanos, a Corte oferece às vítimas de violações a possibilidade de uma decisão com força vinculante. Porém, é preocupante que nos primeiros 18 anos de funcionamento do sistema de petições individuais

95

PALACIOS ZULOAGA, Patricia. The Path to Gender Justice in the Inter-American Court of Human Rights. Texas Journal of Women and the Law, v. 17, n. 2, p. 227-295, 2008.

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apenas 06 casos se refiram de modo significativo a direitos das mulheres e em 04 deles o tratamento dado às questões de gênero que permeavam os fatos não tenha sido o adequado96. Antes de 2004, a Corte não tinha emitido uma decisão que reconhecesse uma violação de direitos humanos relacionada ao gênero e, portanto, não tinha privado apenas as mulheres vítimas, mas também os defensores de direitos das mulheres, ONG's e pesquisadores da área de ferramentas que teriam sido úteis para avançar na causa dos direitos das mulheres, numa região onde tais direitos são violados de forma sistemática. Neste ponto, importante traçar uma linha cronológica envolvendo as questões de gênero no SIDH. Na Opinião Consultiva nº 04/84, relacionada à concessão automática de nacionalidade costarriquenha a mulheres casadas com cidadãos da Costa Rica, a Corte entendeu que a nacionalidade deveria ser estendida aos homens que se casassem com mulheres costarriquenhas, como medida de igualdade. Porém não analisa a questão da imposição da nacionalidade costarriquenha às mulheres, entendendo ser "um privilégio concedido à mulher em adquirir a nacionalidade do marido". Em 1993, houve o julgamento do Caso Aloeboetoe vs. Suriname. O caso versa sobre a morte de sete líderes tribais da comunidade Aloeboetoe por agentes estatais. A decisão da Corte desconsiderou a tradição cultural da tribo, de linhagem matrilinear, por entender que os ascendentes homens das vítimas não receberiam indenizações e isso seria discriminatório em relação à CADH. Porém, ao mesmo tempo, considerou que, apesar da comunidade ser poligâmica, dever-se-ia fixar o mesmo quantum indenizatório para cada vítima, que posteriormente seria dividido entre o número de esposas, criando uma desigualdade no valor das indenizações a serem pagas a cada uma das esposas. Em 1995, foi julgado o Caso Caballero Delgado y Santana vs. Colombia, que versa sobre o sequestro e posterior desaparecimento de dois membros do grupo revolucionário M-19, o Sr. Caballero Delgado e a Sra. Santana. Três testemunhas afirmaram que a Sra. Santana recebeu tratamento degradante (foi vista somente em roupas íntimas, ou nua e amarrada), porém a Corte não condenou o Estado por violação do art 5º da CADH (tratamento inumano ou degradante) por "falta de provas". Essa conclusão é problemática porque colide frontalmente com o precedente do caso Velásquez Rodriguez e desconsidera o depoimento das testemunhas ao decidir que não há como afirmar que "Isidro Caballero-

96 São os casos Myrna Mack-Chang vs. Guatemala, Lori Berenson-Mejía vs. Peru, Hermanas Serrano-Cruz vs. El Salvador e Niñas Yean y Bosico vs. Republica Dominicana.

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Delgado e Maria Del Carmen Santana foram submetidos a tratamento desumano ou degradante durante o período de detenção, na medida em que tais alegações são baseadas somente em vagos testemunhos, que não foram confirmados por outras testemunhas". Em 1997, o Peru foi condenado por violação dos direitos de María Elena Loayza Tamayo. Acusada de participar do Sendero Luminoso, foi detida, julgada por uma corte militar de "juízes sem rosto" e condenada por traição. Alega que durante o tempo que esteve detida foi estuprada, teve sua imagem em vestimentas degradantes exibida na mídia, ficou presa sem comunicação e com restrição de visitas numa cela minúscula e sem luz natural e foi torturada e intimidada. A Corte reconheceu a violação ao artigo 5º da CADH com relação a todas as alegações, menos a de estupro, por entender que, devido à “natureza do fato”, não havia prova suficiente de sua ocorrência. Porém, a Corte não explicita qual a natureza do estupro e por que faz distinção em relação às demais alegações, sendo que as evidências em relação às demais alegações não eram mais robustas. Em 2003, no julgamento do Caso Maritza Urrutia vs. Guatemala, a Corte fez um avanço importante em relação à tortura. A Sra. Urrutia trabalhava para o Ejército Guerrillero de los Pobres. Em 1992 foi sequestrada por homens armados e mantida presa por 08 dias, durante os quais foi interrogada, ameaçada e forçada a aparecer num vídeo lendo um testemunho já preparado, admitindo pertencer ao grupo e dele se retirando. Ela alegou ter sido tratada com violência e recebido ameaças contra si e contra seu filho pequeno. Posteriormente, provou-se que durante sua detenção ela foi mantida algemada à cama, num quarto com a luz ligada muito forte e o rádio em volume muito alto o tempo todo e, entre outras coisas, durante sua detenção arbitrária a sra. Urrutia foi submetida a tortura psicológica, mediante ameaças de ser assassinada, torturada fisicamente ou estuprada. Neste ponto, a Corte asseverou que a tortura psicológica é um artifício previamente preparado levando em conta características pessoais da vítima, de forma a destruir de forma eficaz sua estrutura psicológica, e que o receio de ser sexualmente abusada infligiu muito sofrimento à sra. Urrutia. Essa questão é importante porque dá visibilidade a uma questão quase sempre ignorada – a de que homens e mulheres não são torturados da mesma maneira. Em 2004, o Caso del Masacre de Plan de Sanchez foi um dos casos mais chocantes que a Corte foi obrigada a enfrentar. Tratava-se de uma vila predominantemente Maia, frequentemente submetida a invasões por parte das forças governamentais. Em julho de 1982, ao perceberem nova invasão, os homens fugiram e as mulheres, idosos e crianças ficaram, por serem mais lentos e por acreditarem que as forças do exército nada fariam contra

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eles. Ao chegarem, as tropas estupraram as mulheres, mataram as crianças e depois juntaram todos dentro de uma casa, na qual atiraram granadas e depois fuzilaram os sobreviventes. Posteriormente, os soldados começaram a queimar os corpos e saquear a vila. Ao voltarem no dia seguinte, os homens encontraram os corpos ainda queimando em piras. Estima-se que 268 pessoas morreram naquele dia, a maior parte mulheres. Os peritos convidados a atuar no caso afirmaram que o trauma físico e psicológico experimentado pelas mulheres afetou a comunidade como um todo, especialmente quanto ao papel tradicional das mulheres de transmissão da cultura do povo pela forma oral. Na teoria, a Corte reconheceu que as mulheres haviam passado por sofrimento físico e psicológico e determinou como medida de reparação o atendimento médico e psicológico as vítimas sobreviventes, porém não fez distinção no cálculo de danos materiais e imateriais com base no gênero das vítimas, o que na prática esvazia de sentido o reconhecimento da violência exacerbada do estupro. No Caso dos Massacres de Río Negro vs. Guatemala, a Corte afirma novamente o papel das mulheres nas comunidades tradicionais: “59. Igualmente, este Tribunal ha establecido que durante el conflicto armado las mujeres fueron particularmente seleccionadas como víctimas de violencia sexual. Así, durante y de modo previo a las mencionadas masacres u ‘operaciones de tierra arrasada’, miembros de las fuerzas de seguridad del Estado perpetraron violaciones sexuales masivas o indiscriminadas y públicas, acompañadas en ocasiones de la muerte de mujeres embarazadas y de la inducción de abortos. Esta práctica estaba dirigida a destruir la dignidad de la mujer a nivel cultural, social, familiar e individual. Además, cabe señalar que según la CEH, cuando eran perpetradas en contra de comunidades mayas, ‘las violaciones masivas tenían un efecto simbólico, ya que las mujeres mayas tienen a su cargo la reproducción social del grupo [y] personifican los valores que deben ser reproducidos en la comunidad’”.

Em 2006, a Corte julgou o Caso Prisão Miguel Castro-Castro vs. Peru, já citado no presente trabalho. Nesse caso, a Corte fez avanços em relação à perspectiva de gênero. Primeiramente, ressaltou que a nudez forçada dos presos violava sua integridade pessoal, e que era uma violação ainda mais grave no caso das mulheres. Utilizando-se da definição ampla de violência sexual cunhada na jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para Ruanda97, concluiu que as vítimas eram observadas nuas o tempo todo por oficiais armados e isso constituía violência sexual - dando um passo à frente em relação ao caso Caballero Delgado e Santana. Além disso, a Corte afirmou, ao analisar as alegações de tortura e tratamento cruel ou degradante, que "em alguns casos" o gênero da vítima é fator que deve ser levado em 97

ICTR, Caso Prosecutor vs. Jean-Paul Akayesu. Sentença de 02.09.1998, § 10-A – disponível em: http://www.unictr.org/sites/unictr.org/files/case-documents/ictr-96-4/trial-judgements/en/980902.pdf

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conta, como por exemplo na questão da revista íntima. Por fim, ao fixar as reparações, a Corte concedeu valores mais expressivos às vítimas que sofreram abuso sexual ou estupro, além de determinar que recebessem tratamento médico e psicológico. Nesse caso, a Corte reconheceu que o Estado Peruano violou os artigos 8 e 25 (devido processo e garantias judiciais) da CADH, em relação ao artigo 7(b) da CBDP (reforço ao dever de punição dos atos de violência contra a mulher), aplicando pela primeira vez dita Convenção. Em seguida, a Corte dá especial atenção à questão da maternidade, reconhecendo uma violação específica de gênero o fato de que os ataques se deram num dia de visita e as mães ficaram sem contato com seus filhos em pleno dia das mães, e muitas mães de presos tiveram que ir até o necrotério identificar seus filhos também nessa época. Porém, não oferece uma explicação a respeito dessa diferença e não avalia o impacto psicológico das crianças privadas do contato com seus pais, apenas das mães. De qualquer forma, na fase de reparações a Corte não faz distinção entre pais e mães, concedendo a mesma quantia a título de compensação, além de determinar que recebam tratamento médico e psicológico. As únicas três mães que receberam compensações mais elevadas foram as três vítimas grávidas, que deram à luz dentro da penitenciária. Além disso, as questões de gênero aparecem em outros casos de forma tangencial: especialmente em casos de desaparecimento forçado, a Corte se refere ao "luto das mães"; em outros, as mães que buscam justiça no âmbito doméstico relatam receber mais ameaças que os parentes homens e que tais ameaças são relacionadas ao seu gênero – como estupro. Conforme se depreende da jurisprudência, o Caso Campo Algodonero foi um divisor de águas para as questões de gênero no Sistema Interamericano. Por se utilizar de extensa prova documental interdisciplinar, apta a conceder à Corte o enfoque de gênero necessário ao entendimento dos fatos, reconhece que as mulheres são um grupo vulnerável a ser protegido e que são necessárias medidas efetivas para eliminar a desigualdade histórica entre homens e mulheres na sociedade.

V) CONSIDERAÇÕES FINAIS Atrocidades sexuais são, infelizmente, acontecimentos da vida cotidiana, ocorrem em contextos de paz e também na guerra, e de modo algum são restritas apenas aos atores oficiais ou a conflitos que sejam reconhecidos como organizados. Crimes que acontecem por

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causa dos papéis de gênero – estereótipos socialmente atribuídos a grupos com base no seu sexo biológico – passaram a ser entendidos como crimes de desigualdade sexual. O que sempre tinha sido classificado como um crime sem base social – por exemplo, o estupro – passou a ser entendido como de ocorrência devido à ao status social e ao poder diferenciado das partes no domínio de gênero. Ou seja, um ataque contra uma mulher porque ela é um membro do grupo social "mulher", socialmente definida e orientada como tal para esta violação específica, muitas vezes incluindo suas particularidades raciais e étnicas. O conceito fundamental de que a agressão sexual é baseada no gênero foi amplamente adotado e ampliado para muitos abusos em razão de gênero. Além disso, foi dada dimensão normativa internacional ao conceito pelo CEDAW na sua Recomendação Geral 19/92. Tal recomendação geral influenciou tanto o sistema ONU de direitos humanos quanto os sistemas regionais, que transladaram o conceito para suas normas internacionais. Com a aplicação dessas normas, a responsabilidade do Estado pela inércia em casos de gênero se expandiu de atores estatais para alguns atores não-estatais na configuração dos direitos humanos a partir do final dos anos 198098. O conceito de crime de gênero tem tacitamente influenciado outros tipos penais internacionais, tais como o estupro, o abuso sexual, a violência doméstica, a prostituição forçada, o tráfico de pessoas, a esterilização forçada ou a maternidade compulsória. A comunidade internacional adotou o entendimento de que as agressões sexuais contra mulheres e meninas são baseadas no gênero da vítima ou do agressor ou ambos, isto é, compreendeu a desigualdade de gênero na relação das partes para analisar este ato criminoso em seu contexto social. Sob a égide do conceito de crime de gênero, o Direito Penal Internacional, o Direto Humanitário e também o Direito Internacional Dos Direitos Humanos começaram a olhar mais atentamente do que nunca para a questão da violência sexual em contextos de conflito armado ou em zonas de violência permanente, como é o caso de Juarez, criando algo que não existia até então. Porém, por mais que o Direito Internacional tenha evoluído no campo dos crimes de gênero, é importante notar que tanto as normas internacionais quanto as domésticas são frequentemente descumpridas neste campo. As obrigações estatais de reforço às normas

98 Na jurisprudência do Sistema Interamericano, pode-se citar os casos Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil, que tramitou somente perante a Comissão, e os julgados da Corte nos Casos González y otras vs. México e Rosendo Cantú y otra vs. México

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contra crimes de gênero são amplamente desrespeitadas. Não é apenas a ausência de aplicação, mas um preceito muito real de inobservância da proibição de crimes de gênero – da não observância como uma questão política. Em uma perspectiva de gênero, a resposta pode ser que os seres que se comportam em papéis masculinos tendem a criar, obedecer e aplicar reflexivamente essas regras que respeitem e aumentem seu poder enquanto homens e, porque preservam o domínio masculino sobre mulheres e outros homens, tais normas são vistas como sendo do seu interesse. As regras que servem a este fim serão obedecidas e vistas como legítimas. Importante ressaltar que, se as leis foram feitas pelos homens e para os homens, por que as mulheres as obedecem mais? Talvez a resposta é que as mulheres são mantidas dentro do sistema por uma combinação de força vinculante e de regras morais, culturalmente hegemônicas. O poder masculino é precisamente o que afeta a vontade das mulheres a cumprir voluntariamente seus comandos. Nesta leitura de como o poder masculino é organizado, as leis contra o abuso sexual têm funcionado essencialmente como uma fachada, bem como uma ferramenta que os homens podem usar contra outros homens quando conveniente para as suas necessidades hegemônicas. Talvez essas regras sirvam a uma função totalmente dissociada de constranger ao cumprimento: a de legitimar uma ordem social desigual, retirando o foco da impunidade real para violações que todos sabem que vão passar esmagadoramente despercebidas e impunes. E talvez seja essa a importância dessas leis para o Direito Internacional: a de deslegitimar os crimes de gênero como forma de manutenção e de exercício do poder, desestabilizando muitas culturas tradicionais que se utilizam destas ferramentas. É certo que a maior parte das mulheres e crianças que sofrem abuso sexual são violadas no ambiente doméstico ou próximo, ou seja, em locais mais afetados pela cultura tradicional. Os homens, insertos nessa cultura, são mais propensos a se abster, ou praticar os abusos por eles mesmos. Assim, quanto mais a análise se afasta do ambiente privado, mais objetivo se torna o olhar, pois a distância incentiva a noção de alteridade. Na América Latina, a divisão de esferas público/privado separa claramente as questões percebidas como femininas da chamada "esfera pública". A ideia de MacKinnon99 de que a lei é um instrumento de dominância masculina pode ser provada com uma olhada rápida 99

MACKINNON, Catharine. Are Women Human? And Ohter International Dialogues. Introduction. Harvard University Press, 2007, p. 4

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para a sociedade: a violência doméstica é normalmente tratada como crime de menor potencial, cujo procedimento é caracterizado por uma tentativa de conciliação e pode terminar assim caso a mulher concorde. Da mesma forma, o crime de estupro é percebido como um "crime contra a honra" e pode ser "remediado" pelo casamento do agressor com a vítima. Ainda, o direito é reticente em tratar questões como a igualdade salarial entre homens e mulheres. O divórcio ainda é, em muitos países, restrito a circunstâncias muito específicas. O aborto é ilegal em muitas legislações domésticas. O acesso a métodos contraceptivos é dificultado. Não há como negar os esforços realizados no Direito Internacional, particularmente no Direito Internacional Dos Direitos Humanos, para abordar os direitos das mulheres através de diversos mecanismos, inclusive por meio da assinatura de tratados. Houve avanços que contribuíram para fazer a divisão público / privado mais tênue, especialmente a visão adotada por organismos internacionais de monitoramento de direitos humanos de que os Estados podem ser responsabilizados pelas ações de atores nãoestatais, sempre que o Estado não conseguiu diligentemente prevenir ou remediar essas ações. Há ainda um longo caminho a percorrer para tornar o direito internacional sensível às preocupações das mulheres, mas os esforços feitos nos últimos anos por vários órgãos internacionais tornaram um fórum atraente em que as mulheres podem obter reparação por violações de seus direitos no âmbito interno. Vários órgãos de Direitos Humanos passaram por um processo de sensibilização pelas questões de gênero. Nenhum deles ostenta, ainda, um histórico impecável no que diz respeito aos direitos das mulheres, mas mostram um desenvolvimento progressivo. A adoção da CEDAW, no âmbito global, é vista por muitos como uma vitória para o movimento feminista, porque implica no reconhecimento, pela principal organização internacional do mundo e pela grande maioria dos Estados-parte, de que o tratamento desigual dado às mulheres por serem mulheres é contrário ao direito internacional. No Sistema Interamericano, a Convenção de Belém do Pará, em vez de focar na discriminação, preocupa-se mais com o fenômeno da violência contra a mulher nas esferas públicas e privadas. A CBDP foi criada observando um modelo diferente das demais convenções do sistema OEA e do SIDH, na medida em que foi gestada dentro da Comissão Interamericana De Mulheres: isso faz com que a CBDP seja uma convenção sobre mulheres, delineada por mulheres com experiência na área dos direitos humanos. Avanços significativos foram feitos após a adoção desse tratado, em relação à incorporação da teoria feminista, para explicar por que violência contra as mulheres ocorre; o

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tratado não se limita a lidar apenas com as causas e efeitos imediatos dessa violência, mas também pressiona os Estados para lidar com tradições culturais e estereótipos de inferioridade100, além de deixar clara a responsabilidade dos Estados pela violência de gênero tanto no âmbito público como no privado. A oportunidade está aberta para que as instituições internacionais ajam sobre o que as mulheres sabem desde sempre: não haverá paz ou segurança coletiva num mundo onde há injustiça de gênero.

100

Artigo 6: O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: a. o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação; e b. o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.

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