A importância do localismo na descolonização da paz

August 19, 2017 | Autor: Carlos Morgado Braz | Categoria: Localism
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Carlos Morgado Braz

A importância do localismo na descolonização da paz

Introdução A paz liberal, nas palavras de MacGinty (2010: 393), “[é] um conceito amplo, que leva em conta a ideologia da pacificação por normas socioculturais, onde fatores estruturais permitem e restringem, os atores e as suas manifestações”. Este paradigma, resultou de uma infinidade de operações de paz conduzidas pela ONU, na sua maioria na década de 1990-2001, com o objetivo de reconstrução dos estados pela via da liberalização política e económica para, desta forma, alicerçar as infraestruturas de promoção da paz nos cenários de pré e pós conflitualidade. O (re)florescimento do estado liberal assente no universalismo do pensamento kantiano, trouxe consigo um “pacote” de normas e práticas – a democratização, a reforma institucional, a boa governação e os direitos humanos. Mas, apesar disso tudo, devido à complexidade crescente das nossas sociedades, este projeto de agência acabou por ser fortemente criticado não só pelo seu etnocentrismo – a promoção de valores essencialmente ocidentais – como também, começou a levantar questões se de facto, essas intervenções eram uma gaffe de práticas intrusivas de um (novo) neocolonialismo, ou se contribuíam efetivamente para a edificação da paz. Ao refletirmos sobre aquilo que temos vindo assistir – a arquitetura e o design, da construção da paz – fica provado com claras evidências, que se pretende deslocar do domínio político para o governamental, uma vez que nesse domínio, já é uma poderosa

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norma institucionalizada em discursos e práticas institucionais de organizações internacionais, estados e organizações não-governamentais. Os seus imperativos, e importa não perdermos este foco, “[s]ão a reformulação e o redesenhar das sociedades e suas instituições, com o propósito de criar condições assumidas para apoiar o que é internacionalmente adquirido como paz sustentável” (Jabri, 2013: 12). Focalizando mais a nossa atenção nestes “projetos” de reforma do tecido social, que na perspetiva de Richmond (2014: 113),“[p]rocuram o balanceamento entre a eficiência dos agentes internacionais e as potencialidades da comunidade local” contrariamente ao que era suposto, aquilo que temos vindo assistir, é que localmente, acabam por ser imposições a uma comunidade que no fim vai acabar com algo que simplesmente não corresponde às suas necessidades e/ou expetativas ou então, não resolve nenhuma das causas estruturais que estiveram na origem da conflitualidade. Com o pressuposto desta crítica normativa, que circula cada vez mais na literatura sobre intervencionismo, o argumento deste ensaio parte precisamente da necessidade de considerar a questão do balanceamento entre a eficiência dos agentes internacionais e as potencialidades da comunidade local, não somente por ser uma necessidade ética como também, por ser inevitável para o objetivo da sustentabilidade dos esforços de construção da paz. Assim, na defesa desse argumento, a estrutura do ensaio centra-se em duas linhas de análise: A primeira pela importância da integração do localismo nos processos de transformação e gestão da conflitualidade. Para isso, torna-se necessário fazer uma contextualização do conceito “localismo” em substituição do já existente “local”, e posteriormente avaliar o seu impacto nas dinâmicas de construção da paz. A segunda, trazer a questão da descolonização da paz das intervenções pela via do modelo neoliberal, reintroduzindo uma proposta alternativa que resulta da integração da dimensão do localismo na estrutura internacional.

A importância do localismo nas dinâmicas de construção da paz Analisando a história dos debates e da literatura no quadro dos processos de paz e que envolvam o conceito de “local”, constatamos que apenas refletem a questão da perspetiva top-down na reconstituição das instituições, o estado-centrismo, e a recorrência das negociações entre os agentes externos e as elites locais, que em muitas

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das situações, não são representativas da comunidade como um todo. Estas críticas surgem portanto, como uma consequência lógica à experiência de paz e do estado liberal dos últimos vinte anos e ao apelo de uma maior participação da sociedade civil. Vimos até então, o termo “local” associado às dinâmicas de poder da comunidade local, muitas vezes resistente ao modelo de construção da paz, a operar em diferentes escalas e dimensões. Em situações muito particulares, estas dinâmicas “[d]isfarçadas e localizadas em agências com capacidades, também são elas, afetadas por financiamento e influência” (Richmond, 2013: 271). Em vez de serem meros atores passivos (vítimas, destinatários, beneficiários, etc.), os locais podem ser capazes de conduzir ações autónomas nos processos de paz. Claro, que essa capacidade de resiliência irá variar de acordo com o contexto, as redes e estruturas onde vão participar e interagir com a comunidade internacional. É então consensual, o reconhecimento, que o “local” em relação ao projeto liberal, já reage com conformidade ou com resistência, razão pela qual, as populações locais devem ter a possibilidade de ter um papel mais participativo e decisório sobre as normas e instituições que estão a ser implementadas, bem como o seu entendimento de paz, uma vez que pode ser diferente de um lugar para outro (Richmond, 2010: 667). Como resultado desta integração, resultariam instituições híbridas que seriam informadas tanto pelas normas locais como pelas liberais, mas a este respeito iremos debruçar mais em detalhe no capítulo seguinte. Importa agora, introduzir o conceito de “localismo” em substituição do usualmente utilizado “local”. O “localismo” trata-se de um conceito mais abrangente e que melhor enquadra o entendimento do argumento neste ensaio. Duma forma geral, quando nos referimos a um espaço comunitário, “[p]resume-se a existência de uma identidade cultural homogénea e integrada, assente num conjunto de relações sociais e estruturado em fortes laços familiares, que não é apenas única, mas também muitas vezes secular (Featherstone, 2000). Neste sentido, mais do que estabelecer uma definição operacional, ao usarmos o conceito de “localismo”, adquirimos que os “recetores” da intervenção internacional formam uma comunidade distinta, uma comunidade com a sua correspondente cultura, algo que se torna muito mais do que a contextualização (neoliberal) introduzida por Mark et al. (2013: 405), e que se transcreve

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[a]n umbrella term which refers to the devolution of power and/or functions and/or resources away from central control and towards frontline managers, local democratic structures, local institutions and local communities, within an agreed framework of minimum standards.

Da perspetiva da reconstrução e consolidação da paz, o localismo representa a comunidade, as suas necessidades, identidades, instituições e preferências sobre os acordos regionais e internacionais e a prova disso, conforme evidenciam Raquel e Lopes (2013: 204-205), os relapsos na consolidação da paz, como foi no caso de Timor Leste, podem ser lidos como exemplos onde preferências e instituições locais, o contexto social, histórico, identitário, religioso, político e económico, foram ignorados. Seja como for, a(s) forma(s) em que a paz é estruturada, justifica-se a integração do localismo no contexto das forças internacionais, também para, como sugerem MacGinty e Richmond (2013: 780), não dar à agência internacional – por causa do poder estrutural e governamental que impõe – os pressupostos ontológicos de superioridade do capitalismo ocidental. Mas apesar desta possibilidade, como veremos no capítulo seguinte, o risco de o localismo ser um instrumento de (novas) regras neocoloniais é mínimo.

A descolonização da paz e a emergência de um modelo hibrido A construção da paz, como um conjunto de práticas nas respostas ao conflito violento, pode ser interpretada como uma extrapolação daquilo que nas relações internacionais é referido como “teoria da paz democrática”, ou mesmo, como “projeto de paz liberal 1” (Jabri, 2013: 8). Dada a predominância de estados ocidentais, instituições, infraestruturas e tecnologias em matéria de implementação dos acordos de paz, é legítimo sustentar, por interpretações específicas das ideias liberais, que este projeto, é o software que impulsiona o hardware – aqui entendido localismo, uma vez que, e no entendimento de MacGinty (2010: 396), está a produzir uma versão especificamente contextual da paz, em graus variados, incorporando as práticas sobre paz da comunidade local através dos

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O denominado “projeto de paz liberal”, pretende regular a conflitualidade entre os estados pela via da resolução pacífica, dos valores morais comuns e dos laços de cooperação económica e interdependência, com o pressuposto do ideal kantiano que “as democracias não entram em guerras”.

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seus atores. No entanto, no entendimento de outros autores, o que está a emergir, é um conjunto complexo de associações relacionadas, mas também separadas, em atores, normalmente as elites locais, e redes internacionais – formado por meio de contestação política – em que alguns processos de formação de paz, acabaram por produzir infraestruturas ocultas, baseadas nas redes existentes que funcionam em paralelo ao estado (Tongeren, 2013: 58). Desta forma, é importante minimizar a recorrência destas práticas, ao estabelecerem-se infraestruturas de promoção da cultura de paz, no contexto do localismo, e integradas como um dos pilares do modelo de governação. A imagem da formação de paz poderá então considerar-se, a imagem de espelho da formação do estado, onde a relação entre as dinâmicas formais e informais é crucial na medida que poderá mitigar a violência estrutural que não é tão evidente na opinião pública. Neste quadro, a paz seria conduzida localmente, talvez individualmente nos espaços públicos, mas poderia sempre ser apoiada internacionalmente. O localismo coloca a sociedade, a aldeia, a comunidade e a cidade no centro da paz, em vez do estado, a segurança e os mercados (Richmond, 2013: 276). Estas políticas, apesar das relações de poder assimétricas entre a agência internacional e localismo, quando socialmente orientadas em sentido bottom-up, conduzem a uma paz mais contextual, não só pelo reconhecimento e legitimidade que lhe é conferida, como também pelo equilíbrio entre esse poder. Num contexto de apropriação mútua, o hibridismo da ligação entre os atores envolvidos e a dinamização do localismo nas práticas intervencionistas, podem sugerir formas emancipatórias com resultados positivos no maior entrosamento entre uma intervenção externa e as realidades locais. A este propósito, o caso de Timor- Leste, conforme sugere Lopes (2012: 51), “[i]lustra de forma muito interessante estas dinâmicas e como o cruzamento entre o formal e o informal nas práticas do quotidiano pode resultar em procedimentos inclusivos, sinónimo de flexibilidade, aprendizagem e conducente a estabilidade”. Esta viragem, face à presença da agência internacional, considerada como uma prática de domínio neocolonial, importante que se note, representa uma oportunidade de “descolonização” do atual modelo, quer na concetualização, quer na realização da paz. Embora requeira uma reavaliação de alguns dos parâmetros que têm sido utilizados para compreender e justificar as intervenções internacionais, este modelo demonstra uma

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maior flexibilização de práticas e cria um maior incentivo à possibilidade de uma epistemologia mais expansiva que é capaz de superar os limites concetuais artificiais impostos pela noção de estado.

Breves conclusões A apropriação do conceito “local” para a consolidação da paz tornou-se, nos últimos vinte anos, uma prática recorrente da ONU, pela sua suposta capacidade em influenciar positivamente, pela via das reformas democráticas, os resultados da construção da paz nos cenários pós-conflito. No entanto, perante uma análise mais atenta, revelou-se que este conceito está carregado de contradições que condicionam a sua operacionalização no terreno, o que se levaria a acreditar que houvesse uma reavaliação da sua política, que como sabemos acabou por não acontecer. Em vez disso, a retórica no discurso da construção da paz, quando visto através de uma lente normativa, mostra ser uma tentativa conflituosa de conciliar normas institucionais relativas à soberania e à segurança internacionais. Ao termos introduzido o conceito de “localismo”, em substituição do usualmente utilizado “local”, viemos reforçar a existência de uma comunidade distinta, uma comunidade com a sua correspondente cultura, o que produz uma versão especificamente contextual da paz, em graus variados, incorporando as práticas locais dos seus atores. A combinação entre as dinâmicas formais e informais na articulação entre a intervenção internacional e o localismo tem-se revelado por vezes complexa, mas crucial na medida que poderá mitigar a violência estrutural que poderá não ser, como sabemos, tão evidente. A corresponsabilização e a partilha neste modelo, oferecem vantagens significativas para o projeto monocultural de “paz liberal” porque, no nosso entendimento, permitem o redesenho de procedimentos mais inclusivos e a sua maior legitimação por parte de todos os atores envolvidos no processo de paz. As tentativas de novas abordagens por parte da ONU e de alguns doadores em apoiar o localismo, e desta forma iniciar a “descolonização” do atual modelo, representam uma viragem muito importante em direção a abordagens hibridas para a formação de paz.

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Referências bibiográficas Evans, Mark et al. (2013) “Understanding localism”. Policy Studies. Routledge. 34(4): 401 - 407. Featherstone, M. (2000) “Localism, globalism and cultural identity” in Theory, Culture and Society: Undoing culture: Globalization, postmodernism and identity. London: SAGE Publications.102-126. Freira, Raquel (2012) “Consolidação da paz em Timor Leste:Um modelo híbrido entre a formalidade e a informalidade”. Revista Globo. 1:50-53. Freire, Raquel; Lopes, Paula (2013) “Peacebuilding in Timor-Leste:Finding a Way between External Intervention and Local Dynamics”. International Peacekeeping. Routledge. 20(2):204 - 218. McGinty, R. (2010) “Hybrid peace: The interaction between top-down and bottom-up peace”. Security Dialogue. 41(4):391 - 412. MacGinty, R.; Richmond, O. (2013) “The Local Turn in Peace Building: a critical agenda for peace”. Third World Quarterly. Routledge. 34(5): 763 - 783. Richmond, O. (2010) “Resistance and the Post-Liberal Peace”. Millennium: The Journal of International Studies. 38(3): 665-692. _____(2013) “Peace Formation and Local Infrastructures for Peace”. Alternatives: Global, Local, And Political. 38(4):271 - 287. _____(2014) “A crucial link. Local peace committees and national peacebuilding”. International Peacekeeping. Routledge. 21(1):113 - 115. Tongeren, Paul (2013) “Potencial cornerstone of infrastructures for peace? How local peace committees can make a difference.” Peacebuilding. Routledge. 1(1):39 - 60. Jabri, Vivienne (2013) “Peacebuilding, the local and the international: a colonial or a postcolonial rationality?. Peacebuilding. Routledge. 1(1): 3 - 16.

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