A Importância Social e Religiosa das Famílias Milão-Dinis em Portugal e em Hamburgo

June 3, 2017 | Autor: Florbela Veiga Frade | Categoria: Portuguese History, New-Christians' History, History of Portuguese in Hamburg
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P ortu gal u n d das H e ilig e R öm ische R eich (16.-18. Jah rh u n dert) P o rtu ga l e o Sacro Im p é rio (sé c u lo s X V I-X V III)

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importância social e religiosa das famílias Milão-Dinis em Portugal e em Hamburgo

1. As famílias Milão e Dinis Henrique Dias de Milão1 nasceu em 1528 em Santa Comba Dão e mor­ reu em Lisboa, queimado pela Inquisição, com 81 anos de idade, no ano de 1609. Era casado com Guiomar Gomes, nascida em Lisboa por volta de 15502 e falecida em Hamburgo em 16133, sendo ainda genro de Francisco Rodrigues Milão, um dos mais importantes mercadores de Lisboa no século XVI. A sua família mais próxima estava dispersa por Portugal, Brasil, México e Alemanha. Nos primeiros anos de 1600, viviam na casa de família na capital portuguesa os filhos do casal: Leonor Henriques, casada com Henrique Rodrigues seu primo, que tinha ido a Roma buscar dispensa para o ma­ trimónio4; Isabel Henriques5, Branca Rodrigues, Paulo de Milão6 e Fernão Lopes Milão.7 Por seu turno, Ana de Milão8, casada com Manuel Nunes de Matos9, mudara-se para outra casa com os filhos, embora o esposo estivesse no Brasil. No Novo Mundo, mais especificamente em Pernambuco, esteve também Gomes Rodrigues Milão10 e por lá permaneceram por mais al­ gum tempo os seus irmãos Manuel Cardoso Milão e António Dias Milão. 1 2 3 4 5

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Processo de Henrique Dias Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lis­ boa, proc. 6677. Processo de Guiomar Gomes, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 6671. Michael STUDEMUND-HALÉVY, Biographisches Lexikon der Ham burger Sefarden, Hamburg 2000, p. 500-501. Processo de Leonor Henriques Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 9389. Processo de Isabel Henriques, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 6984. Processo de Paulo de Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 3338. Processo de Fernão Lopes Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 2523. Processo de Ana de Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 279. Processo de Manuel Nunes de Matos, Lisboa 1627, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 10600. Processo de Gomes Rodrigues Milão, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 2499.

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Após a viagem de retomo a Lisboa, Gomes voltou à casa paterna, onde se reuniu com a prima Beatriz Rodrigues11, com quem estava esposa­ do12, ou seja, prometido em casamento. Na cidade hanseática de Hamburgo vivia desde 1606 outra filha de Henrique Dias Milão. Trata-se de Beatriz Henriques13, casada com Ál­ varo Dinis, cuja casa serviu posteriormente de refugio, ancorando a fuga dos seus familiares de Portugal e do Brasil. A união matrimonial dos Milão e Dinis é por si só reveladora das relações internacionais anteriores das duas famílias, que teriam certamente cimentado as relações comerci­ ais e financeiras com assento em Lisboa, Antuérpia, Veneza, Hamburgo! Brasil, costa ocidental africana e América Espanhola. A casa de Henrique Dias Milão em Lisboa reunia a sua família14 alargada. Aí viviam o casal, os filhos e a sobrinha, assim como um ir­ mão chamado António Dias de Cárceres, que tinha vindo do México em negócios e talvez fugido da Inquisição Espanhola. Sob o mesmo tecto coabitavam ainda vários criados, uns com laços de parentesco — como António Barbosa15, Francisco Barbosa e sua irmã Violante Bar­ bosa (que acompanhou Beatriz Henriques a Hamburgo)16 —e outros que apenas serviam na casa, como Branca Rodrigues17, viúva da Guar­ da, ou Maria Correia, cristã-velha que fora ama de leite dos filhos. À criadagem juntava-se Vitória Dias, uma chinesa com mais de 50 anos que, apesar de ter carta de alforria há cerca de cinco anos18, se mantinha ao serviço do antigo dono e a quem continuavam todos a chamar es­ crava; e, por fim, um negro chamado Manuel, que tudo parece indicar ter sido escravo. Com carácter mais ou menos esporádico iam e fica­ vam na casa de Henrique os aprendizes e caixeiros da casa comercial: foi o caso de António Mendes Cardoso. A mobilidade dos Milão na capital portuguesa foi grande, como se pode verificar pelos locais de residência. Nos primeiros anos de 1600 viveram na Rua do Vidro19, alojaram-se na Mouraria depois do Perdão 11 Processo de Beatriz Rodrigues, proc. 9407. 12 Sobre os arranjos de casamento cf. Lawrence STONE, The Family, Sex and Marriage in England 1500-1800, Londres 1990, p. 181- 216. 13 Processo de ausente de Beatriz Henriques, Lisboa 1617, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 10758, fol. 86v. A sua estátua foi relaxada à justiça secular no auto de Fevereiro de 1617, na Ribeira, em Lisboa. 14 Sobre o conceito de família na Idade Moderna e que se aplica também aos cristãosnovos portugueses cf. STONE, The Family, p. 69—89. 15 Processo de António Barbosa, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 286. António e Henrique Dias Milão foram queimados no mesmo auto-da-fé. 16 Processo de Guiomar Gomes, proc. 6671, fol. 130. 17 Processo de Branca Rodrigues, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 7063. 18 Processo de Vitória Dias, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 3331, fol. 47—47v. 19 Processo de Beatriz Rodrigues, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 9407, fol. 126v-127.

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Geral20 e habitaram nas casas de Martim Coelho, na Rua das Mudas.21 Mais tarde, foram morar para a Rua do Barão22, de onde se mudaram para umas casas em Alcântara na freguesia de N.a Sr.a da Ajuda, junto às quintas de Algés e dum mosteiro.23 Esta última morada parecia ser bas­ tante espaçosa, pois tinha também um porto com acesso ao mar e pos­ suía ainda uma taracena24 anexa. A ligação ao mar na casa de Alcântara é bastante interessante, se se tiver em conta que a principal actividade da família era a mercancia e a finança. Por outro lado, a casa comercial encabeçada por Henrique Dias de Milão esteve ligada ao financiamento e contratos com a Coroa, certa­ mente por mão do seu sogro. Posteriormente e em parceria com Ga­ briel Ribeiro25, arrematou o contrato das terças, o que se revelou um mau investimento. Gabriel Ribeiro foi preso pelo Santo Ofício e Henrique Dias Milão viu-se também a braços com a ameaça de prisão e sequestro pela justiça civil e pela Inquisição.26 Contudo, Henrique foi avisado pelo executor-mor, Manuel Gomes de Elvas27, pelo alcaide que tinha o man­ dato e por Vasco Peres Mendes, que tentou atrasar a sua execução. Nesta altura, a decisão de sair do país tornou-se mais forte. Henrique Dias Milão resolveu em 1606 ausentar-se de Portugal com a família, temendo que lhe sequestrassem os bens; contudo, pretendia manter a casa comercial em Lisboa. Pelo menos, era essa a sua inten­ ção, segundo as informações do processo do filho Fernão Lopes Milão: Paulo de Milão continuaria os negócios da casa em Lisboa enquanto o próprio Fernão ficaria em Madrid.28 Porém, esta resolução veio a reve­ lar-se inútil, pois todos acabaram nos cárceres da Inquisição. 20 21 22 23

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Processo de Beatriz Rodrigues, fol. 179. Processo de Guiomar Gomes, fol. 166. Processo de Guiomar Gomes, fol. 20-20v (inquirição de defesa). Processo de Gomes Rodrigues Milão, fol. 143. Trata-se do mosteiro das freiras cla­ rissas flamengas, conhecido pelo nome de Convento de Nossa Senhora da Quieta­ ção. Nele se recolheram no tempo de D. Filipe I as religiosas refugiadas da cidade de Alkmaar, nos Países Baixos. Actualmente o edifício acolhe o Centro Social da Paróquia de Alcântara. A taracena pode designar um armazém ou depósito de mercadorias junto ao rio ou um local de conserto de navios —cf. José Pedro MACHADO, Grande Dicionário da língua Portuguesa, vol. XI, Lisboa 1981, p. 571. A casa da família Milão ficaria em frente ao Convento de Nossa Senhora da Quietação, em direcção ao rio, provavelmente nas imediações do palácio que hoje acolhe o Instituto Superior de Ciências Policiais. Sobre contratos dos Milão e dos Ribeiro ver Processo de Gabriel Ribeiro, Lisboa 1606, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 8056. Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 139—139v. Manuel Gomes de Elvas fez parte dum consórcio de mercadores cristãos-novos que, em 1605, emprestou ao rei 200 000 cruzados para as naus da Índia. No ano de 1606 foi nobilitado, passando a ser fidalgo da Casa Real. Ver James BOYAJIAN, Portuguese Trade in Asia under the Habsburgs, 1580—1640, Baltimore 1993, p. 92; Nomeação de fidalgo da Casa Real, 1606 Setembro 20, ANTT Lisboa, Chancelaria de D. Filipe II. Privilégios, Livro 2, fol. 104v. Id., Ib., proc. 2523, fol. 134v.

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2. A família Dinis Jachia em Portugal e sua saída para a Flandres A família materna de Álvaro Dinis provinha duma família de cristãosnovos portugueses de grande relevo, pois contava com uma das maio­ res figuras da praça de Lisboa. O seu tio Duarte Furtado fez parte do consórcio que arrematou o contrato da pimenta29 entre 1592 e 1596, o que revela a sua enorme capacidade de endividamento e investimento, pois o volume de negócio atingia os 5 000 000 réis e os 30 000 quintais de especiaria por ano. Contudo, a importância desta família não se deve apenas ao seu papel na economia portuguesa, mas também e essencial­ mente na cultura, na ciência e na religião. Quase certamente que Álvaro Dinis descende da família Ibn Jachia, fundada em Portugal por Don Jachia Ibn Jaich30 e com uma larga tradi­ ção de rabinos, astrólogos, pensadores e autores de diversas obras. Don Jachia fez parte da corte de D. Afonso Henriques (1143—1185) e os membros da sua família destacaram-se, entre os séculos XII a XVI, em Portugal, como eminentes médicos judeus; o mais conhecido foi Ibn Yahya ben Salomon, ligado ao rei D. Fernando (1376—1383)31, mas também se salientou como médico e astrólogo Mestre Guedelha (c. 1400—?), na corte de D. João I (1385—1433)32, e David Ibn Yahya (1455-1528), rabino da comunidade de Lisboa e, em 1476, autor duma gramática hebraica intitulada Leshon Ummudim, publicada em Constan­ tinopla e Veneza.33 Mais tarde evidenciou-se o médico, talmudista e juiz Jacob Ibn Jachia (?—1542), nascido em terras lusas e conhecido pelas suas Responsa. Os filhos deste último também ocuparam posições de re­ levo no Império Turco, onde, por exemplo, José foi cirurgião do sultão Soleimão, enquanto Guedelha foi rabino e pregador da Comunidade Lisboeta de Salónica.34 A ascendência materna de Álvaro Dinis é de certo modo confirma­ da pela adopção em Hamburgo do nome Samuel Jachia, apelido que adoptou de sua mãe, Abigail Jachia, também conhecida por Grácia ou Filipa Furtado.35 Esta era filha de Gabriel Furtado e Isabel Gonçalves36, naturais do reino de Portugal. 29 José da Costa G o m e s , Collecção de Leis da Divida Publica Portugueza, Lisboa 1883, p. 177—179; James C. BOYAJIAN, Portuguese Trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640, Baltimore 1993, p. 27. Este contrato reunia os principais merca­ dores de Lisboa, nomeadamente Heitor Mendes de Brito, Tomás e André Ximenes de Aragão, Luís Gomes de Elvas e Jorge Rodrigues Solis, para além do referenciado Duarte Furtado. 30 Meyer KAYSERLING, História dos Judeus em Portugal, São Paulo 1971, p. 3s. 31 Jacques PINES, Essai sur l’Histoire des Médecins Juifs au Portugal, in Imprensa Médica (1953), aqui p. 2. 32 http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=7&letter=Y#30 (em 14-6-2009). 33 http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=7&letter=Y#42 (em 14-6-2009). 34 KAYSERLING, História dos Judeus, p. 221 . 35 Studem und-H ALÉVY, Biographisches, p. 501; Aron LEONI - Herman SALOMON, La Nation Portugaise de Hamburg en 1617 d’aprés un Document Retrouvé in Mémorial I.-S. Révah Études sur le Marranisme, l'hétérodoxie juive et Spinoza,

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No que se refere ao ramo paterno da família de Álvaro Dinis, sabe— se que ° apelido judaico dos Dinis era Marcos.37 O avô chamava-se Tomás Dinis ou David Marcos e desempenhou as funções de médico do infante D. Luís, irmão do rei D. João III (1521—1557)38, tendo casa­ do com Ana Manrique, natural de Salamanca.39 Deste casamento nas­ ceu Filipe Dinis, ou Salomão Marcos, na cidade do Porto, em 153040, que na sua vida adulta e no decurso das suas actividades viajou por di­ versos locais como Lisboa, Açores e São Tomé, onde esteve duas temporadas. Mas foi na capital portuguesa que Filipe conheceu Filipa Furtado, que era no entanto natural de Lamego.41 Numa altura indeterminada, Filipa Furtado e Filipe Dinis dirigiramse para Antuérpia, sendo este último referenciado pela primeira vez42 nos Livros da Nação Portuguesa de Antuérpia, em 1571. Na Casa da Feitoria daquela cidade flamenga desempenhou em 1576 o cargo de cônsul, em parceria com Nicolau Rodrigues (filho de Manuel Rodrigues de Évora43), cargo esse que consistia na gestão dos assuntos relativos ao comércio e à comunidade portuguesa por um período de seis meses. Apesar de Filipe Dinis ser referido como um dos lançadores dos 1 700 000 cruzados para o Perdão Geral44 de 1605, tal não é consentâ­ neo com a cronologia. O que leva a concluir que Filipe, quando era cônsul da Nação Portuguesa de Antuérpia, distribuiu pelos chefes de família a quantia com que cada um deveria contribuir, de acordo com os seus rendimentos, para a empresa de Alcácer Quibir e que na prática se traduziu num perdão aos cristãos-novos, não em 1605, mas em 1577, e que custou 225 000 cruzados.45 Na cidade do Escalda nasceram os filhos de Filipe Dinis, Ana Dinis e Álvaro Dinis, entre 1570 e 1576, mas posteriormente a família esteve em

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Paris 2001, p. 284. Abigail Jachia foi também o nome de Guiomar Gomes e de sua filha Beatriz Henriques, esposa de Álvaro Dinis. Processo de Vicente Furtado, Lisboa 1609, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 3333, fol. 13v—14,24,27v-28; 31; St u d e m u n d -H alé v y , Biographisches, p. 501-503. Sobre a família Dinis Marcos cf. Federica RUSPIO, La Nazione Portoghese, Torino 2007, p. 277-279. Michael S t u d e m u n d -HALÉVY, Arabisch-sefardische Familiennamen bei den Hamburger Portugiesen in Maajan, die Quelle 42 (1997), aqui p. 1008. Aron LEONI —Herman SALOMON, La Nation Portugaise de Hamburg, p. 283—284. Studem und-H alévy, Biographisches, p. 501; St u d e m u n d -H a l é v y , Arabischsefardische Familiennamen, aqui p. 1008. L eoni —SALOMON, La Nation Portugaise de Hamburg, p. 272, nota 32, p. 283— 284. Livro 2 da Nação Portuguesa de Antuérpia. Assentos e Eleições, Antuérpia 1552— 1629, Casa da Feitoria de Antuérpia, ANTT Lisboa, fol. 43v—46v. Livro 2 da Nação Portuguesa de Antuérpia, fol. 73v—74. Sobre os Rodrigues de vora cf. Florbela Veiga F r a d e , A s relações económicas e sociais das comunidades sefarditas portuguesas, Lisboa 2006. Herman SALOMON, Portrait of a New-Christian Fernão Álvares de Melo (1569— 1632), Paris 1982, p. 109, nota 110. FRADE, As relações das comunidades sefarditas, p. 135.

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Colónia e em Veneza46, onde Filipe foi preso na Inquisição. De acordo com as declarações à Inquisição de Lisboa por Vicente Furtado, Filipe Dinis teve outra filha nascida em parte incerta, mas casada em Veneza com Diogo Gonçalves de Lim a, irmão de Henrique de Lima.47 o nome desta filha seria Abigail Dinis.48 Por outro lado, Ana Dinis casou com António Faleiro ou Jacob Aboab, um importante líder espiritual que, tal como o cunhado, reunia em sua casa os cristãos-novos de Hamburgo.49 Trata-se possivelmente do mesmo António Faleiro, tesoureiro da Nação Portuguesa de Antuérpia entre 1600 e 1604 e cônsul da mesma nação em 1607 e 1611, seguindo o mesmo percurso de seu sogro.50 3. A religiosidade dos cristãos-novos de Portugal e judeus-novos de Hamburgo A pluralidade de identidade e a pluralidade religiosa51 são duas das carac­ terísticas dos cristãos-novos oriundos da Península Ibérica, diversidade que se patenteia também pela adopção de vários nomes. É comum a mesma pessoa ter pelo menos o nome de baptismo católico e outro judaico e ser conhecida por apelidos diversos, que usa indiferenciada ou alternativamente. Existem também casos de pessoas usarem diversos nomes alternativos, por vezes traduções do seu nome em português, po­ dendo a grafia ser múltipla dependendo de quem escreve; o mesmo indi­ víduo chega a grafar o seu próprio nome de formas diferentes. Contudo, geralmente não há alternância nos nomes e apelidos judaicos, apenas formas diferentes de os transliterar. A título de exemplo, Samuel pode ser Shemuel ou Shamuel, e Jachia pode ser Iachia ou Yahia. As diversidades onomásticas aplicadas à unicidade pessoal são para­ digmáticas também a nível religioso. O cristão-novo reúne em si facetas diversas, que se prendem com o «cumprimento do Mundo» e com as suas convicções íntimas. Passados séculos, pode-se interrogar se se consegue alcançar a verdadeira identidade religiosa do cristão-novo, tendo como ponto de partida um acervo documental particularmente tendencioso, como é a documentação inquisitorial. 46 Leoni —SALOMON, La Nation Portugaise de Hamburg, p. 284. Leoni e Salomon rectificam neste estudo a afirmação da existência duma filha de Filipe Dinis chama­ da Beatriz Antunes, casada com Henrique de Lima, constante na obra de Salomon, Portrait, p. 49 e da carta genealógica do anexo VII. 47 Processo de Vicente Furtado, fol. 22. Vicente Furtado era primo co-irmão dos refe­ ridos, pois era filho de Duarte Furtado, irmão de Filipa Furtado. Diogo Gonçalves de Lima, por sua vez, era irmão de Henrique de Lima, casado com uma Beatriz Natunes —cf. Processo de Vicente Furtado, fol. 16v. 48 Sobre a provável descendência de Samuel cf. Joseph B en B rith , Die Odyssee der Henrique-Familie, Frankfurt 2001, p. 62. 49 Proc. 13013 (André Faleiro). 50 FRADE, As Relações das Comunidades Sefarditas, p. 353— 357 (anexos 8 e 9). Existem pelo menos três António Faleiro: um chamado Abraão, outro Samuel e outro Jacob, todos de apelido Aboab, pois não é comum ter mais do que um nome judaico. 51 Sobre esta temática ver Frade, As Relações das Comunidades Sefarditas, p. 57— 77.

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A suspeita de que os processos inquisitoriais e todo o espólio do San­ to Oficio sejam uma ficção facilmente manipulável pelos inquisidores pa­ ra propaganda coloca alguns dilemas, pois, para além destas informações serem mantidas em segredo —e portanto longe do conhecimento público —, elas inegavelmente revelam pormenores, conhecimentos e acontecimen­ tos pouco consentâneos com conspirações. Claro que deve ser feito um exercício de cautela escolar52, mas dum modo geral trata-se de informa­ ções mais ou menos fidedignas, que devem ser confrontadas e analisadas em conjunto com outras, oriundas de espólios e origens diversos. Para analisar a religiosidade dos cristãos-novos a partir das informa­ ções inquisitoriais há ainda que ter em conta o sistema teórico de Hannah Arendt53 para as sociedades ocidentais, no que se refere às acções humanas. De acordo com esta autora, na Idade Moderna existe uma sobreposição da esfera pública e da privada, ou seja, o lar, o espaço doméstico e da família, onde a mulher domina, passou a ficar justaposto à esfera pública —a da sociedade e da política, dominada pelo homem. Da coincidência de ambas as esferas resulta a elevação das actividades familiares, mas também a transformação dos interesses familiares em interesses do colectivo e da sociedade: o privado torna-se público. A justaposição das duas esferas conduz à uniformização de compor­ tamentos religiosos num quadro político e social normalizado, o que nas sociedades do sul europeu se manifesta também por uma ligação íntima com a Igreja Católica, sob a vigilância da Inquisição, seus fun­ cionários, membros do clero e pela sociedade em geral. Este modelo é igualmente aplicável às sociedades reformadas, embora sem a acção fiscalizadora e coerciva da Inquisição. O espaço que existia para outras religiões e outras formas de religio­ sidade deixou de ser tolerado e todos quantos não encaixavam neste novo sistema social tiveram de se adaptar, criando as suas próprias defesas e formas de resistência. Deste modo —e para além de soluções difusas encon­ tradas pelos cristãos-novos, como a migração —,ao modelo que se tentou impor opôs-se uma realidade alternativa e consentânea, embora condi­ cionada, com as vivências próprias que os sefarditas tentaram manter.54 A realidade sefardita resultante do Concílio de Trento e do estabele­ cimento das inquisições pode ser descrita como tendo dois espaços pri­ vados e um público. O espaço privado mais íntimo (esfera privadaprivada ou verdadeiramente privada, chame-se-lhe assim) estava reservado aos relacionados por parentesco e àqueles com quem se mantinham fortes laços de amizade e de confiança; é, por excelência, a esfera dos 52 Y o s e f YERUSHALMI, From Spanish Court to Italian Ghetto. Isaac Cardoso, SeattleLondres 1981, p. 23. 53 Hannah ARENDT, A Condição Humana, Lisboa 2001, p. 47-49. 54 Florbela Veiga FRADE, A Emigração dos Cristãos-Novos Portugueses. In: Cader­ nos de Estudos Sefarditas, n.° 2, Lisboa 2002, p. 111—113; Idem, As Relações Soci­ ais, p. 31-35.

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correligionários. A outra esfera privada (mas na realidade pública) se­ guia as regras estabelecidas e definidas por Hannah Arendt para a Idade Moderna, e nela se refletia aquilo que o poder vigente impunha como comportamento aceitável aos indivíduos e às famílias. É deste modo que a esfera privada e a pública coincidem quase exatamente uma com a outra, pois na casa familiar inclui-se a família exten­ sa, criadagem e escravos, tal como a casa comercial com todos os seus correspondentes, associados, feitores e pessoas agregadas. As preocu­ pações da família sefardita jogam-se assim em dois níveis distintos: o da sobrevivência pessoal perante o divino e a sociedade que lhe é hostil e a procura da prosperidade pela manutenção e aumento da riqueza. Tudo isto são objectivos indissociáveis, cuja concretização passa pelos mem­ bros da família e outros indivíduos dela próximos, que se interrelacionam nas várias esferas. Este paradigma, nas suas várias esferas, está claramente presente na família Milão, principalmente nas mais privadas, onde se manifesta a sua verdadeira religiosidade. 4. A esfera privada e o «cumprimento do mundo» No que se refere à sua esfera privada em estreita ligação com a esfera pública pode dizer-se que todos os membros da família Milão eram batizados e cumpriam mais ou menos escrupulosamente os seus deveres como cristãos. Iam à igreja ouvir missa e pregação, confessavam-se, comungavam e faziam as demais obras de cristãos. Sabiam orações co­ mo o Padre-Nosso, Avé-Maria, Credo, Salve Rainha e os Dez Manda­ mentos da Lei de Deus. Também eram crismados55, o que pressupõe um conhecimento mais profundo da religião católica. Por seu turno, a matriarca da família, Guiomar Gomes, quando morava na Rua do Barão ia muitas vezes à igreja da Sé, onde se confessava na Quaresma —obri­ gatório pelo normativo tridentino —mas também o fazia noutras alturas e, além disso, ouvia missa numa capela que tinha em sua casa.56 Paulo de Milão rezava as orações do Padre-Nosso, Avé-Maria e o rosário de Nossa Senhora pela manhã e à tarde, todos os dias, sem ce­ rimónias nenhumas. Mas, durante a prisão, rezava-o de joelhos, algu­ mas vezes. Fazia o sinal da cruz nas seguintes ocasiões: ao levantar e deitar, ao comer, quando dava graças a Deus, quando tangiam as AvéMarias —o que acontecia muitas vezes por dia —;tirava o chapéu quando estava no adro das igrejas. Assim que se levantava, e frequentem ente, lavava as mãos, tal como antes de rezar e de se encomendar a Deus, porque era obra para se fazer com limpeza, sendo santas as palavras da oração.57 Existe, portanto, um entrelaçar das religiões católica e judaica, já que estes gestos de limpeza raramente fazem parte do ritual católico. 55 Isabel Henriques foi crismada na Sé de Lisboa (proc. 6984, fol. 41v—42v). 56 Processo de Guiomar Gomes (inquirição de defesa), fol. 20v. 57 Processo de Paulo de Milão, fol. 142v—145.

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Gomes Rodrigues, Paulo Milão e Leonor Henriques não acredita­ vam em Cristo nem o tinham por verdadeiro Messias, não acreditavam na confissão ou nos sacramentos da igreja, aonde iam por «cumprimen­ to do mundo». Por isso, não confessavam tudo aos seus confessores, temendo ser descobertos58, com todos os riscos a isso associados. E não crendo nos mandamentos da Igreja, não tinham razão para temer as penas espirituais associadas ao incumprimento dos mesmos. A descrição das práticas católicas de Gomes Rodrigues Milão revela que ele sempre viveu como bom cristão, como mandava a Igreja de Roma, ouvia missa aos domingos e dias santos e ouvia as pregações, confessava-se e comungava nas Quaresmas e o mesmo fazia pelos jubi­ leus, festas principais, no Natal e no Pentecostes. Jejuava pelas Qua­ resmas e pelas vésperas dos Santos Apóstolos e quando assim fazia comia ao meio-dia. Guardava os domingos, dias santos e de obrigação da Igreja e trabalhava ordinariamente aos sábados, cobrando aos deve­ dores, pagando aos credores, escrevendo para os correios, assentando nos seus livros as partidas que fazia, tal como fazem ordinariamente os mercadores.59 Na sua actividade pública não guardava, pois, o Shabat. Vindo do Brasil, onde esteve 14 anos, Gomes Rodrigues de Milão chegou a Lisboa em Janeiro de 1606, ficando nas casas de Alcântara com seus pais e com sua irmã Beatriz Henriques (casada em Hamburgo com Álvaro Dinis). Esta, ao ver-lhe um Bentinho de N.ª Sr.a do Carmo disse espantar-se por ele se ter salvo pelo mar, trazendo aquilo consigo, e disse-lhe que cresse na Lei de Moisés, pois nessa lei se salvaria e não na fé de Cristo.60 Tanto Gomes como Paulo —e tantos outros nas mesmas circuns­ tâncias —, depois de presos e das admoestações da Mesa da Inquisição foram iluminados pelo Espírito Santo, entendendo então que só se po­ deriam salvar na fé de Cristo, querendo viver e morrer nela.61 O mesmo se passou com os outros membros da família, porque só depois de de­ vidamente doutrinados poderiam abandonar os espaços destinados a esse efeito, ou seja, os cárceres das Escolas Gerais e posteriormente o Bairro de Santa Marinha. Este bairro era composto por várias casas fa­ miliares e era vigiado pelos oficiais do Santo Ofício, que garantiam não só o isolamento da área, mas também o uso do hábito penitenciai pelos sentenciados e a sua frequência dos serviços religiosos. A libertação dos catecúmenos só ocorria depois do padre que oficiava os serviços passar uma certidão —constante dos processos inquisitoriais —,atestando a to­ tal doutrinação dos sentenciados. 58 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 189v; Processo de Paulo de Milão, fol. 192-192v; Processo de Leonor Henriques Milão, fol. 196—197. 59 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 154v. 60 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 227—227v. 61 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 189v; Processo de Paulo de Milão, fol. 193.

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5. A esfera íntima dos correligionários da Lei de Moisés Paralelamente, as mesmas pessoas seguiam a Lei de Moisés, cujas regras eram transmitidas de geração em geração. Guardavam os sábados de trabalho, vestindo camisas e toucas lavadas, e nas vésperas varriam a casa, arranjavam a candeia com azeite limpo e punham torcidas novas; cumpriam as regras dietéticas, como a proibição de comer carne de porco, aves afogadas, caça ou peixe sem escama; faziam os jejuns; guar­ davam as Páscoas, faziam as festas usando os melhores vestidos e cele­ bravam outras cerimónias da Lei Velha. Utilizavam os Cânticos de Moisés, os Salmos de David e a Bíblia traduzida, rezando orações judaicas que escreviam e transmitiam uns aos outros em papéis ou decoradas, como a oração Shemá e a Amidá. O judaísmo rabínico era algo exterior à rea­ lidade então vivida em Portugal e na maior parte dos locais onde os cristãos-novos se instalaram. Pelos éditos afixados nas portas das igrejas e pela sua divulgação nos autos-da-fé, muitas pessoas tinham conhecimento de determinados comportamentos considerados judaizantes. Contudo, não é razoável defender que essas práticas fossem transmitidas de ânimo leve de gera­ ção em geração e muito menos por inconsciência. A passagem de tes­ temunho da memória tinha um preço muito elevado e não é admissível que os cristãos-novos o fizessem sem uma convicção religiosa profun­ da, que os levasse a continuarem a tradição e a cumprirem a sua parte da Aliança. A maior parte dos conversos nestas situações tinha antepas­ sados judeus mais ou menos longínquos e, quando conseguiram sair de Portugal, clandestinamente ou não, para destinos de maior tolerância religiosa, assumiram-se como judeus. 5.1. As orações e as bases do cumprimento da Lei Mosaica Paulo de Milão relatou aos inquisidores que rezava três vezes ao dia os Salmos de David e o Cântico de Moisés com o rosto virado para orien­ te, lavando as mãos antes. Quando nomeava Domini baixava a cabeça e antes de beber água benzia-a com a oração Bendito tu Adonai noestro Dios rei del Mundo sacan agoa della piedra, dizendo uma bênção seme­ lhante quando partia o pão. Acreditava em Deus, Abraão, Isaac, Jacob e a eles se encomendava com as orações e salmos.62 Para celebrar o Jejum do Dia Grande, os Milão oravam os Salmos de David sem glória, o Cântico de Moisés e orações que Paulo trouxe de Hamburgo escritas num papel. Uma das orações começava por Shemá Israel Adonai e outra começava Adonai mis lábios abriras, ou seja, a Amidá.63 Por outro lado, Leonor Henriques cria somente no Deus dos Céus e a Ele se encomendava, rezando o Cântico de Moisés em linguagem (português), que lhe ensinara o doutor Montalto, médico, antes de sair de Portugal. Também rezava os Salmos de David em linguagem, sem 62 Processo de Paulo de Milão, fol. 192—192v. 63 Processo de Paulo de Milão, fol. 185—186.

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Gloria Patri.64 O seu marido, Henrique Rodrigues, que orava pela Bi­ blia, escreveu-lhe num papel o salmo Devite (?) Domine esperavi em linguagem, sem Gloria Patri, e ela estudou-o, sabia-o e dizia-o todo. Do mesmo modo lhe escreveu os Dez Mandamentos da Lei de Deus em l inguagem e dizia-os para guardar a Lei. Este papel também foi visto por Isabel Henriques e Beatriz Henriques, sua prima e cunhada.65 Gomes Rodrigues de Milão, quando saía de casa, rezava a seguinte o r ação com o chapéu posto virado para o oriente, como seu irmão Fer­ não Lopes lhe tinha ensinado: A rmado ando com as armas de A donai.66 Gomes Rodrigues Milão, quando rezava, encomendava-se a Deus e an­ tes de rezar lavava as mãos, ficava com o chapéu na cabeça e quando podia olhava para o oriente, às vezes com as mãos juntas, levantando-as defronte do peito como fazem os cristãos, mas sem fazer cruz com os dedos, pois assim lhe ensinara sua irmã Leonor Henriques.67 Na Páscoa do Pão Ázimo, Gomes Rodrigues Milão esteve num escri­ tório da casa onde se encontrava deitado seu pai Henrique Dias Milão; Fernão Lopes leu-lhes pela Sagrada Escritura, em linguagem, o capítulo que trata da dita Páscoa, dizendo alguns Salmos de David sem Gloria. Por outro lado Beatriz, sua prima, assumiu a responsabilidade de ensinar a Gomes o Cântico de Moisés em português e os salmos dos três jovens na fornalha na Babilónia, também em português, que começa: Bendito tu es senhor D eos de nossos p a is e bendito seja o teu nome p a ra sempre.68 E uma oração de Tobias: «Tu Senhor es grande e o teu reino serà pera todo sempre [...] porque tu es o que condennas e o que salvas tu levas ao Inferno e [...] dahi não ha quem possa fugir de tuas mãos confessai ao senhor filhos de Jaé porque ele vos espalhou por entre gentes que vos nam conheçem e elle para que vos façaes a saber que não ahi outro Deos senão elle, elle vos castiga por vossos pecados elle vos sal­ vara por sua misericordia / com grande temor o louvais ao Rey das Eternida­ des, porque [ha na terra do meu c]ativeiro [o confessarey porque mostrou sua] magestade com [...] [portanto convertei-vos [...] fazendo [...] diante de Deos crendo que elle faz [...] misericórdia [...] nelle nos allegramos [...] seus escolhidos e passai dias de contentamentos Jerusalem cidade de Deus castigou-se [...] nas obras [...] todos os cativos [...] contente para todo o sempre [...] resplandecente [...] te adorarão nações de muito longe virão a ti trazendo dadivas e offertas [...] adorarão hao Senhor toda a tua terra terá por bem aventurada porque nella chamarão o nome Altissimo do Senhor sejão malditos os que despresarem, se­ rão condemnados os que de ti blasfemarem. Benaventurado seja eu se ouver re­ liquias de minha geração que veja a cara de jesalem. As portas de Jersalem serão edefi cadas d'esmeraldas e çafiras de pedra limpa e alva. Sera feita Jersalem e seus muros. Bendito seja o senhor / que a olhou para que nella fique seu povo 64 65 66 67 68

Processo de Leonor Henriques de Milão, fol. 196-197. Processo de Leonor Henriques de Milão, fol. 198. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 221. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 200. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 180v. Trata-se do início de Dn 3, 5190. Esta parte do Livro de Daniel não foi reconhecida pelo Judaísmo rabínico da Palestina, mas foi-o pelo Judaísmo alexandrino.

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para todo sempre amen.»69

E uma outra oração para quando lavava as mãos: «Bendito tu Adonay [nosso senhor rey do mundo que] nos santi fiscaste com teus mandamentos e nos mandaste [...] amen.»70

E ainda outra: «[...] de Adonay [...] não serei morto nem ferido. Bons caminhos se me abrirão os maus se me arredaram os bons se me [obrigarão com a graça do senhor [...] com a graça do senhor tornarey] amen.»71

E mais outra, que lhe disse para rezar por guarda da Lei de Moisés: «Seja o nome do senhor Bendito e louvado porque elle tira os reynos e os da elle muda os tempos e as idades.»72

Durante o Quipur, ficaram rezando os Salmos de David como estão na Bíblia e sem Gloria Patri, até que Paulo de Milão entrou em casa e disse que já era noite, porque as estrelas tinham saído. Estavam presen­ tes os pais e os três filhos homens; um deles, Fernão Lopes, aproveitou a ocasião para ler o capítulo que trata do Quipur na Escritura, em lin­ guagem.73 E Gomes Rodrigues Milão teve de ser repreendido, para não rezar os Salmos ajoelhado, mas sim de pé, e para não cheirar um pêro durante o jejum, pois isso «o sustentava».74 5.2. A guarda dos sábados, as regras dietéticas e os jejuns de segundas e quintas-feiras Numa linguagem inquisitorial, toda a família partilhava práticas judaizantes, inclusivamente a escrava Vitória, a criada Violante Barbosa (meia cristã-nova, filha solteira de António Barbosa que vivia em Ma­ drid, a qual estava em Hamburgo em casa de Beatriz Henriques) e o criado João (filho de João Lopes da vila de Melo, moço de quinze anos, que também estava em Hamburgo). Para além destes, o mesmo tipo de comportamento era tido antes do Perdão Geral por Ana de Milão, na sua casa na freguesia de S. Mamede75, com os seus filhos Beatriz, Bran­ ca e Jorge de Andrade (filhos de Ana de Milão e Rodrigo de Andrade), principalmente no que se refere a não comer as coisas proibidas, a guardar o Sábado, a fazer os jejuns das segundas e quintas-feiras76 e as mais cerimónias que a Escritura mandava.77 69 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol . 180v—181v. Esta oração de Tobias corresponde a Tb 13, no Antigo Testamento. O Livro de Tobias não faz parte do cânone judaico, portanto rezar esta oração consiste num comportamento pouco consentâneo com o Judaísmo rabínico. 70 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol . 181v. 71 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 181v. 72 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 181 v. 73 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 182v. 74 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol . 183v—184. 75 Processo de Paulo de Milão, fol. 178—178v. 76 Processo de Paulo de Milão, fol. 177v—178. 77 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 252v—253.

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Na casa dos Milão, Guiomar Gomes limpava os candeeiros na sex­ ta-feira à tarde, pondo-lhes azeite limpo e torcidas novas, deixando-os acesos até que por si se apagassem e sempre cumpriu as restrições ali­ mentares, ensinando-as aos filhos.78 Por exemplo, Gomes Rodrigues guardava os sábados de trabalho e vestia camisa lavada, que lhe era da­ da por sua prima Beatriz Rodrigues, por guarda do Sábado. Esta, por vezes, pegava na almofada para fingir79 estar costurando. Vários são os jejuns das segundas e quintas-feiras relatados por di­ versos membros da família Milão, sendo inclusivamente alvo de ob­ servação especial pelos oficiais do Santo Ofício dentro dos cárceres da Inquisição. Esta observação secreta faz parte dos processos de Gomes Rodrigues80, Fernão Lopes Milão81 e de Paulo de Milão.82 Isa­ bel Henriques, por seu lado, também fez alguns jejuns das segundas e quintas-feiras com a sua irmã Leonor Henriques e com seu primo Henrique Rodrigues83, mas em casa. Gomes Rodrigues Milão viveu catorze anos no Brasil, mas em Janei­ ro de 1606 já estava em Lisboa onde, passado um mês, os seus pais lhe disseram que tinha de deixar a fé de Cristo e passar a crer na Lei de Moisés, devendo para o efeito guardar os sábados de trabalho e vestir camisa lavada, não comer carne de porco, lebre, coelho ou peixe sem escamas e que devia jejuar às segundas e quintas-feiras.84 5.3. O Rosh-Hashaná e o Yom Kipur O Quipur é uma das datas mais importantes no Judaísmo e era lembra­ do pelos cristãos-novos portugueses como o Jejum das Perdoanças85, nome dado por Guiomar Gomes, ensinada pela irmã do seu sogro, Marquesa Lopes. Também era conhecido como Jejum do Dia Grande, de acordo com Paulo de Milão, calhando na quarta-Feira, 11 de Outubro de 1606.86 De facto, o Quipur de 5367 teve lugar a 10 Tishri, coincidindo perfeitamente com a data dada pelos Milão à Inquisição de Lisboa. Na véspera desse Quipur, o criado Francisco Barbosa pôs-se a tocar uma guitarra no pátio, o que criou um certo mal-estar e lhe valeu a re­ preensão de seu irmão, António Barbosa, aconselhando-lhe então a abstinência e a penitência adequadas à data.87 A revelia de Francisco para com as práticas preparatórias do Quipur ficou-se por aí, pois parece ter Processo de Guiomar Gomes, fol. 166—167v. 7 9 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 189v. 80 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 223—223v, fol. 252— 252v. 81 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 100-130. 82 Processo de Paulo de Milão, fol. 56—105. 83 Processo de Isabel Henriques, fol. 41v—42v. 84 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 177-177v. 85 Processo de Guiomar Gomes, fol. 166—166v. 86 Processo de Paulo de Milão, fol. 185—186. 87 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 194, 228v—229. Aparentemente foi esta discordância que levou Francisco Barbosa a denunciar toda a família na Inquisição.

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feito o que lhe mandaram. As regras de limpeza foram cumpridas e por isso todos se lavaram e cortaram as unhas; os homens barbearam-se. No próprio dia participaram no jejum todos os Milão, incluindo Paulo de Milão - acabado de chegar de Hamburgo - , Beatriz Rodri­ gues, António Dias Cárceres, a escrava Vitória e os criados Francisco e António Barbosa. Depois do jejum, em que estiveram sem comer o dia todo até à saída da estrela, comeram arenque que Paulo tinha trazido, pois não se devia comer carne, vestiram-se com camisas lavadas e os melhores vestidos.88 A família fazia estas cerimónias quando podia; Gomes Rodrigues Milão, porque estava esposado com Beatriz Rodri­ gues, jejuou com ela e porque ambos criam na Lei de Moisés e acredi­ tavam que o Messias ainda estava para vir.89 Na casa de Alcântara, juntou-se aos Milão Manuel Sanches, cristãonovo solteiro caixeiro de Fernão Lopes e morador na casa da tia Leo­ nor Sanches a S. Julião, e aí esteve de manhã à noite; à tarde, Gaspar Fernandes Penso, que tinha uma loja de fancaria no Pelourinho Velho, também passou por lá e disse-lhes que também jejuava.90 As discussões à volta de temas religiosos e das correctas práticas a ter nos tempos devidos eram comuns, tal como se pode verificar por um episódio passado num dia à tarde e que se passa a descrever. Os rapazes da família Milão e Vicente Furtado (filho de Duarte Furtado, que estava esposado para se casar com uma filha de Manuel de Palácios, prima dos Milão) andavam passeando num dos pátios da casa. Fernão Lopes tinha consigo um livro da Bíblia e todos discutiram sobre a forma de guardar o Jejum do Dia Grande. A dado momento, Paulo de Milão disse que os judeus de Levante se vestiam de branco e Fernão Lopes replicou que ele seguia a Escritura que tinha na mão, conduzindo-se a discussão para o conceito de caraíta, ou Carraim. Vicente Furtado esclareceu serem os caraítas uma casta de judeus que guardavam literalmente as Escrituras e delas não se afastavam, embora fizessem fogo fora de casa aos sába­ dos.91 Este episódio é revelador da profundidade de algumas das dis­ cussões tidas na época —pelo menos em determinados círculos —e da utilização da Bíblia traduzida, para suporte e orientação na manutenção e na prática da Lei Velha. 5.4. Purim e o jejum da Rainha Ester O jejum da Rainha Ester foi guardado na segunda-feira, dia 20 de Mar­ ço de 1606, e na quarta-feira seguinte os Milão fizeram novo jejum, com excepção do patriarca da família, devido à muita idade, e de Ana 88 89 90 91

Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 182—182v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 178—178v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 239—239v. Processo de Paulo de Milão, fol. 185—186; Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 193-195. Manuel Nunes, quando vivia na Correaria em S. Mamede, também tinha uma Bíblia com estampas e lia as partes do Deuteronómio, onde se trata da Lei de Moisés, para saber o que devia fazer —cf. Processo de Paulo de Milão, fol. 180v—181v.

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de Milão92, que estava prestes a dar à luz. A descrição dos jejuns pela família é curiosa, pois de facto o jejum da rainha Ester no calendário judaico de 5366 calhou numa quarta-feira, dia 13 Adar II (22 de Março), sendo o Purim no dia seguinte. As restrições na participação em tais je­ juns também coincidem com as regras judaicas; no entanto, os mem­ bros da família Milão anteciparam em dois dias o início de tais eventos. Beatriz Rodrigues, chegada a casa de seu tio por volta de 1602, logo nesse ano e durante três dias de Março, fez alguns jejuns com a prima Beatriz Henriques. Nesses períodos de abstinência só podiam comer à noite pão, ovos e peixe. Depois da prima Beatriz Henriques ter ido para Hamburgo, continuou as mesmas práticas com Leonor Henriques, Ana de Milão e Isabel Henriques, nomeadamente a guarda dos sábados e a Páscoa do Pão Ázimo, não fazendo nada durante sete dias e vestindo os melhores vestidos.93 5.5. As Páscoas —Pessah e Sucot A Páscoa, que comemora a libertação do Povo de Israel do Egipto, era também festejada pelos Milão, durante sete dias.94 A Páscoa do Pão Ázimo foi celebrada no sábado 22 de Abril de 1606 por todos na casa de Alcântara, encontrando-se entre os participantes António Dias de Cárceres —irmão de Henrique Dias Milão vindo de Londres —e pelo criado Francisco Barbosa, de idade de 17 ou 18 anos, natural de Ma­ drid, filho de António Barbosa. Para a ocasião vestiram-se com camisas lavadas e os melhores vestidos e nos sete dias seguintes comeram pão ázimo, alface, ovos e castanhas. Na celebração desta Páscoa nota-se, no entanto, uma formação de grupos no seio da própria família extensa. Na véspera, os esposados Gomes e Beatriz juntaram-se com a sua irmã mais nova Isabel Henriques (e os criados Francisco Barbosa e Branca Rodrigues), que os aconselhou a estarem com bordões nas mãos, cean­ do pão ázimo e alfaces95 ou vegetais semelhantes. De acordo com a descrição de Gomes Rodrigues Milão, no dia de Páscoa Ana de Milão deu à luz, mas não deixou por isso de participar nas celebrações da festa e, para o efeito, vestiu-se de lavado com toucas limpas.96 Nas vésperas, Isabel Henriques cozeu os bolos de pão ázimo e preparou a comida para a Páscoa: castanhas cozidas, ovos cozidos e al­ faces. No terceiro dia vestiram roupas lavadas e guardaram o domingo Seguinte. Durante esse período comeram o pão ázimo, em D eus ter livrado o povo de Israel do cativeiro do Egipto.97 92 93 94 95

Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 178v—179. Processo de Beatriz Rodrigues, fol. 126v—128v. Processo de Guiomar Gomes, fol. 167—167v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 179v—180. A sugestão de segurarem bordões é pouco usual. 96 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 190—190v. 97 Processo de Isabel Henriques, fol. 36-37.

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A calendarização guardada pelos Milão é consentânea com o calen­ dário judaico, que aponta 15 a 22 de Nisan, ou seja, 22 a 29 de Abril de 1606, revelando um cálculo rigoroso ou —o que é mais provável - o uso de calendários, que circulavam clandestinamente tanto na forma manuscrita como impressa. Mas não era só este tipo de «mercadoria» que circulava entre os cristãos-novos; o mesmo se passava com os bolos ázimos. Durante a Páscoa do Pão Ázimo, um criado de Ana de Milão, que estava em Antuérpia, chegou a casa de Guiomar Gomes com recado para mandar uns poucos de bolos da Páscoa98 àquela cidade flamenga. No que se refere à Páscoa das Cabanas ou Tabernáculos, a data de 15 de Outubro avançada pela família também corresponde inteiramente ao calendário judaico de 14 a 21 Tishri, ou seja, de 15 a 22 de Outubro. No entanto, a descrição que dela fazem não é pormenorizada, sabendose apenas que todos vestiam roupas e vestidos melhorados. Nessa altu­ ra, todavia, já a família estava receosa, pois sabiam das denúncias de Francisco Barbosa e tratavam já da sua partida.99 Para além das práticas descritas da lei de Moisés, existem outras que não se conseguiram identificar de forma clara, nomeadamente os jejuns praticados por Guiomar Gomes em Junho e Julho, por lembrança de quando Deus deu a Lei a Moisés.100 Sobre estes jejuns apenas se pode conjecturar tratar-se da Páscoa dos Tabernáculos ou Festa das Semanas, que celebra a outorga da Torá no Monte Sinai, que ocorreu de 10 a 12 de Junho (4 a 7 Sivan); no entanto, durante estes dias não é usual fazerse jejum. Em Julho poderá tratar-se do jejum do mês de Tammuz, em memória da destruição das tábuas da Lei com os Dez Mandamentos. O jejum também recorda a destruição da cidade de Jerusalém e do Segun­ do Templo e marca o início de Tisha Be Av. 5.6. O papel de Fernão Lopes Milão Pela leitura dos vários processos da Inquisição de Lisboa respeitantes à família Milão, dos seus familiares, dos seus criados, dos escravos e dos oficiais da casa comercial fica claro um papel predominante de Fernão Lopes Milão na busca de livros, na procura das práticas mais próximas das descritas na Bíblia e no seu próprio incentivo e dos outros em saber mais sobre o Judaísmo. Fernão Lopes era quem dizia o quê e como se deviam guardar101 as várias festividades e jejuns102 e também, por exemplo, quando se deviam rezar as lamentações do profeta Jeremias.103 Numa ocasião em que che­ gou uma nau de Hamburgo à taracena da casa dos Milão, ele aproveitou para encomendar ao mestre da mesma um Saltério com os Salmos de 98 99 100 101 102 103

Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 239—239v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 197—198. Processo de Guiomar Gomes, fol. 167—167v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 190—190v. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 191. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 191v—192.

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David para Vicente Furtado104, que se mostrava necessitado de um. A sua curiosidade advinha-lhe dos estudos no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, onde aprendeu Gramática, ouviu os princípios de Filosofia e teve Matemática com João Baptista Lavanha, durante três anos. Além disso, aprendeu grego e hebraico com Manuel Correia, cura de S. Sebas­ tião na Mouraria105, sabia latim, castelhano, italiano e lia francês.106 A sua biblioteca incluía os principais livros de todas as ciências, excep­ to Medicina, e por todos estudava.107 Em hebraico tinha uma gramática e toda a Bíblia em dez volumes pequenos, que lhe dera o mestre Manuel ■Correia. Contam-se obras de Jean Bodin; os Elogios emendados e July Sirmici et Chiliades de Erasmo; Metamorfoses de Ovídio em italiano e o Livro do Duelo; Farrago Epoematum; um livro de Maquiavel dedicado ao papa Clemente VII; um livro, Indiciis Natipitatum, que era de seu primo Henrique Rodrigues. Os livros de Bodin, Maquiavel e o Indiciis estavam proibidos pelo Santo Ofício e Fernão Lopes sabia disso, mas tinha a inten­ ção de os deixar a D. Nuno Álvares de Portugal.108 A maior parte destes livros, excepto o de Bodin, foram comprados a frei António de Sequeira, religioso de S. Domingos, que ficaram de frei António de Sousa, bispo de Viseu. Fernão Lopes comprara-os aos livreiros Estevão Lopes e António Ribeiro.109 Esta biblioteca é exemplar para demonstrar a circulação de obras proibidas e a sua transacção de forma mais ou menos clandestina. Por curiosidade, Fernão Lopes Milão fazia figuras geométricas e co­ meçou a escrever um livro sobre o perfeito governo, por mandado de Ramires do Prado e de D. Álvaro de Benevides, ouvidores da Câmara. Para isso, traduziu Cornélio Tácito e fez uns discursos sobre ele. Escreveu tratados de matemática e começou outros de poesia, interessando-se entre­ tanto pela Sagrada Escritura; anotou discursos do Génesis ao Apocalipse, entrecruzados com discursos profanos imitando Panignola (?) e o jesuíta Martino de Roa. Os vários tratados que escreveu sobre a Escritura tratavam de questões de matemática e geometria, relacionadas com a construção e fábrica do Templo e da Arca, sobre a Luz que Deus fez no princípio do Mundo e sobre a forma de contar os anos até Noé e dele até Abraão. Nestes tratados limitou-se a comentar, com base na Matemática e nas au­ toridades, santos doutores como S. Tomás. O conhecimento dominado por Fernão Lopes permitiu-lhe, inclusivamente, argumentar com os in­ quisidores que o interrogavam sobre qual tinha sido o dia em que Cristo comeu cordeiro pascal com seus discípulos, ou quando foi a sua ressur­ reição, baseando-se em S. Mateus, cap. 22 e seguintes, em S. João Sénio, Maldonado, Toledo, Soares, Vita Christi de Fonseca e S. Tomás.110 104 Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 195v—196. 105 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 161—161v. 106 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 166. 107 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 161v. 108 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 166v—167. 109 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 168. 110 Processo de Fernão Lopes Milão, fol. 161v—164.

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6. As vivências religiosas em Hamburgo A Nação Portuguesa de Hamburgo reunia em finais do século XVI e início do XVII vários indivíduos oriundos de Portugal, mas também da Flandres e dos estados italianos. Entre os mais distintos conta-se Álva­ ro Dinis, referenciado logo nas primeiras listagens como sendo casado com Beatriz Henriques, ou seja, numa data posterior a 19 de Março de 1606, pois foi nessa data que o grupo que acompanhava a filha de Hen­ rique Dias Milão saiu de Lisboa na nau São Cristóvão do mestre Cristóvão da Boa Hora.111 Este grupo era composto por seu irmão, Paulo de Milão e, pelo menos, uma criada. A ligação matrimonial entre os Milão e os Dinis pode dever-se a uma relação comercial pré-existente ou iniciada recentemente, pois Ál­ varo Dinis era sobrinho-neto do contratador Jácome Gomes Galego112, um dos mais importantes mercadores de Lisboa do século XVI, contra­ tador da pimenta na década de oitenta e noventa e contratador das naus e direitos da Índia.113 Para além disso, o próprio pai, Filipe Dinis, foi investidor da Carreira da Índia114 no início do século XVII, o que revela pelo menos a sua capacidade de endividamento e de investimento. Por conseguinte, as relações da casa comercial dos Milão saíram fortalecidas pelos laços matrimoniais com os Dinis. Entre 1606 e 1611 a casa de Álvaro Dinis incluía a esposa, o seu cu­ nhado Manuel Cardoso, um jovem e uma criada115, que provavelmente era Violante Barbosa. O facto de Manuel Cardoso Milão ser referido como responsável pelos livros de contabilidade de Álvaro Dinis indicia que o jovem não identificado possa ser um aprendiz da casa comercial, mas existem outras possibilidades, nomeadamente a de ser um criado ou o irmão mais jovem dos Milão, António Dias, que estivera em Per­ nambuco, no Brasil. A casa de Álvaro Dinis, situada na Rua Dreckwall, acolheu em 1612 uma parte considerável dos membros da família Milão refugiados da In­ quisição de Lisboa. Na lista desse ano da Nação Portuguesa, para além da esposa, foram arrolados a sogra, dois cunhados oficiais e um jovem.116 Ou seja, na casa de Álvaro moravam também a esposa Beatriz Henri­ ques, a sogra Guiomar Gomes, podendo ser os cunhados Manuel Cardoso Milão, que é enumerado no rol anterior, e provavelmente Paulo de Milão, António Dias ou Fernão Lopes. O jovem aprendiz é uma incógnita. 111 Processo de Paulo de Milão, fol. 128. 112 António Borges COELHO, Inquisição de Évora, vol. 1, Lisboa 1987, p. 427. 113 BOYAJIAN, Portuguese Trade, p. 19; António Borges Coelho, Quadros Para Uma Viagem a Portugal no Século XVI, Lisboa 1986, p. 106—107. 114 BOYAJIAN, Portuguese Trade, p. 132. 115 Alfonso CASSUTO, Neue Funde zur Ältesten Geschichte der Portugiesischen Juden in Hamburg in Zeitschrift für die Geschichte der Juden in Deutschland 1 (1931), p. 64—67. 116 Lista da Nação Portuguesa, Hamburgo 1612, SA Hamburg, Senat, CL CVII, Lit HF nr. 5 vol. 3 a, fas. 3, fol. 110 b; CASSUTO, Neue Funde, p. 68.

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A Rua Dreckwall em Hamburgo foi o local de morada da família Mi­ lão, pois para além das pessoas mencionadas, também as outras filhas de Henrique Dias Milão aí se fixaram. Ou seja, a esposa de Henrique R odrigues e ele próprio tinham casa nessa via, onde se situava também a residência de Pedro de Palácios, da sua mulher e dum irmão117, provávelmente de Pedro. Os nomes das mulheres destes chefes de família não são mencionados, mas pela reconstituição da família, possível através da análise das sessões de genealogia dos processos inquisitoriais, sabe-se que o Dr. Henrique Rodrigues era casado com Leonor Henriques e Pedro de Palácios, com Isabel Henriques ou Isabel de Santiago. Estas informa­ ções são corroboradas por Luís Vaz Pimentel, no seu processo inquisitorial, onde refere o casamento de Álvaro Dinis, ao mesmo tempo que o descreve como um cristão-novo português, nascido em Veneza, em­ bora o pai tenha morado em Lisboa.118 No entanto, outras informações indicam que Álvaro Dinis era natural de Braga119 ou de Antuérpia.120 Mas, mais importante que o local de nascimento de Álvaro Dinis é o seu papel aglutinador e de líder espiritual dos portugueses de Hambur­ go, levando-os a reunirem em sua casa, na Rua Dreckwall, durante as primeiras décadas de Seiscentos. 6.1. As esnogas da Rua Dreckwall e os fundamentos da Keter Torah A Rua Dreckwall, hoje denominada Alterwall, foi o local com mais por­ tugueses durante os primeiros anos de 1600. De acordo com a lista de 1612 apresentada ao Senado de Hamburgo, esta rua contava com ca­ torze casas de portugueses enquanto a média por via era de três. Portanto, não é de estranhar que alguns dos cristãos-novos aí residentes assumissem papéis de líderes espirituais, disponibilizando a sua casa pa­ ra reuniões com fins cerimoniais e de oração conjunta. Esta ideia é confirmada pelo espólio inquisitorial de Lisboa. Pelo processo de Vicente Furtado sabe-se que ele esteve pousado em casa de Álvaro Dinis, seu primo co-irmão, em Hamburgo. Aí praticavam a Lei de Moisés em companhia de Jerónimo Freire, cristão-novo mercador e caixeiro do dito.121 O que nos leva a identificar o jovem acima descrito e arrolado com este oficial. Paulo de Milão atestou que no mês de Abril de 1606, ele, Álvaro Dinis e Jerónimo Freire celebraram a Páscoa do Pão Ázimo durante oito dias, em casa do seu cunhado. Para além de vestirem melhores roupas, 117 Lista da Nação Portuguesa (1612), fol. 111; CASSUTO, Neue Funde, p. 68. 118 Processo de Luís Vaz Pimentel, Lisboa 1614, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 2305, interrogatório de 19/12/1612; Processo de Henrique de Lima, Lisboa 1638, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 3922. 119 Pedro de A ze v e d o , O Bocarro Francês e os Judeus de Cochim e Hamburgo in Archivo Historico Portuguez, vol. VIII (1910) p. 195; SALOMON, Portrait, p. 49. 120 L eoni —SALOMON, La N ation Portugaise de H am burg, p. 284.

121 Processo de Vicente Furtado, fol. 13-13v; Processo de Diogo Carlos, Lisboa 1638, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 7194, testemunho de Vicente Furtado.

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no dia anterior comeram as alfaces agrestes em loiça nova e tudo faziam por guarda da Lei de Moisés.122 Entre os correligionários contam-se também o criado João e António Barbosa, que tinha o Velho Testa­ mento em linguagem, assim como o primo Henrique Rodrigues.123 Este último explicou por que razão o cântico dos Três Jovens na Fornalha não devia terminar com Benedicamus Patrem et Filium cum Sancto Spiritu. porque os moços não o tinham dito.124 A casa de Álvaro Dinis foi o local onde se fizeram dois jejuns e se rezaram os salmos sem Glória125, durante o Verão de 1606. Num do­ mingo de Julho, no jejum que recordava a destruição de Jerusalém, participaram Paulo de Milão, o dono da casa e sua esposa Beatriz Hen­ riques, Violante Barbosa, António Barbosa, João (criado dos sobredi­ tos), Jerônimo Freire e Duarte de Palácios (de 20 anos, filho de Manuel de Palácios morador em Lisboa a N.a Sr.a da Vitória, em casa da mãe Clara Gomes), ambos caixeiros do chefe da família. Em Agosto, passa­ das três semanas e por memória da destruição do templo por Tito Vespaciano, as mesmas pessoas fizeram um novo jejum.126 Ou seja, apenas as pessoas que faziam parte da casa de família. Por volta do ano de 1609, aumentou o número de pessoas que se reuniam na referida residência. Segundo Vicente Furtado, que aí esteve pousado durante cinco meses, muitos cristãos-novos reuniam-se no lar de Álvaro para rezar os Salmos de David, para guardar os sábados e pa­ ra fazerem o jejum do Quipur, em suma, para seguirem a Lei de Moisés. Entre eles, o próprio Vicente, seu primo Álvaro Dinis e a esposa; Jerónimo Freire, caixeiro; Rui Fernandes Cardoso, os seus quatro filhos (André Rodrigues, Fernão Rodrigues, João Gomes e outro de doze anos) e a esposa; Fernão Dias, mercador de Lisboa, irmão de Diogo Carlos, ambos solteiros e moradores em Hamburgo; Duarte de Palácios (filho de Manuel de Palácios), que estava em casa de Álvaro Dinis; Simão Barbosa, solteiro de catorze ou quinze anos, natural de perto de Vila do Conde, criado de Vicente Furtado; Francisco da Costa, cristãonovo cunhado do referido Rui Fernandes; Rui de Castro, cristão-novo, médico irmão de Francisco da Costa; Manuel Fernandes, mercador na­ tural de Lisboa; Gonçalo Cardoso, irmão de Rui Fernandes Cardoso; e Henrique Nunes, cristão-novo, confeiteiro vindo de Lisboa e casado com uma mulher que fora presa pela Inquisição.127 Os membros da Nação Portuguesa com alguma capacidade financei­ ra, como Álvaro Dinis ou Rui Fernandes Cardoso, compraram ou aluga­ ram quintas fora de Hamburgo, onde em determinadas épocas do ano 122 123 124 125 126 127

Processo de Paulo de Milão, fol. 184—184v. Processo de Paulo de Milão, fol. 181v—182. Processo de Gomes Rodrigues de Milão, fol. 228. Processo de Paulo de Milão, fol. 182v—183. Processo de Paulo de Milão, fol. 197v—198v. Processo de Vicente Furtado, fol. 13v—14.

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várias famílias e indivíduos se juntavam. Na quinta de Álvaro falava-se da Lei de Moisés, guardava-se os sábados de trabalho e a Páscoa do Pão Ázimo em Abril e, para além da família, albergavam-se também os médi­ cos Rui de Castro e João Serrão, Fernão Dias Carlos e Diogo Carlos, ir­ m ã o s de Nuno Dias Carlos e que moravam à Caldeiraria em Lisboa.128 A quinta de Rui Fernandes Cardoso também congregava várias pessoas com fins religiosos, nomeadamente no mês de Junho de 1606, na cele­ bração da festa das Semanas. Estavam presentes a sua família, constituída pela mulher Beatriz de Castro, pelo filho Fernão Rodrigues Cardoso, pelo genro Gonçalo Cardoso (casado com uma filha de Rui Fernandes Cardo­ so) e por Francisco da Costa (irmão de Beatriz de Castro). Para além de­ les estavam Henrique Nunes (confeiteiro que viveu em Lisboa), a mulher, a filha e o genro Miguel Rodrigues (corretor de mercadorias); Henrique Fernandes (filho de António Fernandes Caminha, que morava em Lisboa, na Rua de Mataporcos), a sua mulher, cristã-velha de Tanger; e um Luís Rodrigues, mercador natural de Lisboa, casado, e que teria à data do pro­ cesso cerca de quarenta anos, grosso, alto, barba comprida e ruiva. Este, quando estavam todos merendando na quinta, tomou um copo de vinho na mão, benzeu-o com uma bênção hebraica e disse que cada uma das pessoas devia beber um trago desse vinho. Também falaram do jejum da Rainha Ester e todos declararam viver na Lei de Moisés e fazer as ceri­ mónias que podiam, especialmente o jejum da Rainha Ester.129 A crescente necessidade dum rabino conduziu a que, em 1611, já existisse um Haham, Abraão de Herrera, assinalado um ano depois na Rua Herrligkeit.130 A 31 de Maio de 1611, os três representantes da Na­ ção Portuguesa compraram um terreno destinado ao cemitério em Altona. Tratava-se de André Faleiro ou Abraão Aboab, Rui Fernandes Cardoso ou David Aboab e Álvaro Dinis ou Samuel Jachia.131 O facto de estes três homens darem a cara para a compra dum terreno com fins religiosos judaicos não se deve apenas à sua importância social, mas também porque eram eles os principais impulsionadores da manuten­ ção da Lei de Moisés e do estabelecimento do judaísmo rabínico. A conservação da tradição era feita em três casas particulares, assina­ ladas por Paulo Garcês, por volta de 1615, como local de reunião em sinagoga , designadamente a de Álvaro Dinis, a de Rui Fernandes Cardoso e a do Francês.132 Esta última pode ser na casa dos Franceses133, também 28Processo 1 de Paulo de Milão, fol. 191—192. 129 Processo de Paulo de Milão, fol. 190-191. A hipótese das quintas de Rui Fernandes Cardoso e de Álvaro Dinis serem apenas os terrenos que serviriam posteriormente para o cemitério é pouco consistente, pois a referência a quintas data de 1606 e 1609 e os terrenos para o cemitério de Altona foram adquiridos em 1611. 130 Lista da Nação Portuguesa (1612), fol. 110b; CASSUTO, Neue Funde, p. 68. 131 Alfonso CASSUTO, Elementos para a História dos Judeus Portugueses de Hamburgo, s.l. s. d., p. 9—10. 32 Processo de Paulo Garcês, Lisboa 1620, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc. 3292, confissão de 4/4/1620.

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conhecidos pelo nome Rosales, na de Rodrigo Pires Brandão ou na de seu irmão Manuel Francês, cujo parentesco com os Francês/Rosales, com quem partilhariam o apelido, não está ainda esclarecido. As sinagogas tam­ bém são referidas por Heitor Mendes Bravo, mas em casa de Rodrigo Pires Brandão; outra na de Rui Fernandes Cardoso; e outra ainda na casa de Ál­ varo Dinis, sendo o sacerdote Rodrigo de Merchena ou Abraão Coen de Herrera.134 Tudo parece indiciar que o rabi se desdobrava entre a Rua Dreckwall, onde moravam Álvaro Dinis e Rodrigo Pires Brandão135, e Rodingsmarkt e que certamente a sinagoga do Francês era a mesma do Brandão. De qualquer forma, a actividade destas sinagogas em casas par­ ticulares foi de grande longevidade, pois deram origem à Talmud Tora fundada por Eliau ou Elias Aboab Cardoso; à Keter Tora, por Abraão Aboab Faleiro e pelos Milanos; e à Neve Shalom, por Moisés de Lima.136 Estas três congregações reuniram-se em 1652 na Bet Israel. O papel de Álvaro Dinis ou Samuel Jachia como líder espiritual é, portanto, de grande importância para a comunidade sefardita de Ham­ burgo, mas não se limitou a esta cidade e estado. Por volta de 1625, também negociou em Viena o restabelecimento na Silésia dos judeus portugueses forçados a abandonar Glückstadt, devido a uma inundação que atingiu a Baixa Saxónia e a Dinamarca137, defendendo a Nação Por­ tuguesa e o Judaísmo noutras paragens. Em prol da manutenção da tradição publicou em Hamburgo, no ano de 1629 (5389), os sermões Trinta Discursos, ou Darazes apropriados para os Dias Solemnes: e da Contrição, e jejuns fundados na Santa Ley, em português. A obra de Dinis revela que o autor era um parnas, ou líder espiritual, duma das três congregações existentes, e pela escolha dos temas dos seus sermões extrai-se o seu passado converso, que pouco tem a ver com o judaísmo rabínico, nomeadamente a salvação pela Brit Milah ou a peste como castigo divino.138 Por conseguinte, os objectivos manifestados nos sermões de Álvaro Dinis refletem as preocupações de fundo dos cristãos-novos portugue­ ses. Estas eram as de saberem o que deviam fazer e o que deviam evitar para cumprirem a Lei de Moisés e, acima de tudo, na altura dos jejuns, 133 Sobre a família Francês/Rosales cf. Sandra Neves SlLVA, Judaísmo, erudição cientí­ fica e divagações profetizantes: vida e obra de Manuel Bocarro Francês aliás Jacob Rosales (c. 1588-1662/8?), tese de doutoramento em fase de redacção. 134 Processo de Heitor Mendes Bravo, Lisboa 1618, ANTT Lisboa, Inquisição de Lis­ boa, proc. 12493, fol. 10v. 135 SAH, Senat, CL CVII, Lit HF nr. 5 vol. 3a, fas. 3, fol. 111; CASSUTO, Neue Funde, p. 68. 136 LEONI - SALOMON, La Nation Portugaise de Hamburg, p. 267, 292-293 (doc. III). So­ bre as sinagogas de Hamburgo ver também Florbela Veiga FRADE, Formas de vida e re­ ligiosidade na Diáspora in Cadernos de Estudos Sefarditas, n.° 7 (2007), p. 185— 219. 137 SALOMON, Portrait, p. 50, nota 12. 138 Julia L ieberm an , Reconstructing the Past: H ow the Portuguese Jew s Read Biblical Narrati ves in Proceedings of the Twelfth British Conference on Judeo-Spanish Studies, Leiden 2001, p. 103—104.

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das celebrações e dias memoráveis. Esta vontade de cumprir correta e atempadamente os rituais —manifestações externas da espiritualidade — indicia o querer reatar os laços há muito lassos com a fé dos antepassa­ dos e também, por esses mesmos ritos, os desejos de integração na co­ munidade da fé. Álvaro Dinis distinguiu-se como líder espiritual e como homem de negócios. Assim, teve o monopólio da cunhagem de moeda em Altona e mais tarde em Glückstadt, onde faleceu em 1645139, sendo reconheci­ do como um dos mercadores melhor cotados. A presença de Álvaro Dinis em Glückstadt consta dos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa, onde é referido como rabino, en­ quanto o seu cunhado Paulo de Milão é caracterizado como um merca­ dor pobre140 na cidade dinamarquesa. O estatuto social de Álvaro Dinis também era elevado, pois é considerado um judeu de corte141, na medi­ da em que tinha contactos próximos com o círculo de pessoas que ro­ deavam o rei Cristiano da Dinamarca. Na década de 1640 os Milão ainda estavam em Hamburgo. De acordo com as denúncias de D. Diogo de Lima, Paulo de Milão era contratador em Hamburgo e chamava-se Daniel Abensur, António Di­ as Milão chamava-se Josua Abensur142, o que é corroborado por Gaspar Bocarro, que indica ainda a presença de Pedro de Palácios e a esposa, António Dias Milão e André Rodrigues de Andrade, seu primo coirmão chamado Jacob Israel de Andrade.143 A modo de conclusão, pode afirmar-se que as famílias Milão e Dinis têm o mesmo passado de cristãos-novos em Portugal e ambas tiveram papéis muito importantes no país, no que ao tecido social e económico, e sobretudo, religioso diz respeito. A família Jachia tinha uma longa tradição em Portugal, pois vários dos seus membros foram rabinos de corte e médicos, enquanto outros partilhavam com a família Milão o fi­ nanciamento e a arrematação de contratos com a Coroa Portuguesa que garantiam os fornecimentos das armadas e o envio regular de navios da Rota do Cabo. Mas, acima de tudo, os Milão e os Dinis partilhavam uma fé, um tipo de religiosidade própria e comum aos descendentes dos judeus portugueses antes de 1496, e que se revelava na clandestini­ dade e na intimidade dos lares, na companhia de amigos e familiares, manifestando fortes laços de respeito pela tradição e desejo da manu­ tenção de valores estreitamente ligados ao Judaísmo dos antepassados. A religiosidade dos cristãos-novos em Portugal, no período em que oficialmente não existiam judeus e durante, pelo menos, as três 139 CASSUTO, Elem entos, p. 9—10,1 2 —13.

140 Cadernos do Promotor, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, Livro 220, fol. 176—176v. 141 Hermann K ellenbenz , Court Jews (Court Contractors and Suppliers) in Enciclopaedia Judaica, vol. 5, Jerusalém 1971, cls. 1006—1012. Cadernos do Promotor, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, Livro 226, fol. 260-263v. 143 Processo de Gaspar Bocarro, ANTT Lisboa, Inquisição de Lisboa, proc 3020, fol. 44v—45v.

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primeiras gerações de conversos, é semelhante nas práticas e nas con­ vicções das pessoas que se exilaram em países onde também não era possível o judaísmo rabínico. Existiu um esforço sobre-humano para a manutenção das crenças e tradições e, acima de tudo, uma persistência e insistência na manutenção da Aliança, esforços esses que não podem ser menosprezados, mesmo que as suas práticas não correspondessem completamente à norma e à prática rabínica tida por boa. Siglas ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa IL - Inquisição de Lisboa SA - Staatsarchiv, Hamburg

Legenda, fig 1 e fig. 2 Genealogia elaborada tendo em conta a bibliografia citada no artigo e os diversos pro­ cessos inquisitoriais assinalados com a sigla IL, a que se segue o número do processo. Quadrado: género masculino. Círculo: género feminino. Cruz: morte (em alguns casos assinala-se a morte para que o programa de genealogia não calcule a idade da pessoa, sabendo-se apenas a data do nascimento). Quadrado a cinzento: prisão pela Inquisição Portuguesa.

Fig. 1: G enealogia d os Milão/Furtado/Dinis/Palácios

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Die religiöse und soziale Bedeutung der Familien Milão-Dinis in Portugal und Hamburg (Zusammenfassung) Henrique Dias Milão war Oberhaupt einer der großen neu-christlichen Familien Portugals sowie Inhaber einer der Firmen bzw. Unternehmen mit intemationalem Charakter. Diese vertrat Interessen in Lissabon Antwerpen, Venedig, Hamburg, Brasilien, der afrikanischen Westküste sowie Hispanoamerika und unter Umständen sogar Indien. Über Heirat schlossen sich die Milão der Familie Dinis/Furtado an, der ebenfalls wichtige in Lissabon ansässige Händler angehörten. Die Mitglieder beider Familien wurden von der Inquisition verhaftet , die Milão von der Lissabonner Inquisition und Filipe Dinis, das Oberhaupt der Dinis, von der Inquisition in Venedig. Aus den Inquisitionsprozessen beider Familien, die so genannte jüdische Praktiken ausübten, lassen sich ihre Lebensgeschichten rekonstruieren. In Hamburg fanden sowohl die Milão, nachdem sie aus dem stark von den Inquisitoren bewachten »Bairro Penitencial« geflohen waren, als auch ein Großteil der sich zum Judentum bekennenden Anhänger Zuflucht. Álvaro Dinis, der mit einer Milão verheiratet war, nahm die Rolle des geistigen Führers der portugiesischen Nation in Hamburg ein. Indem er den Bekehrten geistigen Halt bot und das Grundstücks für den jüdischen Friedhof in Altona erwarb, legte er den Grundstein für die sefardische Gemeinschaft. Seine Trinta Sermoens bildeten eine der Grundlagen zum Erlernen des jüdischen Kalenders und der Werte des Judentums, die den Portugiesen in der Anfangszeit zugänglich war. Ebenfalls verhalf die Grammatica von Moseh Gideon Abudiente, einem engen Freund Álvaro Dinis’, zum besseren Erlernen des Hebräischen. Übersetzung: Isabel da Silva Francisco

Obwohl die Frühe Neuzeit zu den am besten untersuchten Epochen der portugiesischen Geschichte gehört, wurden die Beziehungen Portugals zur deutschsprachigen Welt bisher nicht genügend untersucht. Zum ersten Mal liegt nun ein umfassender Band vor, der die politischen sowie künstlerischen Beziehungen und die Verbreitung von Nachrichten zwischen dem portugiesisch- und dem deutschsprachigen Baum beleuchtet, wobei der Austausch zwischen Portugal und Hamburg in besonderer Weise hervorsticht Der Band enthält die Akten des interdisziplinär und international ausgerichteten Kolloquiums, das 2009 an der Universität Hamburg unter Beteiligung von portugiesischen, deutschen und österreichischen Forschern stattgefunden hat. Ganz im Sinne der Ausrichtung des Kolloquiums sind die Beiträge entweder auf Deutsch oder auf Portugiesisch veröffentlicht und schließen mit einer Zusammenfassung in der jeweils anderen Sprache ab. Embora a Época Moderna seja dos períodos mais estudados da história de Portugal, não têm sido suficientemente investigadas as relações entre o mundo de língua portuguesa e o mundo de língua alemã. Pela primeira vez publica-se um trabalho abrangente, que atende às relações políticas, à circulação de notícias e às relações artísticas entre os espaços de língua portuguesa e de língua alemã, dos quais se destaca o contacto privilegiado entre Portugal e Hamburgo. O volume consiste na publicação das Atas do Colóquio Internacional e interdisciplinar que decorreu em Hamburgo em Junho de 2009 e no qual participaram investigadores portugueses, alemães e austríacos. Fiéis ao espírito do Colóquio, as contribuições são publicadas em português ou alemão, seguidas de um resumo na outra língua.

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