A inclusão da Retórica em Comunicação e Expressão em cursos de Tecnologia

July 27, 2017 | Autor: Ana Lucia Magalhaes | Categoria: Composition and Rhetoric
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http://www.fatecguaratingueta.edu.br/, acesso em 04/03/2012
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A inclusão da Retórica em Comunicação e Expressão em cursos de Tecnologia
Teaching Rhetoric to technology majors
RESUMO - As faculdades de tecnologia são instituições de ensino superior dedicadas a cursos tecnológicos voltados ao mercado. Cursos de exatas em geral não costumam privilegiar o ensino de Humanas. No entanto, a maioria dessas instituições ensinam disciplinas não-tecnológicas, como por exemplo Comunicação e Expressão no curso de Análise de Sistemas. A ementa trata de correção gramatical e diversas formas de comunicação na empresa. A introdução de aulas de Retórica para alunos de Informática tem suscitado resposta entusiástica. Alguns têm mesmo procurado se aprofundar. Conceitos como ethos, pathos, logos e argumentação são aprendidos com relativa facilidade e aplicados a exercícios. Há indícios de melhoria na comunicação oral e escrita como resultado da compreensão de técnicas discursivas aplicadas. Um aprofundamento da pesquisa em outros cursos de exatas poderá confirmar a importância do ensino da Retórica naquele contexto.
Palavras-chave – Educação, retórica, tecnologia
ABSTRACT – Technological Colleges are normally network institutions. Courses offering majors in technology are usually not keen in teaching humanities. However, most of them offer a number of non-technical disciplines, for example for Systems Analysis majors. One of those disciplines is called Communication and Expression. The syllabus includes a solid review of grammar and specifics in business communication in. The introduction of rhetoric in those classes for computer science students has met enthusiastic response. Some students have even sought to deepen their newly acquired knowledge. Concepts such as ethos, pathos, logos and argumentation are fairly easily learned and applied in the exercises. There are signs of significant improvement in oral and written communication as a result of understanding and application of discursive techniques. Further research in other technological courses may confirm the importance of teaching of rhetoric in that context.
Keywords – Education, rhetoric, technology

Introdução

A proposta desse trabalho é apresentar uma experiência com introdução do ensino de Retórica em escola tecnológica de nível superior, cujos cursos são tipicamente voltados para o mercado de trabalho e envolvem essencialmente matérias da área de exatas. Os alunos esperam do curso o desenvolvimento de competência e habilidades próprias e costumam considerar as disciplinas que não fornecem formação específica como não mais que perda de tempo.
No entanto, é esperado de qualquer profissional competência em se comunicar, entendida não apenas como capacidade de troca de informações, mas também o domínio de habilidades argumentativas, sob pena de ter seu progresso dificultado. À medida que o profissional se desenvolve na carreira, as habilidades não técnicas aumentam de importância.
A experiência com alunos de Análise de Sistemas, curso típico, mostrou fortes indícios de que a Retórica pode ser introduzida por via de alguma disciplina relacionada nas escolas tecnológicas e contribui para o desenvolvimento de capacidades consideradas essenciais.
A estrutura deste texto inicia-se com explicação concisa sobre alguns conceitos de retórica trabalhados no contexto, esclarece em detalhe o tipo de auditório (Perelman y Tyteca) objeto de análise, insere o conteúdo programático a partir do qual se percebeu a possibilidade de inclusão de Retórica e apresenta a metodologia das aulas específicas. Ao final, mostra os resultados obtidos.

Retórica: conhecimento útil no exercício de profissões de cunho tecnológico
Tudo o que se diz da Retórica nessa breve composição histórica, mesmo seus conceitos mais antigos, podem ser aplicados ainda hoje.
A Retórica tem sido definida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de utilizar todos os recursos da linguagem com o objetivo de provocar determinado efeito nos ouvintes. De acordo com os sofistas (pensadores pragmáticos e utilitaristas) estava ligada à arte de argumentar, no sentido de debater contra ou a favor de qualquer opinião, desde que vantajosa. Essa postura foi debatida por Sócrates, que lhe emprestava valor apenas à medida que participasse da essência da filosofia e, para Platão (in: Os Pensadores, 1995), a retórica poderia convencer os próprios deuses. Tratava-se da utilização dos recursos discursivos para obter a adesão dos espíritos, expressão ainda hoje lembrada, que exprime muito bem seu objetivo.
Aristóteles, ao sistematizar a retórica, define-a como
A faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão. [...] parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para persuadir. Por isso dizemos que ela não aplica suas regras a um gênero próprio e determinado (Aristóteles, 2002: p. 33).
Entre os conceitos explicados pelo filósofo, destacam-se as três provas retórico-discursivas: ethos que, em linhas gerais refere-se ao caráter, à imagem que o orador transmite por meio do seu discurso (eu); pathos, que está ligado ao componente emocional que o discurso desperta no auditório (tu) e logos, que se refere também ao orador e à sua capacidade de convencimento, ao seu conhecimento de mundo.
Da Grécia à Roma antiga, enquanto para Cícero, em três tratados, o orador perfeito era o homem perfeito, ponto de vista também encontrado em Quintiliano (1865: 180), para este último a Retórica, exposta de maneira mais completa e sistemática, era a "arte de falar do que levanta problemas nos assuntos civis, de forma a persuadir" Durante a Idade Média e Renascença a Retórica foi indispensável na educação, dividindo-se com a Lógica no século XVI. Neste século e no seguinte, os grandes mestres retóricos foram os jesuítas, membros da Companhia de Jesus, que a aplicavam aos domínios da crítica. De acordo com Plantin (2008: 13), no fim do século XIX, a Retórica foi violentamente criticada como disciplina não científica e eliminada do currículo da universidade republicana.
Após longo período restrita ao estudo das figuras de linguagem, a Retórica ressurgiu com Perelman y Tyteca em seu Tratado da Argumentação (publicado pela primeira vez em 1958) ligada efetivamente aos estudos da argumentação que, sob o ponto de vista da organização clássica das disciplinas, está vinculada à lógica como "arte de pensar corretamente", à retórica como "arte de bem falar" e à dialética "arte de bem dialogar". Evidentemente esse tripé forma a base do sistema argumentativo de Aristóteles.
Segundo Plantin,
um dos méritos essenciais do Tratado da Argumentação, de Perelman & Olbrechts-Tyteca, é o de ter fundado o estudo da argumentação sobre o estudo das "técnicas argumentativas" [...] e forneceu uma base empírica de esquemas […] (2008: 45).
Ao afirmar que a argumentação eficiente se liga à intensidade da adesão dos ouvintes ou ao menos à criação de uma disposição para ouvir, Perelman y Tyteca (1999) introduziram o conceito de auditório (que pode ser universal ou particular). Outra questão importante comentada no Tratado é a adesão racional e passional, denominadas, respectivamente, convencimento e persuasão. É preciso mencionar que, em retórica, o racional não é o demonstrável, pois ela subsiste no campo do provável, do possível, do plausível, do verossímil. Persuasão e convencimento aparecem separados apenas para fins didáticos, uma vez que, na realidade, estão imbricados no discurso e quase não se percebe quando se utiliza um ou outro, assim como não se decide por um ou outro na prática discursiva. No entanto, foi justamente o estudo e a exploração dessas duas formas de argumentação, inicialmente separadas, que permitiu uma aproximação mais efetiva com alunos de Análise de Sistemas.



Os cursos superiores de tecnologia e o estudante de Análise de Sistemas

A busca por cursos superiores de tecnologia tem crescido no país, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e Europa e um dos motivos é o caráter de praticidade e direcionamento desses alunos. As escolas de formação de tecnólogos caracterizam-se pela procura da rápida inserção do graduado no mercado de trabalho.
Os principais cursos oferecidos nessas escolas são, geralmente, direcionados ao mercado regional, assim existem, por exemplo, só no estado de São Paulo, mais de 60 especialidades que variam das diferentes distinções da Informática até áreas correlatas à medicina, passando por cursos ligados a agronegócios, diversos tipos de gestão, mecânicas, mecatrônica, especialidades ligadas à construção até cursos muito específicos como soldagem, radiologia e produção têxtil.
Dentre essa variedade, escolheu-se o curso de Análise de Sistemas, pertencente à área da Informática, pois atende ao escopo deste trabalho, que é verificar se é possível introduzir conceitos de Retórica em cursos tipicamente voltados ao mercado e até que ponto o conhecimento e aplicação de tais conceitos auxilia o profissional.
Perfil do estudante de Análise de Sistemas
A partir de pesquisa a várias instituições que oferecem o curso de Análise de Sistemas, a definição a seguir mostra um perfil padrão do estudante.
O Tecnólogo em Análise de Sistemas analisa, projeta, documenta, especifica, testa, implanta e mantém sistemas computacionais de informação. Esse profissional trabalha, também, com ferramentas computacionais, equipamentos de informática e metodologia de projetos na produção de sistemas. Raciocínio lógico, emprego de linguagens de programação e de metodologias de construção de projetos, preocupação com a qualidade, usabilidade, robustez, integridade e segurança de programas computacionais são fundamentais à atuação desse profissional.
De acordo com o desenhado pela instituição, o tecnólogo em Análise de Sistemas tem como função analisar, projetar, documentar, especificar, implantar e manter sistemas computacionais de informação. Assim, a grade é configurada para atender as exigências específicas de mercado.
Para isso, é esperado que esse profissional, ao lado de uma qualificação técnica no emprego de linguagens específicas, desenvolva raciocínio lógico e apresente habilidade linguística. Esta última, necessária basicamente em qualquer profissão, é particularmente importante àquele que precisa tratar diretamente com públicos, internos ou externos à organização, caso do analista de sistemas, preparado especificamente para funções de gestão. Além do contato com tais públicos, ele constantemente necessitará elaborar relatórios, projetos e mesmo textos diversos, em que o domínio da língua é certamente exigido. Enquanto a qualificação técnica pode ser adquirida por meio das disciplinas oferecidas e o raciocínio lógico possa ser desenvolvido da mesma maneira — e efetivamente isso se dá ao longo do curso —, percebe-se maior dificuldade na conquista de uma desenvoltura linguística, principalmente associada à linguagem escrita.
Tal percepção ocorre não apenas aos professores, como essa situação também é reconhecida pelos próprios alunos, que confirmam não raramente extrema dificuldade em "colocar as ideias no papel". É possível que, em algum momento, se questione a necessidade de desembaraço linguístico por parte de profissionais da área de exatas, porém tal habilidade está diretamente ligada à capacidade de o indivíduo se colocar no mercado de trabalho e efetivamente comprovar sua competência.
Ainda que restrições de linguagem possam ter diversas origens, inclusive deficiências do ensino fundamental, pretende-se mostrar, independentemente de tais reservas, de que modo a inclusão de aulas de retórica na disciplina de Comunicação e Expressão têm contribuído para que os alunos se posicionem e efetivamente melhorem sua capacidade comunicativa.
A ementa da disciplina e oportunidade de acréscimo da Retórica
A grade do curso de Análise de Sistemas prevê aulas de Comunicação e Expressão com objetivos e ementa bastante específicos, voltados quase exclusivamente à produção correta de textos empresariais:
Objetivos: identificar os processos linguísticos específicos e estabelecer relações entre os diversos gêneros discursivos para elaboração de textos escritos que circulam no âmbito empresarial; desenvolver hábitos de análise crítica de produção textual para poder assegurar sua coerência e coesão. Ementa: visão geral da noção de texto. Diferenças entre oralidade e escrita, leitura, análise e produção de textos de interesse geral e da administração: cartas, relatórios, correios eletrônicos e outras formas de comunicação escrita e oral nas organizações. Coesão e coerência do texto e diferentes gêneros discursivos. (Plano de Ensino, 2012).
Embora as instituições de ensino superior tecnológico em geral permitam ao professor o livre exercício da didática, os objetivos e a ementa de todos os seus cursos são predeterminados e não podem ser modificados. É possível observar na citação, mesmo em uma leitura superficial, que a fragilidade desses itens conduz a uma restrição de conteúdo. Com isso, existe uma tendência natural à repetição de conceitos ministrados no ensino médio, em parte talvez porque o docente percebe não terem sido tão bem apreendidos pelos alunos, em parte porque a própria ementa a isso conduz.
Apoiada em alguns vocábulos ali presentes (gêneros discursivos, processos linguísticos, análise crítica de produção textual), a autora deste texto resolveu inserir conceitos de discurso, retórica e argumentação na tentativa de expandir os conhecimentos dos alunos e permitir que repensassem seus próprios discursos.
2.3 Conteúdo das aulas de Retórica
Com a finalidade de proporcionar maior abrangência da área de atuação de Comunicação e Expressão e para propiciar interação com outras disciplinas, sem se afastar da ementa e seus objetivos, foi elaborado um quadro de competências linguísticas julgadas importantes, divididas em três níveis, conforme Tabelas 1 e 2, com as Competências Formais e Filosóficas a serem desenvolvidas em Comunicação e Expressão. A proposta é alcançar o nível intermediário e motivar para o nível avançado.
Tabela 1 - Competências formais
compe-tência
básico
intermediário
avançado
Comu-nicação Escrita
Criar, produz-zir e revisar documentos empresariais de rotina em resposta a si-tuações infor-madas conci-samente que sejam: claros, corteses, com-pletos, corretos: aceitáveis.
Compor, revisar e editar documen-tos empresariais em resposta a estudos de casos que sejam: infor-mativos, bem or-ganizados, lógi-cos, persuasivos, ou seja, profis-sionais em forma e conteúdo.
Selecionar estra-tégias retóricas apropriadas e ca-nais de comuni-cação para per-suadir públicos diversos a aceitar decisões empre-sariais.
Comunicação Oral
Expor uma apresentação breve e infor-mal.
Desenvolver e expor uma apre-sentação empre-sarial formal ba-seada em relato-rio ou proposta, que seja: articu-lada, inteligível, ensaiada, orga-nizada, dinâmica, visualmente inte-ressante
Criar e apresentar uma apresenta-ção executiva e moderar discus-sões com úti-lização de recur-sos retóricos apropriados.
Pesquisa de Informação
Escrever uma carta ou relatório que contenha resumo e documentação de informação obtida de várias fontes
Escrever uma recomendação que selecione, analise e organize informação recolhida de fontes múltiplas, inclusive fontes eletrônicas
Escrever relatório analítico refinando deter-minado tópico: seleção, avalia-ção, síntese e documentação de informação com-plexa de várias fontes, com inclu-são de artigos acadêmicos
Tabela 2 - Competências filosóficas
compe-tência
básico
intermediário
avançado
Pensamento Crítico
Identificar ele-mentos-chave em situações empresariais informadas concisamente.
Definir um pro-blema, formular os objetivos da empresa ou ins-tituição, propor e analisar solu-ções razoáveis e fazer reco-mendações so-bre casos (busi-ness cases).
Avaliar situa-ções de crise em termos de forças, fraque-zas, ameaças e oportunidades.
Ética
Usar linguagem livre de viés, evitar exageros e falácias lógi-cas e saber re-conhecer práti-cas não-éticas.
Saber escolher soluções apro-priadas a dile-mas éticos que envolvam vá-rias partes inte-ressadas.
Aplicar princípios de ética empresarial a decisões empresariais.
Decisão
Identificar cau-sa e efeito de uma decisão administrativa simples.
Usar argumen-tos de fato, polí-ticas da empre-sa ou institui-ção, valor e cro-nograma para defender uma decisão empre-sarial.
Aplicar um con-junto explícito de critérios para avaliar proble-mas empresa-riais e recomen-dar a melhor solução.
Resolução de problemas
Discutir custos e benefícios de produto, serviço ou política da empresa.
Efetuar análises de custo -bene-fício de alterna-tivas.
Analisar barrei-ras potenciais, internas e ex-ternas, à imple-mentação de projeto.
Realismo
Aplicar conheci-mento relevante de necessida-des do cliente, interesses da organização e regulamenta-ções governamen-tais a uma cor-respondência.
Determinar como fatores éticos, globais, políticos, tecnológicos e culturais afetam a possibilidade de uma organização operar.
Definir, avaliar e resolver problemas de comunicação que afetam departamentos como produção, finanças, marketing e relações públicas de uma organização.
Fonte: a autora (adaptado de Brzovic, Fraser Loewy e Vogt)
Após análise do quadro, percebe-se não apenas a possibilidade de introdução de conceitos retóricos e argumentativos aplicados, como a necessidade deles para melhorar a compreensão dos processos comunicativos nos diversos níveis. A partir dessa constatação, como verificar se essa abertura oferece aos alunos maior percepção daquilo que praticam intuitivamente? Haveria uma maneira de observar sensíveis modificações na qualidade da escrita ou mesmo na oralidade? Os alunos perceberam tais mudanças?
Para responder tais perguntas foram utilizadas duas estratégias: distribuição de um questionário com perguntas indiretas aos alunos e exercícios orais e escritos efetuados antes e após as aulas de retórica. Evidentemente não cabe aqui mostrar todos os efeitos, mas os resultados do questionário e os de um exercício escrito servirão para apontar, no item 6, indícios.
Conceitos de texto e discurso (Greimas, Koch, Maingueneau), objetividade e subjetividade (Benveniste, Orecchioni), argumentação – persuasão e convencimento – e o estudo das três provas retóricas conforme teorizam Aristóteles, Perelman (1999) e Meyer (2009) foram amplamente discutidos e, após, exercitados por meio da aplicação aos gêneros (Bakhtin) jurídico, jornalístico, publicitário e organizacional. Embora algumas dúvidas talvez não tenham sido inteiramente sanadas, tendo em vista a complexidade do assunto, os alunos se mostraram interessados e procuraram se aplicar às propostas. Os autores citados não foram mencionados durante a aula.
2.3.1 Conceitos trabalhados
Na segunda metade do século XX, quando os estudiosos da linguagem se debruçaram sobre as formalizações desse estudo, particularizaram-se as noções sobre o texto e o discurso, assim como as teorias que os explicitam. A diferença entre as duas noções, contudo, não surgiu, a princípio, facilmente delimitada e pede algumas considerações. O homem para se tornar agente do processo de comunicação produz textos por meio do processo da escolha e combinação dos elementos que lhe são oferecidos pelo sistema da língua e é no processo complexo único de textualização, intertextualização, coesão e coerência argumentativas que o orador imprime seu discurso e se motiva a atuar ou intervir no grupo social.
Assim, discurso, mais comumente relacionado à linguagem verbal, tem seu sentido ampliado quando remetido a processos de produção e interpretação e enfatiza a interação entre falante e receptor, escritor e leitor e leva em conta também o contexto situacional de uso. Nesse aspecto, texto é uma dimensão do discurso, a sua materialidade. Dessa forma, a distinção entre um e outro não está expressa nessa materialidade, mas no olhar que o focaliza. A ideia de discurso como processo é confirmada por Maingueneau (1997: p. 21) quando declara que o discurso é concebido como uma associação de um texto com o seu contexto. A maneira pela qual os textos se organizam, por sua vez, depende da prática social dos grupos em que são gerados e de seus objetivos discursivos e podem se formalizar em texto científico, acadêmico, publicitário, jornalístico, literário, organizacional e muitos outros, ou seja, domínios discursivos, conforme Bakhtin.
Uma introdução ao estudo da subjetividade é pertinente, uma vez que toda a construção discursiva, conforme Benveniste (1966, p. 259-260), é constituída por um sujeito e, por isso mesmo, traz em si a subjetividade a ele inerente. Nesse sentido, mesmo o gênero científico, aparentemente objetivo, carrega as marcas da subjetividade, que é, segundo o mesmo autor, a capacidade do orador se posicionar como sujeito. É na e pela linguagem que o indivíduo se apropria de certas formas disponibilizadas pela língua e se coloca no mundo.
Nesse contexto estão inseridas as questões retóricas e argumentativas. Lembremos que a nova retórica, no seu sentido amplo, embora guarde muitos conceitos da antiga considerados válidos, moderniza-se a partir de sua aproximação com várias disciplinas específicas da comunicação, que a suportam ou que são por ela suportadas, em definitiva interdisciplinaridade: linguística, semiologia, semiótica, teoria da informação, pragmática. Além desse aspecto, o que se observa de novo é a integração que pretende eliminar a diferença entre as ciências humanas, as ciências do discurso e das matemáticas. Para isso, as teorias da argumentação desenvolveram-se nos postulados democráticos e se embasam nos valores, preferências e decisões, aceitando limitações e imperfeições. É preciso pensar hoje a universalidade a que o indivíduo está sujeito.
Levando-se em conta que a argumentatividade está presente em todo discurso, argumentar significa considerar o outro como capaz de reagir e interagir diante das propostas e teses que lhe são apresentadas, o que é feito por meio do diálogo, do debate. O discurso enunciado pretende mover o pensamento do outro, colocar o interlocutor em condições de exercer-se para separar o essencial do acessório, de julgar um conjunto de proposições sem prejuízo dos matizes utilizados no percurso discursivo.
O envolvimento entre as partes não é unilateral: trata-se muito mais de uma negociação em que prevalece o anseio de influência e poder, em que uma parte quer convencer a outra, persuadi-la de que seu ponto de vista é o correto, seja por meio da lógica (logos), seja pela emoção (pathos), seja pelo caráter, imagem do orador (ethos). Perelman, assim como Aristóteles, define a retórica como técnica da persuasão: o objeto desta teoria é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses apresentadas ao seu assentimento (Perelman, 1999, p. 5). Nesse sentido, a retórica é a arte de comunicar com múltiplos sentidos: persuadir e convencer, agradar, seduzir ou manipular ideias com a finalidade de aceitação, fazer passar o verossímil, a opinião e o provável com boas razões e argumentos, sugerir inferências, insinuar o implícito pelo explícito, instituir um sentido figurado a deduzir do literal, utilizar linguagem figurada, descobrir as intenções de quem fala ou escreve, atribuir razões ao seu dizer.
As partes do discurso (invenção, disposição, elocução, ação e memória) não são abordadas nas aulas de Comunicação e Expressão, porém é interessante lembrar que Meyer as associa aos três grandes elementos: o ethos discursivo se apresenta ao auditório e visa captar sua atenção a respeito de uma questão e, em seguida expõe o logos dessa mesma questão, ao mesmo tempo em que apresenta os prós e contras. Por último, age sobre as paixões – no sentido aristotélico – ao apelar às emoções e sentimentos do ouvinte (pathos). Assim, Meyer resume as partes da retórica em uma única meta: "anular a problematização que o auditório sempre pode efetuar" (MEYER, 2007, p. 48). Em outras palavras, o discurso propõe mover o auditório em seu favor e para isso utiliza as três provas aristotélicas: ethos, pathos e logos.
2.3.2 Metodologia das aulas
As aulas, com duração de três horas e meia e intervalo de dez minutos, apresentam uma metodologia diferenciada para cada assunto e se adequam ao auditório. Dessa forma, se para determinado grupo de alunos é mais conveniente comentar sobre conceitos e exercitar depois, para outro, o mais sensato será apresentar e discutir um texto e só então, introduzir e trabalhar o conceito. Em outros casos, parte-se do repertório do aluno. Assim, não existe uma forma única ou mais apropriada. Depende sempre da disposição do auditório.
Como ilustração, o tema Retórica e Argumentação é tratado em vários momentos e retomado sempre que possível, com a finalidade de reforçar o entendimento. Uma das maneiras de abordar tem sido o método socrático, por meio de perguntas específicas sobre o assunto (o que entende por retórica, em que contexto a palavra foi ouvida, o que é argumentação, persuasão, convencimento, existe diferença entre persuasão e convencimento ...). O método é repetido para cada uma dessas perguntas. Os alunos se manifestam livremente e a professora anota as respostas — corretas ou não — no quadro, para que todos acompanhem o raciocínio. Como se trata de conceitos complexos, muitas vezes é necessário considerável esforço mental, mas há grande participação. Após esse primeiro momento de debate, os alunos são levados a refinar a lista de respostas e só então os conceitos são ministrados. Em seguida, eles são instados a exemplificar com casos reais, fruto da observação ou mesmo de experiência pessoal e corrigidos, se necessário.
Evidentemente o assunto é retomado em aulas posteriores, embora com outra abordagem. Durante o estudo da linguagem jornalística, por exemplo, os alunos são solicitados a aplicar os conceitos de retórica e argumentação já trabalhados. O mesmo ocorre nas aulas de linguagem promocional e na organizacional, esta última considerada como foco da disciplina Comunicação e Expressão para Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Apesar da retomada em vários momentos e dias diferentes, há sempre um cuidado para que o tópico não se torne cansativo, embora haja necessidade de repetições.
Conceitos de ethos, pathos e logos são introduzidos nas aulas subsequentes, porém de forma diversa, uma vez que dificilmente alunos de cursos de tecnologia terão tido contato com tais vocábulos. Nesse caso, um triângulo com os termos é mostrado e o conceito explicado por meio de várias ilustrações. Só então os estudantes começam a participar com exemplos, experiência e se posicionar diante dos discursos político, educacional e organizacional. Textos curtos são projetados em tela para que todos possam ler e analisar. Busca-se sempre a participação do maior número de alunos. Qualquer que seja a sequência escolhida há, ao final, uma aplicação prática por meio de exercícios orais ou escritos.
2.3.3 Alguns exercícios e atividades
Uma das proposições é solicitar que os alunos escrevam uma Nota Oficial sobre determinado acidente em uma empresa real. Uma folha com a explicação sobre o assunto é entregue sem qualquer instrução prévia. Os textos produzidos são recolhidos. Iniciam-se então as aulas sobre retórica e argumentação que inclui estudos de subjetividade, persuasão, convencimento, as três provas retóricas e algum outro conceito pertinente. Tais conceitos são trabalhados oralmente e exercitados, de acordo com a melhor metodologia considerada para aquele auditório. Após algumas aulas, é pedido que os alunos reescrevam a Nota Oficial, porém com a preocupação de seguir o que foi visto sobre argumentação. Os novos textos são recolhidos e comparados com os anteriores. Aliás, esse foi um dos exercícios utilizados para avaliar a fixação dos conceitos e capacidade de uso deles em funções práticas.
Outra atividade consiste em dividir a sala em três grupos. Um caso jurídico real, preferencialmente ligado a roubo, é distribuído a todos para que leiam cuidadosamente. A cada grupo é fornecida uma tarefa: um deles deverá acusar o criminoso, o outro defenderá e o terceiro grupo estudará defesa e acusação, pois fará o papel de julgador. É determinado algum tempo para que os alunos discutam os argumentos e elejam um representante. Após o tempo determinado, assim como em um júri, o primeiro grupo acusa e o segundo defende. Há a oportunidade de réplica pelo primeiro grupo e de tréplica pelo oponente. Em seguida, o terceiro grupo de manifesta, expressa a análise dos argumentos apresentados e informa o veredicto. A atividade é bastante movimentada e reforça os conceitos argumentativos estudados.
A proposta de leitura de um conto de mistério com poucos personagens tem se mostrado positiva na compreensão dos conceitos de ethos, pathos e logos. Após leitura minuciosa e discussão sobre o enredo, os alunos são instados a, oralmente, construir o ethos dos principais atores discursivos. Após essa fase, verificam os argumentos utilizados e se há predominância de persuasão ou convencimento, se há mais paixão ou racionalidade. Em seguida, é solicitado que escrevam um conto de mistério que privilegie a construção do ethos e demonstre alguma agilidade no domínio de argumentos.
Receptividade e rendimento dos alunos
Embora se trate de curso de tecnologia com predomínio de disciplinas da área de exatas, os alunos têm demonstrado interesse durante as aulas e não se furtam aos exercícios. É interessante notar que, apesar da dificuldade na aquisição de conceitos e principalmente na necessidade de seguir raciocínios complexos, há participação de parte considerável das salas e até mesmo demonstrações de entusiasmo.
Ainda que não seja possível quantificar a aprendizagem, a aquisição dos conceitos foi avaliada por meio de um questionário. A aplicação dos conceitos foi analisada a partir das duas redações da Nota Oficial. Os resultados fazem parte, portanto, de uma pesquisa qualitativa, mostrada nos gráficos a seguir.
A Figura 1 foi elaborada a partir da análise de duas redações sobre uma nota de acidente conforme descrito em 5.3. Foram marcadas nos textos as incidências de argumentos constituintes de ethos, pathos e logos e, após esse levantamento, elaborou-se um quadro comparativo do primeiro texto, escrito antes das aulas de Retórica com o segundo, após as aulas.

Figura 1: comparação das redações antes e após as aulas de Retórica
Como se observa, do primeiro texto, sem conhecimento dos aspectos argumentativos para o segundo, há considerável aumento da presença de ethos e logos e uma diminuição substancial do pathos. Naquele momento, trabalhava-se o discurso organizacional como espaço que privilegia o aspecto objetivo, factual para construir e reforçar uma boa imagem. Discutia-se que as questões éticas ligadas a empresas, por exemplo, devem ser seguidas de ações, tais como investimento em meio ambiente e no bem estar do colaborador, além de demonstrações de confiabilidade no produto e preocupação com o cliente.
O exercício demonstrou que os alunos foram capazes não apenas de compreender os argumentos racionais e patéticos ligados às três provas retóricas, mas também de aplicar tais conhecimentos em um texto escrito. Outras práticas foram experimentadas com resultados semelhantes.
A Figura 2, a seguir, foi organizada a partir do resultado de um questionário simples, com duas questões. Na primeira, os alunos deveriam identificar ethos, pathos e logos em uma lista que misturava dezoito afirmações, seis de cada um dos três elementos. Na segunda, por meio do mesmo critério, identificariam características de argumentos racionais e passionais em uma lista de vinte afirmações, dez com elementos do primeiro grupo e dez do segundo. Embora fosse solicitado que pensassem com calma antes de responder, porque as afirmações eram parecidas, o teste durou menos de quinze minutos e os alunos se sentiram bastante tranquilos.


Figura 2: reconhecimento de conceitos
As porcentagens mostram que os alunos entenderam os conceitos, de maneira geral, especialmente os de persuasão e convencimento. A maior dificuldade foi na compreensão do conceito de pathos que, em alguns casos foi confundido com o de ethos. No entanto, não podemos considerar como erro tal troca, pois trata-se de assunto altamente subjetivo, além de realmente existir um componente patético na composição do ethos. Percebemos que os estudantes encontraram maior facilidade na identificação do logos.
A pesquisa qualitativa apontou, nos dois casos, que alunos de cursos tecnológicos foram capazes de compreender conceitos filosóficos complexos e, mais do que isso, houve uma significativa melhora na composição textual. Acrescente-se que os testes mostrados nas figuras 1 e 2 se repetiram em cinco turmas diferentes (curso de ADS) durante cinco semestres e isso imprime confiabilidade aos resultados.
Conclusão
A introdução de aulas de Retórica e Argumentação na disciplina de Comunicação e Expressão para o curso de Análise de Sistemas em uma escola superior de tecnologia mostrou efeito bastante positivo na aquisição de conceitos voltados para a área das ciências humanas, habitualmente não consideradas como básicas nesses cursos. Existe um investimento bem maior nas disciplinas exatas, de cunho profissional.
Além da aquisição desse conhecimento, os resultados assinalam para uma substancial melhora na compreensão de conteúdos e na qualidade da produção textual. Os alunos passaram a observar melhor os argumentos e a argumentar conscientemente nos textos escritos. Percepção
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