A influência literária na obra Jobiniana: três casos de formas inéditas

August 19, 2017 | Autor: Goio Lima | Categoria: Popular Music
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Mocambo, Tudo Azul, Clube da Chave, Acapulco, Farolito, Mandarim, La Boheme, Dominó, Vogue, Michel, French Can-Can, Posto 5, Carroussel e Ma Griffe foram algumas das Boates, quase todas em Copacabana, onde Jobim atuou no início dos anos 50
Ainda hoje esse é um dos trabalhos menos conhecidos de Jobim
KUEHN, Frank M C Antonio Carlos Jobim A Sinfonia do Rio de Janeiro e a Bossa Nova: Caminho para a construção de uma nova linguagem musical UFRJ 2004, Dissertação de Mestrado
Em 1959, a peça seria em fim levada às telas pelo cineasta (com algumas novas composições da dupla) Sacha Gordine, sob o título de Orfeu Noir, obtendo a seguir a Palm D`or em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro em Hollywood
Texto extraído da contracapa do LP "Sinfonia da Alvorada" lançado pela CBS em janeiro de 1961
Segundo o dicionário Aurélio, é "ave cuculiforme. Tem coloração geral pardo-amarelada, com numerosas ,manchas escuras nas coberteiras das asas, topete avermelhado com manchas claras e escuras, garganta, sobrancelha e abdome brancos.
Canção estendida é um dos termos a serem utilizados para definir as canções inspiradas por obras literárias que ainda carecem de um título definitivo.


A influência literária na obra Jobiniana: três casos de formas inéditas
Autor Adriano Goio Lima

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, ou simplesmente Tom Jobim foi um dos mais importantes compositores brasileiros de música popular de todos os tempos. Autor de Toadas, Baiões, Peças Sinfônicas, Valsas, Boleros, Canções de Câmara e Sambas clássicos, Tom foi mestre em fundir tradição e inovação, simplicidade e sofisticação e principalmente as linguagens popular e erudita. Diferentemente da maioria dos grandes nomes associados à composição de música popular, Jobim teve educação formal em música, tendo estudado com os mestres Lúcia Branco, Tomás Terán, Joaquim Koelreuter, Paulo Silva e Alceu Bocchino.
Iniciou sua carreira ainda muito jovem como pianista da noite carioca em plena era do Rádio, onde as grandes orquestras típicas brasileiras, comandadas por nomes como Lírio Panicalli, Pixinguinha e aquele que viria a ser seu grande mestre e incentivador, Radamés Gnatalli, levavam a todos os cantos do país os sucessos nas vozes dos grandes cantores da época. Havia, talvez pelo clima taciturno do pós-guerra, uma predominância do Bolero e seu anátema nacional, o Samba Canção. Embora algumas canções já apontassem para novas possibilidades tanto nas letras quanto na parte musical (Copacabana de 1946 é um bom exemplo) em sua grande maioria os sambas ainda traziam o trinômio letras amargas - melodias previsíveis - harmonias simples como principal componente.
Suas primeiras composições gravadas (como Incerteza, dele e Newton Mendonça) já traziam a intenção de fundir a tradição e a inovação. Lançado no sinistro mês de Agosto de 1954, o mesmo que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas, Tereza da Praia (composto em parceria com Billy Blanco) trazia o diálogo sobre pretensa musa disputada entre os "rivais" Dick Farney e Lúcio Alves, ambos associados a um novo tipo de Samba mais sofisticado, sendo o primeiro o responsável pelo lançamento de Copacabana. Embora não seja lembrada como uma das canções representativas das inovações propostas por Jobim, ela já trazia modulações atípicas nos Sambas da época e surpreendia pela leveza e descontração de seu tema, coisas raras no cancioneiro da época.
No mesmo ano de lançamento de Tereza da Praia (coincidentemente o nome de sua mulher à época) Jobim inicia aquela que seria sua primeira grande inovação: compõe ao lado do mesmo Billy Blanco a Sinfonia do Rio de Janeiro, uma série de canções elaboradas que descrevia o cotidiano da cidade, quase em forma de roteiro musical, aliando imagens de seus cenários suntuosos à tristeza de seus morros, prenunciando a paixão do compositor por seu habitat. Essas canções eram entrelaçadas por temas instrumentais, não possuindo entre si os típicos intervalos que separavam as canções comuns.
Alguns detalhes curiosos cercam a gravação dessa sinfonia popular: segundo Ruy Castro (CASTRO,1990, pgs.98-99), ela seria gravada na empresa Sinter, que temendo pelo formato inovador, acabou cedendo seus direitos à Continental, dirigida pelo autor de Copacabana, Braguinha. Nessa companhia e com arranjos de Radamés Gnatalli, foi gravada pelas vozes de Dick Farmey, Lúcio Alves, Gilberto Milfont, Nora Ney, Doris Monteiro e Os Cariocas, acompanhados de grande orquestra.
O novo formato escolhido pelos compositores ensejou a utilização do recém lançado sistema de Long Play de dez polegadas, sistema esse ainda pouco difundido e ao alcance de poucos, o que talvez tenha contribuído, apesar da beleza das canções - essas já com inúmeras inovações não só na forma de sua apresentação mas no tecido melódico harmônico - para seu retumbante fracasso.
A mesma sinfonia teria um relançamento, também pela Continental, em 1960, ainda com a regência de Gnatalli, mas com outro elenco de cantores: Ted Moreno, Risadinha, Nelly Martins, Luely Figueiró, Albertinho Fortuna, Maysa, Jamelão, Coral de Severino Filho e Os Cariocas, únicos remanescentes da versão original. Tal reedição se deveu ao desejo dos produtores em divulgar tão importante obra num momento em que a tecnologia dos LPs já estava mais difundida e um de seus autores, no caso Jobim, gozava de grande prestígio por ser um dos expoentes da Bossa Nova, gênero que em 1960 alcançava grande destaque no cenário musical do país.
Infelizmente essa nova tentativa resultou em um segundo fracasso. Segundo Luiz Roberto Oliveira (HOMEM,OLIVEIRA,2012,pág.36) "até mesmo após a morte de Tom, quando foi apresentada na praia de Copacabana em 1995, a peça recebeu um dos menores públicos para esse tipo de evento". A despeito de todo desinteresse por parte do público, a obra acabou sendo incluída na trilha sonora do filme "Esse Rio que eu amo", também de 1960, do diretor Carlos Hugo Christensen.
Essa experiência de juntar diversos tipos de Sambas intercalados por temas instrumentais, não chega de fato a ser uma sinfonia strictu sensu, mas, como a definiu Billy Blanco, uma "Suíte Popular em tempo de Samba". Nas palavras de Frank Kuehn

"O título de Sinfonia confere, portanto, muito mais uma importância simbólica e conceitual à obra, representando, basicamente, uma reinterpretação brasileira do gênero. Não obstante, ao contrário da sinfonia clássica, a Sinfonia do Rio de Janeiro percorre em sua concepção o caminho inverso: ao invés de expressar o espírito de um gênio criador individual e particular, está destinada a aproximar o público ouvinte ao universo essencialmente coletivo, carioca e brasileiro de dois jovens compositores.

Em 1956, já atuando como arranjador e diretor de orquestra, Tom Jobim tem seu primeiro contato mais estreito com a literatura em sua trajetória musical: é convidado pelo poeta e diplomata Vinicius de Moraes a compor a trilha sonora de Orfeu da Conceição, uma adaptação do clássico grego para o morro carioca. Escrita em 1942 numa madrugada em que o poeta, ao ler o clássico sob o som de uma distante batucada em pleno carnaval, tem a inspiração para o que acreditava ser um roteiro cinematográfico e que acaba se concretizando num musical. À exemplo de sua Sinfonia do Rio de Janeiro, a peça também sofre de crise de identidade, talvez pelo ineditismo de seu tema. Segundo Sérgio Augusto (AUGUSTO, 2003, pg.39) Vinicius a chama de Ópera Popular Greco-Carioca
Após seu lançamento, a peça é um estrondoso sucesso. O crítico teatral Mário Cabral a considera uma "bem sucedida folk-ópera" e Guilherme de Figueiredo proclama: "já nasceu clássica". Jorge Amado, entusiasmado, afirma: "É um dos pontos mais altos da obra poética de Vinicius, e a música, toda ela, é excelente". Sobre o sucesso da estreia, em 25 de setembro de 1956, afirma Sérgio Augusto: (AUGUSTO, 2003, pg.41) "A esplêndida repercussão da primeira noite pode ser avaliada pelo número de vezes que a cortina subiu, sob aplausos da plateia, ao final de cada ato (quatro vezes no primeiro, cinco no segundo e oito no terceiro)"
Sobre a música da peça, o amigo e protetor de Jobim, Radamés Gnatalli, acrescenta (AUGUSTO,:2003, pg. 53)

Antonio Carlos Jobim, além de ter uma natureza essencialmente musical, possui a cultura e a sensibilidade artística necessárias para colocar na pauta a música adequada a um texto assim. Não se trata apenas de musicar uma poesia, mas de viver o assunto da tragédia acompanhando a ideia do poeta.

Sem saber, Gnatalli aponta no texto acima uma característica de Jobim que estará presente no resto de sua carreira e irá contribuir para o assunto abordado por esse artigo: sua imensa capacidade de extrair de uma obra literária conteúdo inspirador para suas composições. Poucos compositores tiveram uma relação tão intrínseca com a literatura como Jobim, ele mesmo autor de algumas de suas letras mais importantes, como Corcovado, Vou te Contar (Wave), Inútil Paisagem, Two Kites (em inglês) e Águas de Março, talvez sua mais bem acabada letra. Voltaremos a ela mais adiante.
No período de 56 a 58 a literatura foi a principal inspiração de Jobim para compor suas músicas, senão, vejamos: O LP de dez polegadas da peça Orfeu da Conceição foi lançado em primeiro de outubro de 1956 com Roberto Paiva cantando os temas de Orfeu no lado A, e a overture e um recitativo de Vinicius, com a Valsa de Eurídice ao fundo, no lado B; em 1957 Tom musicou a peça infantil O Pequeno Príncipe, baseada na obra homônima do escritor francês Antoine Saint-Exupéry com leitura de Paulo Autran; e finalmente em 1958, grava ao lado de Vinicius o seminal LP Canção do Amor Demais, com Elizeth Cardoso cantando canções camerísticas e Sambas modernos compostos pela dupla.
O jornalista Irineu Garcia era proprietário de uma pequena produtora de discos (Festa), voltada à gravação de poetas recitando seus poemas. Ao convidar Vinicius para a gravação de um disco abordando sua obra, o poeta preferiu levar o parceiro Tom Jobim e gravar um disco de músicas da dupla interpretada pela também compositora e amiga de ambos, Dolores Duran. Rejeitado o convite por Dolores, a dupla decide então convidar Elizeth Cardoso e o disco é gravado em janeiro de 1958.
O álbum é considerado até hoje um marco histórico na música popular brasileira. Foi o primeiro Song Book (ou álbum de apenas uma dupla de compositores) feito no Brasil. Nele estão presentes algumas das peças mais significativas da dupla Jobim/Vinicius, que além de Sambas Canções brinda o ouvinte com peças de câmara, Toadas e Sambas Modernos, apresentados com arranjos requintados com instrumentação atípica para época, com farto uso de trompas, oboés, harpas e fagotes, sempre com um pendor camerístico, que revela um Jobim maduro e inovador.
Segundo Jobim, o disco foi mesmo "um marco, um ponto de fissão, de quebra com o passado". A despeito do canto derramado de Elizeth, típico da época, o disco apresentava em duas de suas faixas (Chega de Saudade e Outra Vez) o acompanhamento rítmico de uma batida de violão até então inédita tocada pelo baiano João Gilberto, que ao gravar no mesmo ano um compacto com a mesma Chega de Saudade mudaria para sempre a música popular brasileira e inauguraria o movimento que passou a ser conhecido alguns anos depois como Bossa Nova.
Ainda em 1960, em meio ao estrondoso sucesso da Bossa Nova, Jobim compõe ao lado de Vinicius, sob encomenda de Juscelino Kubitchek a Sinfonia da Alvorada, programada para ser apresentada na inauguração da nova capital, o que acabou nunca acontecendo. Gravam disco da obra pela CBS (lançado em 1961), com Vinicius lendo o recitativo junto com Jobim, mas o disco permanece até hoje um dos mais desconhecidos trabalhos da dupla. Sobre ele, segundo Sérgio Cabral, Jobim afirma: (CABRAL,1997,pg. 153)

"Considero a Sinfonia da Alvorada muito importante para mim. Naquela época, no tempo do Juscelino, muita gente acreditou que o Brasil iria pra diante. Aquele negócio de sertão mexeu comigo. Tanto é que a Sinfonia tem pios de jaó e de perdiz. Creio que essa obra traz o ranço- o maneirismo de uma época."

Diferentemente de sua primeira experiência no que parece ser o distante ano de 1954, dessa vez Jobim compõe para orquestra sinfônica e coral uma obra em cinco partes, com recitativo de Vinicius, descrevendo a construção de Brasília, seus homens e sua fauna. A obra é vanguardista. Nela, segundo Jobim, "Vinicius usou além da palavra-sentido, a palavra-som, o que causa muitas vezes um efeito surpreendente." Sobre a parte musical, vale a pena transcrever o texto contido na contracapa do LP onde Jobim divaga sobre a primeira parte da peça:

"A música começa com duas trompas em quintas, que evocam as antigas solidões sem mágoas que nos fala Vinicius de Moraes e a majestade dos campos sem arestas que há milênios se aquietaram. O espírito de lugar prevalece. Duas flautas comentam liricamente as infinitas cores das auroras e poentes, sobre um fundo harmônico de cordas em tremolo. O mistério das coisas anteriores ao homem é exposto numa luz clara e transparente." Onde se ouvia nos campos das gerais do fim do dia o grito da perdiz, a que respondia o pio melancólico do Jaó". Às vezes, à beira d'água, surge a trama vegetal dos galhos e lianas. O timbre da orquestra escurece. O infinito horizonte se enche das cores do crepúsculo e se escuta mais uma vez o tema do Planalto".

Pela qualidade do texto de Jobim transcrito acima, nota-se que a companhia de Vinicius talvez tenha contribuído para que ele mesmo desenvolvesse a arte da escrita. Filho do poeta e diplomata Jorge Jobim e da professora Nilza, Tom cresce num lar repleto de livros e boemia. Fascinado pelos poetas desde menino, tem na leitura de Drummond e Olavo Bilac, suas primeiras paixões literárias. É num poema de Bilac que buscará a inspiração para nomear sua Águas de Março. Mas voltemos à música.
Tragado pela nova onda da Bossa Nova, Jobim dedica seus próximos anos ao movimento. Transfere-se para os Estados Unidos, onde suas canções são gravadas por diversos artistas, de cantores populares a instrumentistas de Jazz, estilo que primeiro importa a Bossa Nova. É na América que grava seu primeiro disco solo, em 1963 pela Verve, intitulado The composer of Desafinado Plays, seguido de The Wondreful World of Antonio Carlos Jobim (Warner,1964), A Certain Mr. Jobim (Warner,1965), Wave (CTI,1967), Stone Flower e Tide (CTI,1970). Paulo César Pinheiro, que viria a ser o principal parceiro na nova fase nacionalista, comenta (CEZIMBRA, CALLADO, SOUZA,1995,pg. 122 e 123):

A divisão entre o Tom da Bossa Nova e o posterior talvez se deva à leitura maior dele, mais voltada para a literatura. O papo era o sertão, as cores, os rios. Ele tinha conhecimento das folhas, das flores, dos pássaros. Ele sabia dos rios. Em "Matita Perê", por exemplo, ele faz no piano o canto do pássaro. Tom ia para o sítio dele, em São José do Rio Preto, se embrenhava pelo mato e ficava ouvindo e conversando com os pássaros. Entrou nesses mundos mágicos dos escritores e a música se voltou para isso. O Tom era um descobridor, um inventor. Eu senti que Matita Perê era um traço de união entre dois tempos dele, radicais. A partir daí começaram a sair "Águas de Março", "O Boto", "Passarim", "Urubú" e assim por diante. Ele se embrenhou totalmente nesse caminho para o sertão e deixou fluir uma veia que estava adormecida."

Após a longa temporada norte americana, Jobim, talvez considerando esgotada a seara da Bossa Nova (que no Brasil já havia sido substituída pelo Ye-Ye-Ye, pelas canções de protesto e pelo Tropicalismo, mais afinados com o momento político do país às voltas com o golpe militar de 1964) vai buscar novamente na literatura inspiração para seu novo trabalho. Só que desta vez o mergulho será muito mais profundo.

Matita Perê

Matita Perê, título da canção estendida (segundo Sérgio Cabral, Jobim a chamava de "suíte mateira" (CABRAL,1997,pág.301) que dá nome ao seu LP de 1973, o primeiro pós Bossa Nova, é extraído do folclore nacional, onde Tom passa a buscar os temas que irão compor seus próximos trabalhos. A referência literária é colhida entre três autores: Mário Palmério (na obra "O Chapadão do Bugre, de onde extrai os versos "lá vinha Matias cujo nome é Pedro, aliás Horácio, vulgo Simão) Carlos Drummond de Andrade ("Um estranho chamado João") e principalmente em João Guimarães Rosa, no conto "Duelo" do livro Sagarana, editado em 1946. Sobre a influência deste autor, o parceiro de Matita Perê Paulo Cesar Pinheiro afirma (CEZIMBRA, CALLADO, SOUZA,1995,pg. 75):

Ele citava, para você compreender, trechos inteiros de Guimarães Rosa. Ele lia e decorava. Citava, conversando contigo, página tal. Nessa época ele ouviu minha música Sagarana no festival e ficou apaixonado. Era uma homenagem que eu fazia ao Guimarães Rosa. O festival tinha padrinhos e a gente descia a rampa com os padrinhos. E a madrinha da música foi Wilma, filha do Rosa. Ele ouviu, gostou, achou interessante.

Após o longo período dedicado à Bossa Nova nos Estados Unidos, onde seu nome era associado a paisagem natural do Rio de Janeiro, e portanto às suas praias (como a de Ipanema que ele eternizou com Vinicius na canção Garota de Ipanema) Jobim mergulha no sertão profundo de Rosa, compondo como quem filma uma paisagem, talvez replicando o impressionista Debussy, uma de suas maiores influências confessas. Sobre o modus operandi da composição, novamente o parceiro Paulo Cesar Pinheiro completa (ibidem1995):

O Tom ouviu o Sagarana no festival. Achou legal, me telefonou: "Olha, comecei a fazer uma música que é um pouco nesse tema, nesse caminho do seu Sagarana. Eu gostaria de fazer contigo". Então eu disse: "'Ótimo. Com maior prazer." Ele disse "Olha, isso aí é uma espécie de monstro que está na minha cabeça, uma espécie de rascunho. Pode não ficar. Se você quiser isso não permanece, mas se quiser usar, pode. Ou então faz outra coisa.". Mas eu achei interessante. Nos pedaços dele, não mexi. Eu adaptei toda a minha história. Matita Perê é uma história, uma espécie de filme, é um curta. Ele disse: "No próximo disco, essa vai ser a música principal." Como realmente foi, um ano depois. O nome do disco foi Matita Perê. Eu comentei: "Essa música não vai ser tocada no rádio. É uma música meio sinfônica. Ela tem um tempo muito grande para o rádio. Tem mais de dez minutos de gravação". Mas essa música aí não é para agora. É para adiante," ele disse. O disco ficou belíssimo, com o arranjo do Dori Caymmi. O sentido do trabalho dele mudou. Uma espécie de traço de união entre os dois trabalhos foi Matita Perê.

Ainda sobre a influência de Rosa, Ana Lontra, segunda mulher de Jobim, completa: "Na literatura, Tom tinha preferências marcantes. Passou a vida relendo os mesmos livros, os mesmos autores. Por Guimarães Rosa ele tinha uma verdadeira paixão" (idem,1995).
Outro parceiro que, embora não tenha composto nenhuma canção, mas com quem gravou um importante LP em 1981, o compositor Edú Lobo, completa sobre a influência da literatura e também da poesia em Jobim (ibidem,1995):

Ele sabia páginas inteiras do Guimarães Rosa. Além disso conhecia muitos poemas em inglês: April is the cruelest month, do T.S. Elliot. A gente acabava decorando, de tanto que ele repetia. Lembro-me que ele se ligava muito em literatura, em poesias. Foi numa época em que dizia que não era músico, porque música era uma coisa menor.

Voltando à Matita Perê, nele Jobim inicia no Brasil o trabalho tendo como colaborador o arranjador Dori Caymmi, mas acabou finalizando o disco nos Estados Unidos, com arranjos de Claus Ogerman, seu mais frequente colaborador. Toda a letra é inspirada nos três autores a que dedica a obra, principalmente a Rosa e Palmério, pela ambiência rural, pela temática calcada nos valores da honra e da vingança e notadamente pelas paisagens do norte de Minas.
A obra é também cheia de referências veladas. Segundo Antonio Carlos Miguel:

"Essa suíte mateira também teria um contexto político, uma alegoria da fuga pelos sertões de Carlos Lamarca, o capitão de Exército Brasileiro, que desertou em 1969 para liderar a guerrilha contra o regime, até ser morto no interior da Bahia. Segundo Eduardo Athayde, o trecho "num cavalo baio que era um burro velho" substituiu o original é uma égua branca com aquela marca". "Comentei com Tom que seria provocativo demais esse "aquela marca" e ele trocou".



Embora tenha sido gravado nos estúdios da Columbia em Nova York e lançado pela Phonogram do Brasil, o disco foi inteiramente bancado pelo autor, o que lhe deu total liberdade artística possibilitando-o a inserção da canção título, composta por doze estrofes e com duração de sete minutos e dezessete segundos, excedendo em muito o padrão das canções típicas que tocavam nas rádios da época. Segundo Luiz Roberto Oliveira (HOMEM,OLIVEIRA, 2012 pág. 209):


"Numa ambientação mineira, Tom e Paulo César Pinheiro dão uma visão, nem sempre nítida, às vezes onírica, dos medos e urgências de perseguido e perseguidor. Diferentemente do conto, a ação na letra já começa na pressa da fuga, em direção a um fim para o qual não há volta ou saída. Em seu desespero, o fugitivo atravessa paisagens, esconde-se, para em seguida retomar a fuga, mudando de montaria e até de nome. O apoio à atmosfera de desalento é dado pela melodia sofrida e intrigante, ás vezes lenta, outras, mais acelerada, que ganha maior expressão por conta de um recurso hábil e original usado por Tom: a cada parte, ou cada estrofe, a tonalidade da música muda, quase sempre para outra mais baixa. Mesmo que o ouvinte não perceba, as novas tonalidades contribuem para acentuar a clima que conduz ao desfecho. Duas vezes durante a canção, ouve-se o pio enganador do matita perê".


Jobim inaugurava assim sua fase marcada pela presença da literatura como fonte de inspiração. Nela estão presentes a dualística da sofisticação x simplicidade, do diálogo entre o erudito e o popular e a relação entre a tradição e a modernidade.


Gabriela


Dez anos após a conclusão de Matita Pere, em 1983, Jobim encontra em outro consagrado autor brasileiro, Jorge Amado, o universo para seu novo trabalho. Ao ser convidado pelo diretor Bruno Barreto para compor a trilha para o filme Gabriela, o compositor entre em contato com o universo mítico de Ilhéus, Bahia, e seus coronéis, seus tipos populares e mulheres sensuais.
O romance "Gabriela Cravo e Canela" é lançado no mítico ano de 1958, que viu nascerem a Bossa Nova, o cinema novo e o Brasil perder, segundo Nelson Rodrigues, seu "complexo de vira lata" ao ser campeão mundial de futebol pela primeira vez na Suécia, revelando ao mundo a dupla Pelé e Garrincha. É também em 1958 que Maria Esther Bueno sagra-se campeã mundial de tênis em Wimbledon e Oscar Niemeyer inicia as obras de Brasília. Foi também o ano em que Odyllo Costa Filho passou a comandar a grande revolução estética no periódico Jornal do Brasil e no teatro Nelson Rodrigues causa furor com sua peça "Os Sete gatinhos". (SANTOS, 2008,pág.115)
O país modificava-se, ansiava por mudanças. E elas se refletiam na sociedade, que parecia querer viver "50 anos em cinco", como afirmava o famoso slogan do presidente JK. Jorge Amado, já consagrado autor de livros célebres editados no exterior, refletia esse desejo por mudança em sua carreira na substituição dos temas sociais para a crônica de costumes. E o fez de forma quase ordenada com outras manifestações artísticas, como a Bossa Nova, que tiraram a mulher da condição de algoz para a função de musa e heroína.
O livro fez tanto sucesso que ganhou várias adaptações para outras mídias antes do longa de Bruno Barreto: na televisão, foi adaptada para telenovela pela extinta TV Tupi (1960) e pela Rede Globo em 1975 (com a mesma Sonia Braga que estrelaria o longa de Barreto); na dança pelo corpo de baile do Balé Municipal do Rio de Janeiro; em Foto Novela pela Revista Amiga em 1975 e até em quadrinhos, em 1975 pelas editoras Klik e Brasil América.
Em Gabriela, na canção título que a exemplo de Matita Perê possuía uma forma extendida, Tom demonstra a interação que atingiu com a obra literária de referência. Dessa vez, sem parceiros nas composições, são seus os versos que descrevem perfeitamente a conflituosa relação entre seu Nacib e a selvagem Gabriela. A canção possui cinco "movimentos" ou partes: "Tema de amor", "Pulando carniça", "Pensando na vida", "Casório" e "Origens". Na versão de 1983, Jobim contou com o apoio vocal de Gal Costa no "Tema de amor", "Casório" e "Origens". A versão definitiva seria aquela lançada no álbum "Passarim", de 1987, intitulada apenas "Gabriela", que tem a duração de sete minutos e cinquenta e oito segundos, algo próximo da duração de Matita Perê.
A primeira versão de "Tema de amor de Gabriela", em sua versão mais compacta sem as outras partes, fez grande sucesso (a despeito de não ser citada no livro "A canção no tempo", de Severiano e Mello) chegando a permanecer várias semanas entre as mais tocadas nas rádios brasileiras. Jobim envolveu-se profundamente com o projeto, chegando a visitar as locações desenvolvendo uma amizade com o protagonista Marcelo Mastroiani. A parte musical foi dividida com amigo de longa data Oscar Castro Neves, ficando este responsável pelos arranjos e pela regência.
Aquilo que o crítico e ensaísta Tárik de Souza chamou de "regionalismo depurado" (CEZIMBRA, CALLADO, SOUZA,1995,pg. 155) permeou os três trabalhos de Jobim acerca das obras "Duelo" de João Guimarães Rosa e "Chapadão do Bugre" de Mário Palmério em "Matita Perê", Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado em "Gabriela" e a saga "O Tempo e o Vento" em "Passarim", que quando lançado em disco homônimo em 1987 deu a Jobim seu primeiro disco de ouro, relativo a venda de 100.000 cópias.


O Tempo e o Vento (Passarim)


O autor maduro e consagrado iria buscar em suas raízes gaúchas a próxima grande obra a ser musicada: a saga de Érico Veríssimo "O tempo e o Vento", minissérie televisiva levada ao ar pela TV Globo com ares de super produção.
Tendo iniciado a obra prevista para conter apenas um volume, Érico precisou de três para escrever "O Tempo e o Vento": "O Continente" (publicado em 1949), "O Retrato" (publicado em 1951) e "O Arquipélago" (editado em 1962). Quase sempre desmembrada, a obra foi amplamente adaptada para TV e cinema: em 1967 a telenovela "O tempo e o vento" foi levada ao ar pela extinta TV Excelsior, no cinema, teve adaptações em 1956, "O Sobrado", com direção de Cássio Gabus Mendes; em 1970 "Um certo Capitão Rodrigo", de Anselmo Duarte; em 1971 "Ana Terra" de Durval Gomes Garcia e em 2013 " O Tempo e o Vento" de Jayme Monjardim.
Para o trabalho em torno do clássico de Veríssimo, Jobim convida o letrista Ronaldo Bastos. Amigo de seu filho Paulo Jobim, Ronaldo frequentava a casa Jobim na rua Codajás, no bairro do Leblon no Rio de Janeiro, que funcionava na época como centro de peregrinação do jovens compositores, a quem Jobim sempre recebia com interesse e atenção. Ligado principalmente ao Clube da Esquina (movimento musical surgido no final dos anos sessenta capitaneado por Milton Nascimento e formado por diversos músicos mineiros), Ronaldo descreve o modus operandi do trabalho com Jobim: (CEZIMBRA, CALLADO, SOUZA,1995,pg. 97):

"Um dia Tom me ligou e disse "Tenho um trabalho para fazer. É do livro do Érico Veríssimo O Tempo e o Vento". Me tranquei no quarto para reler o romance. Depois fui para a casa dele. A convivência se cristalizou em cima de O Tempo e o Vento. Eu não tenho aproximação nenhuma com o Rio Grande do Sul, a não ser pela literatura e por amigos de lá. Tom tinha essa coisa dos ancestrais dele, dizia que era gaúcho, o Jobim. O sotaque gaúcho era diferente de tudo o que fiz. A gente falava de carne seca, de feijão, de Rodrigo meu capitão. Era um negócio de escrever uma canção para aquele momento do livro. Rodrigo chega na tropa e vai embora com aqueles cavalos. Eu não toco nada, nem canto, mas ele adorava vocais. Tom percebeu logo nos primeiros dois segundos que eu era desafinado. Ele era meio cruel, mas me absolveu, livrou a minha cara. Aprendi a compor com ele, sem levar para casa, mas também não ficava cantando ali ao lado do piano. As músicas ficaram lindas".


Talvez pela questão familiar envolvida (a figura do pai gaúcho era quase lendária na vida de Jobim) esse tenha sido um dos trabalhos que mais o estimulou. Nele encontramos toda a miríade de recursos musicais da paleta Jobiniana: a escrita sinfônica em "Banzaglia", a influência Villalobiana no tema pincipal "O Tempo e o Vento" cujo subtítulo Passarim tornou-se mais conhecido e foi regravado no disco homônimo de 1987, já sem o título que fazia referencia à obra literária.
O álbum trazia ainda algumas peculiaridades, como a participação do grupo Farroupilha cantando as tradicionais gaúchas "Querência" e "Boi Barroso" além do gaiteiro (sanfoneiro) Renato Borghetti interpretando "Minuano". Das composições Jobinianas, havia ainda aquelas compostas para um dos mais emblemáticos personagens da obra de Veríssimo, "Rodrigo meu capitão", interpretada por Zé Renato (que cantou também "Senhora Dona Bibiana") e "Um certo capitão Rodrigo" cantada pelos irmãos gaúchos Kleiton e Kledir
Talvez o caso mais curioso das canções do disco tenha sido o de "Chanson pour Michelle". O título em francês talvez seja uma forma discreta de homenagear seus autores franceses prediletos, de quem sempre declarou ter sofrido influências diretas ou não, caso de Maurice Ravel e principalmente Claude Debussy, cujos prelúdios tenham inspirado essa peça de piano solo onde Jobim apresenta o lado forte de suas composições: a força de suas melodias inspiradas sustentadas por uma harmonia requintada que soa ao mesmo tempo simples e funcional. Sobre essa capacidade sintética, Edu Lobo afirma: "O Tom herdou isso do Villa-Lobos, uma sofisticação de agrado popular" (idem, 1995, pág. 78). Essa mesma canção receberia letra póstuma do mesmo Ronaldo Bastos a pedido da cantora Nana Caymmi (e com autorização da família) e que foi gravada pelas famílias Jobim e Caymmi. Sobre a influência de Debussy, Jobim afirma (ibidem,1995, pág. 68):

"Aquelas harmonias, aquelas ondulações que Debussy faz para a terceira menor, terceira menor acima, terceira menor abaixo, a escala de tons inteiros. Tudo isso é muito ligado à natureza. Todo mundo que começa a falar de Debussy, acha que aquilo tem a ver com a floresta. Ele foi muito discutido. Quando ganhou viagem à Itália, lá no conservatório de Paris, escreveu uma peça que a orquestra se recusou a tocar porque era muito adiantada para a época. Esse eu considero uma grande influência. E o Ravel também tem muito a ver com Debussy. Mas o Debussy escreveu relativamente pouco para orquestras, ao contrário do Ravel.



As três canções estendidas "Matita Perê", "Gabriela" e "Passarim" são exemplos concretos do talento composicional de Jobim e mostram a interação entre o compositor maduro que a partir daquilo que Paulo César Pinheiro chamou de "leitura maior, mais voltada para a literatura" vai buscar nos grandes autores nacionais o material composicional dessas canções de formato extenso, em que a canção tradicional baseada na poesia não pode comportar. Jobim assim inaugura uma nova seara ainda por se explorada e melhor analisada, onde o texto, a paisagem os personagens e toda uma trama que define uma saga ou um romance são traduzidos em imagens musicais de paisagens absolutamente brasileiras.


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