A instituição da credibilidade - uma narrativa de Fernão Lopes

June 19, 2017 | Autor: Emanuel Guerreiro | Categoria: Literatura Medieval, Literatura Portuguesa Medieval, Fernao Lopes, Crónica de D. João I
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A INSTITUIÇÃO DA CREDIBILIDADE UMA NARRATIVA DE FERNÃO LOPES

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Como se institui, no interior de uma narrativa, a credibilidade de um leitor? Através do protocolo de leitura, o leitor suspende o julgamento e a capacidade de conhecimento da realidade e da verdade e identifica-se com o sujeito da enunciação, entrando no jogo da narrativa. E quando se lê um texto histórico, ou do domínio da História, como (e será que) se institui esse protocolo? Pois se, num texto de ficção, estamos no domínio do imaginário, um texto histórico remete para um referente específico, real, pretendendo que se acredite que aquilo que conta aconteceu de facto, constituindo uma interpretação dos acontecimentos. Mas será possível ler um texto histórico como um texto de ficção? Contaminar-se-á o autor de História das mesmas estratégias narrativas que o produtor de ficção? Considera Maria Leonor Carvalhão Buescu (1990:135) que

(…) História e Literatura se inscrevem em esferas secantes. O universo histórico, o plano do referente, repousa, virtualmente, numa construção discursiva. Enquanto discurso, insere-se na vertente do literário (…), a verdade é que a História pode ser sempre Literatura (…), só o ‘desígnio do escritor’ será diferente num e noutro caso.1

E acrescenta: «Construção ficcional, efeito de espelho, recuperação do tempo e da memória, anamnese, infixação dos marcos miliários de um percurso individual ou colectivo, a prática histórica invade a Literatura e é por esta invadida numa incessante troca de registos, numa incansável recriação de universos sucessivos e metamorfoses do humano.». Cf. id., p. 136. 1

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Por ser uma representação do passado, as fronteiras com a ficção confundem-se, dado traduzir em linguagem um acontecimento, convencendo (ou pretendendo o convencimento) de que está a reproduzir a realidade. Na Crónica de D. Fernando, nos capítulos C a CVI, Fernão Lopes enceta uma estratégia de provocação de credibilidade, ao contar um episódio da vida («pequena novela», chama-lhe Costa Pimpão (1959:251), pela denúncia de marcas de ficcionalidade) do infante D. João, filho de D. Pedro e de D. Inês de Castro, na sua relação com D. Maria, irmã da rainha D. Leonor Teles, tendo em vista a legitimação da subida ao trono do Mestre de Avis.2 Contando uma história que conta a História, a crónica é um registo do passado, do que aconteceu, o que, desde logo, lhe impõe um carácter de verdade, dada a relação directa com o referente, concentrando a acção em indivíduos com uma existência. Assim, através do relato deste episódio, o universo histórico reduz-se a duas personagens: o infante e a irmã da rainha, um, sujeito da acção, a outra, objecto do que acontece à primeira. A epígrafe ou título de cada capítulo tem uma função narratológica: resumindo a história, apresenta a acção central e, simultaneamente, é um instrumento de construção da credibilidade e de antecipação do que é narrado. Seleccionando determinados aspectos da história, indica o que aconteceu e como aconteceu – a história aparece, logo, no título e, depois, repete-se no corpo do texto. Acentuando a historicidade do relato,

João Gouveia Monteiro (1988:116) lê uma intencionalidade política, ideológica e social na obra de Fernão Lopes: «Competiu a Fernão Lopes (…) (e, recorde-se, por encomenda expressa de D. Duarte, mais tarde confirmada pelo infante D. Pedro) transformar em legítimo o ilegítimo. (…) A História é, em Fernão Lopes, o instrumento de liquidação de todas estas desconfianças.». Considera Teresa Amado (1997:31 e 79): «(…) Fernão Lopes percebeu que o problema mais importante e mais complexo que se lhe deparava era a legitimação incontestável do investimento do poder real no Mestre de Avis, fundador da nova dinastia. (…) A questão prévia (…) é a legitimidade do poder que então se instalou: a chegada de D. João ao trono era um facto irrefutável, mas o processo que aí conduziu era susceptível de análise e de contestação. Impunha-se ao autor a necessidade de convencer os leitores da veracidade do seu relato (…).». 2

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estabelece um elo, uma ponte com os factos que o originaram, sendo a escrita motivada pela vida, o que constitui uma estratégia de criação da credibilidade essencial do protocolo de leitura. Conta-se com que o leitor aceite o princípio motivador da escrita – a criação de um pressuposto de veracidade de uma história de amor, incluída numa crónica. Atestada por fontes e documentos consultados, a procura da verdade remete-nos para uma ideia de «mise en abyme»: Fernão Lopes diz que leu e nós acreditamos. Mas qual é a fonte, quem atesta a veracidade deste episódio, o que é possível avaliar sem documentos? Referindo-se ao sentimento mais subjectivo que experimentam os seres humanos, só eles, só os sujeitos que viveram essa experiência, podem constituir a fonte do relato. Mas Fernão Lopes, como se verá, não contactou com nenhum deles.3 Que fiabilidade pode ter, então, o discurso subjectivo? A subjectividade afectará a pretendida imparcialidade e o discurso neutro e objectivo que o cronista proclama. O relato aceite e veiculado como verdade (ou próximo dela) é admitido quando não prejudica ou contraria o propósito da crónica; daí, a escolha de fontes que o confirmem. Ao vencer a desconfiança do leitor, vence o protocolo, instaura-se o pacto proposto na aceitação do que é narrado como verdade histórica. Assim, convence-se o leitor da existência daquele universo,

Defende Maria Ema Tarracha Ferreira ([1988]:27): «É provável que Fernão Lopes tenha utilizado uma dessas ‘estórias’ anónimas, ou uma tradição oral ainda muito viva, sobre a vida do infante D. João, pois o primogénito de D. Inês de Castro impressionara a imaginação popular, tanto pelos seus dotes físicos e morais (cap. XCVIII) como por ter sido vítima da inveja e da intriga de D. Leonor Teles, que o levou a assassinar D. Maria Teles (caps. C a CIII). Ele era, efectivamente, mesmo em vida de D. Fernando, o candidato do povo, e, talvez, também por isso, Fernão Lopes dedica-lhe, nesta crónica, nove capítulos seguidos, em que se inclui a descrição de belas cenas de caça (cap. XCIX), as quais, segundo o Prof. Salvador Dias Arnaut, ‘têm todo o ar de serem copiadas de uma fonte que se perdeu’.». 3

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presentificado na leitura, e, aceitando o que é narrado como histórico, não (se) questiona, o que quebraria o protocolo.4 Na Crónica de D. Pedro, Fernão Lopes conta que, governando há quatro anos, o rei chamou um tabelião e, perante testemunhas, jurou sobre os Evangelhos e fez registar que havia casado com D. Inês, não o tendo revelado antes por medo e receio de seu pai, D. Afonso IV. Assim, legitimava os filhos que dela tivera e assegurava a sua pretensão ao trono português, sendo, a partir de então, chamados de infantes. Contudo, a dúvida permaneceu: «(…) ligeiramente lhe deram fé, outorgando ser verdade tudo aquilo que ali ouviram (…), parecendo-lhes de todo ser muito contra razom (…).» (Crónica D. Pedro, Cap. XXIX:49).5 Nomeado Regedor e Defensor do Reino, em 1383, o Mestre de Avis fá-lo e apresenta-se como representante do irmão,6 preso pelo rei de Castela para que, ausente, não fosse aclamado rei, disputando-lhe a sua pretensão. Contava-se grande número de nobres no partido do infante, contra a rainha, considerandoo o herdeiro legítimo do trono português, após a morte de D. Fernando, e, de imediato, se levantam vozes contra a hipótese de Portugal ser dominado por

Trata-se, segundo a designação de Pedro Ferré (1996:278), de um processo de novelização do facto histórico: «(…) novelizações que se afastavam do rigor histórico mas que forneciam elementos novos para a constituição da prosa literária.». Assim, António José Saraiva e Óscar Lopes (1987:132) já haviam afirmado: «(…) as crónicas merecem ser analisadas não apenas como narrativa de dados objectivos estranhos ao autor, mas como produção romanesca ou épica.». 5 As citações da Crónica de D. Pedro e de D. Fernando seguirão a edição organizada por Maria Ema Tarracha Ferreira. 6 «Foi muito amigo de seu irmão D. João, Mestre de Avis, de guisa que, como el-rei D. Pedro ordenara que sempre acompanhassem ambos, quando eram na corte, assi nunca eram partidos de monte e de caça, e comer e dormir, e das outras conversações usadas daqueles que se bem amam.». (Cf. Crónica de D. Fernando, Cap. XCVIII:69.) De tal forma os irmãos eram unidos que a própria D. Leonor «(…) ao Mestre de Avis, seu irmão, nom mostrava (…) bom sembrante, pelo grande amor e afeiçom que lhe [via] ter com o infante D. João.». (Cf. id., Cap. CI:74.) A idêntica forma de actuação da rainha para com os dois irmãos serve a estratégia de credibilização do futuro testemunho e do relacionamento entre ela e o Mestre, na Crónica de D. João I. 4

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estrangeiros, «(…) dizendo uns aos outros que o infante D. João queriam haver por seu rei e senhor (…).» (Crónica de D. Fernando, Cap. CLXXV:94).7 No entanto, os correligionários do Mestre irão pôr em prática um plano, com o objectivo de transferir a simpatia e o apoio do povo para o filho de Teresa Lourenço, culminando com a argumentação de João das Regras, nas Cortes de Coimbra, em 1385. Alterando o direito sucessório, o jurista afirma que o infante não poderia ser rei de Portugal, porque o casamento entre D. Pedro e D. Inês não se realizara nem a autorização do Papa fora concedida, sendo, portanto, filho ilegítimo,8 atestando a sua declaração com cartas privadas de D. Afonso IV, de D. Pedro e do Papa, integradas na narrativa.

2.

D. Leonor é uma hábil e inteligente estratega política, longe das características femininas do retrato medieval (recato, submissão, obediência), uma personagem activa, actuante, motivadora, desencadeando acções e intrigas palacianas, criadora de História e histórias. Fernão Lopes apresenta-a num retrato de perfídia e dissimulação:

(…) molher (…) buscador de maravilhosas artes por firmeza de seu estado. Ela havia certos fundamentos pera quem tiinha maa voontade nunca lho poder conhecer; e onde entendia fazer gram dano, aazava mortaes empeecimentos com

Quando o Mestre quer partir para Inglaterra, o povo lembra-lhe e propõe-lhe: «E se per ventuira o Ifante dom Joam veese e lhe o reino perteencesse per dereito, que o tomariam por rei, doutra guisa nom; e seendo assi como todos cuidavom, que eles o tomariam [Mestre de Avis] por seu rei e senhor (…).». Cf. Amado, 1992, Cap. 20:114 (As citações da Crónica de D. João I seguirão esta edição.). 8 Curioso é que nenhuma voz, dos aguerridos partidários do infante, se levantasse contra esta ideia ou a devolvesse: é que o Mestre de Avis também era filho ilegítimo. Ou o autor não evoca esta hipótese, pois o seu objectivo era legitimar a aclamação do rei. 7

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mostrança de todo o contrairo. (…) a alguũs outros, que ela por tal razom maa voontade tiinha, nēũa cousa dava a entender de rancor que tevesse contra eles. Mas suas falas e desembargos, todo era feito ledamente e com boom geesto, ataa que visse tempo aazado de se poder viingar segundo seu desejo. (Crónica de D. João I, Capítulo 15:111-112)

Quando soube do casamento «escondidamente» de D. Maria com D. João, «(…) por quanto via sua irmã benquiste de todos, e o infante D. João amado dos povos e dos fidalgos (…)» (Crónica de D. Fernando, Cap. CI:74), e já se denunciando o estado de saúde do rei, indicando não viver muito mais tempo, D. Leonor teme que, morrendo o rei e sem filho varão, o povo aclame D. João o novo monarca «(…) e ficaria ela fora do senhorio e reinado (…)» (ib.), tornando-se a sua irmã rainha. Tomada «(…) de peçonha da enveja (…)» (ib.) e actuando na sombra, serve-se do seu irmão, Conde de Barcelos, para aliciar o infante com a possibilidade de subir ao trono, após a morte de D. Fernando, casando-se com D. Beatriz, a filha do rei. Mas isto só seria possível se D. João não fosse casado ou a sua mulher não constituísse impedimento – isto é, se estivesse morta ou morresse. Assim, «(…) foi levantada uma mui falsa mentira, (…) porque era fama que dormia com outrem, sendo sua mulher recebida.» (id.:75). Quando surge a referência «(…) foram apartados com a rainha o infante e o conde, todos três falando adeparte, per mui longo espaço (…)» (id., Cap. CII:76), constrói-se a intriga: de que falaram? Cabe ao leitor imaginar, construir a história e decidir da aceitação do que lhe é contado. Quem é o responsável pelo crime? Quem mata ou a quem se atribui a autoria moral do acto? Actuando na sombra, D. Leonor tece a trama que envenena e conduz o infante ao crime. Será o próprio irmão da rainha e da vítima quem oferece ao assassino o punhal com o qual ele cumprirá a sua intenção (ou a de quem o instigou). Pela omissão 6

das conversas tidas entre os três cúmplices, sugerindo mais do que diz, compete ao leitor a recriação e a sua representação na leitura. A ele cabe a decifração da possibilidade de leitura que lhe é outorgada, reunindo, recolhendo, apoderandose da informação dada. Incitando à construção de um sentido, o leitor parte em busca da verdade, criação individual na procura de uma hipótese. Esta experiência subjectiva, do domínio da ficção e não do discurso histórico, constitui uma avaliação, dando forma ao significado a partir dos dados do relato.9 Com esta artimanha, perturbadora da harmonia entre as outras personagens, D. Leonor eliminaria dois obstáculos, começando por aniquilar o seu próprio sangue, impulsionando a morte da irmã. Personagem passiva, que se submete à ira de D. João, D. Maria transfigura-se de sedutora em vítima da sua própria estratégia de sedução, atestada por «(…) um outro autor, cujas razões nom som de enjeitar (…)» (Crónica de D. Fernando, Cap. C:72),10 que a descreve como «bem sisuda» e que «(…) escorregaria o infante D. João (…)» (ib.), recebendo-o uma noite, em sua casa, secretamente. Numa cena, em que o registo muda de histórico (narração do que aconteceu) para o domínio da ficção (criação de uma intriga que, para ser credível – aceitação pelo leitor do que lhe é narrado – deve apresentar verosimilhança com a realidade), a sedutora queixase e chora, «(…) o que às mulheres é ligeiro de fazer (…)» (id.:73), guiando-o ao casamento, submetendo-o pelo erotismo, «(…) satisfazendo um ao desejo do outro (…)» (id.:74). O desenho desta personagem cria uma dupla visão: Considera Teresa Amado (1992:59): «(…) em nenhum lugar para lá do texto atingiremos os factos em si; o texto dirá sempre o modo como os factos foram pensados, sentidos, avaliados nos seus motivos e consequências, pelo historiador; o único para lá do texto que existe é a leitura, isto é, o que de nós próprios lhe acrescentamos quando o lemos.». 10 O recurso a outros depoimentos, registos ou histórias, constitui um investimento na narrativa, ao mesmo tempo que institui a credibilidade do discurso, atestado por várias fontes. 9

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primeiro, ela é apresentada como uma mulher «(…) muito sisuda e corda, e discreta e bem guardada (…)» (id.:72), defendendo a sua honra das propostas do infante, afirmando que, se ele a amava e queria de verdade, desse provas disso, casando-se com ela. Com este segundo testemunho, a personagem ganha uma personalidade dúbia, ao nível da sua irmã, enredando D. João numa teia de sedução, com vista a atingir o seu objectivo: «(…) encaminhar per aquela estrada, per que el-rei Dom Fernando encaminhara com sua irmã, era muito azado e pequena maravilha (…).» (ib.). Regista-se uma mudança da focalização externa, que competiria ao historiador, para a focalização interna, característica do narrador de ficção, conhecedor dos sentimentos da personagem e revelando a sua ambiguidade. O discurso ganha vida, mas o que dá credibilidade ao texto narrativo, ficcionado, é questionável no discurso histórico. Contudo, para Fernão Lopes, tudo é verdade, ou torna-se verdade, desde que atestado, confirmado, porque o cronista não aceita a mentira, o que não tiver distinção de prova, de verdade, o que não for comprovado pela sua pesquisa. Assim, o discurso subjectivo ganha valor histórico. Considera Teresa Amado (1992:2030): A origem de tudo isto não é documental, mas afectiva, subjectiva. (…) esta afectividade (…) manifesta-se no exercício do sentido crítico, da sensatez, do humor, da adesão emotiva, da consciência social, da perspicácia política. (…) É nisto que reside a ‘verdade’ do seu texto, que não se identifica com a certeza dos factos.». 11

A descrição do assassinato de D. Maria transfigura a personagem, invertendo o discurso anterior: de sedutora a vulnerável, humaniza-a. Chegando E acrescenta (id.:58): «De facto, a referência afecta de tal modo a própria realidade, que não se pode considerar esta como algo que exista fora do texto, visto que é produzida por ele. (…) aparte o que é verificável por documentos autenticados, tudo aquilo a que chamamos ‘história’ não é mais do que a versão subjectivada que um historiador dá duma época, dum acontecimento, duma pessoa, a que se vai juntando a versão de cada leitor.». 11

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a Coimbra, antes de amanhecer, D. João entra no quarto da mulher, derrubando as portas, surpreendendo-a de tal forma que, dormindo nua, mal se cobre com uma colcha branca. Confrontando-a, ao mesmo tempo querendo julgá-la e desmascará-la, acusa-a de ter revelado o segredo do seu casamento, o que poderia condená-lo à morte ou a ser preso. Como se isso não bastasse, sendo sua mulher, traía-o. Declarando a sentença, D. João puxa pela colcha que a cobria e «(…) parte do seu mui alvo corpo foi descoberto em vista dos que eram presentes, em tanto que os mais deles, em que mesura e boa vergonça havia, se alongaram de tal vista que lhes era dorosa de ver. E nom se podiam ter de lágrimas e saluços, como se fosse madre de cada um deles.» (Crónica de D. Fernando, Cap. CIII:78). Golpeando-a por duas vezes, mata-a. Esta humanização da vítima, nua, desprotegida, submetida ao dominador que não lhe confere qualquer hipótese de defesa, revela-se na simpatia que percorre os acompanhantes de D. João, conhecedores antecipados do desfecho e da razão que os trouxera ali. Episódio dramático que, literariamente, ultrapassa a narratividade histórica ao evocar um drama humano, podia ser lido na ficção ou visto num palco, tal o realismo e o visualismo dos pormenores descritivos nas cenas e no conflito entre as personagens, indicando as suas reacções, os seus gestos, a sua expressão, revelando as suas motivações.12 Nem falta a comoção do narrador: «Oh piedade do mui alto Deus, se entom fora tua mercê de botares aquele cruel cuitelo, que nom danara o seu alvo corpo, inocente de tão torpe culpa!» (Crónica de D. Fernando, Cap. CIII:78-79).

Recorde-se a estratégia, comum em Fernão Lopes, de apelo ao leitor, de fazê-lo ver e participar no que é narrado: «Ora esguardae como se fossees presente (…).» (Cf. Crónica de D. João I, Cap. 148:199.) «A escrita de Fernão Lopes autonomiza-se em relação ao discurso histórico, torna-se entretenimento e roça a função que cabe à literatura de ficção, diferente e distante da realidade prosaica que é, apenas, o seu longínquo referente.». Cf. Buescu, 1990:151. 12

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Como poderia, agora, ser D. João aclamado rei? Cego pela ambição e manipulado pelos interesses de D. Leonor, como seria escolhido um assassino para guiar os destinos do país? Perdoado, o infante volta à presença do rei e da rainha e pretende que se cumpra o que lhe fora prometido. No entanto, «(…) a rainha havia disto mui pouca vontade (…)» (id., Cap. CIV:80), pois, se o rei morresse e se D. João estivesse casado com D. Beatriz, tornar-se-iam reis e D. Leonor seria «(…) desfeita de sua honra e estado.» (ib.). O novo plano da rainha é que D. Beatriz se case com o rei de Castela e, morrendo D. Fernando, ela seria regente até que o filho de D. Beatriz completasse catorze anos e fosse aclamado rei de Portugal. Até lá, D. Leonor não perderia o estatuto de rainha e, quando essa data chegasse, de outro estratagema se socorreria para no trono permanecer. Quanto ao infante, refugiado em Castela, ela faria com que ele fosse preso ou morto, ficando ela segura. Arrependido, pela morte da mulher e percebendo que foi enganado, perante novas de que o filho e o irmão de D. Maria querem vingar-se, o infante parte para Castela, para casa da irmã, e é acolhido pelo rei, que lhe dará protecção. Será ao seu serviço que participa na terceira guerra que D. Fernando travou com Castela, o que constituirá mais uma razão, apontada por João das Regras, para que ele não seja aclamado rei de Portugal – como entregar o país a quem contra ele combatera?13 É a descrição desta personalidade complexa, dúbia, conflituosa e rica de hipóteses, de caminhos, de saídas, de possibilidades que lhe asseguram manter a condição de rainha, que caracterizam a personagem de D. Leonor Teles, Considera António José Saraiva (1993:24): «A verdadeira terra do fidalgo era a casa do seu senhor, onde quer que ele estivesse, em Portugal, Castela, França ou Aragança. Ao serviço do seu senhor, (…) [D. João] ajuda o rei de Castela (…). E muito legitimamente, porque o seu senhor não era já o rei de Portugal, mas o rei de Castela.». 13

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dotada da arte da palavra e armada de métodos e técnicas persuasivos 14 que lhe permitem mover-se e vencer num mundo de poder masculino fechado às mulheres, onde ela é a protagonista.15 Teresa Amado (1992:47-48) caracteriza, assim, a rainha:

D. Leonor é (…) uma personagem dotada de imensa ironia. (…) O seu poder destrutivo exerce-se através da palavra. É uma ironia que não agride directamente. Antes, implicando o que não é dito, faz pairar o seu malefício de maneira ainda mais irresistível. (…) Pela sua condição de mulher impossibilitada do acesso à acção armada propriamente dita, as suas armas são unicamente a expressão oral e escrita. (…) Tudo o que provém dela pertence à esfera do mal (…). No entanto, há uma certa ambivalência nos sentimentos que o texto acusa a seu respeito: uma admiração que quase trai o fascínio pela beleza, pela vontade indomável, pela coragem, pela tenacidade, dessa mulher rara, e o ódio que inspiram a sua ambição e a sua hipocrisia. Daqui resulta a rede de ambiguidades que o autor tece constantemente em redor da sua personagem (…). Inteligente, irónica, arguta, a personagem de D. Leonor põe ao cronista um autêntico desafio de perícia verbal, na medida em que ele tem de encontrar o discurso que a condene apesar dessas qualidades.

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Confrontando as declarações de outros, «(…) que escrevem nom somente razões, de que nenhuma cousa nos ajudar podemos, mas ainda seus ditos nos desprazem muito e de todo em todo som pera enjeitar (…)» (Crónica de D. Fernando, Cap. CIV:80), Fernão Lopes põe em relevo a sua visão do estatuto da verdade: correndo várias versões, veiculando a informação de que o casamento Sobrepondo a sua vontade e interesses às decisões do rei, a sua «(…) voz valia mais que todos (…).». Cf. Crónica de D. Fernando, Cap. CIV:79. 15 «O cronista (…) desvenda-nos a intriga palaciana, que se tece, complexa e subtil, (…) em que avulta, através de secretos jogos de conveniências pessoais, a ânsia de poder de D. Leonor Teles, cujo carácter tortuoso mas hábil na manobra política é observado penetrantemente em acção, como se assistíssemos a um drama histórico, enriquecido pelo dom introspectivo do cronista, (…) [revelando] a sua vocação de dramaturgo e psicólogo.». Cf. Ferreira, [1988]:31. 14

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entre o infante e D. Beatriz teria, de facto, acontecido, a verdade é que nunca houve tal união. Assim, «(…) posto que umas palavras sejam contra as outras, e todas em soma contradigam a verdade (…)» (ib.), o cronista considera que o erro em que incorreram tais autores se deve não a malícia, mas por ignorância da verdade, o que dá credibilidade ao seu discurso, legitimando a sua investigação e o texto apresentado, conferindo-lhe autoridade por apresentar uma interpretação imparcial da verdade. Tendo compulsado fontes narrativas e documentais, ouvido testemunhas dos acontecimentos relatados, confrontando várias versões para fundamentar o que afirma, Fernão Lopes constrói uma memória nacional e colectiva e anuncia o nascimento de uma consciência crítica que a identifica e afirma. Na Crónica de D. Pedro, o cronista mostra claramente essa atitude crítica, cujo primeiro postulado é a «certidom da verdade», que «(…) há-de ser clara, e nom fingida (…)» (Crónica de D. Pedro. Cap. XXX:50), reiterando a ideia no Prólogo da Crónica de D. João I, atestando que o seu texto não oferece mais senão a «(…) clara certidom da verdade (…)» (Crónica de D. João I, Prólogo:77), preferida a valores estéticos ou artifícios retóricos de belas e formosas palavras. O cronista admite errar, mas sem ser intencionalmente, sim por acreditar ser verdadeiro o que é falso, recusando-se a mentir.16 Competindo à função de cronista o elogio do senhor que financiava o trabalho, o que condicionava o discurso e a apresentação de uma determinada imagem que se queria perpetuar, Fernão Lopes não deixa de sobrepor ao dever a fidelidade do discurso na revelação das fraquezas humanas do futuro monarca: assim, «(…) louvar as excelências do Mestre de Avis e do rei D. João I não o impede de nos «Os factos apresentados nas suas Crónicas são, portanto, tendencialmente verdadeiros.». Cf. Monteiro, 1988:89. 16

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mostrar as insuficiências do homem que se viu atribuir, um pouco por acaso, o governo da nação (…).» (Amado, 1992:30). A verdade é que o objectivo, como linha condutora que atravessa as três Crónicas, traduzindo uma totalidade significativa (Saraiva e Lopes, 1987:135), era justificar e legitimar o poder saído da Revolução de 1383-1385, veiculando uma apologia da nova dinastia, atribuindo o triunfo do Mestre à Providência Divina: «(…) o direito do Mestre de Avis era, sobretudo, o direito divino (…).» (Monteiro, 1988:117). Esse projecto é construído como uma alegoria no sonho premonitório de D. Pedro, em que a um seu filho de nome João caberia realizar grandes feitos. Só que o rei tinha dois filhos assim chamados, pelo que, relatado o sonho na crónica que traz o nome do rei (Crónica de D. Pedro, Cap. XLIII:55), cria-se uma antevisão da promessa que a Crónica de D. João I revela e cumpre, legitimando a sua aclamação em detrimento do irmão com o mesmo nome. Como se predestinado, fruto da vontade divina, o Mestre só podia (e tinha que) confirmar a escolha que sobre ele recaíra.17 Exprimindo, pela primeira vez, o conceito de Nação, em registos históricos independentes da narrativa ibérica, Fernão Lopes edifica a história nacional, concretizada na acção, força e unidade do povo português que decide por si e elege o rei que representa a autonomia do país.

António José Saraiva (1990:179) questiona o carácter de veracidade do cronista: «Esta apologia, no plano jurídico e no plano providencial, da causa do mestre de Avis não era então ociosa (…). E é muito plausível que (…) Fernão Lopes tenha [alterado] ou [omitido] factos com vista a ganhar a causa de que era advogado.». Já Costa Pimpão (1959:244-245) defendera: «O conceito de veracidade é, em si, um conceito extra-literário. (…) na medida em que o historiador subordina aquele conceito à sua visão poética ou dramática dos acontecimentos, nessa medida a sua história se torna literária, e nessa medida o homem de ciência se converte em artista. Perdese frequentemente este princípio de vista, em relação a Fernão Lopes. Para este (…), o fim da história é a verdade; mas este fim, que ele honestamente procurou, deve entender-se dentro do seu modo de perspectivar os sucessos, dentro do seu instinto de escolha, dentro da feição peculiar da historiografia medieval.». 17

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BIBLIOGRAFIA

AMADO, Teresa (1992). Crónica de D. João I de Fernão Lopes. (Colecção Textos Literários n.º 14). Lisboa, Editorial Comunicação, 2.ª edição. ------- (1997). Fernão Lopes. Contador de História. Lisboa, Editorial Estampa. BUESCU, Maria Leonor Carvalhão (1990). Literatura Portuguesa Medieval. Lisboa, Universidade Aberta. FERRÉ, Pedro (1996). «Fernão Lopes» (s.v.) in Álvaro Manuel Machado (org. e dir.). Dicionário de Literatura Portuguesa. Lisboa, Editorial Presença, pp. 277278. FERREIRA, Maria Ema Tarracha [1988]. Crónicas de Fernão Lopes. (Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses n.º 11). S.l., Editora Ulisseia, 2.ª edição. MONTEIRO, João Gouveia (1988). Fernão Lopes, Texto e Contexto. Coimbra, Livraria Minerva. PIMPÃO, Álvaro J. da Costa (1959). História da Literatura Portuguesa – Idade Média. Coimbra, Atlântida, 2.ª edição. SARAIVA, António José (1990). O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa, Gradiva. ------- (1993). As Crónicas de Fernão Lopes. Seleccionadas e transpostas em português moderno. Lisboa, Gradiva, 3.ª edição. ------- e Óscar Lopes (1987). «Fernão Lopes» in História da Literatura Portuguesa. Porto, Porto Editora, 14.ª edição, pp. 121-138.

in Brotéria. Volume 171, Julho 2010, pp. 55-64. 14

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