A integralidade dos Direitos Humanos

September 29, 2017 | Autor: Marcelo Alexandrino | Categoria: Human Rights, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, Teoría Crítica de los Derechos humanos
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Apontamentos sobre a integralidade dos direitos humanos Marcelo Alexandrino da Costa Santos1 (Rio de Janeiro, 2008) Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais (Artigo 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993). I. É fato que várias Constituições ao redor do globo, assim como diversas normas de direito internacional, não apenas positivam direitos civis e políticos, mas também reconhecem expressamente a existência de direitos sociais, culturais e econômicos 2. Sendo este um ponto pacífico, as questões que ora se põem são: (a) existe algo que distinga, ontologicamente, os direitos sociais, culturais e econômicos dos direitos civis e políticos? (b) a concretização dos direitos sociais, culturais e econômicos é exigível, ou trata-se de meras declarações de intenção, que isentam o estado de responsabilidade, no plano fático-jurídico, quanto à implementação de ações garantidoras do gozo de tais direitos? (c) o que se encontra por detrás da visão cindida dos direitos humanos e quais as conseqüências práticas daí advindas? Nas linhas seguintes, buscaremos respostas adequadas a essas indagações. II. Conforme aponta Christian Courtis3, não é raro nos depararmos com opiniões que negam o valor jurídico dos direitos econômicos, sociais e culturais, atribuindo-lhes caráter meramente político, a despeito da privilegiada posição hierárquica ocupada pelas Constituições e pelos tratados internacionais que os consagram. Dessa forma, somente os direitos civis e políticos obrigariam o Estado frente aos particulares - que poderiam, unicamente em relação a tais direitos, buscar sua plena observância e estrito cumprimento pela via judicial. Alguns argumentos são levantados em defesa dessa tese. Por exemplo, aquele segundo o qual os direitos civis e políticos importariam em obrigações negativas, de abstenção, do Estado, enquanto os direitos econômicos, sociais e culturais estariam atrelados a obrigações positivas. Associado a esse argumento, está o de que, diferentemente do que ocorre com os direitos econômicos, sociais e políticos, a observância dos direitos civis e políticos nada custaria ao erário; logo, a promoção

daqueles estaria subordinada à existência de recursos – não os havendo, as obrigações jungidas a tais direitos seriam inexigíveis. Não é difícil imaginar-se, porém, que para assegurar que particulares não invadam a esfera de liberdade alheia, ou que, uma vez invadida, esta seja restabelecida com a devida reparação de eventuais prejuízos, exige-se uma série de providências ativas do Estado. Basta que se pense nas funções de segurança e de justiça, para que se perceba que a promoção dos direitos civis e políticos implica a realização de prestações, não só de abstenção, mas igualmente positivas por parte do poder público4. Conseqüentemente, a concretização desses direitos também exige o dispêndio de recursos. Por outro lado, os direitos econômicos, sociais e culturais não estão totalmente dissociados de obrigações estatais negativas. Afinal, como ressalta Christian Courtis, “el derecho a la salud conlleva la obligación estatal de no danar la salud; el derecho a la educación supone la obligación de no empeorar la educación; el derecho a la preservación de um medio ambiente sano implica la obligación de no destruir el médio ambiente”5. Constata-se, pois, que tanto os direitos civis e políticos, quanto os direitos econômicos, sociais e culturais impõem obrigações positivas e negativas ao Estado. A diferença estaria em que estes últimos têm nas prestações positivas o seu núcleo, a sua essência; daí a importância simbólica de tais prestações no processo de identificação desses direitos. No entanto, essa diferença, a despeito de seu valor heurístico, não justifica a separação dos direitos em classes incomunicáveis: na verdade, os direitos, sejam sociais, econômicos e culturais, ou civis e políticos, dialogam constantemente. Pode-se avançar ainda mais nessa linha de raciocínio, quando se constata que a regulamentação de direitos tradicionalmente considerados civis e políticos assume atualmente alguns contornos sociais. Pense-se, por exemplo, na relativização dos direitos relativos à propriedade, ao contrato e à empresa, em razão da função social, da proteção do consumidor, da preservação do meio ambiente e de outros interesses que claramente excedem às liberdades civis6. E mais: há direitos cuja classificação não encontra resposta na dicotomia obrigação positiva / obrigação negativa, como é o caso dos direitos de sindicalização e de greve. Como se percebe, os direitos humanos merecem tratamento holístico, integral, indivisível, porquanto há espaços em que eles nítida e estreitamente se interligam, combinando obrigações de caráter negativo e positivo7, que exigem ou não a utilização de recursos públicos, revelando qualquer classificação como meramente convencional e desprovida de força hierárquica8. III. A despeito do que acaba de ser afirmado, é certo que ainda subsiste a idéia de que os direitos econômicos, sociais e culturais estão unicamente relacionados a prestações estatais positivas e, portanto, ao dispêndio de recursos financeiros. Desta forma, haveria uma condicionante de ordem econômica, que, pondo de lado a integralidade dos direitos, relegaria aqueles a uma segunda categoria, cuja concretização seria inexigível em face do Estado. Como visto, tal idéia parte de uma concepção simplista, que ignora o fato de que os direitos – sejam eles de que categoria forem – envolvem um complexo de obrigações negativas e positivas e, portanto, nem sempre o cumprimento de uma dada prestação importará em gasto para os cofres públicos. Para além disto, desconsidera que a própria atividade legislativa é uma forma de prestação positiva que não implica dispêndio extra ao erário, podendo regular determinadas situações para que os direitos possam se concretizar, criando conseqüências jurídicas relevantes desprendidas da permissão

original – como, por exemplo, o reconhecimento de entidades sindicais para assegurar uma maior amplitude ao direito de associação – ou impondo restrições e obrigações às pessoas privadas em prol de interesses da sociedade – como ocorre com os direitos laborais, ambientais e consumeristas. Por fim, deixa de lado a noção de que a concretização dos direitos pode ser alcançada com a prestação de serviços prestados pelo Estado exclusivamente (v.g., jurisdição, redes de saúde e educação públicas) ou com a repartição de obrigações com pessoas de direito privado (v.g., destinação de recursos do FGTS para o sistema financeiro de habitação). Percebe-se assim que, justamente por enfeixarem um amplo espectro de obrigações, os direitos econômicos, sociais e culturais podem oferecer uma ampla gama de opções de concretização, que vão desde o respeito até a promoção. Logo, é evidentemente falsa a idéia de que trata-se de direitos que não podem ser opostos ao Estado em razão de eventual falta de recursos previamente afetados à sua satisfação. E mesmo o argumento da insuficiência econômica perde o sentido diante da autolimitação que o Estado cria à sua discricionariedade quando assume obrigações no campo nacional (notadamente por meio de cláusulas constitucionais) ou no campo internacional. IV. Constatadas a autolimitação que obriga o Estado e a correspondente exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, desponta a necessidade de implementação de condições concretas de “exigir el cumplimento de esta autolimitación por parte del sujeto obligado (el Estado) y por iniciativa de los sujetos beneficiários (las personas)”9. Está-se diante da questão da justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, ou seja, da existência de mecanismos jurídicos de cobrar-se e obterse o cumprimento dos deveres e obrigações estatais correlatos a esses direitos. E neste ponto, novamente, muitas nações ressentem-se da visão distorcida da segregação dos direitos civis e políticos dos econômicos, sociais e culturais, que confere apenas àqueles o status de direitos verdadeiros e, portanto, dotados de exigibilidade perante instâncias judiciais10. Esse olhar míope sobre os direitos humanos tem raízes históricas indissociáveis de sua natureza de produtos culturais ocidentais, por vezes positivados para atender à hegemonia e às ideologias próprias do capitalismo11. Nesse contexto, a cisão dos direitos humanos em dois blocos (falsamente) incomunicáveis “tem levado à cristalização do pensamento liberal de que os direitos individuais, também chamados de direitos civis e políticos, estão devidamente resguardados por instrumentos de exigibilidade e justiciabilidade”, em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais 12. O casamento do liberalismo com os direitos civis e políticos, celebrado por Francisco de Vitoria13, encontrou em John Locke não apenas um protetor, mas alguém disposto a levar os pensamentos daquele a extremos que, de tão exagerados, encontravam nos direitos humanos próprios a justificativa para a supressão dos direitos humanos alheios. Segundo Locke, o estado civil seria o aperfeiçoamento do estado natural – para ele, um estado de igualdade e liberdade, mas não de licença –, a confirmação deste por uma autoridade, juíza e garantidora da fruição do que é outorgado ao gênero humano por aquele outro estado. Por graça do estado natural, todos os seres humanos seriam beneficiários da lei da natureza, que asseguraria a paz desde que respeitadas a integridade física e a propriedade. Segue daí que todos os seres humanos também seriam dotados do poder de executar a lei da natureza (afinal, dela seriam indistintamente beneficiários), impondo

castigos, independentemente da condição de vítima, àqueles que a transgredissem. Esses, os violadores da lei da natureza, poderiam ser totalmente destruídos, porquanto equiparáveis a feras que põem em perigo toda a humanidade. E, equiparando-se a feras, estariam renunciando aos seus próprios direitos humanos.14 Quanto à propriedade dos transgressores, Locke condenava a pilhagem. No entanto, encontrou no direito de reparação a justificativa para a apropriação dos bens ou dos serviços do “culpado”. Assim, legitimava, não só a expropriação dos bens do vencido, mas também a escravidão. Essas feras, esses inimigos da humanidade que ameaçariam a integridade física e a propriedade, deveriam pôr-se sob o jugo das sociedades com estado civil, uma vez que estas seriam as detentoras da autoridade política para assegurar o cumprimento da lei da natureza. Ao mesmo tempo, também o estado civil – e, portanto, outras nações que não a Inglaterra – estaria sujeito à lei da natureza. Afinal, de acordo com John Locke, o estado natural encontrar-se-ia subjacente ao estado civil, seu aperfeiçoamento. Seguindo-se a lógica de Locke, os estados naturais deveriam ser civilizados, transformando-se em estados civis, enquanto os estados civis deveriam submeter-se à lei da natureza. Abria-se desta forma caminho para que toda resistência aos propósitos da burguesia inglesa, quer advinda de sociedades não civilizadas, como as americanas, quer advinda de sociedades organizadas como “estado civil”, como as monarquias absolutistas européias e asiáticas, passasse a ser encarada como ameaça autorizadora da instalação de um estado de guerra. Nessa guerra, estariam autorizados a lutar todos os defensores da humanidade e não apenas os súditos das sociedades civis. Logo, a burguesia inglesa poderia guerrear legitimamente contra todos aqueles que supostamente a ameaçavam, onde quer que fosse, e, após submetê-los a seu jugo, ainda exigir reparação pelos gastos resultantes da batalha, apropriando-se dos bens e/ou dos serviços dos “inimigos”. Afinal, quem luta uma guerra injusta perde sua humanidade, deixa de ser dono de sua própria vida e, portanto, pode ser aniquilado por aquele que luta uma guerra justa. Ao vencedor é dado, pois, exercer um “poder despótico legítimo” sobre o perdedor: o poder de matar, escravizar, mutilar, torturar e ainda cobrar pelas perdas sofridas com a guerra injusta.15 Essa inversão dos direitos desenhada por John Locke, que nega os direitos humanos em nome dos direitos humanos16, tem sido acolhida pelo governo dos Estados Unidos ao longo dos séculos e vem servindo de “desculpa legítima” desde o extermínio das populações indígenas até a devastação causada pela invasão do Iraque – sempre em nome da liberdade e da defesa dos “bons e justos”. V. A identificação das raízes históricas do pensamento liberal ajuda a entender passagens mais recentes, que contribuíram para disseminar a idéia de que os direitos econômicos, sociais e culturais compõem uma segunda categoria, à qual correspondem deveres e obrigações estatais não exigíveis e, por conseguinte, não justiciáveis. Como aponta Flávia Leda Modell, “a realidade bipolar do pós-guerra tratou de dividir os direitos humanos em direitos civis e políticos de um lado e direitos sociais e econômicos [e culturais] e outro. O conflito entre Leste-Oeste refletiu na preferência entre as categorias de direitos: enquanto os Estados Unidos deram ênfase aos direitos civis e políticos, que são parte integrante da herança liberal, a União Soviética deu importância para os direitos sociais e econômicos, que são parte da herança socialista”.17 Foi nesse contexto que veio à luz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que arrola uma série de direitos civis e políticos nos artigos 1º a 21, dispondo sobre direitos econômicos, sociais e culturais nos artigos 22 a 27.

A Declaração, em que pese ter sido bem acolhida pelos Estados18, tinha a natureza de resolução, sendo, pois, destituída de força jurídica obrigatória; em conseqüência, sua observância era desprovida de exigibilidade. Por essa razão, em 1.950, a Comissão de Direitos Humanos da ONU foi encarregada de elaborar um tratado internacional sobre direitos humanos, tendo a Assembléia Geral recomendado, no mesmo ano, a elaboração de um único pacto. No entanto, em 1.951, os países ocidentais, no afã de estabelecer duas categorias de direitos mutuamente excludentes, lograram reverter a situação, aprovando o indicativo de adoção de dois tratados distintos. Como resultado, a Comissão elaborou, quinze anos mais tarde, dois instrumentos: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos19 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais20, vigentes, respectivamente, desde 1.976 e 1.977.21 A hegemonia capitalista liberal deixou traços fortemente marcados nas disposições desses pactos, notadamente quanto aos mecanismos assecuratórios do respeito e da promoção dos direitos ali consagrados. Por um lado, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos estabelece a obrigatoriedade de os Estados encaminharem relatórios periódicos ao Comitê de Direitos Humanos; a possibilidade de comunicações interestatais, mediante as quais um Estado-parte pode denunciar outro por descumprimento; e a adoção de medidas legislativas que possibilitem a execução dos direitos nele reconhecidos. Ademais, obriga os Estados-partes a respeitar e garantir os direitos que prevê, revestindo-se assim da natureza de norma auto-aplicável.22 Por outro, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê que os direitos ali garantidos serão implementados gradativamente e na medida dos recursos disponíveis23. Dois anos após a elaboração dos dois tratados internacionais, isto é, em 1.968, a Conferência de Direitos Humanos editou a Proclamação de Teerã24, que reconheceu a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, nos seguintes termos: “13. Como os direitos humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, a realização dos direitos civis e políticos sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta impossível”. Ainda assim, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, os direitos econômicos, sociais e culturais foram novamente relativizados, agora no bojo da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José)25, firmado em 1.969 e vigente desde 18 de julho de 1.978. Com efeito, seguindo a mesma linha do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o art. 26 do Pacto de São José prevê o implemento progressivo e subordinado à existência de recursos desse grupamento de direitos26. VI. A despeito de todos os contratempos, a importância da garantia integral dos direitos foi novamente ressaltada na Declaração e Programa de Ação de Viena27, de 1993, que “além de consagrar a indivisibilidade dos direitos humanos, confirmou a forte ligação entre democracia e esses direitos, ao afirmar, categoricamente, que a democracia. O desenvolvimento e os direitos humanos são interdependentes e se reforçam mutuamente” 28. Essa declaração, somada à Proclamação de Teerã, representa um foco de resistência da comunidade internacional à pressão das forças liberais que insistem em negar exigibilidade e justiciabilidade aos direitos econômicos, sociais e culturais, sob o argumento de que compõem uma classe inferior, de caráter meramente moral e programático.

Não se pode negar que a ideologia hegemônica lança mão de outros argumentos para justificar a posição de não-justiciabilidade dos direitos sociais, econômicos e culturais. Não raro, instituições internacionais comprometidas com o capitalismo liberal (e.g., o Banco Mundial) emitem declarações de “preocupação” com a possibilidade de o Poder Judiciário local intervir indevidamente nas outras esferas de poder (e na economia) e impor aos governos gastos inevitáveis para a concretização daqueles direitos. Os lúcidos contra-argumentos dos que advogam a justiciabilidade dos direitos em tela estão em que (1) a previsão de direitos econômicos, sociais e culturais não confere, por si só, poder irrestrito aos Tribunais para impor políticas sociais ou para usurpar das atribuições legislativas do parlamento29 e (2) a proteção dos direitos civis e políticos, por vezes, também obriga os governos a despender recursos financeiros.30 VII. Como se vê, a corrente que prega a prevalência dos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais não se sustenta. Assentada, porém, a indivisibilidade, há de se admitir que a plenitude dos direitos é garantida, não apenas pelo cumprimento espontâneo das obrigações pelo Estado, mas também pela “existencia de algún poder jurídico de actuar del titular del derecho em caso de incumplimiento de la obligación debida”, o que requer a existência de “acciones o garantias procesales concretas que tutelen los derechos sociales”31. A implementação de instrumentos adequados à correção de violações aos direitos econômicos, sociais e culturais, decorrentes do descumprimento de obrigações negativas e positivas, revela-se de capital importância quando se pensa que, de volta à herança de John Locke, o liberalismo propõe a apropriação biopolítica dos direitos humanos, ostentando a bandeira destes enquanto dispõe da vida de seus “inimigos”. Consoante a observação de Rebeca Fernandes Dias, A excessiva politização da vida, conseqüência da biopolítica, tornou a vida um objeto manipulável. Na medida em que é politicamente relevante, esta vida recebe proteção do poder soberano do Estado, que envolve o ser vivente numa camada protetora intitulada cidadania – enquanto cidadão a vida do homem é protegida. Quando não mais convém - e o que convém passou a ser determinado pelo racismo de Estado – esta vida deixa de ter relevância política. O mesmo Estado que reconhece direitos, simplesmente deixa de reconhecê-los, retira a máscara do cidadão e escancara a nudez da vida, tornando qualquer ato ou atentado contra ela não mais homicídio, mas um ato qualquer, não mais gerador de efeitos jurídicos, por sua artificial irrelevância política – a vida torna-se matável (DIAS, Rebeca Fernandes. A inserção da biopolítica no discurso dos direitos humanos: a transposição da vida de direito do homem inalienável a objeto matável. Disponível em < http://www.cejur.ufpr.br/revista/artigos/001-2sem-2006/artigo07.pdf > Acesso em: 08 Mai. 2008. Embora a biopolítica estivesse ausente das pretensões originais do liberalismo, o fato é que este acaba por apropriar-se, sob um discurso de neutralidade, da vontade e da vida dos indivíduos. O faz, como discorrido acima ao abordar-se o pensamento de Locke, qualificando de inimigos, de feras ameaçadoras, uma extensa população, sobre a

qual invoca-se o direito de dispor de seus corpos (e de sua vida) mediante o exercício do jus belli, justificado sob o argumento de se estar lançando à “guerra justa”. Esses “inimigos” – na verdade, vítimas – são compostos por toda uma exterioridade de sujeitos, comunidades e práticas não liberais, que são sacrificados em nome do discurso de neutralidade, apoliticidade e liberdade, que confere ares de legitimidade ao projeto liberal – à luz do qual a simples alegação de violação dos direitos humanos por parte do “outro” justifica a declaração biopolítica de “guerra justa”32. A biopolítica se correlaciona diretamente com a prática que Bringas chama de “colonialismo do poder”, por meio da qual se exerce autoridade baseada na discriminação antropológica, axiológica, ética e moral, que é facilitada pelo menor desenvolvimento tecnológico, científico, econômico e, obviamente, militar. Assim, o liberalismo encontra sua sustentabilidade apropriando-se do domínio de corpos e culturas e, se necessário, recorrendo a práticas racistas, de genocídio, de exclusão sistemática e de inanição existencial. Constrói-se, com o colonialismo do poder, uma unidade artificial mediante a destruição de espaços naturais nos quais vivem e constituem-se cosmovisões.33 Mais uma vez, a quebra da indivisibilidade dos direitos humanos e a alegação de escassez de recursos para a promoção dos direitos sociais, econômicos e culturais despontam como justificativas do liberalismo para prolongar o tratamento biopolítico e moldar as formas jurídicas de acordo com seus próprios projetos. Diante dessa constatação, Bringas propõe uma hermenêutica da indivisibilidade fundada no direito à vida, porquanto referência transliberal e transcultural e critério fundante dos direitos metaindividuais. Essa concepção do direito à vida como condensador de todos os direitos e norte de sua unicidade, encerra uma universalidade constitutiva dos direitos humanos – vida digna – e uma universalidade fática e contingente – a das vítimas, “o lugar onde a vida se espanta e afugenta”. Aqui, a universalidade constitutiva (dignidade) encerra uma prioridade estratégica na universalidade fática das vítimas, para que a existência e a promoção dos direitos humanos (portanto, processos de vida) destas se façam plenos.34 VIII. Ao encerrar este pequeno ensaio sobre a indivisibilidade dos direitos humanos, faz-se oportuna uma brevíssima análise crítica, especialmente à luz da experiência brasileira. Não se pode negar que, nos últimos anos, juntamente com a compreensão da indivisibilidade dos direitos humanos, tem crescido a tendência de aperfeiçoamento da exigibilidade e da justiciabilidade dos direitos sociais, econômicos e culturais ao redor do globo35. No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, Marrul ressalta que “a consagração da indivisibilidade vem sendo construída por meio da consolidação de uma base jurídica e pelo fortalecimento dos mecanismos que o compõem” e que a Corte interamericana “tem exercido um papel fundamental para o maior reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais e a conseqüente consagração da indivisibilidade dos direitos humanos” 36. Interessante notar que, no Brasil, cuja Constituição separa os direitos e garantias fundamentais “individuais e coletivos” (art. 5º) dos “sociais” (arts. 6º, 7º e 8º), as idéias sobre a aplicabilidade das normas constitucionais de José Afonso da Silva tiveram grande peso na formação de tendências doutrinárias e, por via reflexa, jurisprudenciais. De acordo com o jurista referido, as normas que dizem respeito ao atendimento dos fins sociais do Estado – v.g., saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, proteção à criança – não seriam dotadas de eficácia social, imediata, direta e integral, mas apenas

jurídica, mediata, diferida e reduzida. Daí tê-las classificado como “normas constitucionais limitadas declaratórias de princípio programático”, deixando aos respectivos direitos a natureza de meras metas a serem implementadas pelo Estado, sempre subordinadas, quanto à sua eficácia, a atividade legislativa posterior 37. Em última análise, estar-se-ia diante de direitos fragmentados, inexigíveis e não justiciáveis. Felizmente, a jurisprudência vem se conformando a entendimento diverso, que reconhece eficácia plena aos – e vinculadora do Estado ao atendimento dos – direitos sociais. De conferir, a título de ilustração, as repetidas decisões do Supremo Tribunal Federal que reconhecem a obrigação de o Estado adotar medidas que assegurem o respeito ao direito à saúde, não lhe sendo dado opor resistências meramente burocráticas embasadas em entraves de ordem orçamentária 38, apenas para citar um dos diversos temas ligados aos direitos econômicos, sociais e culturais que são constantemente objetos de demandas judiciais perante a “Justiça Comum” em todo o país 39. Em grande parte, essa tendência se deve aos instrumentos processuais apropriados à defesa dos direitos humanos como um todo, que a legislação pátria assegura: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança individual e coletivo, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, argüição de descumprimento de preceito fundamental, dissídio coletivo; enfim, toda uma gama que assegura a justiciabilidade dos direitos, sejam civis, culturais, econômicos, políticos ou sociais. Nesse quadro, merece destaque o fato de que, de acordo com pesquisa recentemente realizada, mais da metade dos juízes do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (54,3%) reconheceram os direitos humanos como “regras plenamente aplicáveis” e 79% dos magistrados afirmaram que os direitos humanos são interdependentes e que mesmo aqueles que reclamam atuação estatal devem ser judicialmente tutelados. No entanto, é digno de nota, porque alarmante, que a mesma pesquisa revelou que também 79% dos juízes desconhecem os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.40 Diante de todo o exposto, verifica-se que largos passos foram dados rumo ao reconhecimento da indivisibilidade, da exigibilidade e da justiciabilidade dos direitos humanos. No entanto, ainda há uma longa estrada a ser percorrida para que esse reconhecimento se converta em uma consagração plena e universal.

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Juiz do Trabalho na 1ª Região. Especialista em Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho pela EMATRA/UniverCidade. MBA em Administração Judiciária pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando em Teoria Crítica dos Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide, Espanha. 2 Indira Marrul indica a seguinte proposta de categorização, adotada pelo Secretariado da FoodFirst Information & Action Network. O rol, apesar de evidentemente exemplificativo, ilustra bem as categorias de direitos de que trata o presente trabalho: Direitos Econômicos: direito a alimentar-se, à moradia e ao trabalho, direitos trabalhistas; Direitos Sociais: direito à segurança social, direitos das famílias, mães e crianças, direito à saúde mental e física; Direitos Culturais: direito à educação, direito a participar da vida cultural e progresso científico, direitos das minorias; Direitos Civis: direito ao reconhecimento e igualdade perante a lei, direito dos prisioneiros, direito a um julgamento justo, direito de ir e vir, direito à liberdade de opinião; Direitos Políticos: liberdade de reunião, liberdade de associação, direito à participação na vida política. (Cf. MARRUL, Indira Bastos. A indivisibilidade dos direitos humanos: da desagregação à integração. Bahia análise & dados. v. 14, n. 1, p. 9-24, jun. 2004.) 3 COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos.Ano não identificado. Disponível em < http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct >. Acesso: 19 Abr. 2008. 4 Neste sentido, salienta Paul Hunt que “it is misleading to suggest that civil and political rights require only non interference by the state. The prohibition against torture, inhuman and degrading treatment, for example, obliges the state to provide places of detention which conform to international standards and to establish training programmes for prison and police officers. As the work of the United Nations Committee against Torture shows, a state does not discharge its international responsibilities simply by passing a national law banning the practice of torture. Yet the construction of humane places of detention and the creation of training programmes for state officials are costly exercises”. HUNT, Paul. Reclaiming economic, social and cultural rights. Ano não identificado. Disponível em: . Acesso: 01 Mai. 2008. 5 Ob. cit. 6 Cf., v.g., arts. 5º, inc. XXIII, 170, inc. III, 182, parágrafo 2º, 185, parágrafo único, e 186 da Constituição da República; arts. 116, parágrafo único, e 154 da Lei 6.404/76; art. 51da Lei 8.078/90; art. 1º, parágrafo único, da Lei 10.257/01; arts. 187, 421, 1228 e 2035, parágrafo único, do Código Civil. 7 Para Asbjorn Eide, citado por Christian Courtis (ob. cit), essas obrigações estariam distribuídas em quatro níveis comuns aos direitos econômicos, sociais e culturais e civis e políticos - respeitar, proteger, assistir e promover. Desta forma, somente se as obrigações estatais ficassem restritas, quanto a estes últimos, ao nível do respeito e, quanto àqueles, aos níveis da assistência e da satisfação, é que se poderia fazer alguma distinção levando-se em conta a utilização de recursos públicos. 8 Daí se poder afirmar que “não se faz distinção hierárquica entre os direitos civis e políticos, com [sic] os direitos sociais e culturais, tendo em vista que, ao contrário do que ocorria no passado, ambos se encontram no mesmo plano. Desrespeitar uns (social e cultural, por exemplo), significa desrespeitar os outros (civis e políticos)”. ZANOTI, Luiz Antonio Ramalho. A função social da empresa como forma de valorização da dignidade da pessoa humana. 2006, 240f. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Marília. p. 127-128. Disponível em: . Acesso: 08 Mai. 2008. 9 COURTIS, Christian. Ob. cit. 10 “It has historically been argued and accepted that socio-economic rights are non-justiciable. Advocates of this position have proposed that, while rights to housing, health care, education and other forms of social welfare may have value as moral statements of a nation's ideals, they should not be viewed as a legal declaration of enforceable rights”. CHRISTIANSEN, Eric C. Adjudicating Non-Justiciable Rights: Socio-Economic Rights and the South African Constitutional Court. Columbia human rights law review, vol. 38, n. 2, 2007. Disponível em: . Acesso: 02 Mai. 2008. 11 Sobre o tema, cf. FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como produtos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madri: Libros de Catarata, 2005. 12 VERÇOSA, Fabrício. Instrumentos de exigibilidade e justiciabilidade dos direitos humanos. Ano não identificado. Disponível em . 13 De acordo com Hinkelammert, Francisco de Vitoria foi quem expôs a primeira teoria política de caráter liberal, após a perda de legitimidade da expansão imperial baseada no direito divino e na concessão papal das terras conquistadas. Cf. HINKELAMMERT, Fraz J. La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke. Texto avulso. Ano não identificado. 14 HINKELAMMERT, Franz J. Ob. cit. 15 Idem. 16 Em sentido diverso, pregando que, a despeito de pôr a propriedade na posição de direito precípuo do ser humano, John Locke merece ser reconhecido como adversário da tirania e do abuso de poder e precursor das teorias da função social da propriedade e do valor-trabalho, confira-se ARAÚJO, Maria Darlene Braga. A propriedade privada no pensamento de John Locke. Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 03

Mai. 2008. 17 MODELL, Flávia Leda. Direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais: dicotomia ou integração? Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 10 Mai. 2008. 36 Ob. cit. p. 22-23. 37 SILVA. José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 1999. Nas palavras do autor, essas normas seriam “esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvidos ulteriormente pela atividade dos legisladores ordinários” (p. 137). 38 Neste sentido, com indicação dos julgados, ANDRADE, Wilson Túlio Alves de. Direito prestacional à saúde. Ano não identificado. Disponível em: < http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/200.htm >. Acesso: 19 Abr. 2008. Confira-se, ainda, GANDINI, Agnaldo Donizete; BARIONI, Samantha Ferreira; SOUZA, André Evangelista de. A judicialização do direito à saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial – critérios e experiências. Ano não identificado. Disponível em < http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/ 215.htm > Acesso: 19 Abr. 2008. 39 Exemplos de demandas, decisões, recomendações, manuais e monografias podem ser vistos em < http://www.prsp.mpf.gov.br/cidadania/deconSocCult/i_deconSocCult.htm>. Acesso: 02 Mai. 2008. 40 CUNHA, José Ricardo; SILVA, Alexandre Garrido. Direitos humanos e justiciabilidade noTribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 10 Mai. 2008.

REFERÊNCIAS: ANDRADE, Wilson Túlio Alves de. Direito prestacional à saúde. Ano não identificado. Disponível em: < http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/200.htm >. Acesso: 19 Abr. 2008.

ARAÚJO, Maria Darlene Braga. A propriedade privada no pensamento de John Locke. Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 03 Mai. 2008. BRINGAS. Asier Martinez de. Hacia um estatuto crítico para la teoria social: biopolítica y derechos humanos. Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 30 Abr. 2008. CHRISTIANSEN, Eric C. Adjudicating Non-Justiciable Rights: Socio-Economic Rights and the South African Constitutional Court. Columbia human rights law review, vol. 38, n. 2, 2007. Disponível em: . Acesso: 02 Mai. 2008. COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos.Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 19 Abr. 2008. CUNHA, José Ricardo; SILVA, Alexandre Garrido. Direitos humanos e justiciabilidade noTribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ano não identificado. Disponível em . Acesso: 10 Mai. 2008. FLORES, Joaquín Herrera. Los derechos humanos como produtos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madri: Libros de Catarata, 2005. GANDINI, Agnaldo Donizete; BARIONI, Samantha Ferreira; SOUZA, André Evangelista de. A judicialização do direito à saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial – critérios e experiências. Ano não identificado. Disponível em < http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/215.htm > Acesso: 19 Abr. 2008. HINKELAMMERT, Fraz J. La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke. Texto avulso. Ano não identificado. HUNT, Paul. Reclaiming economic, social and cultural rights. Ano não identificado. Disponível em: . Acesso: 01 Mai. 2008. INTERNATIONAL COMISSION OF JURISTS. Justiciability of economic, social and cultural rights: national, regional and international experiences. Ano não identificado. Disponível em < http://www.icj.org/IMG/pdf/3.pdf>. Acesso: 10 Mai. 2008. MARRUL, Indira Bastos. A indivisibilidade dos direitos humanos: da desagregação à integração. Bahia análise & dados. v. 14, n. 1, p. 9-24, jun. 2004. MODELL, Flávia Leda. Direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais: dicotomia ou integração? Ano não identificado. Disponível em
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