A internet, a memória e o patrimônio digital

May 22, 2017 | Autor: Rosali Henriques | Categoria: International Studies, Memory Studies, Digital Heritage
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012

A internet, a memória e o patrimônio digital 1 Rosali Maria Nunes Henriques 2

Resumo: A internet tem revolucionado a forma como as pessoas veem o mundo. Como em qualquer campo das Ciências Humanas, o campo da memória também está sendo afetado por esta nova mídia. Neste texto iremos discutir a importância do esquecimento para o processo da memória, enfocando principalmente as novas tecnologias da informação e o surgimento do conceito de patrimônio digital como categoria de pensamento. Ao longo do texto vamos dialogar com autores que trabalharam a internet como ferramenta de memória e esquecimento. Por fim, iremos discutir como as novas tecnologias acabam por produzir uma nova forma de patrimônio: o patrimônio digital. O que entendemos por patrimônio digital? Qual seria a melhor forma de preservá-lo? Por ser uma nova configuração na relação entre os seres humanos e o patrimônio, o patrimônio digital ainda é pouco estudado e deverá fomentar novas discussões ao longo dos anos. Palavras-Chave: 1. Memória 2. Internet 3. Patrimônio Digital.

1. Espacialidade e temporalidade na internet O surgimento de novas tecnologias de informação está modificando a forma como as pessoas veem o mundo. É uma autêntica revolução da tecnologia da informação. Segundo Manuel Castells (2002) essa revolução permitiu a criação de um novo paradigma: o da tecnologia da informação. Nesta obra, Castells aponta cinco características sobre este paradigma3. A primeira característica é a sua matéria-prima que é a informação, ou seja, são tecnologias para agir sobre a informação e não apenas informação para agir sobre a tecnologia. Um segundo aspecto diz respeito à penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. Todas as atividades humanas são moldadas pelo novo meio tecnológico, acrescenta Castells. Como terceira característica ele aponta a lógica de redes como um

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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012. 2 Mestre em Museologia. Doutoranda em Memória Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e bolsista do CNPq. Email [email protected]. 3 - Para a definição do paradigma da informação, Castells baseou-se na concepção de paradigma tecnológico enunciado por Carlota Perez, Christopher Freeman e Giovanni Dosi.

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elemento essencial neste novo paradigma. Em quarto lugar surge a flexibilidade, ou a possibilidade de reconfiguração das redes e organizações. E por fim, a quinta característica do paradigma tecnológico é a possibilidade de integração entre os sistemas, ou seja, a convergência tecnológica entre equipamentos eletrônicos. Neste sentido, Nicholas Negroponte (1996) defende que a convergência tecnológica será o grande passo para o futuro. Ela possibilitará ao homem cada vez mais usufruir das novas tecnologias que fazem parte de seu cotidiano. A massificação da comunicação que se efetivou de forma irreversível pela internet, trouxe uma nova perspectiva: a de que as novas tecnologias servirão para auxiliar as pessoas no seu dia-a-dia. Nessa concepção, a internet não é só um meio de comunicação de massa, mas também uma forma de ver o mundo. Nicholas Negroponte (1996) chega mesmo a defender que vivemos a era da pós-informação, ou seja, a internet não só um meio de comunicação de massas, mas também a personalização da informação do eu digital. Para este autor, a internet possibilita essa convergência entre o eu personalizado e o mundo, uma vez que é acessível a qualquer pessoa não só a sua consulta, mas também a possibilidade de interação neste novo universo. A Internet trouxe novos enfoques aos conceitos de tempo e de espaço. O processo de comunicação já não é mais unilateral, mas permite interação intemporal e espacial. O espaço na Internet (o ciberespaço) define as relações entre os indivíduos e o espaço virtual. A palavra ciberespaço foi utilizada pela primeira vez no romance ‘Neuromante’ ou ‘Neuromancer’ (no original em inglês), de William Gibson. Publicado em 1984, o romance de Gibson apresenta o ciberespaço como um conjunto de redes de computadores onde as informações circulam. É no ciberespaço que acontecem as batalhas entre as empresas multinacionais pelo domínio do mundo. É a nova fronteira. O ciberespaço é definido por Pierre Lévy (2000: 95) como “(…) o espaço de comunicação aberta pela interligação mundial dos computadores e das memórias informáticas”. O ciberespaço é um espaço criado pela comunicação mediada por computadores, mais conhecida como CMC. Através da CMC é possível interagir neste novo espaço. Mas o espaço físico do ciberespaço, no sentido mais conhecido, é entendido como os computadores que armazenam as informações.

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As novas tecnologias de informação, mas principalmente a internet, transformaram a relação das pessoas com o seu espaço. O ciberespaço é o não-lugar, é a ausência do espaço físico. Segundo Marc Augé (1998, p. 83), o termo não-lugar antropológico designa “(…) duas realidades complementares mas distintas. Espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer), e a relação que os indivíduos estabelecem com esses espaços.” Para Augé, o lugar antropológico possui três características comuns: ele é identitário, relacional e histórico. Para ele, o ciberespaço é um não-lugar, pois a relação que os indivíduos estabelecem com a internet é um espaço transitório, tal como conduzir um carro em uma rodovia ou comprar uma roupa em determinada loja. Nesse sentido, as comunidades virtuais também seriam não-lugares, uma vez que permitem a interação entre os seus membros, mas de forma transitória. No entanto, a internet pode também ser entendida como um lugar, na medida que cria relações entre as pessoas através de redes e conexões, etc. Nesse sentido, as instituições de memória quando criam laços na rede podem transformar-se em lugares de memória virtuais. A transformação do não-lugar em lugar de memória é possível e cria novas relações de uso da tecnologia. Na concepção de Negroponte (1996, p. 175), a era da pós-informação afastará as limitações da geografia, possibilitando a interação com outros ambientes, pois “(…) a vida digital trará consigo uma dependência cada vez menor de um lugar específico num momento específico”. Nesse sentido, é importante entendermos o que podemos designar como lugar. Usaremos o conceito preconizado por Manuel Castells (2002, p. 512) em sua obra “A Sociedade em Rede”, que define o lugar como “(…) um local cuja forma, função e significado são independentes dentro das fronteiras da contigüidade física”. Castells distingue os espaços de fluxo (lugares de poder) dos espaços de lugares (lugares onde moramos). Nesse sentido, ele defende a construção de pontes culturais, políticas e físicas entre as duas formas de espaço, possivelmente a Internet. A internet é um fenômeno novo na história da humanidade e, por consequência, os estudos sobre ela também são recentes. Embora tenha surgido na década de 1960, a internet se popularizou a partir de 1993, quando o governo dos Estados Unidos transferiu sua gestão para a iniciativa privada. A partir daí, o acesso à rede cresceu e tem modificado a forma como as pessoas veem o mundo. A massificação da comunicação que se efetivou de forma irreversível pela internet trouxe uma nova perspectiva: a de que as novas tecnologias servirão

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para auxiliar as pessoas no seu dia-a-dia. A internet trouxe novos enfoques aos conceitos de tempo e de espaço, pois o processo de comunicação já não é mais unilateral, mas permite interação atemporal e espacial.

2. A preservação da memória na internet Vivemos atualmente uma segunda fase da internet também chamada de web 2.0 4. O surgimento das ferramentas de blogs e das redes sociais veio modificar a forma como as pessoas interagem com a internet. Inicialmente, a internet era utilizada como ferramenta de comunicação através de e-mails, páginas pessoais e sites corporativos. Assim, podemos afirmar que existem dois grandes marcos na mudança de interação do público com a internet: o primeiro em 1997 com o surgimento da primeira ferramenta de blog e o segundo marco é 2003 quando surge a primeira rede social (Myspace). A proliferação dos blogs e das comunidades virtuais deu à internet uma nova face: a de um grande mural de troca de experiências. Utilizadas, na sua maioria pelo público jovem, essas ferramentas estimulam a memória individual para uma nova dinâmica, a da socialização das narrativas. Uma questão com a qual estamos trabalhando em nossa pesquisa de doutorado é sobre o tipo de memória é compartilhada nas redes sociais. Entendemos que a memória compartilhada na internet é uma memória efêmera e multifacetada. Mas veremos como alguns autores estão trabalhando este tema. Segundo Paul Virilio (2006), a internet fez surgir uma nova memória: a memória do presente. Esta memória é aquela do imediatismo, dos acontecimentos vividos e narrados ao mesmo tempo. Nesse sentido, ao postar um comentário no Twitter ou no Facebook sobre uma obra de arte vista num museu ou um fato ocorrido naquele momento, estamos vivenciando esta memória do presente. E cada vez mais, as informações e, portanto a memória, estão presentes no nosso cotidiano, pois “a memória é uma linguagem, um utensílio de comunicação” (VIRILIO, 2006, p. 94). E esta memória instantânea da internet luta o tempo todo contra o esquecimento através do excesso. Parece contraditório, mas não é.

- “Web 2.0 é um termo criado em 2004 pela empresa americana O´Reilly para designar uma segunda geração de comunidades e serviços, tendo como conceito a " web como plataforma", envolvendo wikis, aplicativos baseados em folksonomia, redes sociais e tecnologia da informação.” Informação retirada do site www.wikipedia.org em 14/03/2011 4

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Na internet proliferam sites de histórias ou que incentivam a rememoração: são blogs, comunidades virtuais, sites de museus e de projetos de incentivo ao envio de histórias de vida. Muitos desses projetos sobre eventos traumáticos tais como Holocausto, desaparecidos, massacres em massa ou guerras civis, abrem espaço para que as pessoas possam conhecer as histórias daqueles que viveram determinados acontecimentos e lutar contra o esquecimento. No entanto, o excesso de informação gerado pela sociedade pode vir a produzir um efeito contrário, relegar ao esquecimento esta memória dos acontecimentos. Andreas Huyssen (2000) nos alerta para o excesso de musealização do cotidiano e para os movimentos da memória que as novas tecnologias digitais proporcionam: Não há nenhuma dúvida de que a longo prazo todas estas memórias serão modeladas em grande medida pelas tecnologias digitais e pelos seus efeitos, mas elas não serão redutíveis a eles. Insistir numa separação radical entre memória “real” e virtual choca-me tanto quanto um quixotismo, quando menos porque qualquer coisa recordada – pela memória vivida ou imaginada – é virtual por sua própria natureza. (HUYSSEN, 2000, p. 37)

Huyssen afirma que vivemos uma avalanche de movimentos nostálgicos: moda retrô e obsessiva musealização. Ele questiona se esse excesso de memória não acaba produzindo um “explosivo” esquecimento e que muito do que consumimos hoje como memórias de massa seriam “memórias imaginadas”. Estas seriam mais fáceis de serem esquecidas do que aquelas por nós vividas. Segundo ele, “Quanto mais nos pedem para lembrar, no rastro da explosão da informação e da comercialização da memória, mais nos sentimos no perigo do esquecimento e mais forte é a necessidade de esquecer.” (HUYSSEN, 2000, p. 20) Françoise Choay (2006), especialista francesa na área patrimonial, alerta para as mudanças na questão espacial, principalmente com o desenvolvimento do ciberespaço e chega a cunhar a expressão “urbanismo de redes”. Na concepção dessa autora, a lógica de conexão distingue-se das lógicas tradicionais de articulação do espaço. Para Choay, as redes permitem ao homem libertar-se das limitações espaciais. No entanto, ela alerta para duas consequências negativas do processo de rede. A primeira diz respeito à arquitetura, pois os edifícios passam a ser concebidos em conjunto. A segunda consequência é o desaparecimento progressivo das malhas e dos ambientes articulados e contextualizados. A internet é também um espaço de autoria. Walter Benjamin (1994) em seu ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” já preconizava que a diferença entre o

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autor e público estava a ponto de desaparecer após o surgimento do cinema. Com a internet esta diferença fica cada vez menor, na medida em que há mais espaços de registro de suas histórias, obras e opiniões. As comunidades virtuais, os blogs e os sites de relacionamentos possuem uma linguagem mais próxima da coloquialidade da língua falada do que da língua escrita. Quando do surgimento da internet, muitos especialistas especulavam que a interação das pessoas com este veículo de comunicação traria uma melhoria na forma com as pessoas escrevem. Porém, após mais de uma década de existência da internet, o que vemos é que a comunicação na internet reproduz muitos erros da comunicação verbal e consequentemente muitos erros de ortografia, mas que além disso, criaram uma língua 5 específica para se comunicarem. Entendemos que a relação dos usuários com a internet é uma relação de oralidade e não de escrita, mas que a escrita na internet é uma forma híbrida de linguagem, entre a oralidade e a escrita. Da mesma forma, as memórias na internet são híbridas, pois possuem características da oralidade, mas são muitas vezes registros escritos. A memória é seletiva, não guardamos tudo, mas apenas uma parcela do que nos aconteceu durante a vida. E nem sempre o que guardamos é aquilo que queremos guardar e nem selecionamos o que guardar, mas o que restou em nossa memória. Quando associamos os processos de registro de nossa memória na internet estamos querendo compartilhar esta memória com outras pessoas. No entanto, assim como na vida, a memória na internet é fluida e passível de esquecimento. Nesse sentido, a lembrança e o esquecimento também fazem parte do processo de preservação de nossa memória na internet.

3. O patrimônio digital: mais perguntas do que respostas Antes de iniciarmos a discussão sobre o patrimônio digital, é preciso distinguir o virtual do digital. O digital só é possível a partir de um processo de digitalização, e o virtual já é uma realidade em si. Para Román Gubern (1996), a imagem digital é uma matriz de números, contida na memória de um computador, ou seja, a imagem digital é a representação de uma imagem real, em formato informático (código binário). Gubern utiliza os postulados de Aristóteles sobre a potência e faz uma distinção entre a produção da imagem e o seu 5

- Esta língua seria o internetês. Segundo Silvia Marconato o internetês é uma "forma de expressão grafolingüística [que] explodiu principalmente entre adolescentes que passam horas na frente do computador no Orkut, em chats, blogs e comunicadores instantâneos em busca de interação - e de forma dinâmica." In: Revista Língua. http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11061 Acessado em 26/07/2011.

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resultado. Nesse sentido, podemos dizer que o digital é a representação em código binário de um determinado conteúdo. Pierre Lévy (1996), baseando-se em Giles Deleuze e na filosofia escolástica, afirma que o virtual é o que existe em potência e não em ato. Para Lévy, a virtualização não é necessariamente a mutação de algo real em não-real, pois a virtualização desloca o centro de gravidade do objeto considerado. Lévy não vê a virtualização como uma ameaça e sim como um complemento. Nesse sentido, a virtualização altera as concepções de espaço, desterritorializando-o, e de tempo, causando um desprendimento do aqui e agora. Conforme alertamos em nosso resumo, a discussão sobre o patrimônio digital ainda é muito recente. A internet é um fenômeno novo na sociedade. Surgida como uma rede militar nos anos 70, ela teve sua faceta comercial, tal como a conhecemos hoje, somente em 1993. O surgimento da internet é também um marco para o nascimento do conceito de patrimônio digital. No entanto enquanto uma categoria de pensamento, usando o conceito de José Reginaldo Gonçalves (2009), o patrimônio digital ainda é muito discutido e discutível. Como este autor aponta, “o patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir” (GONÇALVES, 2009, p. 31). Partindo dessa premissa, então como podemos definir o que é patrimônio digital? É aquele produzido em forma de código binário e disponibilizado pela internet? Porque é preciso deixar clara a diferença entre a digitalização de um patrimônio e a criação digital de um determinado patrimônio. Ao centrarmos nosso estudo sobre o patrimônio digital não podemos deixar de analisar as proposições da professora Vera Dodebei sobre o assunto. Para Vera Dodebei (2005), “O conceito em uso de patrimônio digital tangencia a idéia de patrimônio virtual, quer dizer, o patrimônio intangível ou imaterial circulando na web, em contraposição ao conceito de patrimônio edificado, de ‘pedra e cal” e que é necessário a definição de um conceito aberto para o patrimônio digital, pois ainda é um assunto muito novo no nosso cotidiano (DODEBEI, 2011). A questão do patrimônio digital aparece pela primeira vez durante a 32ª Conferência da Unesco, em 2003 quando discute-se o conceito de patrimônio imaterial. Durante esta convenção foi aprovada a Carta do Patrimônio Imaterial e discutido um projeto de carta para o patrimônio digital6. Em seu preâmbulo o documento aponta que o projeto de carta é uma 6

- O material poderá ser acessado no site. http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001311/131178f.pdf consultado em 12/04/2011.

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declaração de princípios e que o objetivo é ajudar os estados membros a definir as suas políticas nacionais e atender ao interesse público para a preservação do patrimônio e acesso ao patrimônio digital. Na realidade, o que vemos são algumas iniciativas tímidas de alguns governos ou instituições sobre a matéria7. Na verdade, há ainda um grande caminho a ser trilhado. Uma discussão que é sempre pertinente em relação aos patrimônios é a questão da perda. José Reginaldo Gonçalves ao discutir o processo de criação do IPHAN no Brasil discute a retórica da perda sempre presente na maioria dos discursos sobre o patrimônio. Para José Reginaldo, “O patrimônio é narrado como num processo de desaparecimento ou destruição, sob a ameaça de uma perda definitiva” (GONÇALVES, 2002, p. 31). Para ele, há uma oposição entre a construção de um patrimônio cultural e sua destruição. Nesse sentido, a ameaça ao patrimônio, é também, uma ameaça à nação. Esse discurso da perda reflete-se também na questão do patrimônio digital. Embora seja uma discussão mais recente, podemos dizer que ele já nasce com sintomas herdados dos patrimônios “pedra e cal”. Se ainda discutimos como devemos preservar os patrimônios mais tradicionais, o que fazer quando se trata de patrimônio nascido digital? A questão que se coloca é que o excesso de informação produzida e disponibilizada na internet através de sites, blogs e comunidades virtuais aponta para um excesso, como nos diz Huyssen, mas também há de se criar estratégias de preservação. Nesse caso, acreditamos que o patrimônio digital, assim como os patrimônios mais consolidados, sofre de acasos e fatalidades na sua preservação. Ao mesmo tempo em que sabemos que alguns acasos acabam por preservar patrimônios “pedra e cal”, em outros casos algumas fatalidades nos fazem perder parte de determinado patrimônio. Dessa maneira, acreditamos que uma das formas de preservação do patrimônio digital seja a da disseminação das informações em servidores diferentes. Um exemplo interessante sobre essa temática é a questão das redes sociais. Quando uma pessoa posta fotos no Facebook ou no Orkut, inconscientemente ela acaba por ter uma atitude de preservação da sua memória, uma vez que as suas fotos estarão preservadas nos servidores dessas instituições. No entanto, seria ingenuidade acreditar que estas instituições 7

- Exemplo de uma instituição que tem trabalhado a preservação do patrimônio digital é o site Internet Archives, cujo objetivo é armazenar a memória da internet. www.archive.org. No entanto é uma iniciativa isolada e talvez inócua se pensarmos a internet como um todo.

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são instituições de memória, mas não podemos negar o papel delas na dinâmica da sociedade atual. Nesse caso, qual seria o papel das tradicionais instituições de memórias, tais como museus e centros de memória na preservação do patrimônio digital? Primeiro, é preciso fazer uma diferenciação entre o que é patrimônio digital nascido de uma digitalização de patrimônio daquele nascido digital, tais como relatos, arte eletrônica. O patrimônio nascido digitalmente não possui rastros físicos além do digital, ou seja, do código binário. Trata-se, portanto, de um patrimônio cuja preservação é essencial. No entanto, com base em que critérios será feita essa preservação? Sabemos que políticas públicas demandam muito tempo de discussão e que a carta de 2003 é apenas o início dessa história. Não se trata somente de discutir a reprodução de acervos no ambiente virtual através de sites e museus virtuais, mas de preservar o que está sendo criado virtualmente. A Pedra de Roseta 8 permanece preservada nos dias de hoje, mas quem garante o que vai ser preservado e como vai ser preservado o conhecimento e o patrimônio que estão sendo produzidos através da internet? Qual o nosso papel enquanto cientistas sociais nessa história? Acreditamos que um desses papéis é tentar entender como o patrimônio digital será encarado pelas novas gerações de nativos digitais9 e nos adequar ao processo de sua salvaguarda, seja ele qual for. Segundo Prensky (2004), um dos problemas atuais é que a geração de imigrantes digitais quer ensinar aos nativos digitais como utilizar a internet. Na visão deste autor seria uma incoerência, pois eles mesmos vão encontrar os caminhos dentro do universo da internet.

4. Considerações finais O esquecimento é tão necessário à memória quanto a lembrança, pois não há memória sem esquecimento. No entanto, o equilíbrio entre esses dois movimentos é muito frágil. A internet é uma poderosa ferramenta de armazenamento e divulgação de histórias. Ela pode e deve ser usada como um instrumento de lembrança para evitar processos institucionalizados de esquecimento como massacres, por exemplo. No entanto, como nos alerta Huyssen, o excesso de memória produzido na sociedade atual pode tornar-se, na verdade, em mecanismo 8

- Bloco de Granito negro encontrado pelos soldados do Exército de Napoleão no Egito e que foi utilizado por Jean-François Champollion decifrar o código de escrita do Antigo Egito (hieróglifos). 9 - É uma expressão criada pelo educador canadense Marc Prensky para definir as pessoas que nasceram após o advento da internet, do celular e do MP3. Quem nasceu anteriormente a este período seria um imigrante digital, pois teve que aprender a lidar com ela em sua fase adulta.

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ao serviço do esquecimento. A internet é um veículo e uma forma de comunicação em constante evolução e necessária, nos dias de hoje, a qualquer instituição. É praticamente impossível prescindirmos dela para a realização de uma pesquisa nos dias de hoje. Cada vez mais temos mais acesso às informações através da internet, e cada vez mais temos mais necessidades de mais informações. É preciso mudar nossa metodologia e nossa forma de ação com o patrimônio em relação às novas gerações de nativos digitais que estão surgindo. Nesse sentido, a memória na internet, o patrimônio digital e a interação do patrimônio com as novas tecnologias são temas ainda muito pouco estudados no âmbito das ciências humanas e sociais. É importante que surjam novos estudos que se aprofundem nessa questão e que possam trazer novas luzes para o entendimento do uso da internet nos processos de preservação da memória social. Gostaríamos de finalizar este trabalho apontando uma observação feita por Françoise Choay em sua obra “A Alegoria do Patrimônio”: “Romper com o passado não significa abolir sua memória nem destruir seus monumentos, mas conservar tanto uma quanto outros, num movimento dialético que, de forma simultânea, assume e ultrapassa seu sentido histórico original, integrando-o num novo estrato semântico.” (Choay, 2006, p. 113)

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Referências bibliográficas

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