A inutilidade da arte & a poética de Manoel de Barros

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A inutilidade da arte & a poética de Manoel de Barros A questão da inutilidade da arte só cresce, só tem sentido com o reconhecimento de que essa inutilidade é que lhe dá sentido, à arte. Ou não seria arte, seria um utensílio, como bem diria Manoel de Barros. Marcel Duchamps tira um objeto de seu contexto – um mictório, uma roda de bicicleta –, torna-o uma obra de arte; não tem mais serventia, é arte. A beleza? O belo é relativo. No tempo de Aristóteles o belo era a mímesis, a imitação, a cópia da natureza; mas essa concepção é teórica: a natureza era a visão que o artista tinha da realidade. Era o reflexo, as sombras na parede da caverna de Platão. Para que serve um poema? Se tem serventia, pouca ou nenhuma poesia tem. O que comunica um poema? A linguagem poética é carregada de significado (Pound), mas não é sua função comunicar. O poeta não é carteiro para levar mensagem, disse Ionesco. Se quero convencer alguém, a prosa tem muito mais poder de persuasão. Ou a baioneta, o canhão, a bomba atômica ou de hidrogênio. “... poesia não presta para demonstrar nada. Ela só presta para dar néctar”, afirma Manoel de Barros, em entrevista a Douglas Diegues, no livro Silêncios. A poesia não convence ninguém; encanta – enleva e eleva. “O mundo ficou mais belo / quando por ele andou teu coração”, escreveu Cecília Meireles. E, se não se define o belo, sabemos que tem mais a ver com o coração do que com a razão. Poesia não se faz com a razão, mas com o corpo, disse Manoel de Barros. Poesia é sensualidade, é o que nos quer ensinar, se nos quer ensinar alguma coisa. O próprio Aristóteles escreve: “Todo conhecimento passa pelos sentidos.” Manoel de Barros, como quem não quer nada, e não quer, está apenas vivendo, sentindo com o corpo, vai nos expondo a sua poética. Porque Manoel de Barros tem uma poética; desvia, dissimula, mas, ou não seria um poeta, tem uma poética. Tergiversa, desconversa, cala ou fala demais, confunde, e, ao fim, entrega a sua teoria. Não é papel do poeta teorizar, mas como o lavrador tem terra e calo nas mãos, nos olhos, no corpo, no seu ser todo, assim o poeta tem a sua poesia. Do que falaria o poeta, senão do seu instrumento de trabalho? Manoel de Barros fala da poesia, da palavra com que trabalha para criar a poesia, como o peão fala do seu cavalo ou da sua enxada. E como o peão tem consciência das suas lides no campo, Manoel de Barros tem consciência das lides no poema. Embora diga, e por isso mesmo: “Não gosto de dar confiança para a razão, ela diminui a poesia.” Virou folclore vê-lo como o poeta pantaneiro e por isso a exuberância do Pantanal inundar a sua poesia. Nada mais errado. Não é um mero deslumbrado com a natureza, mas um artífice das palavras: “A simples enumeração de bichos, plantas (jacarés, carandá, seriema, etc.) não transmite a essência da natureza, senão que apenas a sua aparência. Aos poetas é reservado transmitir a essência.” Mas como? Aprendeu com Oswald de Andrade que o trabalho poético consiste em modificar a língua e com Rimbaud que a visão do poeta é um “imense dérèglemente de tous les sens”. Cita Guimarães Rosa: “A poesia nasce de modificações das realidades lingüísticas.” Ou Leo Spitzer: “Todo desvio nas normas da linguagem produz poesia”. Mas vai muito mais além: “Instala-se um agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras.” A chave está mais no termo “insana” do que apenas em “agramaticalidade”. E vai repetindo, não só por repetir, mas, nessas variações de uma mesma nota, para enfatizar: “O sentido normal das palavras não faz bem ao poema./ Há que se dar um gosto incasto aos termos./ Haver com eles um relacionamento voluptuoso./ Talvez corrompê-los até a quimera./ Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. / Não existir rei nem regência./ Uma certa luxúria com as palavras convém.” Prestemos atenção: “escurecer”, “incasto”. Propõe uma volta à infância da palavra, numa visão primordial do mundo: “Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. / Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – / Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem

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às crianças que foram / Às rãs que foram / Às pedras que foram./ Uma certa luxúria com as palavras convém.” Conta do que ouviu do poeta Nelson Nassif: “Hoje minha boca não está idônea para o beijo”, para completar: “Tomei uma surpresa poética. Aquele adjetivo idônea saiu de seu habitual contexto de responsabilidade (cargo idôneo, firma idônea, etc.) e veio se encostar em uma boca! Entrou em contexto de volúpia. Molecou o idioma. Na verdade me preparei a vida inteira para fazer frases dementadas.” Portanto, não bastam as palavras em si. É preciso esse “contexto de volúpia”, senti-las com o corpo. Todas as palavras se prestam para a poesia. Tudo depende do contexto. “Lata pedra rosa sapo nuvem – podem ser matéria de poesia. Só que as palavras assim em estado de dicionário, não trazem a poesia ou a anti-poesia nelas, inerentes. O envolvimento emocional do poeta com essas palavras e o tratamento artístico que lhes consiga dar, – isso que poderá fazer delas matéria de poesia. Ou não fazer. Mas isso é tão antigo como chover.” Carlos Drummond de Andrade, quando já era considerado, há muito, pela maioria dos que conheciam literatura, o maior poeta brasileiro, enquanto outros diziam já que o maior era João Cabral de Melo Neto ou pelo menos o mais importante, pois Drummond disse que o maior poeta brasileiro era Manoel de Barros. Muitos torceriam o nariz para essa afirmação. O próprio Manoel de Barros disse que o nosso melhor poeta era João Cabral. Ele, que não constrói, não acaba bem um poema, diz da Geração de 45, a que ele e João Cabral pertencem cronologicamente: “Achava e acho ainda que não é hora de reconstrução. Sou mais a palavra arrombada a ponto de escombro. Sou mais a palavra a ponto de entulho ou traste.” Tem consciência crítica, conhece o que é um poema, objeto fechado em si, isto é, a poesia de João Cabral, e sabe que a sua poesia é feita de restos, restolhos. Ele como que se compraz em brincar com as palavras, virá-las e revirá-las nos dedos: “Não tenho outro gosto maior do que descobrir para algumas palavras relações dessuetas e até anômalas.” Assim se justifica, se fosse preciso se justificar: “O que não sei fazer desconto nas palavras. / – Imagens são palavras que nos faltaram. / – Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem. / – Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser. / (...) Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos. / Outras de palavras. / Poetas e tontos se compões com palavras.” Sabe que o poema é uma forma, um objeto, mas em estado de alucinação: “Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados.” São objetos lúdicos, mas com os sentidos fora do normal, desregrados. Os árcades, diante do desregramento do Barroco, desregramento dos sentidos, das imagens, da mundivisão, multifacetada, puseram entre seus princípios esta divisa: Inutilia truncat.” Cortar todas essas inutilidades. Parafraseando-os, Manoel de Barros parece querer esta: Inutilia manet: permaneçam todas as coisas inúteis. “Só me preocupo com as coisas inúteis.” Não é a luxúria intelectual do Barroco, mas uma luxúria verbal primitiva, ressudando ainda o limo da Criação. Sabe que a poesia não serve para nada: “O poema é antes de tudo um inutensílio.” Por isso cita Adorno, que queria uma poesia comprometida, que não poderia aceitar uma arte alienada: “As correntes subterrâneas que atravessam o poeta, transparecem no seu lirismo.” Adorno, que disse de Baudelaire: “Foi mais fiel ao apelo das massas do que toda a poesia gente pobre dos nossos tempos.” Há um Manoel de Barros subterrâneo. Manoel de Barros, que se compraz com suas “nadezas”: “Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema / Enquanto vida houver.” Sempre valorizando a luxúria da palavra, a mais abjeta: “Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta. / Sou mais a palavra ao ponto de entulho.” É a busca da pureza, da infância do verbo: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia. Quem come, pois, do podre, se alimpa. Isso diz o Livro.” Continuo lendo Manoel de Barros. É um hino à pureza. É quando o belo tem nome. E toda uma poética se abre a nossos olhos. Vejamos:

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“ Beleza e glória das coisas o olho é que põe. Beleza é o desnecessário. (...) A língua é uma tapagem.” “Restolho tem mais força que o tronco. Isso é uma desteoria que ele usava.” “Crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas.” “O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase coberto de limos.” “O Livro o ensinou a não saber nada – agora já sabe.” “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos tem lírios.” “Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, uma teologia do traste, uma folha de assoviar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado primaveril." “As coisas que não levam a nada / têm grande importância.” “O que é bom para o lixo é bom para a poesia.” “Poesia é a loucura das palavras.” “O que eu ajo é tarefa desnobre. Coisa de nove noves fora (...) Essas descoisas (...) De modo que existe um cerco de insignificâncias em torno de mim (...) Tudo coisinhas sem veia nem laia. (...) Tenho que transfazer a natureza.” “Para voltar à infância os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua.” “O ilogismo é muito importante para o verso.” Chamado de poeta telúrico, pantaneiro, imagista, surrealista, primitivo, prefere o último nome. Primitivo, ingênuo, puro. Não o intelectual, o cosmopolita, mas o poeta que ele se inventou. Como Whitman inventou o Whitman peregrino, democrata, símbolo do americano, o visionário das “Folhas de Relva”, assim Manoel de Barros inventou o Manoel de Barros telúrico, pantaneiro, primitivo etc. Não que não o seja, mas não é o caboclo sujo de terra isolado na beira do rio, convivendo apenas com bichos e plantas. É o eu edênico que se inventou, que descobre o mundo a cada manhã. Um mundo ainda sem nome. Falei acima que é quando a beleza tem nome, mas esse nome não pode ser pronunciado, ou quebra-se o encanto. É o que diz o poema XIX da 1a. parte de O livro das Ignorãças: O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz atrás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.

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8 de agosto de 2001 José Carlos Mendes Brandão

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